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Flávio Desgranges A Pedagogia do Espectador

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•. J
FLÁVIO DESGRANGES
A PEDAGOGIADOESPECTADOR
EDITORA HUCITEC
São Paulo ; 2003 .
-Díreltos.autorais, 2002, de Flávio Desgranges .
DIreitos' de publicação reservados por
ADERALDO;& ROTHSCIIILD EDITORES LTDA.,
Rua João Moura, 433 - 05412-001 São Paulo, Brasil
Telefone/fax: (55xxll) 3083-7419 (geral)
Atendimento ao Leitor: (55xxll) 3060-9273
Atendimento ao Livreiro e ao Dístrlbuídor: (55xxll) 3258-1357
e-maíl : hucltec@terra.com.br
horne page : www.hucltec.com.br
Depósitos Legais efetuados.
Editoração Eletrõníca: Juliana Ferrarl
ClP-Brasll Catalogação na Fonte
SIndicato NacIonal dos Editores de LIvro, RJ
D486p
Desgranges, Flávio
A pedagogia do espectador
/ Flávio Desgranges. • São Paulo: Hucltec, 2003.
11. ; . - (Teatro ; 46)
Inclui bibliografia
ISBN 85·271-062()-5
1. Teatro e sociedade. 2. Platéias de teatro. 3. Teatro -
História.
I. Título. n. Série.
Para Giulian
03·2268. CDD 792.ol
CDU 792Jl67
's UMÁ RIO
pág.
Capítulo 1
Ao encontro do mundo lá fora. 13
Capítulo 2
A arte do espectador: contexto de uma formação 19
Capítulo 3
Práticas teatrais e formação de espectadores . 45
Capítulo 4
O espectador épico: pedagogia para um teatro de
espetáculo 91
Capítulo 5
O teatro épico moderno e a contemporaneidade 135
Capítulo 6
A descoberta do prazer da análise 171
Bibliografia 179
1
AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA
Numa visita ao Musée D'Orsay, na cidade de Paris , local onde,
me contaram, teria funcionado, outrora, uma estação de trem,
eu percorria as grandes galerias do segundo andar, de pé-direi-
to bastante alto e paredes de concreto. Passeava por um dos
setores dedicados à exposição permanente do museu , onde esta-
vam localizadas diversas pinturas impressionistas. Uma profu-
são delirante de quadros de Gauguln , Cézanne, VanGogh, Seurat,
que .exploravam as qualidades 6tlcas da luz e da cor, e desperta-
vam intensas emoções . As telas pareciam exalar os perfumes das
paisagens que retratavam. Um pequeno descuido já nos deixava
ouvir o cantar das cigarras nos campos de sol escaldante, ou o
ruído silencioso dos rios rnargeados por arbustos em variados
tons de verde e leves pinceladas de violeta.
A visitação seguia pelas muitas galerias fechadas, quando , no
meio de uma das salas surge, surpreendente, uma janela que nos
deixava ver, lá fora, o entardecer da cidade, tendo como fundo
um céu azul cravejado por nuvens esparsas, recortado pelos pe-
quenos' prédios parisienses. Postei-me diante da janela durante
longo tempo e percebi que não estava s6. Vários dos visitantes
permaneciam estáticos diante dela, olhando para aquela paisagem
13
14 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA 15
como se observassem uma pintura, uma obra de arte . Afastei-
me da janela, sentei-me em um dos bancos próximos e me ative
à reação das pessoas , à relação que estabeleciam com a paisa-
gem que surgia pela vidraça, enquanto pensava na faculdade da
arte de nos sensibilizar, em como a contemplação daquela se-
qüência de quadros havia provavelmente estimulado os visitan-
tes a lançar um olhar estetizado para o mundo lá fora, em como a
relação com as obras propiciava, ainda que por instantes, que os
contempladores fruíssem a existência como uma experiência ar-
tística . Os visitantes entravam e saíam daquela, galeria; o movi-
mento em direção à janela ea.relação com a paisagem parisiense
repetiu-se por longo período, até que me retirei da sala e do
museu, não sem guardar cuidadosamente na memória aqueles
que para mim foram intensos e raros momentos .
ano seguinte, em 1996 , na época em que fazia um estágio
no T.J.A. (Théâtre des Jeunes Années), na cidade de Lião, tive
oportunidade de retornar a Paris . O impulso me levou de volta
ao D'Orsay e, depois de rápida visita aos impressionistas, ohe-
guei à galeria em que se encontrava a tal janela. Para meu espan-
to, nada acontecia. Não havia ninguém diante dela, os visitantes
passavam pela sala sem o menor interesse pela paisagem pa-
risiense que a vidraça descortinava. Sentei-me no mesmo banco
em que observara as pessoas no ano anterior e aguardei. Alguma
reação tinha de acontecer, não poderia ser possível que a mes-
ma exposição, a mesma seqüência de quadros , as mesmas obras
de arte que provocaram os contempladores na vez anterior, não
estimulassem os passantes a lançar um olhar em dire -
ção à paisagem da janela. Os visitantes não eram os mesmos,
pensei , mas isso não explicava o desinteresse, pois no ano ante-
rior dezenas de pessoas, das mais diferentes nacionalidades, seno
tiram-se estimuladas a travar um diálogo corri o mundo lá fora.
Vincent Van Gogh (1853-1890) . La Méridienne (d'apr êsMiliet),
1889-1890. Musée d'Orsay.
16 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA 17
E, além do mais, as obras eram exatamente as mesmas ordena-,
das da mesma maneira. A única variável encontrava-se, portan-
to.no céu, na paisagem vista através da janela; como em qual-
quer canto, as tardes em Paris, naturalmente, nunca se repetem.
A resposta s6 poderia ser esta: a janela não provocava os obser-
vadorescomo fizera naquela vez. Mas o que, efetivamente, havia
de diferente na .paísagern? Por que 'aquele entardecer teria sido
provocatívo e.este não? .
.' Levei .. comigo , as soluções que consegui formular
no dia l1,ão'me satisfizeram, até porque muitas respostas seriam
posefvelsra beleza especial da.primeira paisagem teria catívado
os visitantes, oua do sol naquele dia em Paris poderia
ter chamado 'atenção das pessoas, já que no segundo dia o 'céu
estava Mas aatitude dos observadores diante
da.janela me Indicavaurna resposta diferente, que não se resu-
misse à própria, beleza da vista da primeira visita, mas quede
alguma maneira relacionasse algo presente na seqüência de qua-
dros observados com elementos daquela paisagem. E foi nesse
sentido que formulei minha resposta: pareceu-me que, no pri-
meiro entardecer, o céu parisiense, pontuado por algumas nu-
vens e entrecortado pelos pequenos prédios, apresentava-se com
uma variação de luz e sombra, ressaltando intensos reflexos da
luminosidade do sol e das vibrações do ar, que de algum modo
poderia ser relacionado com as investigações pictóricas dos
impressionistas. A janela, dessa maneira, provocava os observa-
dores por apresentar relações, afinidades estéticas entre a seqüên-
cia de obras de arte vistas e o entardecer da cidade; a paisagem
como que problematizava a experiência artística, propondo aos
contempladores que estancassem o curso da visita e se debru-
çassem reflexivamente sobre o parapeito da vidraça para anali-
sar o mundo lá fora.
Outras respostas poderiam ser formuladas , não há dúvida , mas
foi essa a que mais me satisfez. Contudo, independente das múl-
tiplas possíveis soluções para este problema específico, carrego
a questão comígo, a qual ainda me inquieta, pois sugere outros
desdobramentos, tanto acerca da compreensão de como se esta-
belece a relação do contemplador com a obra de arte, quanto .
sobre as possibilidades pedagógicas da experiência artística.
Este trabalho é, em certo sentido, o desdobramento das inter-
rogações suscitadas pelas visitas ao Musée D'Orsay. A experiên-
cia da janela perpassa, assim, diversas das questões abordadas
nas partes seguintes deste livro. Como se estabelece a relação
do espectador com a obra teatral? Essa recepção pode ser dina-
mizada? Que procedimentos utilizar visando provocar estetica-
mente a recepção? Como estimular o espectador a empreender
uma atitude artística, produtiva, em sua relação com Omundo lá
fora? Qual a importância atual de se pensar uma pedagogia do
espectador? Como se estruturaria essa pedagogia na oonternpo-
rapeidade? Como compreender o processo de formação de es-
pectadores? Formar para quê , afinal?
Trata-se aqui, portanto, de investigar a relação há muito aca-
lentada entre o teatro e a educação, sem a pretensão de esgotar
as questões levantadas, porém na tentativa de traçar algumas
linhas de reflexão que possibilitem, não só afirmar, 'mas ampliar
o entendimento do teatro como importante instrumento educa-cional. Para isso, foram apontadas algumas reflexões possíveis
acerca da relação entre teatro e sociedade , com intuito de inves-
tigar a necessidade de teatro que a vida contemporânea permite
supor, e assinalar a relevância de unia pedagogia do espectador
dias que correm. .
O livro trata , ainda, das diversas práticas teatrais que visam a
formação de espectadores, enfocando tanto atividades pedagógicas
18 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA
propostas antes ou depois do espetáculo, que objetivam dinami-
zar a recepção, quanto procedimentos artísticos utilizados na
própria constituição do espetáculo teatral visando provocar es-
teticamente a platéia. E, aqui, tomou-se, por base a teoria de
teatro épico, concebida por Bertolt Brecht. Ninguém, talvez, te-
nha pensado, teorizado, experimentado/tanto sobre o assunto
..quanto o teatrólogo alemão, que é figura-chave do 'teatro no se-
culo XX; seus ensaios nos oferecem pistas quase obrigatórias em
qualquer tentativa de as bases de uma pedagogia do
espectador.
Com intuito de compreender o caráter educacional do teatro
brechtiano, estabeleceram-se alguns pontos de contato entre: a
atitude proposta ao espectador do teatro épico; a atitude do
contemplador em sua relação com aobra de arte, segundo as
definições de Mik.hail Bakhtin; a atitude do historiador no diálogo
travado com o,passado histórico e a atitude da criança diante do
brinquedo, tal como compreendidas por Walter Benjamin.
