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Diplomatique Abril 2020

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LE MONDE
BRASILdiplomatique
ANO 13 / Nº 153 R$ 18,00 
22
ACORDO COM O TALIBÃ
RETIRADA AMERICANA 
NO AFEGANISTÃO
POR GEORGES LEFEUVRE
20
PETROBRAS
PRIVATIZAÇÃO EM 
ÁGUAS PROFUNDAS
POR ANNE VIGNA
32
COMPRAR A PUREZA PERDIDA
AS SINGULARES RELAÇÕES 
ENTRE ISRAEL E ALEMANHA
POR DANIEL MARWECKI
00153
7520047719819
COBERTURA ESPECIAL 
A pandemia de Covid-19 transformou 
o mundo. Enquanto alguns celebram 
a oportunidade de fazer bons negó-
cios, como a indústria farmacêutica 
(pág. 8), a Amazon (pág. 12) e os tuba-
rões do ensino a distância no Brasil 
(pág. 18), outros questionam: o vírus 
mataria tanto se as políticas de auste-
ridade não tivessem desmantelado os 
serviços públicos (págs. 6, 10 e 13)? 
Além disso, quais ações são urgentes 
para combater o contágio nas favelas 
brasileiras (pág. 16)?
CORONA
VIRUS
2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
PREPARANDO-SE PARA O PÓS-CRISE
Desde já
POR SERGE HALIMI*
U
ma vez superada essa tragédia, 
tudo começará de novo como 
antes? Durante trinta anos, ca-
da crise alimentou uma espe-
rança irracional de um retorno à ra-
zão, de uma tomada de consciência, 
de uma parada. Imaginamos o confi-
namento e depois a reversão de uma 
dinâmica sociopolítica da qual cada 
um teria enfim mensurado os impas-
ses e as ameaças.1 A debandada da 
Bolsa de 1987 iria conter a irrupção 
das privatizações; as crises financei-
ras de 1997 e de 2007-2008 fariam 
cambalear a feliz globalização. Mas 
não foi o que aconteceu.
Os ataques do 11 de Setembro, por 
sua vez, provocaram reflexões críti-
cas sobre a arrogância norte-ameri-
cana e questões desoladas do tipo 
“Por que eles nos odeiam?”. Isso tam-
bém não durou. Porque, mesmo 
quando caminha na direção certa, o 
movimento das ideias nunca é sufi-
ciente para travar as máquinas infer-
nais. Os seres humanos sempre aca-
bam se intrometendo. E é melhor 
então não depender dos governantes 
responsáveis pela catástrofe, mesmo 
que esses piromaníacos saibam fazer 
cena, tentar apagar o fogo, fingir que 
mudaram (ler artigo na pág.6). Espe-
cialmente quando – como a nossa – 
sua própria vida está em perigo. 
A maioria de nós não passou dire-
tamente nem por uma guerra, nem 
por um golpe militar, nem por um to-
que de recolher. No entanto, no final 
de março, quase 3 bilhões de habi-
tantes já estavam confinados, com 
frequência em condições extrema-
mente difíceis; a maioria não eram 
escritores observando a camélia em 
flor em torno de sua casa de campo. 
Aconteça o que acontecer nas próxi-
mas semanas, a crise do coronavírus 
terá constituído a primeira angústia 
planetária de nossa vida: isso não se 
esquece. Os líderes políticos são for-
çados a levar isso em conta, pelo me-
nos parcialmente. 
