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LE MONDE BRASILdiplomatique ANO 13 / Nº 153 R$ 18,00 22 ACORDO COM O TALIBÃ RETIRADA AMERICANA NO AFEGANISTÃO POR GEORGES LEFEUVRE 20 PETROBRAS PRIVATIZAÇÃO EM ÁGUAS PROFUNDAS POR ANNE VIGNA 32 COMPRAR A PUREZA PERDIDA AS SINGULARES RELAÇÕES ENTRE ISRAEL E ALEMANHA POR DANIEL MARWECKI 00153 7520047719819 COBERTURA ESPECIAL A pandemia de Covid-19 transformou o mundo. Enquanto alguns celebram a oportunidade de fazer bons negó- cios, como a indústria farmacêutica (pág. 8), a Amazon (pág. 12) e os tuba- rões do ensino a distância no Brasil (pág. 18), outros questionam: o vírus mataria tanto se as políticas de auste- ridade não tivessem desmantelado os serviços públicos (págs. 6, 10 e 13)? Além disso, quais ações são urgentes para combater o contágio nas favelas brasileiras (pág. 16)? CORONA VIRUS 2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 PREPARANDO-SE PARA O PÓS-CRISE Desde já POR SERGE HALIMI* U ma vez superada essa tragédia, tudo começará de novo como antes? Durante trinta anos, ca- da crise alimentou uma espe- rança irracional de um retorno à ra- zão, de uma tomada de consciência, de uma parada. Imaginamos o confi- namento e depois a reversão de uma dinâmica sociopolítica da qual cada um teria enfim mensurado os impas- ses e as ameaças.1 A debandada da Bolsa de 1987 iria conter a irrupção das privatizações; as crises financei- ras de 1997 e de 2007-2008 fariam cambalear a feliz globalização. Mas não foi o que aconteceu. Os ataques do 11 de Setembro, por sua vez, provocaram reflexões críti- cas sobre a arrogância norte-ameri- cana e questões desoladas do tipo “Por que eles nos odeiam?”. Isso tam- bém não durou. Porque, mesmo quando caminha na direção certa, o movimento das ideias nunca é sufi- ciente para travar as máquinas infer- nais. Os seres humanos sempre aca- bam se intrometendo. E é melhor então não depender dos governantes responsáveis pela catástrofe, mesmo que esses piromaníacos saibam fazer cena, tentar apagar o fogo, fingir que mudaram (ler artigo na pág.6). Espe- cialmente quando – como a nossa – sua própria vida está em perigo. A maioria de nós não passou dire- tamente nem por uma guerra, nem por um golpe militar, nem por um to- que de recolher. No entanto, no final de março, quase 3 bilhões de habi- tantes já estavam confinados, com frequência em condições extrema- mente difíceis; a maioria não eram escritores observando a camélia em flor em torno de sua casa de campo. Aconteça o que acontecer nas próxi- mas semanas, a crise do coronavírus terá constituído a primeira angústia planetária de nossa vida: isso não se esquece. Os líderes políticos são for- çados a levar isso em conta, pelo me- nos parcialmente. Assim, a União Europeia acaba de anunciar a “suspensão geral” de suas regras orçamentárias; o presidente Emmanuel Macron adiou uma refor- ma previdenciária que teria prejudi- cado o pessoal da saúde; o Congresso dos Estados Unidos votou o envio de um cheque para a maioria dos norte- -americanos. Mas há pouco mais de dez anos, para salvar seu sistema em perigo, os liberais já haviam aceitado um aumento espetacular do endivi- damento público, a ampliação orça- mentária, a nacionalização dos ban- cos, o restabelecimento parcial do controle dos capitais. Em seguida, a austeridade lhes permitiu retomar o que haviam deixado de lado, em um salve-se quem puder planetário, e mesmo realizar alguns “avanços”: os funcionários trabalhariam mais, por mais tempo, em condições de maior insegurança; “investidores” e pes- soas que vivem de renda pagariam menos impostos. Por essa mudança radical, os gregos pagaram o mais al- to tributo, já que seus hospitais públi- cos, em dificuldades financeiras e sem medicamentos, observaram o retorno de doenças que eles acredita- vam ter desaparecido. Assim, o que inicialmente sugere um caminho para Damasco poderia levar a uma “estratégia de choque”. Em 2001, uma hora após o ataque ao World Trade Center, a assessora de um ministro britânico havia enviado uma mensagem a altos funcionários de seu ministério: “Este é um dia muito bom para trazer de novo à bai- la e fazer passar discretamente todas as medidas que precisamos tomar”. Ela não pensava necessariamente nas restrições contínuas que seriam impostas às liberdades públicas sob o pretexto da luta contra o terrorismo, muito menos na Guerra do Iraque e nos inúmeros desastres que essa de- cisão anglo-americana iria provocar. Vinte anos depois, não é necessário ser poeta ou profeta para imaginar a “estratégia de choque” que está to- mando forma. Corolário do “Fique em casa” e do “distanciamento”, toda a nossa socia- bilidade corre o risco de ser perturba- da pela digitalização acelerada de nossas sociedades. A emergência de saúde tornará ainda mais urgente, ou completamente obsoleta, a questão de saber se ainda é possível viver sem a internet.2 Toda pessoa já deve car- regar seus documentos com ela; em breve, um telefone celular não será apenas útil, mas requisitado para fins de controle. E, como as moedas e as notas constituem uma fonte po- tencial de contaminação, os cartões de banco, transformados em garan- tia de saúde pública, permitirão que cada compra seja listada, registrada, arquivada. “Crédito social” no estilo chinês ou “capitalismo de vigilância”, 3ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil © Mark Claus/Unsplash Na luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável. Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM Ribeirão Preto: 107,9 FM) TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Vivo Fibra e 186 da Vivo. Quartas, às 17h, Quartas, à meia-noite O olhar da cidadania observatorio3setor observatorio3setor www. observatorio3setor.org.br o recuo histórico do direito inaliená- vel de não deixar vestígios de sua pas- sagem quando não se transgride ne- nhuma lei se instala em nossa mente e em nossa vida sem encontrar outra reação que não seja uma irritação de adolescente imaturo. Antes do coro- navírus, já era impossível pegar um trem sem revelar o estado civil; usar sua conta bancária on-line exigia tor- nar seu número de celular conheci- do; andar por aí ao léu era certeza de estar sendo filmado. Com a crise da saúde, um novo passo foi dado. Em Paris, os drones monitoram as áreas cujo acesso é proibido; na Coreia do Sul, sensores alertam as autoridades quando a temperatura de um resi- dente representa um perigo para a comunidade; na Polônia, as pessoas precisam escolher entre a instalação de um aplicativo de verificação de confinamento em seus celulares ou visitas sem aviso prévio de policiais a suas casas.3 Em tempos de catástrofe, tais dispositivos de monitoramento são aprovados pela população. Mas eles sempre sobrevivem às condições que lhes deram origem. As turbulências econômicas que estão tomando forma também con- solidam um universo em que as liber- dades estão se estreitando. Para evi- tar qualquer contaminação, milhões de lojas de alimentos, cafés, cinemas e livrarias fecharam em todo o mun- do. Eles não dispõem de um serviço de entrega em domicílio e não têm a chance de vender conteúdos virtuais. Após a crise, quantos deles serão rea- bertos e em que estado? Em compen- sação, os negócios serão melhores para gigantes da distribuição como a Amazon, que se prepara para criar centenas de milhares de empregos para motoristas e gerentes de manu- tenção, ou o Walmart, que anuncia o recrutamento adicional de 150 mil “associados”. Quem melhor que eles para conhecer nossos gostos e nossas escolhas? Nesse sentido, a crise do coronavírus poderia constituir um ensaio geral que prefigura a dissolu- ção dos últimos focos de resistência ao capitalismo digital e o advento de uma sociedade sem contato.4 A menos que... A menos que vozes, gestos, partidos, povos e Estados per- turbem esse script escrito com ante- cedência. É comum ouvir: “Política não é da minha conta”. Até o dia em que todos entenderem que foram asescolhas políticas que forçaram os médicos a separar os pacientes que eles tentarão salvar daqueles que de- vem resolver sacrificar. Estamos nes- se ponto. Isso é ainda mais verdadei- ro nos países da Europa central, nos Bálcãs e na África, que há anos veem seu pessoal médico emigrar para re- giões menos ameaçadas ou para em- pregos mais bem remunerados. No- vamente, não se tratava de escolhas ditadas pelas leis da natureza. Hoje, sem dúvida, entendemos melhor. O confinamento também é um mo- mento em que todo mundo para e pensa... Com a preocupação de agir. Des- de já. Porque, ao contrário do que o presidente francês sugeriu, não é mais uma questão de “questionar o modelo de desenvolvimento com o qual nosso mundo se comprometeu”. A resposta é conhecida: é preciso al- terá-lo. Desde já. E, já que “delegar nossa proteção a outras pessoas é loucura”, deixemos então de sofrer dependências estratégicas para pre- servar um “mercado livre e sem dis- torções”. Macron anunciou “decisões de ruptura”, mas ele nunca tomará aquelas que são necessárias. Não apenas a suspensão temporária, mas a denúncia definitiva dos tratados europeus e dos acordos de livre-co- mércio que sacrificaram as sobera- nias nacionais e erigiram a concor- rência como valor absoluto. Desde já. A partir de agora, todo mundo sabe o que custa confiar a cadeias de supri- mentos espalhadas pelo mundo e operando sem estoques a tarefa de abastecer um país em dificuldades com milhões de máscaras de saúde e produtos farmacêuticos dos quais depende a vida de seus doentes, de suas equipes médicas, de seus entre- gadores, de seus operadores de caixa. Todo mundo também sabe quanto custa para o planeta ter sofrido des- matamentos, deslocalizações, acú- mulo de dejetos, mobilidade perma- nente – Paris recebe 38 milhões de turistas todos os anos, mais de dezes- sete vezes seu número de habitantes, e se orgulha publicamente disso. O protecionismo, a ecologia, a jus- tiça social e a saúde estão agora liga- dos. Eles constituem os elementos- -chave de uma coalizão política anticapitalista poderosa o suficiente para impor, desde já, um programa de ruptura. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Ler Serge Halimi, “Le naufrage des dogmes libéraux” [O naufrágio dos dogmas liberais], e Frédéric Lordon, “Quand Wall Street est de- venu socialiste” [Quando Wall Street se tor- nou socialista], Le Monde Diplomatique, res- pectivamente, out. 1998 e out. 2008. 2 Ler Julien Brygo, “Peut-on encore vivre sans Internet?” [Ainda podemos viver sem a inter- net?], Le Monde Diplomatique, ago. 2020. 3 Cf. Samuel Kahn, “Les Polonais en quarantai- ne doivent se prendre en selfie pour prouver qu’ils sont chez eux” [Os poloneses em qua- rentena devem tirar selfies para provar que estão em casa], Le Figaro, 24 mar. 2020. 4 Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e Abha Bhattarai, “The new coronavirus eco- nomy: A gigantic experiment reshaping how we work and live” [A nova economia do coro- navírus: um experimento gigantesco que está remodelando a forma como trabalhamos e vi- vemos], The Washington Post, 22 mar. 2020. 4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 EDITORIAL A polícia política POR SILVIO CACCIA BAVA O motim da Polícia Militar do Ceará e a forma como o gover- no federal tratou a questão abrem um novo momento na escalada autoritária em nosso país. Para compreender o alcance dessa operação é preciso contextualizar es- se motim e avaliar seus possíveis desdobramentos. Com uma estrutura herdada da ditadura (1964-1985), as PMs contam com 425 mil policiais militares hoje no país,1 que devem obediência ao governo de cada estado da Federa- ção. Uma força armada maior que o Exército brasileiro, que se estima te- nha 300 mil militares. Em sua cria- ção a PM foi concebida para o patru- lhamento ostensivo e a preservação da ordem. Durante o período da dita- dura, a PM passou a ser comandada por oficiais do Exército e também a combater o “inimigo interno”, ou se- ja, os críticos ao governo e todos aqueles que o governo viesse a desig- nar como seus inimigos. São muitos os comportamentos das PMs que ultrapassam os limites legais, com a anuência de seus ofi- ciais superiores, dos governos e da Justiça. O terror imposto nas favelas pela PM desconhece os limites da lei. O assassinato sistemático de jovens negros moradores de favelas pela PM é denunciado como genocídio no âmbito internacional. A violenta re- pressão às mobilizações de rua, aos protestos da cidadania, é outra face da atuação dessa força repressiva. A tudo isso se somam as investidas da PM contra líderes de movimentos so- ciais, alguns executados por poli- ciais. Um dos casos mais recentes é o de Daniel de Oliveira dos Santos, 40 anos, líder do Movimento dos Traba- lhadores Sem Teto de Minas Gerais, morto com um tiro na nuca pela PM no dia 5 de março deste ano.2 No motim ocorrido no Ceará, PMs lançaram mão de ações intimidató- rias, ocuparam quartéis e buscaram disseminar o pânico na população. Ao estilo das milícias, em carros par- ticulares, com o rosto coberto – usan- do balaclava – e de arma na mão, im- puseram ao comércio local toque de recolher, e não se tem ideia ainda de quantos eles assassinaram. O estado registrou 456 homicídios no mês, 312 deles durante a paralisa- ção dos policiais militares, que durou treze dias. Foram 26 homicídios por dia, num total de 292 assassinatos a mais do que no ano anterior, um au- mento de 178% no mês. Embora a im- prensa tenha alegado que as mortes foram consequência do enfrenta- mento entre grupos rivais pelo con- trole do narcotráfico, o aumento da criminalidade serviu aos interesses da PM ao gerar pânico e insegurança na população, situação que melhora as condições da negociação de seus interesses na paralisação. Há a preocupação da parte de go- vernadores que o motim venha a se espalhar para outros estados. Ala- goas, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraíba, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul estão entre os estados onde as PMs expressam insatisfação.3 O motim no Ceará e a insatisfação em outros estados têm origem em questões salariais e corporativas. Em sua maioria, as PMs estaduais não têm reajuste salarial há cinco ou seis anos. Além da questão salarial, entre suas reivindicações está a unificação © C la ud iu s 5ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil do plano de carreira em nível federal, o que inclui um novo plano de cargos e salários, que viria a corrigir a exis- tência de legislações estaduais diver- sas e desencontradas. Embora proibidas pela Constitui- ção, as greves dos policiais militares foram 52 entre 1997 e 2017.4 Os movi- mentos paredistas na área da segu- rança pública vêm se intensificando desde 2013, impulsionados por suas associações e pautas corporativas. As sucessivas anistias que o governo fe- deral e estaduais deram aos amotina- dos geraram a sensação de impuni- dade e o empoderamento dessas corporações. A situação se torna ainda mais de- licada quando se verifica a letalidade da ação desses policiais. Em 2019, a PM matou 6.220 pessoas, o que cor- responde a dezessete assassinatos por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.5 E é preciso considerar também o envolvimento da PM com o crime organizado, com as milícias. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou, em 2012, a extinção da PM. A ONU de- nuncia a existência no Brasil de es- quadrões da morte formados por po- liciais militares. Tomando conhecimento da pre- paração do motim da PM, com a ocu- pação de quartéis, o Ministério Pú- blico do Ceará ingressou com uma Ação Civil Pública contra a Aspra (As- sociação dos Praças do Estado do Ceará), a APS (Associação dos Profis- sionais de Segurança Pública), a As- sof (Associação dos Oficiais da Polí- cia Militar e do Corpo de Bombeiro Militar do Estado do Ceará), a Aspra- mece (Associação de Praças da Polí- cia Militar e Corpode Bombeiros Mi- litar do Ceará) e a ABSS (Associação Beneficente dos Subtenentes e Sar- gentos). A ação foi acatada e determi- nou-se a prisão dos policiais milita- res que aderirem ao movimento. Nem por isso policiais militares amotina- dos deixaram de paralisar os serviços de segurança nas cidades e ocupar quatro quartéis no estado. Nesse cenário preocupante é pos- sível reconhecer certa autonomia das PMs, que não se submetem nem ao Exército nem aos governadores. A Ins- petoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Exército brasileiro cujo objetivo são ações de controle sobre as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, não se mani- festou com relação ao motim. Segundo o sociólogo José Claudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especialista em milícias, “a estrutura de seguran- ça pública é algo incontrolável. Eles têm uma autonomia de atuação mui- to grande. Mesmo governos de es- querda não exercem de fato poder e controle sobre essa estrutura”.6 Roberto Romano, professor da Unicamp, denuncia que “é grave que nenhum comandante militar se le- vante contra tal desmonte do mono- pólio legítimo da força física. Há toda uma vasta operação para desmontar o Estado brasileiro, aqui instaurando pequenas repúblicas conduzidas por milícias”.7 BOLSONARO E AS PMS A relação de Jair Bolsonaro com as PMs vem de longa data, desde os tem- pos em que o capitão, na ativa, em 1987, criticou na revista Veja a políti- ca salarial do Exército, ameaçou de morte uma jornalista e planejou em conjunto com outros militares colo- car bombas em quartéis do Exército e explodir a adutora de água do Rio de Janeiro como formas de pressão para a negociação salarial. Por unanimidade, em 19 de abril de 1988, o Conselho de Justificação do Exército declarou Bolsonaro cul- pado das acusações a ele imputadas e decidiu que fosse “declarada sua in- compatibilidade para o oficialato e consequente perda do posto e paten- te, nos termos do artigo 16, inciso I da lei n. 5836/72”.8 Esses fatos foram desconsidera- dos no julgamento do Superior Tribu- nal Militar, que o inocentou em 16 de junho de 1988, ignorando inclusive a ameaça de morte feita pelo réu à re- pórter da revista durante seu depoimento. A notoriedade adquirida por Bol- sonaro na caserna se deveu à defesa que ele fez do aumento dos salários para os militares, mesmo que para is- so se utilizasse de insubordinação e terrorismo. Esse prestígio deu a ele a possibilidade de se eleger vereador do Rio de Janeiro em 1988, com 11.062 votos, vindos em sua grande maioria de militares e suas famílias. “A partir desta data, por norma da corporação, Bolsonaro entra para a reserva não remunerada e, como ve- reador, inicia um intenso trabalho como defensor dos interesses da clas- se militar, sem que para isso tenha representatividade ou delegação, ar- guindo, contrapondo e acusando de forma descabida autoridades consti- tuídas nos mais diversos níveis”.9 Eleito deputado federal em 1990, ele defendeu, ao longo de seus sete mandatos consecutivos como depu- tado federal, as pautas da corporação e a anistia aos amotinados em várias das insurreições das PMs. Segundo o deputado Paulo Ramos (PDT-RJ), ex-policial militar, há uma proximidade ideológica entre Bolso- naro, que é repressor, e a PM, que é repressiva. “Os policiais militares são doentes por Bolsonaro”, diz ele, e constituem parte importante de sua base eleitoral desde quando era de- putado federal. Pesquisas realizadas em São Paulo antes das últimas elei- ções mostraram que 92% dos poli- ciais e suas famílias votariam em Bolsonaro.10 Se a afinidade com a PM vem de longe, lembremos também sua rela- ção de proximidade com Adriano Magalhães da Nóbrega (ex-capitão do Bope) e Fabricio Queiroz (policial mi- litar aposentado). Quando assumiu a Presidência da República, Jair Bolso- naro passou a defender abertamente medidas