Em seguida, com base nas teorias que fundamentam a arte
contemporânea, investigou-se a atualidade do teatro épico con-
cebido por Brecht na primeira metade do século XX, questio-
nando a atual: aplicabilidade dos procedimentos artísticos da
modernidade, tendo em vista as recentes transformações no
modo de vida, que solicitam um redimensionamento das pro-
postas estéticas formuladas no. período.
2
A ARTE DO ESPECTADOR:
CONrEXTO DE UMA FORMAÇÃO
o centro de gravidade da atividade tea-
tral mudou: ele não está mais na cena ou
na obra somente, ele se situa de alguma
maneira no ponto de intersecção da cena
com a sala, ou melhor ainda, no encon-
tro do teatro com o inundo.
- BERNARD DORT
o esvaziamento das salas
No início dos anos 1970, Anatol Rosenfeld, filósofo alemão
refugiado no Brasil, talvez um dós maiores te6ricos de teatro que
já tenha escrito em língua portuguesa, debitava a propalada cri-
se do teatro nacional à falta de público nas salas de espetáculo,
Fala-se atualmente com insistência de uma crise do tea-
tro brasileiro. Empresários, diretores, autores, atores reú-
nem-se, debatem a crise, fazemlevantamentos, analisam a
situação, encontram-se assiduamente, com o ministro de
Educação e Cultura para apresentar reclamações, propostas,
reivindicações, pedidos. A crise de que se fala quase exclusi-
vamente é de público: uma encenação normal raramente
19
Mais adiante, dando seqüência à sua análise, afirmava que, em
nosso país, se os teatros fossem fechados, não apenas uma por-
centagem do público não tomaria conhecimento disso durante
algumas semanas, como disse Grotowski , referindo-se ao públi-
co europeu, mas que também grande parcela da população bra-
sileira, provavelmente, nunca se daria conta do ocorrido.
Atualmente, no início do século XXI, e lá se vão'trinta anos , a
dita crise prossegue quase inalterada, pelo menos no que se refere
ao público; e, se há alguma mudança, não parece ser muito ani-
madora. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal do Brasil há
poucos anos, cresce o I}úmero de poltronas vazias nos teatros das
cidades do Rio.de Janeiro e de São Paulo, tendo as salas uma média
de ocupação de, respectivamente, 21% e 22,7% (Oliveira, 1997).
Se a crise se anuncia de forma semelhante em duas épocas, o
debate, no entanto, parece ganhar COntornos diferentes. No iní-
cio dos anos 1970, indica Rosenfeld , ao comentar os motivos
apontados, então, por empresários e artistas para a falta de pú-
blico nas salas , a concorrência da televisão merecia grande des-
taque, pois o teatro perdia não só espectadores, mas também
atores que, seduzidos pela vantagem econômíoa por ela ofereci-
da não mais se in teressavam pelas produções teatrais. A dispu-,
ta cada vez maior com O cinema estrangeiro era outro fator.
Apoiada em uma produção artesanal, a dificuldade da arte tea-
tral em competir com espetáculos industrializados a tornava um
evento em franca decadência. Discordando fortemente de
Rosenfeld, alguns julgavam mesmo obsoleto o palco , argumen-
tando que ele não seria mais capaz de retratar a complexidade
20 A ARTE DO ESPECTADOR
consegue atrair, nos dias comuns, mais que cinqüenta ou
setenta espectadores, se é que consegue tanto (Rosenfeld,
1993, p . 43). .
A ARTE DO ESPECTADOR 21
do' mundo moderno. Outro motivo apontado na época 'por al-
guns homens de teatro para o esvaziamento das salas era o mo-
mento político-social, apoiado na falta de liberdade de expres-
são que lançava toda a cultura nacional em um círculo de silêncio.
No final dos anos '1990, segundo a reportagem, as principais
causas da falta de público , apontadas por artistas e produtores,
dizem respeito ao aumento do preço dos ingressos , motivado
pelo alto custo das produções, à violência nas grandes cidades
que, somada à falta de segurança pública e à inexistência de
estacionamento próprio nos teatros, deixando os espectadores
temerosos de saírem de casa duran te a noite , à carência de tex-
tos que despertem interesse na platéia, à "vírulêncía" com que a
crítica tem tratado os espetáculos, além da ausência de campa-
nhas de formação de platéia e de uma lei de incentivo às artes
cênicas.
Épocas dlstíntas, contextos diferentes, outras abordagens do
mesmo problema. Alguns dos motivos levantados por Rosenfeld,
. como a concorrência .da televisão e do cinema, em virtude de
seu caráter industrial, poderiam ainda estar presentes nas análi-
ses atuais, bem como a discussão acerca da obsolescência da
arte teatral , Os' motivos apontados" de importância inques-
tionável, entretanto, não conseguem esgotar a densidade da ques-
tão, que abrange desde as possibilidades e dificuldades da relação
travada entre teatro e sociedade nos dias atuais até tentativas de
apreender a relevância e a necessidade que o teatro tem, ou
poderia ter, na sociedade contemporânea. Aliás, apesar de ga-
nhar contornos bastante específicos em nosso país, esse tema
não é brasileiro, mas também mundial.
O esvaziamento das salas teatrais reflete , possivelmente, o de
uma arte essencialmente coletiva que se vê em confronto com a
solidão da era moderna. O individualismo, marca da modernidade,
22 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 23
ganha expressivas tonalidades nessa virada de século e talvez trans-
forme o teatro em evento muito pouco sedutor.
A coisa mais importante dos anos 70 e do início dos anos
80 foi a escalada do individualismo, tanto no aspecto com-
portamental quanto na vida política. E, com esse indivi-
dualismo, a crise das formas políticas ligadas a uma pro-
moção coletiva dos cidadãos ou da comunidade. O que nós
chamamos de "neolíberalísmo" foi a crítica a qualquer for-
ma de promoção 'ou de vontade coletiva de criar algo. Eu
penso , efetivamente, que nós estamos em vias de retornar
(Saez, 1989, p. 34).
O cinema, provavelmente a atividade artística mais freqüenta-
da nos dias atuais, é um bom exemplo desse primado dos even-
tos individuais, das coletividades solitárias. Normalmente, ir ao
cinema sozinho, ou em uma sala vazia, é tão ou mais divertido
do que com a sala cheia. O filme está lá, pouco se altera. Pode-se
até mesmo pegar uma fita de vídeo e vê-la em casa. Com o tea-
tro , evento que requer a participação do público, acontece o
contrário: sem levarmos em conta as questões de conforto, uma
sala cheia ou a presença de um bom número de espectadores
incendeia o espetáculo, tornando-o mais prazeroso.
Abdicando de seu caráter marcadamente díalógíco, o teatro,
por sua vez , na tentativa de se adequar aos padrões de compor-
tamento , vem procurando cada vez mais .constrtrír espetáculos
para as individualidades.As peças são encenadas de tal forma '
que pouco se alteram com a presença do pú.blico, parecem indi-
ferentes aos espectadores. Contrariando a si próprio, o teatro
(ou parcela significativa das produções teatrais) propõe a au-
sência do público presente.
Isoladas do mundo, as consciências individuais entram
em contato espiritual com profissionais da oferta - oferta
de arte, oferta política - com a condição de que esta lntírní-
. dade não ofereça riscos (Saez, 1989, p. 27) .
E se a arte teatral deixou de oferecer riscos, é porque .deixou
de se colocar em risco, o teatro propõe à platéia aquilo que se
espera dele , que o espectador seja o modelo do cidadão ideal,
aquele que 'apenas aguarda a cena seguinte. O dito teatro de arte
não é mais um movimento de guerra e, sim, de resistência, tal a
indiferença a que foi relegado .
Em todos os lugares do mundo, o público de teatro se
tornou rarefeito. Existem aqui e ali tentativas de renova-
ção , mas, em seu conjunto, o teatro não consegue nem exal-
tar, nem instruir; e muito freqüentemente, não consegue
.nem mesmo divertir. .. Na Broadway, em Paris, em Lon-
dres', a crise é exatamente a mesma. Não temos necessída-
de de ouvir as queixas das agências de locação para saber
que o .teatro se tornou uma empresa funerária e que o pú-
blico já compreendeu isso (Brook, 1977, p. 24).
E se o assunto não pode ficar circunscrito às particularidades
nacionais, tampouco pode ser visto como um tema recente. "Se-
ria ingênuo ficarmos abatidos pOI; algo que é óbvio há um sécu-
lo: o teatro é uma atividade artística em busca de sentido" , as
palavras são do encenador Eugênio Barba, escritas no progra-
ma de sua peça Kaosmos, o ritual: da porta, encenada recente-
mente no Brasil. Uma atividade que busca o próprio sentido, no
entanto, necessita manter-se viva, atuante, para que possa conti-
nuar dialogando com a experiência contemporânea. Talvez a crise
24 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 25
secular do teatro venha sendo mesmo sua própria forma de
vida, a razão de existência de uma arte que, tragicômica, volta
emeía se lança ao fundo de si mesma e que, durante a queda,
reínventa maneiras de 'pairar e sobrevoar prazerosamente o
próprio abismo.
Não há dúvida de que a falta de um público especializado em
nosso país agrava a dita crise: o esvaziamento das salas de espe-
táculo emudece o debate. No Brasil, a situação torna-se mais
dramática, pois o hábito de freq üentar teatro nunca se arraigou
de fato na alma de nosso povo.
As indústrias culturais, sobretudo a televisão e o cine-
ma, naturalmente são uma concorrência poderosa, favore-
cida pelo fato de no Brasil, antes da expansão desses meios
e artes, não se ter constituído um amplo público habituado
a teatros e por isso mesmo capaz de transmitir
esse hábito em larga medida.às próximas gerações (Rosen-
feld, 1993, p. 245).,
Nos dias atuais, entretanto, a busca de sentido para a crise do
teatro apresenta características bastante Uma dife-
rença marcante da década de 1970 para esse início de século
consiste na ampla expansão e no predomínio de uma cultura
audiovisual estandardizada. Além disso, no decorrer desses anos ,
o teatro se tornou menos uma experiência artística para se com-
partilhar e mais um mercado a se conquistar, um produto a ser
vendido para um espectador que se transformou em "consurní-
dor-alvo". Isso faz que os produtores culturais cada vez mais
voltem seus esforços para a veiculação de sua imagem e da ima-
gem de seu trabalho pelos meios de comunicação de massa, COn-
centrando atenção na divulgação e venda de seus produtos.