Assim, a União Europeia acaba de 
anunciar a “suspensão geral” de suas 
regras orçamentárias; o presidente 
Emmanuel Macron adiou uma refor-
ma previdenciária que teria prejudi-
cado o pessoal da saúde; o Congresso 
dos Estados Unidos votou o envio de 
um cheque para a maioria dos norte-
-americanos. Mas há pouco mais de 
dez anos, para salvar seu sistema em 
perigo, os liberais já haviam aceitado 
um aumento espetacular do endivi-
damento público, a ampliação orça-
mentária, a nacionalização dos ban-
cos, o restabelecimento parcial do 
controle dos capitais. Em seguida, a 
austeridade lhes permitiu retomar o 
que haviam deixado de lado, em um 
salve-se quem puder planetário, e 
mesmo realizar alguns “avanços”: os 
funcionários trabalhariam mais, por 
mais tempo, em condições de maior 
insegurança; “investidores” e pes-
soas que vivem de renda pagariam 
menos impostos. Por essa mudança 
radical, os gregos pagaram o mais al-
to tributo, já que seus hospitais públi-
cos, em dificuldades financeiras e 
sem medicamentos, observaram o 
retorno de doenças que eles acredita-
vam ter desaparecido.
Assim, o que inicialmente sugere 
um caminho para Damasco poderia 
levar a uma “estratégia de choque”. 
Em 2001, uma hora após o ataque ao 
World Trade Center, a assessora de 
um ministro britânico havia enviado 
uma mensagem a altos funcionários 
de seu ministério: “Este é um dia 
muito bom para trazer de novo à bai-
la e fazer passar discretamente todas 
as medidas que precisamos tomar”. 
Ela não pensava necessariamente 
nas restrições contínuas que seriam 
impostas às liberdades públicas sob o 
pretexto da luta contra o terrorismo, 
muito menos na Guerra do Iraque e 
nos inúmeros desastres que essa de-
cisão anglo-americana iria provocar. 
Vinte anos depois, não é necessário 
ser poeta ou profeta para imaginar a 
“estratégia de choque” que está to-
mando forma. 
Corolário do “Fique em casa” e do 
“distanciamento”, toda a nossa socia-
bilidade corre o risco de ser perturba-
da pela digitalização acelerada de 
nossas sociedades. A emergência de 
saúde tornará ainda mais urgente, ou 
completamente obsoleta, a questão 
de saber se ainda é possível viver sem 
a internet.2 Toda pessoa já deve car-
regar seus documentos com ela; em 
breve, um telefone celular não será 
apenas útil, mas requisitado para 
fins de controle. E, como as moedas e 
as notas constituem uma fonte po-
tencial de contaminação, os cartões 
de banco, transformados em garan-
tia de saúde pública, permitirão que 
cada compra seja listada, registrada, 
arquivada. “Crédito social” no estilo 
chinês ou “capitalismo de vigilância”, 
3ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil
© Mark Claus/Unsplash
Na luta 
pela 
construção 
de uma 
sociedade 
mais justa, 
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O olhar da cidadania
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o recuo histórico do direito inaliená-
vel de não deixar vestígios de sua pas-
sagem quando não se transgride ne-
nhuma lei se instala em nossa mente 
e em nossa vida sem encontrar outra 
reação que não seja uma irritação de 
adolescente imaturo. Antes do coro-
navírus, já era impossível pegar um 
trem sem revelar o estado civil; usar 
sua conta bancária on-line exigia tor-
nar seu número de celular conheci-
do; andar por aí ao léu era certeza de 
estar sendo filmado. Com a crise da 
saúde, um novo passo foi dado. Em 
Paris, os drones monitoram as áreas 
cujo acesso é proibido; na Coreia do 
Sul, sensores alertam as autoridades 
quando a temperatura de um resi-
dente representa um perigo para a 
comunidade; na Polônia, as pessoas 
precisam escolher entre a instalação 
de um aplicativo de verificação de 
confinamento em seus celulares ou 
visitas sem aviso prévio de policiais a 
suas casas.3 Em tempos de catástrofe, 
tais dispositivos de monitoramento 
são aprovados pela população. Mas 
eles sempre sobrevivem às condições 
que lhes deram origem. 