em favor das PMs. Sua pre- sença em eventos nos quartéis refor- çou suas relações com a corporação. A reforma da Previdência favore- ceu os militares e o primeiro indulto natalino anistiou policiais militares. Bolsonaro sancionou lei que abole a punição disciplinar na PM e encami- nhou ao Congresso projeto de lei que isenta de julgamento mortes violen- tas provocadas por policiais milita- res, o conhecido projeto de “exclu- dente de ilicitude” – na prática, licença para matar. Há um interesse direto da Asso- ciação das Entidades Representativas de PMs e Bombeiros Militares no ex- cludente de ilicitude. Em 2019, os ser- viços de inteligência apenas da PM paulista identificaram 845 mortes em situações de “excludente de ilicitude” – vale dizer, assassinatos. A Rota, tro- pa de elite da PM paulista, matou 98% mais pessoas em 2019 que no ano an- terior; foram 101 pessoas, segundo a ouvidoria da PM. O MOTIM DO CEARÁ Bolsonaro e seu ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, fizeram de tudo para não criticar o motim da PM e seus responsáveis. O diretor da Força Nacional de Segu- rança Pública enviado por Moro ao Ceará, coronel Aginaldo de Oliveira, visitou um quartel amotinado e elo- giou os revoltosos. Essa atitude foi considerada pelo presidente da Co- missão Nacional de Direitos Huma- nos da OAB, advogado Hélio Leitão, um “empoderamento irresponsável das forças de segurança, que está se convertendo em uma força política que coloca em risco a democracia”.11 Vários dos líderes do motim são identificados como fiéis seguidores de Bolsonaro. Capitão Wagner e Sol- dado Noelio, deputados estaduais; Sargento Reginauro, vereador em Fortaleza; Sargento Ailton, vereador em Sobral; Cabo Sabino, ex-deputado federal. Essas lideranças apoiaram a candidatura de Bolsonaro e apoiam seu governo. O governo do Ceará, do PT, havia feito um acordo salarial com a PM que foi considerado muito bom pela própria PM, mas o motim continuou tanto pelo interesse de suas lideran- ças se projetarem eleitoralmente este ano, como para promover o desgaste do governo do PT. E o motim, agora se compreende, tem viés ideológico. José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM, alerta para o uso político do motim, que constitui um foco de oposição nos estados admi- nistrados por governos de esquerda. Neste momento, com as revoltas das PMs podendo se alastrar por vá- rios estados, o presidente propõe a criação da lei orgânica da PM, uma antiga reivindicação da corporação que está sendo elaborada, por inicia- tiva de Bolsonaro, em conjunto com as associações de PMs, desde o ano passado. Trata-se de criar uma legis- lação federal para a PM, com plano de carreira, de cargos e salários, que unificará as legislações estaduais e (atenção!) sua visão de atuação. Com a lei orgânica, policiais acreditam que terão mais autonomia em relação aos governadores. O projeto de lei or- gânica está sendo preparado para ser enviado ao Congresso. Expressando sua preocupação, o governador de São Paulo, João Doria, levanta questões quanto ao modo como o governo federal e o presiden- te da República estão tratando o mo- tim do Ceará: é “o estímulo ao mili- ciamento das polícias” e pode “comprometer essa relação institu- cional em todos os estados, não só em São Paulo”.12 A situação é inquietante. Uma for- ça militar com 425 mil homens arma- dos pode tornar-se uma polícia polí- tica. Sem os controles e os limites impostos pela Constituição, essa for- ça militar corre o risco de ser tomada, em sua direção, pelos fascistas que estão no governo. Sua identidade com Bolsonaro o coloca como o líder a ser seguido, não importando as ins- tituições. 1 IBGE, 2015. 2 Disponível em: www.metropoles.com/brasil/ coordenador-do-mtst-e-morto-pela-pm-em-u- berlandia. 3 “Do Ceará a São Paulo, governadores vivem embate com suas polícias”, Folha de S.Paulo, 20 fev. 2020. 4 José Vicente Tavares dos Santos e Ana Paula Rosa, UFRGS. 5 Anuário Brasileiro de SegurançaPública, ano 13, 2019. 6 André Barrocal, “Forças de segurança são incontroláveis, não importa o partido”, Carta Capital, 20 fev. 2020. 7 André Barrocal, op. cit. 8 Eduardo Reina, “Os documentos que levaram o Exército a expulsar Bolsonaro: ‘a mentira do capitão’”, DCM, 26 dez. 2018. 9 Relatório do CIE no item 14, página 2, informa- ção n. 394, de 27 de julho de 1990. Citado por Reina, op. cit. 10 André Barrocal, op. cit. 11 Rede Brasil Atual – Conversa Afiada – 03/03/2020. 12 Igor Gielow, “Bolsonaro desrespeita Congres- so e Judiciário e estimula ‘miliciamento’ de polí- cias” (entrevista com o governador João Doria), Folha de S.Paulo, 14 de mar. 2020. 6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 COBERTURA ESPECIAL – CORONAVÍRUS Até o próximo fim do mundo... A arte da prestidigitação consiste em direcionar a atenção do pú- blico para que ele não perceba o que está diante de seus olhos. No coração da epidemia de Covid-19, o truque de mágica tomou a forma de um gráfico de duas curvas, transmi- tido por televisões de todo o mundo. Na abscissa, o tempo; na ordenada, o número de casos graves da doença. Uma primeira curva na forma de um pico agudo mostra o impacto da epi- demia se nada for feito: ela quebra a reta horizontal que indica as capaci- dades máximas de acolhimento dos hospitais. A segunda curva ilustra uma situação em que as medidas de confinamento permitem limitar a propagação. Ligeiramente abobada- da, como um casco de tartaruga, ela desliza para baixo do limiar fatídico. Exibido de Washington a Paris, passando por Seul, Roma e Dublin, o gráfico aponta uma urgência: diluir o ritmo da contaminação ao longo do tempo para evitar a saturação dos ser- viços de saúde. Chamando atenção para as duas ondulações, os jornalis- tas escondem um elemento importan- te: essa linha reta, discreta, no meio do gráfico, que representa o número de leitos disponíveis para acomodar os casos graves. Apresentado como um dado caído do céu, esse “limiar crítico” deriva de escolhas políticas. Se é necessário “achatar a curva”, é porque há décadas as políticas de austeridade diminuíram a altura da reta ao retirar dos serviços de saúde sua capacidade de acolhimento. Em 1980, a França dispunha de onze lei- tos hospitalares (todos os serviços combinados) por mil habitantes. Ho- je há apenas seis, que um ministro da Saúde macronista propunha em se- tembro entregar aos bons cuidados dos bed managers (administradores de leitos), responsáveis por alocar es- se recurso escasso. Nos Estados Uni- dos, os 7,9 leitos por mil habitantes registrados em 1970 foram reduzidos para 2,8 em 2016.1 Segundo a Organi- zação Mundial da Saúde (OMS), a Itá- lia tinha 9,22 leitos dedicados a “ca- sos graves” por mil habitantes em 1980, contra 2,75 trinta anos depois. Em todos os lugares, uma palavra de ordem: reduzir custos. O hospital funcionaria como uma fábrica de au- tomóveis, no modo just in time. Como resultado, em 6 de março, a Socieda- de Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva (Siarti) comparou o trabalho dos mé- dicos de emergência transalpinos à “medicina de catástrofe”. E alertou: dada a “falta de recursos”, “poderia ser necessário estabelecer um limite de idade para o acesso à terapia in- tensiva.”2 “Medicina de guerra”: um termo agora comum. Assim, a crise do coronavírus se deve tanto à periculosidade da doen- ça quanto à deterioração organizada do sistema de saúde. Eterna câmara de ressonância do credo contábil, a grande mídia evitou o exame crítico dessas opções para convidar leitores e ouvintes para um debate filosófico estonteante: como decidir quem sal- var e quem deixar morrer? Dessa vez, porém, será difícil esconder a ques- tão política por trás de um dilema éti- co. A epidemia de Covid-19 desvela aos olhos de todos uma organização econômica ainda mais aberrante do que todos suspeitavam. Enquanto as companhias aéreas operavam seus aviões vazios para manter os slots abertos, um pesquisador explicava como a burocracia liberal tinha de- sencorajado a pesquisa básica sobre os coronavírus.3 Como se fosse preci- so sair do habitual para entender o desvio, Marshall Burke, professor de Ciência de Ecossistemas da Universi- dade de Stanford, observou esse pa- radoxo: “A redução da poluição at- mosférica causada pela epidemia de Covid-19 na China provavelmente A pandemia de Covid-19 transformou o mundo. Passear com um amigo é cada vez mais impensável quanto respeitar as metas fiscais: o banal torna-se a exceção; o inimaginável, cotidiano. Enquanto alguns celebram a oportunidade de fazer bons negócios (págs. 8, 12 e 18), outros se perguntam: salvar vidas justifica ameaçar o livre-comércio (pág. 10 e abaixo)? Nos prontos-socorros como nas salas de reunião, uma questão lancinante se espalha: o vírus teria matado tanto se as políticas de austeridade não tivessem desmantelado os serviços públicos (pág. 13)? No Brasil, a necessidade de ações voltadas para a população trabalhadora e que convivem com condições de moradia inadequadas (pág. 16) POR RENAUD LAMBERT E PIERRE RIMBERT* salvou vinte vezes o número de vidas perdidas devido à doença. É menos uma questão de concluir que as pan- demias são benéficas que de medir quão ruins são nossos sistemas eco- nômicos para a saúde. Mesmo na au- sência de coronavírus”.4 O furo dessa viagem para o país do absurdo não estava nem no risco de escassez de medicamentos após a deslocalização das cadeias produtivas nem na obsti- nação dos mercados financeiros em castigar a Itália quando o governo to- mava suas primeiras medidas sanitá- rias. Mas atrás das portas dos hospi- tais. Estabelecida em meados da década de 2000, a “tarifação da ativi- dade” (T2A) proporcionou o finan- ciamento dos estabelecimentos pelo número de procedimentos médicos realizados, cada um cobrado como em uma loja, e não de acordo com o planejamento de necessidades. Se ti- vesse sido aplicado durante a crise atual, esse