Em nossas sociedades contemporâneas, sociedades espetaculari-
zadas, de indivíduos viciados em imagem , especialmente na ima-
gem da própria imagem , sociedade que vive sob monopólio da
aparência, em que "só aquele que aparece é bom", o artista da
arte do espetáculo vive um dilema: trabalhar para a qualidade
de seu fazer artístico ou para aparecer e fazer parecer que sua
arte é de qualidade?
O narcisismo dos artistas e o mercantilismo dos empreendi-
mentos teatrais fazem que os produtores se preocupem mais
com a difusão de seu trabalho nos media do que no contato
fundamental entre autor e espectador. Interessados sobretudo
na divulgação e comercialização de sua mercadoria, deixam de
prezar a efetiva presença e participação do público, esquecendo-
se de um companheiro fundamental nesse jogo: o espectador. Tudo
isso leva alguns espectadores habituados e interessados nos rumos
da arte teatral a se perguntarem:
Nestas condições, por que ir ao teatro hoje? É preciso
aceitar esse primado absoluto da cena sobre a sala ? É pre-
ciso aceitar o estatuto de consumidor de produto teatral,
em vezdeespectador.crítíoo de uma obra, ou melhor, ob-
servador de uma proposição teatral? Na verdade , vários
espectadores potenciais respondem a tais questões de ma-
neira negativa: não vão ao teatro , ou vão menos ao teatro .
Devo confessar que sou um deles (Carrasso , 1995 , p. 15).
A saída para o esvaziamento das salas, portanto, não se resu-
me em facilitar o acesso do público 'a esse produto, mas consiste
também em fazer os produtores teatrais perceberem a impor-
tância do espectador no evento. Não somente como alguém que
sustenta financeiramente 01;1 cobre de aplausos os espetáculos ,
26 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 27
mas como o outro imprescindível em um diálogo.' 'Da mesma,
maneira como o público se pergunta "por que ir ao teatro hoje
em dia?", talvez seja imprescindível que os artistas de teatro
levantem questões semelhantes: Por que ir ao público hoje? Para
fazer o quê? Dizer o quê? Para quem? Qual a necessidade disso,
afinal? Somente respostas muito claras dos artistas podem sus-
citar a contra-resposta dos espectadores.
A obsessão de todos os grandes reformadores do teatro
foi a pesquisa não' das técnicas mas do sentido. Todas as
grandes reformas tiveram que passar por esta questão: por
que fazer teatro? (Barba, 1996, p. 60).
Talvez fosse necessário empreender uma luta para que artis-
tas e produtores abram as salas para os espectadores. E não se
trata somente de facilitar o acesso financeiro de todas as cama-
das da população, mas também de convidar o público a tornar-
se parceiro de empreendimentos culturais. Abrir o teatro, de
fato, de maneira que o espectador se sinta participante efetivo de
um movimento artístico, fazendo da Instituíção teatral um espaço
comunitário, de todos e aberto a todos. E não um espaço restrito,
reservado ao desfile de alguns poucos e inflados egos.
O que não significa dizer que não haja artistas e projetos tea-
trais que marchem na contramão dessa tendência dominante,
que se contrapõem ao consenso estético e à lógica mercantilista
das produções. Artistas que se negam a reproduzir as proposi-
ções perceptivas veiculadas pelos meios audiovisuais de massa.
A formação de espectadores possibilita ampliar seu campo de
questionamento, pois, uma vez especializado, habituado, não se
pergunta apenas "por que ir ao teatro?", mas passa a indagar
também: "a qual teatro ir?".
Não existe teatro sem platéia e a importância da presença do
espectador no teatro precisa ser vista não somente por uma ra-
zão econômica, de sustentação financeira das produções. É eví-
dente que o fator econômico é vital e não pode ser esquecido,
até porque o preço do ingresso torna o acesso inviável, excluín-
do das salas uma parcela do público que talvez fosse a mais ínte-
ressada. Como um livro que só existe quando alguém o abre, o
teatro não existe sem a presença desse outro com o qual ele
dialoga sobre o mundo e sobre si. Sem espectadores interessa-
dos nesse debate, o teatro perde conexão com a realidade que
se propõe a refletir e; sem a referência desse outro, seu discurso
se torna ensimesmado, desencontrado, estéril. Não há evolução
ou transformação do teatro que se dê sem a efetiva participação
dos espectadores.
O teatro que a getuefas: tem a necessidade de jogadores,
estamos assim chamando os companheiros de jogo que são
os espectadores. Assim, do lado da platéia',precisamos tam-
bém de jogadores [... ] (Guénoun, 1997, p. 164).
o olhar do observador sobre o espetáculo sustenta o próprio
jogo do teatro: A necessidade de companheiros de jogo, de crla-
ção, anima o movimento de formação de público. Uma pedago-
gia do espectador se justifica, assim, pela necessária presença
de um outro que exija diálogo, pela fundamental participação
criativa desse jogador no evento teatral, participação que se efe-
tiva na sua resposta às proposições cênicas, em sua capacidade
de elaborar os signos trazidos à cena e 'formular um juízo pró-
prio dos sentidos.
A luta por um teatro que responda aos anseios de nosso tem-
po, teatro de qualidade (e por que não?) não deve ser me-
28 A DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR' 29
dida pelo bom acabamento da produção ou pelas críticas que
recebe em jornais e revistas ou pela quantidade de espectadores
.9ue consegue seduzir ou ainda' pelo índice de aplausos ao final
da encenação não pode acontecer sem a voz da platéia. Os es-
pectadores, partícípantes interessados, precisam constituir par-
te atuante no processo. ,A qualidade do trabalho de um ator, de
um encenador, ou de um dramaturgo não pode ser avaliada ape-
nas por sua capacidade técnica e inventiva de realização , mas
está fortemente ligada à franqueza, vigor, e interesse com que ,
em sua prática, se depara e responde à questão central, aquela
que o move: Por que fazer teatro? Por que ir ao público hoje?
A pedagogia do espectador não é questão somente para peda-
gogos. A capacitação do público para participar ativamente do
evento teatral está fundamentalmente vinculada à proposição
artística que lhe é dirigida, e se estabelece também pela ma-
neira corno o artista trabalha e compreende o ponto de Inter-
secção entre a cena e a sala. A atuação do espectador não se
efetiva sem o reconhecimento de sua presença. A voz desse ou-
tro integrante do diálogo situado na platéia só pode ser ouvida
se a palavra lhe for aberta. Seu interesse em enfrentar o debate
estético proposto na obra está diretamente lígadoàmaneíra como
o artista o convida, provoca e desafia a se lançar no diálogo.
O acesso ao teatro
No entanto, como promover de fato a atuação do espectador
na evolução e nas transformações da arte teatral? Como tornar
efetiva sua participação no evento? Corno levá-lo à sala de espe-
táculo? Como despertar seu interesse em freqüentá-la?
Qualquer iniciativa de formação de espectadores não pode
ser reduzida, como ternos visto nos últimos anos no Brasil, a
campanhas de convencimento que , às escorregam para
, 0
um tom demagógico do tipo "a pessoa mais importante do tea-
tro é você" ou investidas esporádicas, que mais lembram campa-
nhas de vacinação, do tipo "vá ao teatro" , corno se dissessem:
"vacine-se contra a ignorância" . Pode-se aprender a gostar de
teatro, o difícil é ser convencido a fazê-lo (ou ser convencido a
gostar de qualquer coisa). O prazer advérn .da experiência, o
gosto pela fruição artística precisa ser estimulado, provocado ,
vivenciado, o que não se resume a uma questão de marketing ,
O despertar do interesse do espectador não pode acontecer
sema implementação de medidas e procedimentos que tornem
viáveis seu acesso ao teatro. Na verdade, duplo acesso: físico e
Iíngüístíco. Ou seja, tanto a possibilidade de o indivíduo freqüen-
tar espetáculos quanto a sua aptidão para a leitura de obras tea-
trais. Antes disso , é fato , torna-se necessário que tenhamos boas
condições de produção para um oferecimento quantitativo e qua-
litativo de espetáculos teatrais. No entanto, não é suficiente ter
oferta de peças em cartaz, é preciso mediaresse encontro entre
palco e platéia. Primeiramente, é necessário criar condições para
o espectador ir ao teatro , o que envolve uma série de medidas
para favorecer a freqüentação, tais como: divulgação competente
das peças em cartaz, que atinja públicos de diversas regiões e
classes sociais; promoções e incentivos que viabilizem financeira-
mente o acesso de diferentes faixas de público; condições de se-
gurança; rede de transportes eficiente; e tantas outras atitudes de
apoio e incentivo que façam, em última instância, colocar o es-
pectador diante do espetáculo (ou vice-versa) . O acesso ao tea-
tro porém não se resume a possibilitar a ida às salas (ou a levar" ,
espetáculos itinerantes a regiões menos favorecidas). Formar es-
pectadores não se restringe a apoiar e estimular a fre-q üentação ,
é preciso capacitar o espectador para um rico e intenso diálo-
go com a obra, criando, assim, o desejo pela artística.
30 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 31
Portanto, a pedagogia do espectador está calcada fundamen-
talmente em' procedimentos adotados para criar o gosto pelo
debate estético, para estimular no espectador o desejo de lançar '
um olhar particular à peça teatral, de empreender uma pesquisa
pessoal na interpretação que se faz da obra, despertando seu
interesse para uma batalha que se trava nos campos da lingua-
gem, Assim se contribui para formar espectadores que estejam
aptos a decifrar os signos propostos, a elaborar um percurso
próprio no ato de leitura da encenação, pondo em jogo sua sub-
jetividade, seu ponto de vista, partindo de experiências,
sua posição, do lugar que ocupa na sociedade. A experiência
teatral é única e cada espectador descobrirá sua forma de abor-
dar a obra ede estar disponível para o evento.