As turbulências econômicas que 
estão tomando forma também con-
solidam um universo em que as liber-
dades estão se estreitando. Para evi-
tar qualquer contaminação, milhões 
de lojas de alimentos, cafés, cinemas 
e livrarias fecharam em todo o mun-
do. Eles não dispõem de um serviço 
de entrega em domicílio e não têm a 
chance de vender conteúdos virtuais. 
Após a crise, quantos deles serão rea-
bertos e em que estado? Em compen-
sação, os negócios serão melhores 
para gigantes da distribuição como a 
Amazon, que se prepara para criar 
centenas de milhares de empregos 
para motoristas e gerentes de manu-
tenção, ou o Walmart, que anuncia o 
recrutamento adicional de 150 mil 
“associados”. Quem melhor que eles 
para conhecer nossos gostos e nossas 
escolhas? Nesse sentido, a crise do 
coronavírus poderia constituir um 
ensaio geral que prefigura a dissolu-
ção dos últimos focos de resistência 
ao capitalismo digital e o advento de 
uma sociedade sem contato.4
A menos que... A menos que vozes, 
gestos, partidos, povos e Estados per-
turbem esse script escrito com ante-
cedência. É comum ouvir: “Política 
não é da minha conta”. Até o dia em 
que todos entenderem que foram asescolhas políticas que forçaram os 
médicos a separar os pacientes que 
eles tentarão salvar daqueles que de-
vem resolver sacrificar. Estamos nes-
se ponto. Isso é ainda mais verdadei-
ro nos países da Europa central, nos 
Bálcãs e na África, que há anos veem 
seu pessoal médico emigrar para re-
giões menos ameaçadas ou para em-
pregos mais bem remunerados. No-
vamente, não se tratava de escolhas 
ditadas pelas leis da natureza. Hoje, 
sem dúvida, entendemos melhor. O 
confinamento também é um mo-
mento em que todo mundo para e 
pensa... 
Com a preocupação de agir. Des-
de já. Porque, ao contrário do que o 
presidente francês sugeriu, não é 
mais uma questão de “questionar o 
modelo de desenvolvimento com o 
qual nosso mundo se comprometeu”. 
A resposta é conhecida: é preciso al-
terá-lo. Desde já. E, já que “delegar 
nossa proteção a outras pessoas é 
loucura”, deixemos então de sofrer 
dependências estratégicas para pre-
servar um “mercado livre e sem dis-
torções”. Macron anunciou “decisões 
de ruptura”, mas ele nunca tomará 
aquelas que são necessárias. Não 
apenas a suspensão temporária, mas 
a denúncia definitiva dos tratados 
europeus e dos acordos de livre-co-
mércio que sacrificaram as sobera-
nias nacionais e erigiram a concor-
rência como valor absoluto. Desde já. 
A partir de agora, todo mundo sabe o 
que custa confiar a cadeias de supri-
mentos espalhadas pelo mundo e 
operando sem estoques a tarefa de 
abastecer um país em dificuldades 
com milhões de máscaras de saúde e 
produtos farmacêuticos dos quais 
depende a vida de seus doentes, de 
suas equipes médicas, de seus entre-
gadores, de seus operadores de caixa. 
Todo mundo também sabe quanto 
custa para o planeta ter sofrido des-
matamentos, deslocalizações, acú-
mulo de dejetos, mobilidade perma-
nente – Paris recebe 38 milhões de 
turistas todos os anos, mais de dezes-
sete vezes seu número de habitantes, 
e se orgulha publicamente disso. 
O protecionismo, a ecologia, a jus-
tiça social e a saúde estão agora liga-
dos. Eles constituem os elementos-
-chave de uma coalizão política 
anticapitalista poderosa o suficiente 
para impor, desde já, um programa 
de ruptura. 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 Ler Serge Halimi, “Le naufrage des dogmes 
libéraux” [O naufrágio dos dogmas liberais], e 
Frédéric Lordon, “Quand Wall Street est de-
venu socialiste” [Quando Wall Street se tor-
nou socialista], Le Monde Diplomatique, res-
pectivamente, out. 1998 e out. 2008. 