princípio do cuidado-mer- cadoria importado dos Estados Uni- dos rapidamente teria estrangulado os estabelecimentos que recebem os pacientes mais afetados, uma vez que as formas críticas do Covid-19 exigem antes de tudo a aplicação de uma ventilação mecânica, um procedi- mento oneroso em termos de tempo, mas menos remunerador na grade ta- rifária que muitos exames negados por causa da epidemia... Por um tempo, o micróbio por trás das medidas de confinamento mais severas já imaginadas em tempos de paz pareceu romper as barreiras do espaço social: o banqueiro de Wall Street e o trabalhador chinês não eram subitamente submetidos à mes- ma ameaça? E então o dinheiro reto- mou seus direitos. De um lado, os confinados das mansões, que traba- lham a distância com um pé na pisci- na; de outro, os invisíveis do cotidia- no, cuidadores, agentes de superfície, caixas de supermercado e trabalha- dores da logística saídos por uma vez das sombras por estarem expostos a um risco que os mais abastados des- denham. Trabalhadores a distância enclausurados em um apartamento apertado onde reinam os ruídos das crianças; pessoas sem-teto que gos- tariam muito de ficar em casa. ABORDAGEM COLETIVA, COORDENADA E AMPLA Em sua “tipologia dos comportamen- tos coletivos em tempos de peste” en- tre os séculos XIV e XVIII, o historia- dor conservador Jean Delumeau observa esta invariante: “Quando aparece o perigo do contágio, de iní- cio as pessoas tentam não enxergá- -lo”.5 O escritor alemão Heinrich Hei- ne observa que após o anúncio oficial da epidemia de cólera em Paris, em 1832, “os parisienses saracoteavam com ainda mais jovialidade nas ave- nidas” pelo fato de “fazer um tempo ensolarado e agradável”.6 Em segui- da, os ricos fugiram para o campo. Depois, o governo colocou a cidade em quarentena. Então, de repente, explica Delumeau, “os laços familia- res foram abolidos. A insegurança não surgiu apenas da presença da doença, mas também de uma deses-truturação dos elementos que cons- truíam o ambiente cotidiano. Tudo ficou diferente”. Os habitantes confi- nados de Wuhan, Roma, Madri ou Paris experimentam isso em uma es- cala sem precedentes. As grandes pestes da Idade Média e do Renascimento eram frequente- mente interpretadas como um sinal do Juízo Final ou da fúria de um Deus vingador desencadeada sobre um mundo que chegava ao fim. Então, cada um se virava alternadamente em direção ao céu para implorar gra- ça e em direção à vizinhança em bus- ca de culpados – os judeus, as mulhe- res. Na Europa do século XXI, a epidemia de coronavírus se abate so- 7ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil bre sociedades secularizadas, mas, desde a crise financeira de 2008, afe- tadas em graus variados pelo senti- mento de uma “perda de controle” ecológica, política, financeira, demo- gráfica, migratória etc. Nessa atmosfera de “fim do mun- do”, em que se misturam imagens da Notre-Dame de Paris em chamas e debates sobre o colapso que se apro- xima, os olhos se voltam para o poder público: o Estado, fonte de agrava- mento do problema por sua obstina- ção em quebrar o sistema de saúde e única instância, no entanto, capaz de ordenar e coordenar uma resposta à epidemia. Mas até onde ir? Durante o mês de fevereiro, o confinamento obrigatório por várias semanas de 56 milhões de habitantes de Hubei, na China, o fechamento forçado das fá- bricas, o chamado à ordem dos mora- dores da cidade por drones equipa- dos com câmeras e megafones provocaram na Europa comentários ridículos ou circunspectos sobre o punho de ferro do Partido Comunis- ta. “Nenhuma lição pode ser aprendi- da com a experiência chinesa sobre a duração potencial da epidemia”, ex- plicou a revista L’Express, em 5 de março. “Ela desacelerou lá por causa de medidas drásticas de confina- mento, provavelmente inaplicáveis em nossas democracias.” Cansados diante dos vírus insensíveis à supe- rioridade de “nossos” valores, deve- mos decidir colocar a decisão centra- lizada no primeiro plano e o liberalismo econômico no segundo. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, especifica que “é possível repelir a epidemia, mas apenas com base em uma abor- dagem coletiva, coordenada e am- pla, que envolva todo o maquiná- rio.”7 Coletivo, coordenação, Estado: o inverso do mercado. Em alguns dias, as estruturas de interpretação do mundo social se revertem como uma luva: “Tudo está diferente”. As noções de soberania, de fronteira, de limite e até de despesas públicas, as- sociadas há meio século nos discur- sos públicos ao “nacional-populis- mo” ou à Coreia do Norte, de repente tomam a forma de uma solução em um mundo até então regulado pelo culto aos fluxos e à austeridade orçamentária. Estimulada pelo pânico, a van- guarda editocrática de repente des- cobre aquilo que estava tentando ig- norar. “Não podemos dizer também que, no fundo, essa crise nos convida a repensar áreas inteiras da globali- zação: nossa dependência da China, do livre-comércio e do avião?”, per- guntou na France Inter, em 9 de mar- ço, Nicolas Demorand, ao microfone diante do qual os carrascos do prote- cionismo, como Daniel Cohen, se se- guem há anos. A IGNORÂNCIA DOS ESPECIALISTAS É preciso que a razão de mercado te- nha reconfigurado profundamente os entendimentos para que apenas a eclosão de uma pandemia mortal possa tornar audíveis ao poder os truísmos que os profissionais da área médica enunciaram durante décadas: “Sim, deve haver uma estrutura hos- pitalar pública com leitos permanen- temente disponíveis”, resumiram os médicos André Grimaldi, Anne Ger- vais Hasenknopf e Olivier Milleron. “O novo coronavírus tem o mérito de lembrar o óbvio: não pagamos aos bombeiros apenas para ir apagar o fo- go, queremos que eles estejam presen- tes e prontos em seus quartéis, mesmo quando estão apenas polindo o cami- nhão enquanto aguardam a sirene.”8 Prever o que acontece sem aviso (incêndio, doença, cataclismo, crise financeira): foi incorporando essa de- manda popular em suas instituições, muitas vezes contra sua vontade, que o capitalismo se perpetuou e se reno- vou entre a crise de 1929 e o fim da Se- gunda Guerra Mundial. Planejar o inesperado exigia romper com a ra- cionalidade do mercado que fixa um preço de acordo com a oferta e a pro- cura, desconsidera o improvável e modela o futuro por meio de equa- ções em que as sociedades não valem nada. Essa cegueira da economia-pa- drão, elevada a seu ponto mais alto nas salas de negociação, atingiu o ex- -corretor e estatístico Nassim Nicho- las Taleb. Em um livro publicado al- guns meses antes da crise de 2008, ele observou sobre os futurólogos de cur- to prazo: “O problema com os espe- cialistas é que eles não têm ideia do que estão ignorando”.9 Negligenciar o imprevisto em um mundo marcado pela multiplicação de eventos inespe- rados, os “cisnes negros”, é, segundo ele, absurdo. No final de março de 2020, qualquer um que ouvisse à sua janela o argumento do silêncio da ci- dade confinada podia meditar sobre a obstinação do Estado em se despojar não apenas dos leitos de reanimação, mas também de seus instrumentos de planejamento, agora monopolizados por algumas multinacionais de segu- ro e de resseguro.10 A fissura causada pela pandemia pode reverter esse curso? Reimplan- tar o eventual e o fortuito na condu- ção dos assuntos públicos, enxergar além do cálculo de custo/benefício e implementar um planejamento eco- lógico envolveria socializar a maioria dos serviços essenciais à vida das so- ciedades modernas, da limpeza às re- des digitais, passando pela saúde: uma oscilação tamanha que rara- mente ocorre em tempos comuns. O olhar de um historiador sugere que as mudanças de regime, trajetória, mo- do de pensar a vida coletiva e a igual- dade permanecem fora do alcance das deliberações políticas comuns. “Em todos os momentos”, escreve o historiador austríaco Walter Scheidel, professor de Stanford, “os maiores achatamentos resultaram dos cho- ques mais severos. Assim, quatro ti- pos de rupturas violentas consegui- ram aplanar as desigualdades: guerra, quando envolveu uma mobilização em massa, as revoluções, as falências estatais e as pandemias mortais”.11 Estaríamos nessa situação? Por outro lado, o sistema econômico mostrou ao longo de sua história uma extraor- dinária capacidade de absorver os choques cada vez mais frequentes a que sua irracionalidade dá origem. Tanto é assim que as convulsões mais brutais geralmente beneficiam os fia- dores do status quo, que se apoiam na catástrofe para estender o domínio do mercado. Esse capitalismo do desas- tre dissecado pouco antes da grande recessão de 2008 por Naomi Klein zomba do esgotamento de recursos naturais e das instituições de prote- ção social capazes de amortecer as crises. Num ímpeto de otimismo, a ensaísta canadense observou: “Nem sempre reagimos a choques regredin- do. Em tempos de crise, às vezes cres- cemos – e rápido”. É uma impressão desse tipo que o presidente francês Emmanuel Ma- cron quis passar ao expressar, em 12 de março de 2020, seu desejo de “questionar o modelo de desenvolvi- mento em que nosso mundo se lan- çou há décadas e que revela suas fa- lhas à luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que essa pandemia revela a partir de agora é que os cuidados de saúde gra- tuitos, independentemente da renda, carreira ou profissão, e nosso Estado de bem-estar não são custos ou en- cargos, mas bens preciosos, bens es- senciais quando o destino ataca. O que essa pandemia revela é que exis- tem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. Delegar nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de cuidar de nosso ambiente de vida a outras pessoas é loucura. Devemos recupe- rar o controle disso tudo”. Três dias depois, ele adiava a reforma da previ- dência, outra do auxílio-desemprego, depois decretava a implementação de medidasconsideradas até então © Giorgia Massetani 