Ir ao teatro não quer dizer rigorosamente ser espectador da
peça que está sendo apresentada, da mesma forma que ir ao
museu não sígníftca necessariamente participar de um evento
estético, já que, segundo Bakhtin, o fato artístico s6 se completa
no momento em que o receptor se distancia da obra, retoma à
sua própria consciência e, recorrendo ao seu patrimônio vivencial,
elabora a sua compreensão dela (Bakhtin, 1993).1 É preciso, por-
tanto, em um museu, por exemplo, que o visitante esteja dispo-
nível para se colocar em diálogo com a obra (e o artista), debru-
çando-se diante da pintura ou da escultura para, a seu modo,
apreendê-Ia e compreendê-Ia. Da mesma maneira, o espectador
de teatro precisa travar diálogo com a peça. Ser espectador re-
quer esforço , não há saída, um esforço criativo.
Se levarmos em consideração um quadro, uma pintura, o diá-
logo que se estabelece entre receptor e obra d.e arte pode dar-se
anos ou séculos depois do momento da sua realização; no tea-
1 Estudaremos mais detalhadarnente o conceito de fato artístico, tal como
foi compreendido por Mikhail Bakhtin, na Parte IV deste livro.
tro, esse diálogo acontece no instante exato em que o ato artís-
tico, efetivamente, se realiza. Se isso revela seu caráter efêmero,
caracteriza também a intensidade de sua relação com o especta-
dor e a importância do público numa encenação, nesse contato
vivo que se dá entre palco e platéia.
[. . .] o tão exaltado privilégio da realimentação Criativa com
que um 'público ativo inspira o elenco (quando não o desa-
limenta pela apatia), a ponto de o espetáculo estar se fa-
zendo em cada sessão, como fenômeno irrepetível ("eis a
verdadeíraobra aberta!") (Rosenfeld, 1993, p. 251).
Público partícípatívo é aquele que, durante o ato da represen-
tação, exige que cada instante do espetáculo não seja gratuito, o
que não significa que seja necessário, portanto, manifestar-se ou
intervir diretamente para participar do evento. Sua presença
efetiva-se na cumplicidade que ele estabelece com o palco, na
vontade de compactuar com o evento, na atenção às proposi-
ções cênicas, na atitude desperta, olhar aceso. E essa presença
deve ser encarada pelos atores "como um desafio positivo, tal
qual um amante diante do qual não nos apresentamos de qual-
quer maneira" (Brook, 1991, p. 27). Esse espectador crítico,
exigente e participativo é aliado fundamental nos diálogos trava-
dos acerca dos rumos da arte teatral.
Figura-chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação,
Brecht afirmava que a leitura crítica, a capacidade de compreen-
são de uma obra de arte, no entanto, pode e precisa ser traba-
lhada. A capacidade deelaboração estética é uma conquista e
não somente um talento natural.
É uma opinião antiga e fundamental que uma obra de
arte deve influenciar todas as pessoas, independente da ida-
mecanismos utilizados em uma encenação, e os efeitos que pro-
duzem, o espectador ganha distância para melhor apreciar como
tais elementos estão sendo apresentados em um determinado
espetáculo. A aquisição desses conhecimentos permite que o
observador esteja em melhores condições para traçar linhas de
reflexão acerca da obra e elaborar um juízo de valor sobre ela .
A distância possibilita que o espectador problematize a ence-
nação, faça perguntas à cena, tais como: Que temas este espetá-
culo aborda? De que maneira isto se relaciona com a vida lá
fora? Que signos e símbolos o artista se utiliza para apresentá-
las? Eujá vi algo parecido? Como eu faria? De que outras manei-
ras esta mesma idéia poderia ser encenada? O prazer de assistir
a espetáculos teatrais advém justamente do domínio da lingua-
gem, que amplia o interesse pelo teatro à proporção que possi-
bilita uma compreensão mais aguda, uma percepção cada vez
mais apurada das encenações.
32 . A . ARTE DO ESPECTADOR
de, status ou educação [...]. Todas as pessoas podem en-
tender e sentir prazer com uma de arte porque todas
têm algo artístico dentro de si [. .. l. Existem muitos artis-
tas dispostos a não fazer arte apenas para um pequeno cír-
culo de iniciados, que querem criar para o povo. Isso soa
democrático, mas, na minha opíníão, não é totalmente de-
mocrático. Democrático é transformar o pequeno círculo
de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a arte
necessita de conhecimentos. A observação da arte s6 pode-
rá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte da ob-
servação. Assim como é verdade que em todo homem exis-
te um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os
animais, também é certo que essa inclinação pode ser de-
senvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um
saber conquistado através do trabalho (Brecht, apud Kou-
dela , 1991, p. 110).
A ARTE DO ESPECTADOR 33
A especialização do espectador se efetiva na aquisição de co-
nhecimentos de teatro , o prazer que ele experimenta em uma
encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem teatral.
O prazer estético, portanto, solicita aprendizado. A arte do es-
pectador é um saber que se conquista com trabalho.
Familiarizado com os códigos teatrais , esse espectador inicia-
do descobre pistas próprias de como se relacionar com a obra,
percebendo-se, no atada.' recepção, capaz de dar un idade ao
conjunto de signos utilizados ria encenação e estabelecer cone- .. .
xões entre os elementos apresentados e a realidade exterior. A
conquista da linguagem teatral propicia ao espectador uma ati-
tude não submissa diante do fato narrado e das opções cênicas
propostas. Conhecendo os signos que vêm sendo estabelecidos
ao longo da história do teatro, bem como o funcionamento dos
No teatro como nos campos esportivos .
Ir ao teatro ou gostar de teatro, também se aprende. E nin-
guém gosta de algo sem conhecê-lo. De que se pode
considerar relevante, e até mesmo imprescindível, aquilo que
não conhecemos em todas as suas possibilidades? O apreço está
diretamente ligado ao grau de intimidade e, apenas entrando
em contato com o teatro, seus meandros, técnicas e história, o
espectador pode reconhecer nele importante espaço de debate
das nossas questões e, principalmente, perceber o quão prazerosa
e gratificante pode ser essa relação.,
O gosto por uma cultura artística, contudo, se constrói desde
a infância. Aproximar crianças e adolescentes das atividades tea-
trais é de fundamental importância, se quisermos pensar em for-
mar espectadores. .
34 A ARTE DO ESPECTADOR .A ARTE DO ESPECTADOR 35
Evoco um estudo do sociólogo holandês T. Karnphorst,
que investigou a maneira pela qual o público adulto tinha
sido sensibilizado pela primeira vez para diversos eventos.
Ele calculou, em seguida, as chances de um adulto ir "x"
vezes ao concerto ou ao teatro, em função da idade em que
havia sido socializado para esse evento. Os resultados são bas-
tante interessantes. Em se tratando de um concerto, ele
mostra que, se não tivermos adquirido o hábito entre os
cinco' e os oito anos, tElremos muita dificuldade em ir a um
concerto de música ,clássica mais tarde.' No que concerne
aos museus, [o hábito se adquire] entre oito e doze anos;
no que se refere ao teatro, entre doze e quinze anos. [... ]
mesmo sabendo que não há idade precisa para estarmos
mais abertos , existem determinados períodos em que
estamos mais receptivos que outros (Saez, 1989, p. 33).
Um dos eixos da formação que se pode oferecer à criança
espectadora consiste em fornecer os instrumentos conceituais
necessários ao despertar de seu espírito crítico. De simples con-
sumidor de espetáculos, ela pode tornar-se capaz de formular e
sustentar suas apreciações. Trata-se de iniciar o público infantil
na linguagem específica da criação teatral, a fim de fomentar, ,
por meio do espetáculo, sua reflexão. Compreende-se, assim, a
formação de espectadores como a:aplicação de procedimentos
destinados a criar o gosto 'pelo teatro e ressaltar a necessidade e
importância da arte, quanto como uma proposição educativa
cujo objetivo está voltado para a formação delndívíduos capazes
de olhar, observar e se espantar. A apropríação da linguagem
teatral tem o intuito de contribuir para a sensibilidade e para
uma experiência de prazer e comunicação, além de contribuir
para sua afirmação como sujeito nos rituais coletivos.
Brecht sonhava com uma platéia constituída de iniciados, es-
pectadores aptos a avaliar propostas trazidas à cena, prontos a
elaborar um juízo acerca dos significados presentes nos elemen-
tos cênicos. O autor alemão queria que os espectadores de teatro
fossem especializados como a platéia de um evento esportivo,
que conhece as regras do jogo, sua história, meandros e funda-
mentos técnicos. O conhecimento tático e técnico do jogo per-
mite que o espectador esportivo, mesmo emocionalmente en-
volvido com a partida, identificado com os "heróís" em cam-
, po, questione a atuação dos jogadores. Nas partidas de futebol,
podemos perceber Comclareza essa atitude do iniciado em face de
um espetáculo esportivo, que reúne tanto o profundo envolvimento
emocional quanto a postura .crítíca acerca do evento.
A isso [a identificação íntima do torcedor com o jogo e
os jogadores1se liga, a despeito de toda a ídentífícação, a
possibilidade de distanciamento crítico ("Eu não teria chu-
tado para fora"), em virtude do que, por outro lado, é esti-
mulada uma co-participação ainda mais apaixonada (Rosen-
feld, 1993, p. 95).
A conclusão do espectador da partida de futebol- espetácu-
lo para o qual os brasileiros em geral são, desde a infância,
especíalmente formados - de que não teria errado o chute para
o gol, se dá 'pelo conhecimento técnico adquirido. O domínio
dos meandros da atividade futebolística advém tanto das brin-
cadeiras em que participou como j?gador quanto da experlên-
. cía como espectador, apurada especialmente nos debates tra-
vados COm outros torcedores e nas análises de comentaristas
esportivos. A apreensão de regras e o amplo conhecimento tá-
tico e técnico das jogadas, como ressalta Rosenfeld, estimula a
36 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 37
co-participação do espectador, intensifica o prazer na sua rela-
ção com o evento.