2 Ler Julien Brygo, “Peut-on encore vivre sans 
Internet?” [Ainda podemos viver sem a inter-
net?], Le Monde Diplomatique, ago. 2020. 
3 Cf. Samuel Kahn, “Les Polonais en quarantai-
ne doivent se prendre en selfie pour prouver 
qu’ils sont chez eux” [Os poloneses em qua-
rentena devem tirar selfies para provar que 
estão em casa], Le Figaro, 24 mar. 2020.
4 Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e 
Abha Bhattarai, “The new coronavirus eco-
nomy: A gigantic experiment reshaping how 
we work and live” [A nova economia do coro-
navírus: um experimento gigantesco que está 
remodelando a forma como trabalhamos e vi-
vemos], The Washington Post, 22 mar. 2020.
4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
EDITORIAL
A polícia política
POR SILVIO CACCIA BAVA
O 
motim da Polícia Militar do 
Ceará e a forma como o gover-
no federal tratou a questão 
abrem um novo momento na 
escalada autoritária em nosso país. 
Para compreender o alcance dessa 
operação é preciso contextualizar es-
se motim e avaliar seus possíveis 
desdobramentos.
Com uma estrutura herdada da 
ditadura (1964-1985), as PMs contam 
com 425 mil policiais militares hoje 
no país,1 que devem obediência ao 
governo de cada estado da Federa-
ção. Uma força armada maior que o 
Exército brasileiro, que se estima te-
nha 300 mil militares. Em sua cria-
ção a PM foi concebida para o patru-
lhamento ostensivo e a preservação 
da ordem. Durante o período da dita-
dura, a PM passou a ser comandada 
por oficiais do Exército e também a 
combater o “inimigo interno”, ou se-
ja, os críticos ao governo e todos 
aqueles que o governo viesse a desig-
nar como seus inimigos. 
São muitos os comportamentos 
das PMs que ultrapassam os limites 
legais, com a anuência de seus ofi-
ciais superiores, dos governos e da 
Justiça. O terror imposto nas favelas 
pela PM desconhece os limites da lei. 
O assassinato sistemático de jovens 
negros moradores de favelas pela PM 
é denunciado como genocídio no 
âmbito internacional. A violenta re-
pressão às mobilizações de rua, aos 
protestos da cidadania, é outra face 
da atuação dessa força repressiva. A 
tudo isso se somam as investidas da 
PM contra líderes de movimentos so-
ciais, alguns executados por poli-
ciais. Um dos casos mais recentes é o 
de Daniel de Oliveira dos Santos, 40 
anos, líder do Movimento dos Traba-
lhadores Sem Teto de Minas Gerais, 
morto com um tiro na nuca pela PM 
no dia 5 de março deste ano.2
No motim ocorrido no Ceará, PMs 
lançaram mão de ações intimidató-
rias, ocuparam quartéis e buscaram 
disseminar o pânico na população. 
Ao estilo das milícias, em carros par-
ticulares, com o rosto coberto – usan-
do balaclava – e de arma na mão, im-
puseram ao comércio local toque de 
recolher, e não se tem ideia ainda de 
quantos eles assassinaram.
O estado registrou 456 homicídios 
no mês, 312 deles durante a paralisa-
ção dos policiais militares, que durou 
treze dias. Foram 26 homicídios por 
dia, num total de 292 assassinatos a 
mais do que no ano anterior, um au-
mento de 178% no mês. Embora a im-
prensa tenha alegado que as mortes 
foram consequência do enfrenta-
mento entre grupos rivais pelo con-
trole do narcotráfico, o aumento da 
criminalidade serviu aos interesses 
da PM ao gerar pânico e insegurança 
na população, situação que melhora 
as condições da negociação de seus 
interesses na paralisação. 