8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 fermagem, e os testes de triagem per- manecem inacessíveis à grande maioria após três meses de epidemia? Por que esses testes estão no centro do debate global, da Coreia do Sul aos Estados Unidos, passando pela Ale- manha, Austrália e Lombardia, mas continuam sendo cuidadosamente evitados na França, onde o diretor- -geral de Saúde, Jérôme Salomon, só considera seu uso maciço “no final do confinamento”? Ao contrário dos anúncios do governo, longe de ser uma guerra contra um vírus cuja úni- ca arma seria a quarentena, a batalha diz respeito à nossa própria organiza- ção econômica e social. É uma crise de nossa política de saúde, pesquisa e produção, na qual a indústria farma- cêutica desempenha um papel cen- tral, mas cuidadosamente mantido a distância do debate público. Nas últimas semanas, a pande- mia de coronavírus revelou as falhas de um modelo social baseado na ideia da rentabilidade econômica da saúde, justificando cortes orçamen- tários cada vez mais restritivos para funcionários e pacientes. Na França, com a saturação das salas de reani- mação e dos serviços de emergência, já lutando há meses no coletivo Inter- -urgences para pedir mais recursos, os profissionais devem fazer esco- lhas dramáticas entre os cuidados vitais, cuja lista está diminuindo, e aqueles que são sacrificados, sempre mais numerosos. Em alguns casos, como na Alsácia, a questão já passa a ser quem deve ser mantido vivo e quem se deve deixar morrer. Mas co- mo explicar que, em 22 de março, já houvesse 271 mortos na região do Grande Leste, enquanto a poucos passos de distância, do outro lado do Reno, em Baden-Württemberg, onde a população é duas vezes maior e a epidemia mais precoce, houvesse apenas 23, ou seja, mais de dez vezes menos? Uma das respostas a essa pergun- ta pode ser encontrada no papel po- lítico que a indústria farmacêutica desempenha em nossos sistemas de saúde. É ela quem produz as ferra- mentas que permitem fazer a tria- gem do vírus, nos vacinar contra ele ou tratá-lo. Ainda que a França seja extremamente carente dos kits de triagem – cuja tecnologia por reação de polimerase em cadeia (PCR) iden- tifica o vírus amplificando seu DNA –, estes são, no entanto, simples de fabricar. Muitas empresas se lança- ram nesse mercado colossal, que acaba de emergir como um gêiser: Abbott, Quiagen, Quest Diagnostics, Thermo Fischer, Roche, BioMé- rieux... A técnica é barata – cerca de 12 euros por um kit vendido por 112 euros na França, dos quais 54 euros cobrados dos pacientes. No entanto, ela pode ser objeto de acordos tarifá- rios proibitivos em um contexto de monopolização do mercado entre al- gumas grandes empresas, como Ab- bott ou Roche, que vende platafor- mas tecnológicas caras a laboratórios menores.1 A França revelou-se incapaz de rastrear maciçamente os doentes com Covid-19, revelando a dependência da saúde pública em relação aos laboratórios privados POR QUENTIN RAVELLI* Uma mina de ouro para os laboratórios A s crises econômicas são tão se- letivas quanto as epidemias: em meados de março, enquan- to as Bolsas de Valores entra- vam em colapso, as ações do labora- tório farmacêutico Gilead subiam 20% após o anúncio dos testes clíni- cos do remdesivir contra a Covid-19. As da Inovio Pharmaceuticals au- mentavam 200% após o anúncio de uma vacina experimental, a INO- 4800. As da Alpha Pro Tech, fabrican- te de máscaras de proteção, saltaram 232%. Quanto às ações da Co-Diag- nostics, subiram mais de 1.370% gra- ças ao seu kit de diagnóstico molecu- lar do Coronavírus 2 da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars- -Cov-2), responsável pela pandemia de Covid-19. Como explicar que, no centro da turbulência, seja possível enriquecer assim, mesmo quando há falta de máscaras de proteção, inclusive para os médicos e para as equipes de en- A FEBRIL INDÚSTRIA DO VÍRUS impossíveis – limitação das demis- sões, abandono de todas as restrições orçamentárias. As circunstâncias acentuarão por si mesmas essa redu- ção: com o colapso dos valores do mercado de ações, a obsessão do pre- sidente em levar a poupança e as pensões dos executivos para os mer- cados de ações soa como um golpe de gênio visionário. No entanto, suspen- der a lei trabalhista, restringir as li- berdades públicas, financiar as em- presas de guichês abertos, isentá-las das contribuições para a previdência social nas quais se ampara o sistema de saúde não marca uma ruptura ra- dical com as políticas anteriores. Es- sa transferência maciça de dinheiro público para o setor privado é uma reminiscência do resgate dos bancos pelo Estado em 2008. A conta tinha assumido a forma de austeridade im- posta aos funcionários e serviços pú- blicos. Menos leitos? Sim: era preciso socorrer os bancos. É por isso que a epifania do chefe de Estado evoca aquela que atingiu Nicolas Sarkozy em um dia de setem- bro de 2008, logo após o colapso do Lehman Brothers. Diante de seus apoiadores estupefatos, o presidente da República anunciou solenemente: “Uma ideia de globalização termina com o fim de um capitalismo finan- ceiro que havia imposto sua lógica a toda a economia e tinha contribuído para pervertê-la. [...] A ideia de que os mercados estão sempre certos era uma ideia louca”.12 Algo que não o im- pediu de, passada a tempestade, reto- mar o curso da loucura habitual. *Renaud Lambert e Pierre Rimbert são jornalistas do Le Monde Diplomatique. 1 Fonte: OCDE. 2 “Raccomandazioni di etica clinica per l’ammis- sione a trattamenti intensivi e per la loro sos- pensione” [Procedimentos clínicos éticos para a admissão em tratamentos intensivos e para sua suspensão], Siaarti, Roma, 6 mar. 2020. 3 Bruno Canard, “J’ai pensé que vous avions momentanément perdu la partie” [Eu pensei que havíamos perdido temporariamente o jogo], declaração de 5 mar. 2020, disponível no site da Academia, https://academia.hypo- theses.org. 4 Twitter, 9 mar. 2020. 5 Jean Delumeau, La Peur en Occident, XIVe-X- VIIIe siècle [Medo no Ocidente, séculos XIV- -XVIII], Fayard, Paris, 1978. 6 Heinrich (Henri) Heine, De la France, Galli- mard, Paris, 1994. 7 New York Times, 9 mar. 2020. 8 Le Monde, 11 mar. 2020. 9 Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan. The Impact of the Highly Improbable [O cisne ne- gro. O impacto do altamente improvável], Random House, Nova York, 2007. 10 Razmig Keucheyan, La Nature est un champ de bataille. Essai d’écologie politique [A natu- reza é um campo de batalha. Ensaio de ecolo- gia política], La Découverte, Paris, 2014. 11 Walter Scheidel, The Great Leveler. Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the 21st Century [O grande nivelador. A violência e a história da desigualdade desde a Idade da Pedra até o século XXI], Princeton University Press, 2017. 12 Discurso de Toulon, 25 set. 2008. © Deposit Photos 85% dos remédios são consumidos em países com 17% da população mundial 9ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil MAIS PESQUISAS SOBRE OBESIDADE QUE INFECÇÕES Mesmo com essas limitações econô- micas, como explicar que a França tenha realizado, em 20 de março, quase metade do número de testes por milhão de habitantes que o Irã ou a Áustria? Que, com menos de 40 mil testes realizados até essa data, esteja muito atrás dos 316.644 da Coreia do Sul, dos 167 mil da Alemanha, dos 143.619 da Rússia ou dos 113.615 da Austrália?2 Na Coreia do Sul, as pes- soas podem ser testadas no carro ou em cabines de vidro, onde os profis- sionais colhem amostras com luvas de borracha. A triagem sistemática, acompanhada do monitoramento de cada pessoa infectada, possibilita romper as cadeias de transmissão, isolando aqueles que estão doentes, e não os outros. Consequentemente, as medidas de confinamento são muito menos restritivas, a taxa de mortali- dade dos pacientes positivos é mais baixa e, acima de tudo,o número de mortes é bem menos elevado que na França, apesar da proximidade do fo- co infeccioso chinês. Se a triagem é um dos pontos cegos da luta francesa contra a epidemia, também existe outro ponto cego no interior deste: a escassez de reagentes, esses componentes químicos essen- ciais para a triagem, que atestam a presença do vírus. Dessas moléculas quase nada se sabe: nem de onde elas vêm, nem para que servem, nem quanto custam realmente. Por que não levantar todos os segredos indus- triais, todos os segredos comerciais e todas as patentes sobre a composição desses reagentes tão preciosos para a saúde de bilhões de seres humanos, e conscientizar o público sobre a ori- gem de suas matérias-primas, bem como sobre as vias de sua fabricação? Além da triagem, a segunda arma essencial nessa guerra é a da droga que permitiria curar a Covid-19. De acordo com um anúncio do governo chinês, o favipiravir – o princípio ati- vo do antigripal Avigan, produzido pela empresa japonesa Fujifilm – te- ria dado “resultados muito bons” contra o vírus, reduzindo o tempo de cura. Outro candidato, o Kezvara, um anticorpo monoclonal que inibe os receptores da interleucina-6, indica- do para a poliartrite reumatoide, ava- liado numa parceria entre Sanofi e Regeneron, poderia reduzir a reação pulmonar inflamatória do vírus em pacientes gravemente afetados pela Covid-19. Essas reconversões de mo- léculas em regime de urgência signi- ficam uma falta de planejamento pa- ra problemas de saúde e uma febrilidade oportunista em vez de uma política industrial. Muitos diriam que, por definição, é impossível predizer uma pandemia e que a pesquisa está fadada a ser pe- ga de surpresa. Esse argumento não se sustenta: podemos prever, orientar a pesquisa com base em uma visão geral da ciência, da medicina, da eco- logia. Essas pesquisas não podem ser realizadas a curto prazo, com impe- rativos de lucro. Elas são conduzidas a longo prazo, de acordo com as reais necessidades da população. No en- tanto, essas necessidades não corres- pondem