No entanto, diferentemente do que acontece com o futebol, a
impossibilidade (não apenas financeira) da grande maioria das
crianças e jovens brasileiros de ir ao teatro ou mesmo de rece-
ber a visita de uma trupe teatral é um fato. Criar condições para
que eles possam ir ver um espetáculo talvez seja o primeiro pas-
so a ser dado . Mas a questão não se encerra aí, pois possibilitar
o acesso ao teatro não significa, como já apontamos, apenas
colocar o espectador infanto-juvenil diante de uma peça, mas
também fornecer ferramentas para que ele disseque e interprete
o evento. Tornar o espectador iniciantemais íntimo da arte tea-
tral e estimulá-lo para um mergulho divertido amplia sua capa-
cidade de apreender o espetáculo e favorece sua socialização,
seu acesso ao debate contemporâneo, sua Integração e partici-
pação sociais.'
Democratizar o acessode criançase jovensao teatrose constitui,en·
tão, em viabilizar a ida aos espetáculos e, concomitantemente, ofere-
cer os instrumentos de compreensão e de recepção que condicionam
esse acesso, oferecendo meios necessários paraque o espectador
infanto-juvenil tenha possibilidade e vontade de apropriá-los.
A posição de espectador
Na sociedade baseada na espetacularidade dos acontecimen-
tos e apoiada na indústria moderna, que "não é fortuitamente
ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente 'espe-
tacularista'", onde o espetáculo é "o sol que não se esconde ja-
mais ' sobre o império da passividade moderna" (Debord, 1992,
p.21), formar espectadores consiste também em estimular os
indivíduos (de todas as 'idades) a ocupar O seu lugar não somen-
te no teatro , mas no mundo. Educar o espectador para que não
se contente em ser apenas o receptáculo de um discurso que lhe
proponha um silêncio passivo. A formação do olhar e a aquisi-
ção de instrumentos lingüísticos capacitam o espectador para o
diálogo que se estabelece nas salas de espetáculo, além de lhe
fornecer instrumentos para enfrentar o duelo que se trava no
dia-a-dia. O olhar armado busca urna interpretação aguda dos
signos utilizados nos espetáculos diários, da propaganda aos pro-
gramas eleitorais. Com um senso crítico apurado, esse oldadão-
espectador, consumidor-espectador, eleitor-espectador procura
estabelecer novas relações com o entorno e as diferentes mani-
.festações espetaculares que buscam retratá-lo.
Se nessa sociedade "a linguagem do espetáculo é constituída
pelos signos da -produção reinante" (Debord, 1992, p. 18), to-
mar conhecimento dos mecanismos que envolvem uma encena-
ção, desvendar e apreender a lógica da teatralidade significam
conquistar instrumentos que viabilizem a reflexão acerca dos
procedimentos utilizados em diferentes produções espetacula-
res . O espectador instrumentalizado encontra-se em condições
de decodificar os signos e questionar os significados produzidos,
seja no palco, seja fora dele.
Os métodos e procedimentos propostos pejos meios comu-
nicacionais contemporâneos influenciam e condicionam asensi-. ,
bilidade e percepção dos espectadores. Se quisermos destacar
exemplos das opções éticas e estéticas de algumas dessas produ-
ções espetaculares, podemos abordar diversos fatos recentes .
[... ] se queremos um emblema para a educação mundial
em prol da Insensíbíl ídade , não serã difícil descobri-lo: ele
está na cobertura televisiva de alguns anos atrás da Guerra
do Golfo (Costa Lima, 2001, p. 15) .
Deixar a televisão para ir ao teatro .ver televisão: assim
é, em breve resumo, a expectativa do grande público (Del-
dírne , 1993, p. 111) .
Assim, a pedagogia do espectador se justifica também pela
urgência de 'uma tomada de posição crítica diante das represen-
. rações dominantes, pela necessária capacitação do indivíduo-
espectador para questionar procedimentos e desmistificar códi-
gos espetaculares hegernônlcos.
Em casa ou nas ruas , o indivíduo contemporâneo encontra-
se invadido por um entulho de signos de todas as espécies -
talvez hoje devêssemos lutar pelo livre direito de ir e ver. As
mídias eletrônicas produzem ficção a um ritmo alucínante, ima-
gens já fazem parte da 'cesta básica de famílias de todas as clas-
ses so-ciais: Para se ter uma idéia vertiginosa dessa produção,
se nos detivermos somente nas imagens televisivas, estima-se
que se consuma em nosso país cerca de 200 milhões de horas
de imagens, mostradas em cerca de 40 milhões de aparelhos
televisores instalados nos lares (Barreto , 1996, p. 9). Os es-
pectadores consomem uma quantidade e uma variedade de
imagens , narrativas e fragmentos narrativos que, apesar da apa-
rente facilidade de decodificação, impõem uma fruição super-
ficial , desestimulam a atitude interpretativa, o esforço criativo
é a elaboração de juízos de valor, propondo uma recepção des-
provida de exigência estética. A indigestão de signos empurra-
dos goela abaixo, o abuso e banalização da ficcionalidade , o
estílhaçarnento visual, a híper-fragrnentação narrativa
carn ainda o campo de percepção do espectador, influenciando
seu modo de relação com a espetacularidade e seu horizonte
de expectativa.
38 A ARTE DO ESPECTADOR
: ',
A ARTE DO ESPECTADOR 39
Émuito comum o espectador assistir a programas televisivos
de maneira fortuita, acompanhando vários programas ao mes-
mo tempo ou desenvolvendo outras atividades simultaneamen-
te, interrompendo freqüentemente a recepção para comer alguma
coisa ou atender ao telefone. Desse modo, a televisão, principal
veículo de comunicação da contemporaneidade, cria um hábito
mental fundado na ruptura e na segmentação, um hábito calca-
do na sedução imediata, desencorajando, quando o flash deixa
de ser fascinante . Isso leva os criadores de programas televisivos
a acelerar consideravelmente as rupturas de imagens e modificar .
a estrutura da.montagem- das emissões para não deixar .escapar
a atenção do espectador. Buscando capturar o olhar do espeota-
dor-consumídor, esses mesmos criadores promovem, assim', uma
multiplicação dos planos, propondo a justaposição artífíoíal de
imagens que não fazem nenhum sentido que não seja o da busca
da sedução imediata.
O hábito mental de segmentação e ruptura proposto pela
televisão agrava-se, quando se trata de crianças, pela freqüên-
cia assídua diante do aparelho. Uma recente pesquisa indica
que uma criança francesa, por exemplo, durante um ano, che-
ga a passar uma vez e meia mais tempo diante da televisão do
que na escola (Meirieu, 1994). Além disso , antes de ingressar
na escola, qualquer criança já assistiu a milhares de horas de
televisão.
Os valores da televisão são os do mercado, tendo em vista que
seu objetivo principal é fazer vender produtos e serviços, de
maneira que, regida pelo máximo lucro , pouco ou nada avalia os
conteúdos e procedimentos estéticos utilizados para manter a
atenção do espectador. Se prestarmos especial atenção, obser-
varemos que as estruturas narrativas dos programas, pressiona-
dos pelos repetidos intervalos comerciais, geralmente abando-
40 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADOR 41
nam nuanças e sutilezas, propondo uma abordagem superficial
dos fatos e questões tratadas.
Ao final de uma emissão, todas as intrigas devem estar
resolvidas, e as incertezas desaparecidas. Está na hora de
vender os produtos (Condry, 196, p. 56).
Essa constante necessidade de chamar a atenção do especta-
dor faz que a televísão, ligada a índices diários de audiência, viva
absolutamente no presente , atropelando o passado e mostrando
pouco interesse pelo futuro coletivo. O espectador infantil rece-
be , assim, grande e importante quantidade de informações (e
sentidos produzidos) acerca do mundo que o envolve e dele
mesmo, e a televisão acaba desempenhando, com a família e a
escola, papel destacado na socialização da criança.
Assim, projetos artísticos e pedagógicos que têm por objetivo '
propor a espectadores iniciantes uma descoberta ativa do teatro
não suscitam evidências tranqüilas nem facilidades inesperadas.
O teatro, em seu estágio contemporâneo, pode ser percebido
pelos espectadores , crianças e adultos, habituados às produções
audiovisuais dominantes , como um espaço totalmente estranho,
diante do qual pode ser extremamente difícil se situar. Gestos,
movimentos , intenções sutis dos atores, um mosaico complexo
de signos e códigos específicos propõem um modo de relação e
comunicação fundado na participação sensível e reflexiva do
público, uma atitude concentrada de observação. É cornpreen-
sível (e mesmo desejável) que o teatro possa desorientar, provo-
car e incomodar os espectadores que estabelecem as primeiras
relações de conhecimento dessa arte . O prazer do teatro talvez
não seja mesmo uma aquisiçãofácil, mas um prazer que requer
disponibilidade e esforço do espectador.
Não seria exagero supor que a arte teatral possa ser encarada
como uma proposição espetacular pouco habitual , ou mesmo
frustrante, para esse superestimulado espectador contemporâ-
neo. Ao pensar a pedagogia do espectador, portanto , não se pode
desprezar o anseio, o hábito , a expectativa que condiciona o
indivíduo-espectador de nosso tempo em sua relação com os va-
riados meios comunicacionais ; meios esses que detêm a
hegemonia dos procedimentos estéticos espetaculares e da pro-
dução de sentidos.
Na boca do povo
A busca por um teatro aberto , particípatívo , que comova,
apaixone e faça pensar é um desejo expresso em '
várias línguas. Sua crise não é s6 nossa. Talvez tenhamos de nos
h.abituar ao fato de que o teatro é, hoje , um evento para poucos
e, por isso, não podemos mais alimentar a visão .antiga e român-
tica desse gênero como uma instituição de educação e reunião
de todo o povo.
. Em alguns lugares, há uma minoria de pessoas que pre-
cisam de algo diferente, algo mais humano, que s6 pode'
ocorrer numa escala menor. E, então, teatro será sempre para
um porcentual pequeno de pessoas. Isso não o toma elitista,
apenas faz algo que está lá para gente que realmehte tem inte-
resse (Brook, 2000, p. 1).