Há a preocupação da parte de go-
vernadores que o motim venha a se 
espalhar para outros estados. Ala-
goas, Espírito Santo, Rio Grande do 
Sul, Paraíba, Santa Catarina e Mato 
Grosso do Sul estão entre os estados 
onde as PMs expressam insatisfação.3 
O motim no Ceará e a insatisfação 
em outros estados têm origem em 
questões salariais e corporativas. Em 
sua maioria, as PMs estaduais não 
têm reajuste salarial há cinco ou seis 
anos. Além da questão salarial, entre 
suas reivindicações está a unificação 
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5ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil
do plano de carreira em nível federal, 
o que inclui um novo plano de cargos 
e salários, que viria a corrigir a exis-
tência de legislações estaduais diver-
sas e desencontradas. 
Embora proibidas pela Constitui-
ção, as greves dos policiais militares 
foram 52 entre 1997 e 2017.4 Os movi-
mentos paredistas na área da segu-
rança pública vêm se intensificando 
desde 2013, impulsionados por suas 
associações e pautas corporativas. As 
sucessivas anistias que o governo fe-
deral e estaduais deram aos amotina-
dos geraram a sensação de impuni-
dade e o empoderamento dessas 
corporações. 
A situação se torna ainda mais de-
licada quando se verifica a letalidade 
da ação desses policiais. Em 2019, a 
PM matou 6.220 pessoas, o que cor-
responde a dezessete assassinatos 
por dia, segundo o Fórum Brasileiro 
de Segurança Pública.5 E é preciso 
considerar também o envolvimento 
da PM com o crime organizado, com 
as milícias.
O Conselho de Direitos Humanos 
das Nações Unidas recomendou, em 
2012, a extinção da PM. A ONU de-
nuncia a existência no Brasil de es-
quadrões da morte formados por po-
liciais militares.
Tomando conhecimento da pre-
paração do motim da PM, com a ocu-
pação de quartéis, o Ministério Pú-
blico do Ceará ingressou com uma 
Ação Civil Pública contra a Aspra (As-
sociação dos Praças do Estado do 
Ceará), a APS (Associação dos Profis-
sionais de Segurança Pública), a As-
sof (Associação dos Oficiais da Polí-
cia Militar e do Corpo de Bombeiro 
Militar do Estado do Ceará), a Aspra-
mece (Associação de Praças da Polí-
cia Militar e Corpode Bombeiros Mi-
litar do Ceará) e a ABSS (Associação 
Beneficente dos Subtenentes e Sar-
gentos). A ação foi acatada e determi-
nou-se a prisão dos policiais milita-
res que aderirem ao movimento. Nem 
por isso policiais militares amotina-
dos deixaram de paralisar os serviços 
de segurança nas cidades e ocupar 
quatro quartéis no estado.
Nesse cenário preocupante é pos-
sível reconhecer certa autonomia das 
PMs, que não se submetem nem ao 
Exército nem aos governadores. A Ins-
petoria Geral das Polícias Militares 
(IGPM), órgão do Exército brasileiro 
cujo objetivo são ações de controle 
sobre as polícias militares e os corpos 
de bombeiros militares, não se mani-
festou com relação ao motim. 
Segundo o sociólogo José Claudio 
Souza Alves, da Universidade Federal 
Rural do Rio de Janeiro, especialista 
em milícias, “a estrutura de seguran-
ça pública é algo incontrolável. Eles 
têm uma autonomia de atuação mui-
to grande. Mesmo governos de es-
querda não exercem de fato poder e 
controle sobre essa estrutura”.6
Roberto Romano, professor da 
Unicamp, denuncia que “é grave que 
nenhum comandante militar se le-
vante contra tal desmonte do mono-
pólio legítimo da força física. Há toda 
uma vasta operação para desmontar 
o Estado brasileiro, aqui instaurando 
pequenas repúblicas conduzidas por 
milícias”.7 
BOLSONARO E AS PMS
A relação de Jair Bolsonaro com as 
PMs vem de longa data, desde os tem-
pos em que o capitão, na ativa, em 
1987, criticou na revista Veja a políti-
ca salarial do Exército, ameaçou de 
morte uma jornalista e planejou em 
conjunto com outros militares colo-
car bombas em quartéis do Exército e 
explodir a adutora de água do Rio de 
Janeiro como formas de pressão para 
a negociação salarial.