estruturalmente aos merca- dos solventes: 85% dos medicamentos são consumidos em países que abri- gam 17% da população mundial, e há mais pesquisas sobre medicamentos para depressão e obesidade que para doenças infecciosas, que são a princi- pal causa de mortalidade no mundo. Quando a crise ocorre, essa dis- crepância leva a situações aberran- tes, cuja terceira arma – as vacinas – já está repleta de exemplos. Donald Trump, por exemplo, propõe a com- pra da patente da vacina contra o co- ronavírus da empresa alemã CureVac para uso “somente nos Estados Uni- dos”, causando uma recusa categóri- ca por Angela Merkel e uma conces- são relâmpago de 80 milhões de euros da União Europeia. Essa corri- da diplomática, não desprovida de segundas intenções eleitorais, reflete uma realidade industrial: como a pesquisa é feita principalmente por incentivo financeiro e por patentes, as grandes empresas farmacêuticas estão reduzindo seus investimentos em áreas médicas essenciais, das quais fazem parte as infecções, se- jam elas bacterianas ou virais. Mas aqui novamente o ritmo real da pes- quisa não está adaptado: a empresa Moderna Therapeutics, considerada a primeira a desenvolver uma vacina, só poderá colocá-la no mercado da- qui a vários meses – o que não impe- diu que suas ações dessem um salto após o anúncio de seu projeto. Esses impasses da pesquisa priva- da não são compensados pela pes- quisa pública. Os cortes orçamentá- rios geralmente caem como guilhotinas em projetos paciente- mente desenvolvidos. Em 4 de março, o pesquisador Bruno Canard, espe- cialista em replicação dos “vírus para RNA” – um vírus cujo material gené- tico consiste em ácido ribonucleico –, como o coronavírus, explicava numa coluna: “A partir de 2006, o interesse dos políticos pelo Sars-CoV desapa- receu; não sabíamos se ele voltaria. A Europa se retirou desses grandes pro- jetos de antecipação em nome da sa- tisfação dos contribuintes. Agora, quando um vírus emerge, pede-se aos pesquisadores que se mobilizem urgentemente e encontrem uma so- lução para o dia seguinte. Com cole- gas belgas e holandeses, enviamos há cinco anos duas cartas de intenção à Comissão Europeia, dizendo que era preciso se antecipar”.3 O pesquisador pode afirmar que “a ciência básica é nosso melhor seguro contra epide- mias”4 e constatar que certos ramos da virologia e da bacteriologia per- manecem os primos pobres da pes- quisa – quer se trate de pesquisa far- macêutica aplicada ou microbiologia básica. O “chamado instantâneo” da Agência Nacional de Pesquisa, dota- do de 3 milhões de euros, parece irri- sório quando chega após anos de de- sinvestimento e de outras epidemias semelhantes. Após o coronavírus responsável pela síndrome respirató- ria do Oriente Médio (Mers) em 2015 e pela Sars de 2003, que surgiu na China (8.096 pessoas infectadas em cerca de trinta países, causando 774 mortes), a Coreia do Sul finalmente reorientou suas políticas de saúde pública e preparou as bases para sua ação atual. Para que os governos se lembrem, o trauma obviamente pre- cisa ser forte e repetido. E, mesmo as- sim, geralmente é a amnésia que pre- valece. *Quentin Ravelli é pesquisador do Cen- tre National de la Recherche Scientifique, da França, e autor de La stratégie de la bactérie [A estratégia da bactéria], Le Seuil, Paris, 2015. 1 Comunicado de imprensa, Observatoire de la Transparence dans les Politiques du Médica- ment [Observatório da Transparência nas Po- líticas de Medicamentos], 18 mar. 2020. 2 Esteban Ortiz-Espina e Joe Hasell, “How many tests for Covid-19 are being performed around the world?” [Quantos testes para o Covid-19 estão sendo realizados em todo o mundo?], plataforma de dados Our World in Data, 20 mar. 2020. Disponível em: https:// ourworldindata.org. 3 Bruno Canard, “Coronavirus: la science ne marche pas dans l’urgence!” [Coronavírus: a ciência não funciona em termos de urgên- cia!], site Université ouverte, 4 mar. 2020. Disponível em: https://universiteouverte.org. 4 Bruno Canard, “La science fondamentale est notre meilleure assurance contre les épidé- mies” [A ciência básica é nosso melhor segu- ro contra epidemias], CNRS Le Journal, 13 mar. 2020. A França realizou, em 20 de março, quase metade do número de testes por milhão de habitantes que o Irã ou a Áustria 10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 A tentação de recorrer ao “inevitável” Preocupado com os riscos de estagnação econômica, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson lançou uma aposta arriscada: a da imunidade coletiva. Em poucos dias, deu uma guinada de 180º POR THÉO BOURGERON* ESTRATÉGIA DA IMUNIDADE COLETIVA NO REINO UNIDO E m 12 de março, o primeiro-mi- nistro britânico, Boris Johnson, anunciou que levaria seu país a uma aposta arriscada. Ao con- trário da doutrina de confinamento radical decretada por vários países asiáticos e pela Itália, o Reino Unido decidiu “conter [...] mas não erradi- car o vírus”, a fim de “criar imunida- de de grupo” dentro a população:1 sem confinamento de indivíduos, sem fechamento de escolas ou mes- mo proibição de grandes eventos, principalmente os futebolísticos. Sem conhecer o nível exato de contaminação necessário para a imunidade desse grupo (a proporção da população que deveria ser conta- minada para que o vírus parasse de se espalhar), especialistas do gover- no britânico definiram como hipóte- se pessimista a taxa de 80% da popu- lação britânica. O benefício de tal estratégia? Assim que a meta for al- cançada, o Reino Unido poderá pros- perar novamente no comércio inter- nacional sem medo de focos futuros de contágio. Seu custo? Até 500 mil indivíduos em risco (idosos ou so- frendo de comorbidades), para que estes se beneficiassem da imunidade adquirida pelos primeiros. Embora apenas os britânicos tenham se atre- vido a expor essa abordagem de for- ma explícita, outrosa consideraram. Quando o primeiro-ministro ho- landês, Mark Rutte, diz que espera que 60% da população da Holanda seja infectada eventualmente,3 ele não diz nada demais. Os Estados Uni- dos também aplicaram tal aborda- gem durante a primeira fase da epi- demia: enquanto, em meados de março, o vírus Sars-Cov-2 circulava no território norte-americano e a grande maioria dos casos não estava ligada a nenhum foco identificado, o governo federal tomou apenas medi- das menores ou simbólicas (como a interrupção de voos de países em ris- co), deixando para cada estado fede- rado ou até para cada agência de saú- de os cuidados para gerenciar o risco, em um país onde quase 27,5 milhões de pessoas não têm acesso à cobertu- ra de saúde e um dia de hospitaliza- ção custa, em média, R$ 21 mil. Até o reforço das medidas de distancia- mento social anunciadas em 12 de março, a doutrina francesa não esta- va radicalmente distante desta. A abordagem britânica, porém, mostra uma tendência neoliberal e li- bertária da ordem das coisas, em um mundo “aberto” caracterizado por sistemas de saúde e sanitários desi- guais. Segundo Patrick Vallance, ex- -diretor de pesquisa e desenvolvi- mento da gigante farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK), que se tor- nou o principal consultor científico do governo britânico, o coronavírus necessariamente continuará a circu- lar e poderá se tornar anual. Se é pos- sível contê-la completamente por meio de medidas drásticas como os chineses fizeram, não é concebível que um país como o Reino Unido apoie confinamentos de mais de al- gumas semanas – menos ainda se a situação se repetir todo ano. Vallance baseia-se aqui no conceito de “fadiga social”, desenvolvido pela Equipe de Percepções Comportamentais, ou “Unidade Nudge”, célula de economia comportamental criada em 2014 por David Cameron junto ao Gabinete do primeiro-ministro britânico para in- troduzir o behaviorismo nas princi- pais decisões governamentais do país.4 Essa estrutura foi reforçada pela chegada, à Downing Street n. 10, de Dominic Cummings, consultor espe- cial de Boris Johnson, ele próprio um fervoroso admirador da economia comportamental. Medidas estritas de contenção não são apenas prejudi- ciais do ponto de vista econômico, mas também socialmente insustentá- veis a longo prazo. A vitória dos países mortos.2 Sob tais circunstâncias, Johnson reconheceu em 12 de março: “Todos precisam se preparar para a perda precoce de entes queridos”. Diante da pressão da Organização Mundial da Saúde (OMS), da opinião pública e de muitos cientistas, o pri- meiro-ministro ajustou sua política quatro dias depois. Finalmente, proi- biu certas reuniões esportivas, impôs confinamentos aos doentes e elevou a perspectiva de um aperto gradual das políticas de distanciamento so- cial de acordo com a taxa de preen- chimento de UTIs no país – sem, no entanto, mudar radicalmente a aná- lise de que se trata de uma epidemia “inevitável”. Do ponto de vista científico, con- tudo, a abordagem britânica inicial- mente desenvolvida não era irracio- nal. Em vez de procurar erradicar a epidemia, concentrava-se em con- trolar a propagação do vírus na po- pulação. O objetivo era evitar uma disseminação descontrolada, con- centrando a infecção nas pessoas menos vulneráveis e confinando os asiáticos (China, Cingapura, Taiwan) sobre o Sars-CoV-2 graças à proibição do movimento de populações seria uma farsa segundo essa teoria, pois, assim que os países se reabrissem ao movimento interno e externo de pes- soas – uma abertura percebida pelos especialistas britânicos como um princípio inevitável da organização das sociedades –, novos focos de in- fecção apareceriam e exigiriam novas e caras medidas de bloqueio. Essa si- tuação já é confirmada pela “impor- tação” de novos casos chineses.5 Con- sequentemente, não há outra solução: o vírus precisa se espalhar, mas retar- dando sua circulação. ABORDAGEM LIBERAL DAS EPIDEMIAS A ordem neoliberal segredou suas re- gras e suas instâncias de coordena- ção