Todas as lutas pela democratização do teatro , pela prática de
projetos de formação de espectadores, por àflrm ã-Io como ins-
trumento de transformação social, pelo livre entendimento en-
tre atores e espectadores, tudo isso talvez seja uma dessas uto-
pias que se vive sem realizar, mas que, ao mesmo tempo, não há
42 A ARTE DO ESPECTADOR A ARTE DO ESPECTADÓR ,43
como sentir-se realizado sem a tentativa de vivê-las. Será mes-
mo assim?
No Brasil, contudo, o enfraquecimento do debate acerca do
'redímensionamento da relação do teatro com 'a sociedade con-
temporânea se acentua em virtude da inexistência de uma pla-
téia devidamente formada, habituada a freqüentar as salas de
espetáculo, Com gosto e alma despertados para essa arte. Será
que, como dizia Ziembinski, a arte do teatro, tal qual a conhece-
mos, não se afeiçoa à nossa personalidade?
Será que nós brasileiros realmente gostamos do teatro e
precisamos dele? Qual deveria ser esta arte para que o povo
se interessasse por ela? [.. .] O conflito, a situação de co-
moção interna, o jogo de contrastes entre o preto e o bran-
. co, todos estes elementos que caracterizam o fenômeno
dramático não parecem ser o forte do nosso temperamen-
to nacional. Não existe vontade de se envolver no conflíto'
dos outros; há vontade, isto sim, de ficar na praia, nos cam-
pos, numa atitude contemplativa. l...] O que acontece é
que esta nação ainda se prepara para encontrar sua pró-
pria forma daquilo que seria o espetáculo teatral, embora
. talvez não se chame mais de espetáculo teatral, mas no qual
a nação se realizaria através de conceitos afins ao drama, e
adaptação ao seu temperamento, seu sangue, sua paisagem
e sua sensibilidade melódica. [... ] Então não será mais ne-
cessário escrever "Vamos ao teatro" , porque o povo irá es-
pontaneamente (Ziembinski, apud Michalski, 1996).
Será mesmo uma questão de personalidade da nossa gente e
não uma 'falia de incentivo a projetos democratizadores , que
busquem a formação de uma platéia nacional? Talvez os dois
juntos? Ou será que o teatro, da maneira como suas formas es-
tão estabelecidas, não oferece respostas para a necessidade de
teatro que a vida contemporânea produz ou permite supor? O
fato é que para que se possa almejar o nascimento de uma forma
teatral genuinamente brasileira, como sonhava Ziembinski, é
preciso que haja uma intimidade nacional com essa arte, colocá-
Ia na boca (e olhos) do povo.
A iniciação de espectadores, contudo, requer organização e
aplicação de métodos e procedimentos específicos destinados a
sua formação. A leitura do teatro, passeio interpretativo pelos
signos que constituem uma encenação, como afirmava Brecht,
não é atitude evidente, mas adquirida. A capacitação estética
não é somente aptidão natural, mas conquista cultural. Demo-
cratizar o acesso ao teatro consiste, portanto, em preparar esse
espectador ín íclan te, instrumentalizando-o, tornando-o apto ao
diálogo com a obra.
Mas que projetos de formação adotar para uma efetiva demo-
cratização do acesso à arte teatral? Que práticas artísticas e pe-
dagógicas implementar? Que procedimentos espetaculares e
extra-espetaculares podem ser utilizados para tornar o especta-
dor estimulado e capacitado para enfrentar o embate lingüístico?
3
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE
ESPECTADORES
A leitura obrigatória é uma coisa tão absur-
da quanto se falar em fellcldade 'obrigatória,
- JORGE LUIS BORGES
A conscientização por meio do teatro
Desde os anos 1960 até meados de 1970 , artistas e educado-
res, movidos pela Idéia de democratização cultural, estruturaram
variadas práticas destinadas à ampliação social e geográfica do
público de teatro, quanto à difusão da experiência artística em
geral. Essas iniciativas se efetivaram com grande vitalidade em
países europeus, como França, Itália , Bélgica e Portugal; realiza-
ram-seímportantes movimentos também em outros países, como
Estados Unidos e,também, Brasil. Dentre as diversas atividades
artístico-culturais implementadas nesse período, destacam-se:
a apresentação de espetáculos teatrais nas ruas, metrôs, praças,
bares e outros lugares pouco habituais; a proposta de oficinas
de teatro em escolas e universidades; :a promoção de festivais de
arte; a criação e difusão de bibliotecas ambulantes; as projeções
cinematográficas em praças públicas de pequenas cidades ou em
bairros de periferia; entre tantas outras.
46 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
OS agentes culturais de então almejavam estreitar relaciona-
mento com uma parcela do público que se encontrava fora do
circuito comercial de arte, articulando uma lutapara abrir as
instituições culturais a todos, bem como para levar espetáculos
teatrais e promover práticas artísticas, tanto em localidades dis-
tantes dos centros urbanos, quanto nos mais diferentes espaços :
fábricas, sindicatos, igrejas , escolas , universidades, empresas e
hospitais. As atividades aplicadas tinham, por vezes, o objetivo
de rever as relações sociais existentes na comunidade ou no in-
terior das próprias instituições onde acontecia o evento.
Esse movimento baseava-se na convicção de que todas as pes-
soas têm plena capacidade e direito de ver e fazer arte. A difusão
das práticas artísticas ao mesmo tempo que ampliava o círculo de
conhecedores,' tinha por Objetivo subverter a ordem estabe-'
lecida. A arte - e o teatro funcionava como um dos principais inst-
rumentos de açã? cultural- era veículo primordial de questiona-
mento e transformação da sociedade. A proposta de atividades
artísticas para um grande público se estruturava como:
uma das respostas à crise que conhecem as nossas socieda-
des ocidentais, marcadas pela industrialização, o desenvol-
vimento tecnológico e a urbanização, a cultura de massa, o
questionamento de valores tradicionais corno os da famí-
lia, as dificuldades de comunicação, a desestabilização de
instituições sólidas corno a escola, o desemprego, a infla-
ção, a aspiração à "qualidade de vida" , a tomada de cons-
ciência ecológica, a vontade de ver reconhecido o direito à dife-
rença, o direito de ser você mesmo (Gourdon, 1986 , p. 27).
Na esteira dos movimentos contraculturais que eclodiram no
período , nos países há pouco citados, várias trupes, com uma
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 47
produção marcada por forte teor ideológico, concentraram seus
esforços na difusão de espetáculos para um público o mais am-
plo possível, com o objetivo de não somente manter a sobrevi-
vência. do próprio teatro, mas também, e especialmente, de
implementar urna ação política de conscientização por meio da
arte teatral. Os grupos buscavam a utilizaçãodo palco como espaço pa-
ra à discussão de questões que afligiamnossas sociedades, convidan-
doos espectadores a participarem desses debates .
Esses artistas, impulsionados pelo cansaço diante de práticas
teatrais conhecidas e pelo desejo de extinguir o fosso que sepa-
rava o palco da platéia, conceberam métodos bastante particu-
lares que tinham oobjetívo de provocar a. atitude do público
diante dos fatos trazidos à cena. Essas formas dramáticas contí-
nham, assim, urna proposta pedagógica atrelada ao interesse
artístico e estavam calcadas, em grande parte, na intervenção
direta da platéia no evento artístico . experimentos permi-
tiram o redimensionamento da posição do espectador em sua
relação com a obra teatral.'
I Dentre os relevantes movimentos teatrais que surgiram neste período,
voltados paraa especíalízação de espectadores comOobjetivo deestimu-
lar a platéiaparauma tomadade posição críticaante asquestões apresen-
tadas, destacam-se: as experiências do Lívíng Theatre, realizadas nos
Estados Unidos, e que exerceram forte influência emmuitosoutrospaí-
ses: as técnicasdoTeatro doOprimido, que foram aplicadas primordial-
mente na França e noBrasll, e alcançaramreconhecimento em diversas
nações, a revisão dapeçadidática,queprovocou a retomada deste teatro
brechtiano, possibilitando o desenvolvimento de ricas experiências de
formação emnosso país; entre outros.Paramelhorconhecimentodesses
experimentos, pode-se consultar asseguintes obras: sobreoLívíngTheatre
ver JeanJacquot.TheLívíngTheatre. In: .Lessioies de la cr éatum
th éãtrale (Paris, CNR8. v. 1/1970); sobre oTeatro doOprimido,Augusto
Boal. Teatro do Oprimido (Rlo de Janeiro, Cívíhzação Brasileira, 1988);
sobre a revisão da peça didática, Ingríd Dormien Koudela. Breclu. um
jogo de aprendizagem (SãoPaulo, Perspectiva, 1991). .
48 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
Propondo uma nova maneira de compreender a atuação polí-
tica, a ação por meio do teatro , um instrumento revolucionário,
provocaria a potência imaginativa e transformadora do público.
. As formas artísticas 'mais surpreendentes e contraditórias surgi-
ram neste período, todas encaixadas em um movimento comum,
de um radicalismo COm grande vitalidade, em permanente con-
testação à sociedade e cultura dominantes, que desconstruía os
espaços teatrais tradicionais e transbordava pelas ruas e outros
locais à procura de espectadores, diminuindo a distância entre
vida teatral e vida social.
Os espectadores do futuro
Nesse período, surgiram também importantes experimentos que
tinham em seu horizonte a criança como alvo predileto para reno-
vação do público teatral. Em um contextosocial marcado pela afir-
mação do direito de parcelas desprívílegíadas da popu-lação de ver
e .fazer arte , àssiste-se a uma explosão sem da cria-
ção teatral dirigida ao público infantil. O então denominado "teatro
para crianças" alcança enorme sucesso, especialmente em alguns
países da Europa, como França, Bélgica, Espanha, Portugal, entre
outros; e tem também grande expansão em outros países: Estados
Unidos, Canadá, Austrália e Brasil. Trata-se de um movimento que
defendia o direltoda criança de possuir uma produção cultural
que lhe fosse.espe-cialmente dirigida e seu direito à prática artís-
tica, além de objetivar também a sustentação e a transformação da
própria arte teatral. Ou seja, as companhias que produziam teatro
para crianças acreditavam que, aofonnarem espectadores infantis,
estariam preparando os espectadores do futuro - que, ao se tor-
narem adultos, estariam capacitados a ditar os novos rumos dessa
arte , e, futuramente, resolveriam a questão do esvaziamento das
salas, pois já estariam habituados a freqüentar os teatros.