Por unanimidade, em 19 de abril 
de 1988, o Conselho de Justificação 
do Exército declarou Bolsonaro cul-
pado das acusações a ele imputadas e 
decidiu que fosse “declarada sua in-
compatibilidade para o oficialato e 
consequente perda do posto e paten-
te, nos termos do artigo 16, inciso I da 
lei n. 5836/72”.8
Esses fatos foram desconsidera-
dos no julgamento do Superior Tribu-
nal Militar, que o inocentou em 16 de 
junho de 1988, ignorando inclusive a 
ameaça de morte feita pelo réu à re-
pórter da revista durante seu 
depoimento.
A notoriedade adquirida por Bol-
sonaro na caserna se deveu à defesa 
que ele fez do aumento dos salários 
para os militares, mesmo que para is-
so se utilizasse de insubordinação e 
terrorismo. Esse prestígio deu a ele a 
possibilidade de se eleger vereador do 
Rio de Janeiro em 1988, com 11.062 
votos, vindos em sua grande maioria 
de militares e suas famílias. 
“A partir desta data, por norma da 
corporação, Bolsonaro entra para a 
reserva não remunerada e, como ve-
reador, inicia um intenso trabalho 
como defensor dos interesses da clas-
se militar, sem que para isso tenha 
representatividade ou delegação, ar-
guindo, contrapondo e acusando de 
forma descabida autoridades consti-
tuídas nos mais diversos níveis”.9
Eleito deputado federal em 1990, 
ele defendeu, ao longo de seus sete 
mandatos consecutivos como depu-
tado federal, as pautas da corporação 
e a anistia aos amotinados em várias 
das insurreições das PMs. 
Segundo o deputado Paulo Ramos 
(PDT-RJ), ex-policial militar, há uma 
proximidade ideológica entre Bolso-
naro, que é repressor, e a PM, que é 
repressiva. “Os policiais militares são 
doentes por Bolsonaro”, diz ele, e 
constituem parte importante de sua 
base eleitoral desde quando era de-
putado federal. Pesquisas realizadas 
em São Paulo antes das últimas elei-
ções mostraram que 92% dos poli-
ciais e suas famílias votariam em 
Bolsonaro.10
Se a afinidade com a PM vem de 
longe, lembremos também sua rela-
ção de proximidade com Adriano 
Magalhães da Nóbrega (ex-capitão do 
Bope) e Fabricio Queiroz (policial mi-
litar aposentado). Quando assumiu a 
Presidência da República, Jair Bolso-
naro passou a defender abertamente 
medidas em favor das PMs. Sua pre-
sença em eventos nos quartéis refor-
çou suas relações com a corporação.
A reforma da Previdência favore-
ceu os militares e o primeiro indulto 
natalino anistiou policiais militares. 
Bolsonaro sancionou lei que abole a 
punição disciplinar na PM e encami-
nhou ao Congresso projeto de lei que 
isenta de julgamento mortes violen-
tas provocadas por policiais milita-
res, o conhecido projeto de “exclu-
dente de ilicitude” – na prática, 
licença para matar. 
Há um interesse direto da Asso-
ciação das Entidades Representativas 
de PMs e Bombeiros Militares no ex-
cludente de ilicitude. Em 2019, os ser-
viços de inteligência apenas da PM 
paulista identificaram 845 mortes em 
situações de “excludente de ilicitude” 
– vale dizer, assassinatos. A Rota, tro-
pa de elite da PM paulista, matou 98% 
mais pessoas em 2019 que no ano an-
terior; foram 101 pessoas, segundo a 
ouvidoria da PM.