internacional no campo das epi- demias, sendo a linha de frente a OMS. A instituição defende uma abordagem global do problema e pro- move o gerenciamento “aberto” da disseminação de vírus: ela se apoia no confinamento de cidades e re- giões decretado pelos Estados dos países afetados, mas recusa o fecha- mento de fronteiras (descrito como contraproducente por não ser 100% eficaz e impedir a rastreabilidade dos pacientes) e defende o embargo de insumos médicos – gerando compor- tamentos de pânico que levam ao ex- cesso de armazenamento nos países que aguardam a epidemia e à penúria nos países já amplamente afetados pela pandemia. Em suma, essa orga- nização constitui o cerne de um con- junto de regras multilaterais destina- das a gerenciar epidemias em um mundo composto por Estados supos- tamente cooperativos, mas dos quais um bom número rejeita precisamen- te a ordem do jogo internacional mul- tilateral herdado das décadas de 1990 e 2000. E, entre estes, o principal são os Estados Unidos. Um exemplo: como as regras da OMS podem se aplicar a um país co- mo o Irã, submetido a um embargo norte-americano, obrigado a comer- cializar com a China para sua sobre- vivência apesar da epidemia e para o qual até o direito soberano de receber ajuda humanitária é questionado?6 Deixar essa potência regional de 81 milhões de habitantes tornar-se um repositório de Covid-19 é condenar a Europa e a Ásia ao constante ressur- gimento de contaminações. A doutrina britânica é um novo passo na abordagem liberal das epi- demias. Desenvolvida entre 2010 e 2017 por meio de vários relatórios do Ministério da Saúde e do Serviço Na- cional de Saúde (NHS), baseia-se não apenas em pesquisadores e médicos de epidemiologia matemática, mas © REUTERS/Hannah McKay O primeiro-ministro, Boris Johnson, primeiro optou por “criar imunidade de grupo” 11ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil também em psicólogos sociais e eco- nomistas comportamentais, reunidos no grupo consultivo da estrutura de preparação para a gripe pandêmica. Tomando como base de trabalho as principais pandemias de gripe do sé- culo XX, da gripe espanhola de 1918- 1919 à gripe suína de 2009-2010, o gru- po observou a impossibilidade de conter uma pandemia no Reino Uni- do dada sua relação econômica com o resto do mundo: “A circulação em massa globalizada própria do mundo moderno permite que o vírus se espa- lhe rapidamente por todo o planeta. [...] Isso significa que é impossível conter ou erradicar o vírus em seu país de origem ou na chegada ao Rei- no Unido. É de esperar que o vírus se espalhe inevitavelmente, e todas as medidas destinadas a bloquear ou re- duzir sua propagação [...] certamente terão um impacto muito limitado ou parcial e não poderão nem sequer ser utilizadas de forma paliativa para ga- nhar tempo”.7 Desde então, o governo britânico não tem escolha a não ser deixar o vírus se espalhar pela popu- lação, “minimizando picos” de conta- minação e “assegurando uma comu- nicação eficaz” que evite o pânico. A promulgação dessa nova doutri- na ilustra o desenvolvimento de dire- trizes de poder e doutrinas de saúde radicalmente individualistas, nota- damente dentro do arcabouço ideoló- gico estatal do Reino Unido e dos Es- tados Unidos. Na última década, muitos comentaristas mostraram co- mo o núcleo ideológico do Partido Conservador mudou gradualmente da centro-direita para os think tanks da Tufton Street, nome da rua no dis- trito de Westminster onde se locali- zam empresas de consultoria alinha- das à direita radical da era Thatcher, frequentemente céticas em relação à União Europeia e a questões de clima e libertárias. Muito antes da crise do coronavírus, apesar do ressurgimen- to de epidemias de sarampo no Reino Unido, essas instituições recomenda- ram o abandono das políticas de vaci- nação obrigatória para doenças da in- fância. Algumas delas consideraram a “imunidade de grupo” adquirida pelavacinação voluntária suficiente- mente alta8 e outras propuseram substituí-la por estratégias de merca- do. Think tank liberal, o Instituto Adam Smith propunha, por exemplo, que os pais fossem remunerados pela vacinação de seus filhos em nome da externalidade positiva, o que sugere que a sociedade como um todo se be- neficia sem apoiar o custo.9 Durante a fase chinesa da epide- mia, muitos editorialistas liberais ce- lebraram a ideia de que a crise dispa- rada pelo Covid-19 demonstraria a superioridade do sistema neoliberal ocidental sobre o autoritarismo chi- nês. Em fevereiro, o editorialista do France Culture Brice Couturier cha- mou a crise de “o Chernobyl de Xi Jinping”, tratando de deslegitimar a atuação do Partido Comunista chi- nês da mesma forma que Chernobyl deslegitimou a União Soviética.10 Aos olhos de alguns comentaristas, a cri- se realmente oferecia a possibilidade de um experimento econômico em grande escala. De um lado (China, Hong Kong, Cingapura) estariam as soluções estatais clássicas de confi- namento autoritário e interrupção da circulação interna e externa da popu- lação até a erradicação do vírus no território. Do outro (países ociden- tais ricos, entre eles o Reino Unido à frente), soluções de autorregulação organizadas pelo Estado, sem fecha- mento ou confinamento, com base na canalização da contaminação pa- ra os grupos menos vulneráveis. No final do experimento, as medidas se- riam analisadas de forma retroativa e seria possível determinar as caracte- rísticas de cada um desses dois mo- delos – em número de mortes, falên- cias, queda do PIB. Uma experiência natural, sem dúvida, mas com um custo exorbitante: centenas de mi- lhares de mortes. Londres parece ter finalmente re- cuado dessa proposta. Sem dúvida, as respostas à crise da Covid-19 são limitadas pelo esgotamento do siste- ma produtivo.11 Com a prática, nas úl- timas quatro décadas, de produção a “estoque zero” e just in time, cujo ob- jetivo é “recuperar alguns pontos do capital empregado” e maximizar o “valor para o acionista”,12 as empre- sas europeias se veem impotentes diante das cadeias de fornecimento interrompidas. Sujeitos ao imperati- vo da competitividade fiscal, os Esta- dos também pressionaram seus gas- tos: serviços públicos e leitos disponíveis em hospitais foram “oti- mizados”, assim como as estratégias de estocagem, de modo que a França viu a pandemia se aproximar de seu território sem nenhum estoque de máscaras protetoras do tipo FFP2.13 Os países que passaram pela virada neoliberal da década de 1980 são eco- nomicamente capazes de organizar um confinamento nos modelos chi- nês ou de Cingapura? Se foi ofensivo ouvir Emmanuel Macron colocar la- do a lado a defesa dos mais vulnerá- veis e o apoio às empresas em seu dis- curso no dia 12 de março, os fatos estão aí: são necessários pelo menos quinze dias para sair do neoliberalis- mo, enquanto a produção emergen- cial de serviços médicos, remédios, máscaras, respiradores artificiais e alimentos urgentes para a vida dos habitantes não tem outro apoio se- não as infraestruturas econômicas herdadas de quarentenas passadas. MAIS LIBERDADE AOS GOVERNOS? No entanto, essa pandemia também exaspera os sentimentos de revolta das populações diante do imenso so- frimento a que são submetidas. As centenas de milhares de mortes es- peradas por especialistas dos países ocidentais, ou “a perda de muitos en- tes queridos” prometida por Boris Johnson, são suficientes para causar uma inquietação considerável. Sabe- -se que o vírus provocou fortes pro- testos na China: discursos na inter- net, barricadas nas estradas de Hubei, revolta em Hong Kong contra a entrada em seu território das popu- lações do continente chinês. Da mes- ma forma que a livre circulação de mercadorias causou imensa tensão social no Reino Unido no século XIX,14 o sentimento de livre circula- ção da Covid-19 causa considerável preocupação entre a população. Pes- quisas recentes sobre o assunto des- tacam esse fato: a opinião pública es- tá pressionando os governos por medidas mais radicais de distancia- mento social, e não o contrário. No Reino Unido, 41% dos britânicos en- trevistados acreditam que seu gover- no não está tomando medidas sufi- cientemente fortes, contra os 12% de opinião contrária.15 Na França, as medidas de distanciamento social, como o fechamento de escolas, rece- bem apoio maciço (82% dos entrevis- tados são a favor do fechamento de estabelecimentos de ensino). Para- doxalmente, a medida menos bem recebida entre as anunciadas em 12 de março foi a manutenção do trans- porte público.16 Diante da implemen- tação de novas doutrinas sanitárias, pode-se esperar movimentos popu- lares e reações proporcionais ao so- frimento a que a população está submetida. Não se deve dar aos governos mais liberdade do que têm. Em tem- pos de crise, eles foram surpreendi- dos pelo conflito entre as estruturas produtivas de seus países e o sofri- mento popular causado pela pande- mia. O que se revela neste momento – e já havia sido experimentado com a epidemia da aids – não são as esco- lhas políticas individuais, mas o mo- do como uma situação-limite – uma pandemia – é administrada em um regime de acumulação neoliberal. A doutrina britânica de gerenciamen- to da Covid-19 é apenas uma doutri- na: sob pressão do povo, o governo Johnson já começou a recuar. Mas as doutrinas não são onipotentes, tam- bém não são apenas elucubração: elas revelam como os intelectuais de um regime buscam soluções para salvá-lo de suas próprias contradi- ções e crises. Um regime que exige medidas de salvação desumanas merece ser salvo? *Théo Bourgeron, pós-doutor em Econo- mia Política e Sociologia da Saúde da Uni- versity College Dublin, é pesquisador asso- ciado do laboratório Instituições e Dinâmicas Históricas de Economia e So- ciedade (Idhes-Nanterre). 1 “Coronavirus: science chief defends UK plan from criticism” [Coronavírus: chefe de ciência defende plano britânico contra críticas], The Guardian, Londres, 13 mar. 2020. 