PRÁTICAS ,TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 49
O crescimento de produções teatrais para a infância aconte-
ceu em concomitância com o estreitamento das relações do tea-
tro com a escola. Motivadas pela possibilidade de alcançar todas
as crianças, de todas as classes sociais, uma grande quantidade
e variedade .de espetáculos e oficinas teatrais passaram a ser
realizados em instituições educacionais. Havia também nessa
iniciativa um anseio de modificar o próprio sistema escolar, con-
siderado esclerosado, abrindo-o à arte e aos artistas.
DINAMIZANDO A RECEPÇÃO TEATRAL
As trupes passaram, assim, a visitar com maior freqüência as es-
colas, propondo diversas atividades de expressão dramática, com o
objetivo de sensibilizar crianças e jovens para o teatro. Essas práti-
cas,que passaramaser conceituadas comoanimações teai:rais ,2 tanto
podiam organizar-seem tomo de um espetáculo teatral, dinamizan-
do a compreensão da encenação vista pelos alunos , quanto se
estruturar como oficinas teatrais autônomas que, trabalhando a
expressividade e criatividade dos participantes, não tinham ne-
cessariamente ligação com uma determinada peça de teatro .
Asanimações teatrais autônomas.' que não estavam vincula-
das a um espetáculo teatral, estruturavam-se como oficinas in-
o conceito de animação teatral (animation théêttrale) nasce na França ,
país que tem papel preponderante nessas experiências realizadas visan-
do à formação de crianças ejovens espectadores.As práticas de animação
teatral foram também aplicadas em outros países europeus, tais como:
Bélgica, especialmente, além de Itália, Espanha, Portugal , entre outros.
NoBrasil, nos anos 1970 e início dos 1980, alguns grupos de teatro reali-
zaram, de maneira esporádica, práticas de animação teatral nas escolas.
J O sociólogodo teatro RegerDeld írne, belga, reconhece duas maneiras pos-
síveis de aplicação das anlmaçõesteatraís: aquelas que estão vinculadas
a um espetáculo teatral, as quais definiu como animações teatrais peri-
féricas, e as que acontecem independentes' de qualquer espetáculo, as
quais denominou animações teatrais atLtónomas (Deldime, 1990).
50 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
dependentes e estavam fundamentadas na aplicação de jogos e
exercícios que proporcionassem a ampliação do domínio da lin-
guagem teatral pelos participantes. Algumas dessas oficinas pro-
' piciavam aos alunos a apreensão de diferentes técnicas, como
teatro de sombras, teatro de bonecos, confecção e utilização de
máscaras, entre outras.
Aplicavam-se animações autônomas tanto nas escolas quanto
em fábricas, sindicatos, associações de moradores, etc. Estas
animações teatrais foram também muito utilizadas por grupos
itinerantes que se deslocavam até regiões afastadas dos grandes
centros urbanos ou bairros da periferia, com o" intuito de pro-
mover práticas teatrais, inserindo essa arte na vida cultural da
região . Por meio de atividades dramáticas propostas, esses gru-
pos queriam tornar os participantes capazes de questionar suas
condições de vida, manifestar suas idéias e anseios e transfor-
mar o ambiente pessoal e social.
. As animações que se organizavam em tomo de um espetácu-
lo, sendo por esse motivo conhecidas como animações teatrais
periféricas', tinham por bjetivo principal a formação de especta-
dores. Elas se estruturavam tanto com base em atividades que
forneciam informações complementares a respeito do espetácu-
lo que seria visto pelos partícípantes , quanto pela aplicação de
exercícios que, explorando a linguagem teatral, se destinavam a
capacitar o espectador iniciante a urna leitura mais aguda da
encenação. Eram também utilizadas para avaliar o grau de com-
preensão e interesse do público sobre o espetáculo em questão .
As animações teatrais periféricas aconteciam antes ou depois
da apresentação do espetáculo. As atívidades'propostas antes da
peça tinham o intuito de preparar os alunos-espectadores para a
leitura da peça que seria vista e, quase sempre, sublinhavam al-
guns aspectos artísticos do espetáculo que, assim, poderiam ser
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 51
mais bem observados pelos alunos no ato de recepção da obra.
Essas animações, por vezes, ensinavam aos participantes o fun-
cionamento de alguns artifícios e elementos de cena do espetá-
culo, tais como: utilização dos refletores, criação da sonoplastia,
construção de determinados materiais cenográflcos, etc. Comesse procedimento, os animadores queriam desmistificar a máqui-
na teatral, estimulando os alunos a lançar um olhar distanciado ,
crítico, à encenação que seria posteriormente apresentada.
Alguns artistas e educadores dos diferentes países em que es-
sas práticas foram implementadas manifestaram-se contrári-
os à utilização de animações teatrais antes do espetáculo , por
entenderem que, ao revelar previamente elementos da peça, os
exercíciós de animação corriam o risco de romper a "magia" da
encenação, diminuindo o envolvimento dos espectadores. Além
disso, argumentavam que as atividades aplicadas antes do espe-
táculo poderiam influenciar e condicionar de maneira definitiva
a leitura dos alunos, impedindo-os de realizar uma interpreta-
ção livre da obra.
As animações teatrais propostas depois da apresentação do
espetáculo tinham o objetivo de explorar pedagogicamente a
experíêncla artística, por meio da aplicação de variados jogos e
exercícios.
Os próprios artistas dos grupos, preferencialmente, ou os pro-
fessores das escolas organizavam e aplicavam essas práticas de
formação de espectadores. Considerando suas principais ten-
dências, definidas em função de variados objetivos, pode-se
categorizar as animações teatrais que aconteciam em torno de
um espetáculo da seguinte maneira.' animações de integração
escolar, animações de expressão e animações de leitura.
As animações teatrais de integração escolar, como o próprio
termo sugere, buscavam integrar a obra teatral ao processo de
52 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
aprendizagem escolar. O espetáculo motivava atividades múlti-
plas, tornava-se pivô de um estudo que podia interligar diversas
disciplinas do currículo escolar, sendo como atividade
.. reforço. A peça propiciava, assim, a aplicação de exercícios ,
visando a uma dinamização do aprendizado em diversas áreas
do conhecimento.
Alguns grupos, especialmente na França e na Bélgica, distri-
buíam nas escolas fichas pedagógicas relativas a cada espetáculo,
com o objetivo de indicar aos professores sugestões de desdo-
bramentos escolares para a peça teatral. Essas fichas, que po-
diam vir acompanhadas de fotos ilustrativas, slides ou gravações
em fita cassete de músicas, geralmente traziam as seguintes in-
formações: 1) apresentação da peça, incluindo um resumo e co-
mentários sobre a temática abordada; 2) análise formal do espe-
táculo; 3) sugestões de exercícios de preparação das crianças
para o espetápulo; 4) exercícios de desdobramento aplicáveis às
diferentes disciplinas escolares; 5) referências biblio-gráficas,
úteis aos professores para melhor compreensão da peça e me-
lhor aproveitamento dessas atividades.
4 As categorias de animação teatral apresentadas neste trabalho foram
livremente concebidas com base nas determinadas por Reger Deldime
em seu vasto estudo sobre o assunto . Embora as definidas por esse soció-
logo do teatro tenham sido particulannente recolhidas das práticas tea -
trais de seu país, a Bélgica , sua ampla pesquisa acerca do tema nos pode
auxiliar no entendimento da estruturação das animações teatrais nos d í-
ferentes países em que foram (ou são) aplicadas, mesmo no Brasil. Reger
Deldlme organiza as animações teatrais nas seguintes categorias: les
animations pédagogiques, les animations id éologiques, les animations-
implantations regionales, les animations-décodages, les animacions-
expressions, les animations culturalistes. As definições de cada uma
dessas categorias podem ser encontradas nas seguintes obras do sociólo-
go:Animation et théãtre pour enfants (Bruxelas, Instítut de Socíologíe
de l'Uníverslté Líbre de Bruxelles, 1985) eLe ouatriême muroRegards
sociologiques sur la théátrale. (Carniêres, Lansrnan, 1990).
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 53
As animações de integração escolar aconteciam, normalmen-
te, após o espetáculo e estabeleciam relações entre a encenação
vista pelos alunos e diversas áreas do conhecimento. As atividades
de desdobramento.da peça enfocavam, por exemplo: noções de
matemática (exercícios de conjunto, dividiam-se os personagens
em grupos); abordagens históricas; exercícios de expressão escri-
ta (redações sobre a peça ou aplicação de ditados); atividades
de artes plásticas (a criação de cartazes para a peça ou de dese-
nhos animados que retratassem a história contada) . Havia ainda
outras tantas atividadesque variavamem função das possíveis abor-
suscitadas pelo espetáculo e da faixa etária dos alunos.
Essas animações , bastante freqüentes nos países acima cita-
dos, na década de 1970, foram muito criticadas nos anos sub-
seqüentes,consideradas "escolarizantes" e acusadas de "pedagogizar"
o teatro pelo fato de o espetáculo teatral ser utilizado como
instrumento de aprendizagem de determinadas díscíplínas dagra-
de curricular ou como mero pretexto para atividades normal-
mente aplicadas no cotidiano .escolar. A arte teatral acabaria,
deste modo, por ser "fagooítada" pelo sistema de ensino, em que
vigorava o "dídatísmo" e o "dlrtgísrno". A utilização do teatro
como ferramenta para a apreensão de conteúdos disciplinares
empobrecia o diálogo do aluno-espectador (e os desdobramen-
tos desse díãlogo) com a peça , tornava a experiência estética
padronizada, atrelando a recepção às necessidades da' escola.