2 “Johnson under fire as coronavirus enters dan- gerous phase” [Johnson sob ataque quando o coronavírus entra em fase perigosa], Financial Times, Londres, 12 mar. 2020. 3 “Coronavirus: pas de confinement aux Pays- -Bas, où le gouvernement prône ‘l’immunité de groupe’” [Coronavírus: não há confinamento na Holanda, onde o governo defende a imuni- dade coletiva], France 3 Hauts de France, 17 mar. 2020. 4 Tony Yates, “Why is the government relying on nudge theory to fight coronavirus?” [Por que o governo está confiando na teoria do empur- rão para lutar contra o coronavírus?], The Guardian, 13 mar. 2020. Ler também Laura Raim, “Pire que l’autre, la nouvelle science économique” [Pior que a outra, a nova ciência econômica], Le Monde Diplomatique, jul. 2013. 5 Cf. Shivani Singh e Winni Zhou, “China’s im- ported coronavirus cases rise as local infec- tions drop again” [Casos importados de coro- navírus na China aumentam, enquanto as infecções locais caem], Reuters, 14 mar. 2020. 6 Cf. Eli Clifton, “Amid coronavirus outbreak, Trump-aligned pressure group pushes to stop medicine sales to Iran” [Em meio à pandemia de coronavírus, grupo aliado a Trump pressio- na para interromper a venda de medicamen- tos ao Irã], The Intercept, 5 mar. 2020. 7 “UK Influenza Pandemic Preparedness Strate- gy 2011” [Estratégia de preparação para a pandemia de Influenza, 2011], Department of Health, Londres, 2011. 8 Len Shackleton, “Compulsion is not the ans- wer to the recent fall in vaccination uptake” [Obrigatoriedade não é a resposta para a re- cente queda nos índices de vacinação], Insti- tute of Economic Affairs, Londres, 9 out. 2019. 9 Sam Bowman, “A neat solution to the vaccine problem” [Uma solução prática para o proble- ma da vacinação], Instituto Adam Smith, Lon- dres, 18 fev. 2015. 10 Brice Couturier, “L’épidémie de coronavirus peut-elle être le Tchernobyl deXi Jinping?” [A epidemia de coronavírus pode ser a Cher- nobyl de Xi Jinping?], Le Tour du Monde des Idées, 10 fev. 2020. 11 Cf. a tribuna de Cédric Durand e Razmig Keucheyan, “L’emboîtement de quatre crises met en lumière les limites des marchés” [En- cavalamento de quatro crises marca os limi- tes dos mercados], Le Monde, 13 mar. 2020. 12 Frédéric Lordon, “La ‘création de valeur’ com- me rhétorique et comme pratique. Généalogie et sociologie de la ‘valeur actionnariale’” [A “criação de valor” como retórica e como práti- ca. Genealogia e sociologia do “valor para o acionista”], L’Année de la Régulation, v.4, p.115-164. 13 Clémentine Maligorne, “Coronavirus: la Fran- ce ne parvient pas à répondre à la demande de masques de protection” [Coronavírus: a França não conseguiu responder à demanda por máscaras de proteção], Le Figaro, 26 fev. 2020. 14 Karl Polanyi, La Grande Transformation [A grande transformação], Paris, Gallimard, 1983 (reedição). 15 Toby Helm, “Only 36% of Britons trust Boris Johnson on coronavirus, polls find” [Apenas 36% dos britânicos confiam em Boris John- son em relação ao coronavírus, dizem pesqui- sas], The Guardian, 14 mar. 2020. 16 Etude Elabe e Laurent Berger, pesquisa publi- cada pela BFM TV em 14 de março, realizada pela internet nos dias 12 e 13 de março de 2020. 12 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020 Por trás dos muros da “fábrica de encomendas” Em todo o mundo, os funcionários dos armazéns logísticos da Amazon enfrentam um afluxo sem precedentes de pedidos. O que está acontecendo nas gigantescas plataformas da transnacional norte-americana? POR JEAN-BAPTISTE MALET* E m tempos de confinamento, co- mo obter tapete de ginástica, halteres, cortador de grama, es- preguiçadeiras, churrasqueira ou massinha para manter as crian- ças ocupadas? Para milhões de pes- soas obrigadas a ficar em casa, a res- posta está em seis letras: Amazon. No auge da pandemia, como um gê- nio saído de sua lâmpada mágica, apesar das instruções das autorida- des, o número um do mundo em ven- das on-line está atendendo aos mais variados desejos. A situação é paradoxal. No mundo inteiro, fábricas estão fechando. Li- vrarias, lojas de esportes e outros es- tabelecimentos especializados cerra- ram as portas, e alguns infratores receberam multas pesadas. Mas, nos arredores das grandes cidades, há lu- gares onde se amontoam mais de mil: os armazéns logísticos. No final de março de 2020, plataformas de distri- buição em massa, centros de triagem postal e hangares de vendas on-line estavam a pleno vapor. “É simples, nunca vi tanta ativida- de no meu armazém Amazon”, resu- me Giampaolo Meloni, da Confedera- ção Geral Italiana do Trabalho (CGIL), na região de Castel San Gio- vanni (Emília-Romanha). Na França, durante a semana de 2 a 8 de março, o crescimento das vendas on-line foi quatro vezes maior que o das lojas fí- sicas, no entanto tomadas de assalto. Desde então, a tendência se acen- tuou, e a Amazon, que geralmente capta 20% das compras on-line feitas pelos franceses, teve forte impulso. “Desde o início da crise, o que ob- servo em meu armazém milanês é obsceno”, confessa Antonio Bandini, da CGIL na Lombardia. “Ao contrário do que a propaganda da Amazon diz, entregamos poucas coisas realmente essenciais para os italianos. O que vejo nos carrinhos? Esmaltes de unha, bolas de espuma, brinquedos sexuais.” “Meu armazém não é um depósito de alimentos, vendemos menos de 5% desse tipo de produto”, anuncia Fou- zia Benmalek, delegada sindical da Confederação Geral do Trabalho (CGT) do armazém da Amazon em Montélimar (Drôme). “Rodas de car- ro, videogames, discos... Em uma dú- zia de carrinhos que inspecionei aleatoriamente ontem, não havia ne- nhum produto de primeira necessi- dade.” Na região de Sevrey (Saône-et- -Loire), “somos especializados em sapatos e roupas!”, afirma Antoine Delorme, delegado da CGT. “É o mes- mo comigo na Alemanha, em Bad Hersfeld”, observa Christian Kraehling, do Ver.di – o sindicato uni- ficado dos serviços. “Meu armazém envia principalmente roupas, sapatos e garrafas de bebidas alcoólicas.” NENHUMA PROTEÇÃO NO LOCAL Para responder a esse pico de ativida- de sem precedentes, são necessários braços. Em 16 de março, a Amazon anunciou o recrutamento de 100 mil trabalhadores temporários apenas nos Estados Unidos. Acrescentados aos 800 mil funcionários regulares, além do uso maciço de trabalhadores temporários em outros continentes, a empresa lidera um exército indus- trial de pouco menos de 1 milhão de trabalhadores em todo o mundo. “No Reino Unido”, constata Mick Rix, coordenador nacional responsável pela Amazon no sindicato GMB, “agora a maioria dos funcionários trabalha 50 horas por semana e não é incomum que alguns façam jornadas de 13 horas. O recurso às horas extras é intenso.” Enquanto isso, na sede da multi- nacional em Seattle, Washington, os executivos acumulam as mensagens confidenciais que os informam dos casos de funcionários que testaram positivo para o Covid-19. No dia 1o de março, a Amazon reconheceu ofi- cialmente dois primeiros casos ita- lianos. Em 3 de março, o primeiro doente norte-americano. Segundo os sindicatos, ao longo do mês os casos se multiplicaram nos armazéns ita- lianos, espanhóis, franceses e ale- mães, assim como nos Estados Uni- dos, sem que o vendedor on-line declarasse oficialmente a maior par- te deles. “SE FICAREM DOENTES, A CULPA É SUA” Em San Fernando de Henares, um su- búrbio de Madri, Douglas Harper, se- cretário-geral da Confederação Sin- dical das Comissões de Trabalhadores (CCOO), fulmina: “Em 19 de março nós registramos oficialmente quatro casos positivos na região. Mas, na realidade, são mais de cem trabalha- dores que apresentam os sintomas de pessoas infectadas com coronavírus. Todos estavam em contato no traba- lho com esses quatro casos positi- vos”. Por causa da urgência da situa- ção, a CCOO solicitou o fechamento imediato do armazém madrilenho, bem como sua completa desinfecção. A Amazon recusou. “Em vez de fazer uma investigação no armazém”, con- tinua Harper, “a empresa recrutou outros trabalhadores temporários para substituir os doentes. Alguns só conseguiram trabalhar por alguns dias, porque, assim que entraram, desenvolveram os sintomas.” Foi o caso de uma funcionária temporária francesa que trabalhava no turno da noite na região de Lau- win-Planque (norte). “Entrei na Ama- zon em 7 de março”, ela nos diz por telefone, enquanto lida com a febre. “Dez dias depois, tive de parar porque meu médico me diagnosticou com o coronavírus. Entrei então em contato com os recursos humanos da Ama- zon para avisá-los, a fim de que eles protegessem outros funcionários. A única coisa que disseram foi que eu tinha sido contratada pela Adecco [uma agência de recrutamento de temporários] e que, portanto, eles não iam se ocupar de mim! A Amazon não oferece nenhuma proteção no local. Do vestiário ao relógio de ponto, pas- sando pelas estações de trabalho, to- dos estão aglomerados.”1 O mesmo cenário ocorre em Barcelona e nos ar- mazéns italianos da Emília-Roma- nha, do Piemonte e da Lombardia. Durante todo o mês de março, os sindicalistas solicitaram insistente- mente o fornecimento de máscaras, luvas, óculos de proteção e gel desin- fetante. Em vão. No Japão, um fun- cionário do armazém de Odawara (prefeitura de Kanagawa) nos disse em 20 de março que, com exceção da instalação de um dispenser de solu- ção hidroalcoólica na entrada da cantina, nenhuma medida de prote- ção contra o coronavírus havia sido tomada: “Um gerente nos disse que, se ficássemos doentes, a culpa seria nossa e que cabia a nós respeitar as distâncias de segurança. Ele nos avi- sou que, em caso de ausência, não se- ríamos pagos, e nos estimulou a vir trabalhar com febre”. Em reunião com sindicalistas em 19 de março, o CEO da Amazon Fran- ce Logistique, Ronan Bolé, reconhe- ceu violações em matéria de segu-
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