As animações teatrais de expressão constituíam-se funda-
mentalmente de oficinas e atividades teatrais, de curta ou longa
duração, propostas às escolas à apresentação de um
espetáculo. Nas animações de expressão, utilizava-se, preferen-
cialmente, a aplicação de jogos de improvisação, centrando o
foco do trabalho no aprimoramento da expressividade dramáti-
ca dos participantes. Por vezes , propunha-se a montagem de
54 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇAO DE ESPECTADORES
pequenos espetáculos, que podiam ser inventados pelos próprios
alunos, responsáveis por conceber eoletívamente trama, perso-
nagens, cenário, figurinos e adereços; dessa maneira, proporcio-
, na-se aos alunos o contato com diversos aspectos da arte tea-
tral. Em alguns casos, aplicavam-se ainda atividades de escrita,
em que a prática drarnatúrgica era exercitada com os partici-
pantes; ou ateliês de criação plástica, para trabalharem a con-
fecção de elementos cenográflcos; ou oficinas de iluminação,
direcionadas à construção eà exploração criativa de refletores.
A aprendizagem daIlnguagern teatral, em seus diferentes dorní-
nios buscava oferecer instrumentos aos partícípantes para um,
diálogo mais intenso com os espetáculos.
Asanimações teatrais de leitura pretendiam dinamizar a re-
cepção do aluno-espectador, propondo atividades que possibili-
tassem urna leitura mais apurada da obra. Fichas pedagógicas,
co.ntendo informações sobre a peça e sugestões de atividades
para serem aplicadas pelos professores, antes ou depois do es-
petáculo, também eram utilizadas pelos grupos teatrais que pro-
moviam essas animações. Eram apresentadas em duas verten-
tes: animações de leitura horizontal, que procuravam destacar
e pôr em debate o tema da peça, ressaltando o conteúdo veicu-
lado pelo espetáculo; e animações de leitura transoersal, que bus-
cavam propor atividades que capacitassem os espectadores
íníolantes a decodificar os signos que constituíam a encenação.
Nas animações de leitura horizontal, em que o conteúdo da
peça era prioritariamente abordado nos exercícios propostos,
os animadores estimulavam o grupo de alunos a debater o as-
sunto em questão e a improvisar cenas que se relacionassem
com o tema da peça. Essas animações chamavam a atenção dos
participantes para O discurso da obra, para a atualidade dos te-
rnas tratados, além de provocar a observação dos alunos para
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇAo DE ESPECTAÚOReS SS
corno a encenação lidava com tais questões e que técnicas tea-
trais eram utilizadas nessa abordagem. As animações de leitura
horizontal focalizavam elementos de texto e de cena sempre
ilustrativos, que propunham uma leitura imediata. .
Essas atividades, que enfocavam primordialmente a temática
da peça, podiam, por exemplo, serestruturadas com base nas
seguintes práticas: 1) exposição sobre a vida do autor, de seu
tempo (em se tratando de uma peça de época) e do conteúdo do
texto; 2) interpretação pelos atores de uma cena representativa
do espetáculo; 3) curto debate sobre a atualidade da situação en-
cenada; 4) aplicação de exercício dramático em que Os alunos
transpunham a cena montada pelos atores para acontecimentos
contemporâneos ou para situações outras que, de algum modo,
estivessem relacionadas às apresentadas pelos atores.
Nas animações de leitura transversal, que tinham corno ob-
jetivo capacitar alunos-espectadores para a decodificação dos
signos do espetáculo, o enfoque dado às atividades propostas
reduzia a importância da percepção imediata provocando o
espectador a empreender uma interpretação da encenação, es-
timulando-o a efetivar sua compreensão dos significados conti-
dos nas concepções dramatúrgícas, intenções gestuaís, opções
cenográ-fioas e demais' criações dos realizadores do espetáculo.
Propiciar aos alunos a compreensão do espetáculo não se redu-
zia à trama, mas se constituía de uma totalidade de signos, pois
ensinava-se a 'reconhecer a especificidade da arte teatral e ela-
borar os elementos semi6ticos presentes na encenação. Essas
animações foram fundamentalmente implementadas por com-
panhias teatrais que construíam os seus éspetáculos buscando
uma escritura cênica provooaríva, nem sempre evidente, que va-
lorizava a atitude do espectador diante da obra, incitando-o a
engendrar uma leitura pr6pria dos signos propostos,
56 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
Partindo do princípio .de que a capacidade de ler os signos não
é umfenômeno natural , mas cultural, essas animações de leitu-
ra tinham o intuito .de preparar os espectadores para a decifra-
.. ção dos códigos, realizando uma leitura plural dos espetáculos.
o modo tradicional de recepção do espectador tem como
elemento preponderante a espera ansiosa pelo final (ohappy
end), acompanhado de um forte envolvimento na ação. Nesse
caso, a atenção do espectador está essencialmente centrada
na anedota: nas peripécias, nos seus .encadeamentos [.. .]
A essa leitura horizontal da obra, Richard Demarcy (So-
ciologie du spectacle) opõe a leitura transversal, fundada
em um modo de recepção em que o espectador não se detém
essencialmente na fábula. Observador, ele coloca sobre todos
os elementos de significação contidos no espetáculo teatral,
a medida de seu aparecimento em cena, a questão: "o que é
isto?", seguida da questão: "o quê isto signifi-
ca?" (Deldime, 1990b , p. 96) .
As animações de leitura transversal sobrepunham-se, assim,
às animações de leitura horizontal, mais explicativas e nas quais
o espectador se detinha nas perípéclas, na ação dos personagens
e no conteúdo veiculado pela peça. Essas atividades levavam os
participantes a perceber, como sugeria Ionesco, que tudo é lin-
guagem no teatro, palavras, gestos, objetos, já que tudo tem a
função de exprimir, significar (Ionesco, 1962). As animações de
leitura transversal queriam sensibilizar os alunos-espectadores
tanto para a compreensão do argumento e a apreciação da his-
tóría. vquanto para a observação dos elementos especificamente
teatrais , chamando sua atenção para a expressão teatral de um
argumento , e a maneira como a temática foi tratada a partir da
PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 57
utilização de recursos de expressividade e comunicação próprios
do teatro.
As animações de leitura transversal queriam oferecer pistas
ao aluno para uma;ampla leitura do espetáculo, fornecendo ins-
trumentos que o auxiliassem a lançar questões à peça, propon-
do que o espectador construísse as próprias respostas, distantes
de respostas dogmáticas, preestabelecidas. Assim , o leitor ad-
quiriria o hábito de analisar os signos constitutivos da represen-
tação teatral, compreendendo o funcionamento do espetáculo e
percebendo como se articulam elementos escolhidos e trazidos
à cena pela equipe de criação. Essas animações de leitura efeti-
vavam-se , portanto, a partir de exercícios que estimulassem os
alunos-espectadores a compreenderem os elementos cênicos
utilizados no espetáculo em questão. Para isso, os animadores
utilizavam slides, fotos, gravações de músicas da peça ou mesmo
a representação de cenas do espetáculo pelos atores, visando
provocar os participantes da atividade a se questionarem e res-
ponderem criativamente acerca do significado de cenários,
maquíagens , gestos, atitudes, etc. Os alunos debatiam os signos
produzidos pelos autores do espetáculo e, em seguida, criavam
seus próprios signos, explorando elementos da linguagem tea-
tral e elaborando cenas sobre temáticas diversas .
As animações em torno de um espetáculo (de qualquer estilo )
eram concebidas principalmente em função de características
da peça, do grupo com o qual se iria trabalhar e dos objetivos
dos promotores, Não havia (ou não deveria haver) , portanto, fór-
mulas a serem seguidas , os jogos e exercícios implementados eram
preferencialmente uma criação dos : animadores. Um procedi-
mento educacional que se propunha, entre outras coisas, a de-
senvolver a criatividade e o espírito crítico não deveria justa-
mente abrir mão desses valores.
58 PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES
o ESPETÁCULO ANIMAÇÃO
Algumas companhias de teatro - espeolalmente nos países em
.que as animações foram usualmente aplicadas - conceberam,
em experimentos realizados na década de 1970 e início da de
1980, o que pode ser denominado de espetáculo-animação. 5
Como sugere o próprio conceito, essas práticas teatrais alia-
vam, na mesmaatividade artística, momentos em que o público
assistia à representação corri outros em que ele adentrava a área
de jogo, sendo convidado alntervtr.na da cena ou a
participar de jogos relacionados com a peça. Artistas e educa-
dores propunham, assim, que os espectadores vivenciassem, no
mesmo evento , tanto o ato de recepção quanto a participação
em atividades dramáticas integradas à ação da peça. Em tais prá-
ticas, portanto, as animações teatrais não aconteciam antes ou
depois da peça, mas faziam parte do próprio espetáculo.
Como exemplo de espetáculo-animação, pode-se destacar o
trabalho realizado pelo grupo canadense Thé ãtre de la Mamaille .
Na década de 1980, os artistas da trupe viajaram para as regiões
geladas do Canadá, travando contato com o povo inuit,pàra
conhecer brincadeiras, histórias e costumes da população local.
Depois dessa vivência e das trocas de experiências, foi criado
um espetáculo com base em lendas da região, que foi posterior-
mente apresentado no Qu ébec e em outras cidades canadenses.
EmL'Umiak (barco típico feito com pele de foca, e que deu nome
à peça), os artistas queriam mergulhar os espectadores nos há-
bitos, costumes, ritos , mitos dessas comunidades isoladas nas
regiões polares. Os espectadores particípavam como persona-
" No Brasil, o encenador Ilo Krugll, por exemplo , realizou diversas expe-
riências nesse sentido.
P!3-ÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES 59
gens , atuando diretamente na ação dramática, sendo divididos
em três grupos de integrantes do clã dos inuits: os pais, os av6s
e as crianças, cada grupo carregando um adereço específico de
Identificação. Alguns animadores conduziam a participação dos
espectadores que, logo que entravam no palco, dividiam-se es-
pacialmente e cada grupo de personagem se colocava em seu
iglu ; Em determinados momentos da peça, propunha-se a parti-
cipação direta da platéia na ação dramática, como, por exem-
plo, quando os animadores distribuíam um peixe seco para cada
iglu; sugerindo que os espectadores , ao ritmo rítualístíco de um
tambor, partilhassem o alimento entre eles, propondo, assim , a
partir de um envolvimento tátil, olfativo e gustativo do público,
uma vivência dos hábitos desse povo. Nos momentos importan-
tes , em que :decisões precisavam ser tomadas para a continua-
ção da história, respeitando os costumes dessas comunidades , o
grupo dos anciãos era sempre consultado em primeiro

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