O MOTIM DO CEARÁ
Bolsonaro e seu ministro da Justiça e 
da Segurança Pública, Sérgio Moro, 
fizeram de tudo para não criticar o 
motim da PM e seus responsáveis. O 
diretor da Força Nacional de Segu-
rança Pública enviado por Moro ao 
Ceará, coronel Aginaldo de Oliveira, 
visitou um quartel amotinado e elo-
giou os revoltosos. Essa atitude foi 
considerada pelo presidente da Co-
missão Nacional de Direitos Huma-
nos da OAB, advogado Hélio Leitão, 
um “empoderamento irresponsável 
das forças de segurança, que está se 
convertendo em uma força política 
que coloca em risco a democracia”.11 
Vários dos líderes do motim são 
identificados como fiéis seguidores 
de Bolsonaro. Capitão Wagner e Sol-
dado Noelio, deputados estaduais; 
Sargento Reginauro, vereador em 
Fortaleza; Sargento Ailton, vereador 
em Sobral; Cabo Sabino, ex-deputado 
federal. Essas lideranças apoiaram a 
candidatura de Bolsonaro e apoiam 
seu governo. 
O governo do Ceará, do PT, havia 
feito um acordo salarial com a PM 
que foi considerado muito bom pela 
própria PM, mas o motim continuou 
tanto pelo interesse de suas lideran-
ças se projetarem eleitoralmente este 
ano, como para promover o desgaste 
do governo do PT. E o motim, agora se 
compreende, tem viés ideológico. 
José Vicente da Silva Filho, coronel 
da reserva da PM, alerta para o uso 
político do motim, que constitui um 
foco de oposição nos estados admi-
nistrados por governos de esquerda. 
Neste momento, com as revoltas 
das PMs podendo se alastrar por vá-
rios estados, o presidente propõe a 
criação da lei orgânica da PM, uma 
antiga reivindicação da corporação 
que está sendo elaborada, por inicia-
tiva de Bolsonaro, em conjunto com 
as associações de PMs, desde o ano 
passado. Trata-se de criar uma legis-
lação federal para a PM, com plano 
de carreira, de cargos e salários, que 
unificará as legislações estaduais e 
(atenção!) sua visão de atuação. Com 
a lei orgânica, policiais acreditam 
que terão mais autonomia em relação 
aos governadores. O projeto de lei or-
gânica está sendo preparado para ser 
enviado ao Congresso. 
Expressando sua preocupação, o 
governador de São Paulo, João Doria, 
levanta questões quanto ao modo 
como o governo federal e o presiden-
te da República estão tratando o mo-
tim do Ceará: é “o estímulo ao mili-
ciamento das polícias” e pode 
“comprometer essa relação institu-
cional em todos os estados, não só 
em São Paulo”.12 
A situação é inquietante. Uma for-
ça militar com 425 mil homens arma-
dos pode tornar-se uma polícia polí-
tica. Sem os controles e os limites 
impostos pela Constituição, essa for-
ça militar corre o risco de ser tomada, 
em sua direção, pelos fascistas que 
estão no governo. Sua identidade 
com Bolsonaro o coloca como o líder 
a ser seguido, não importando as ins-
tituições. 
1 IBGE, 2015.
2 Disponível em: www.metropoles.com/brasil/
coordenador-do-mtst-e-morto-pela-pm-em-u-
berlandia.
3 “Do Ceará a São Paulo, governadores vivem 
embate com suas polícias”, Folha de S.Paulo, 
20 fev. 2020.
4 José Vicente Tavares dos Santos e Ana Paula 
Rosa, UFRGS.
5 Anuário Brasileiro de SegurançaPública, ano 
13, 2019.
6 André Barrocal, “Forças de segurança são 
incontroláveis, não importa o partido”, Carta 
Capital, 20 fev. 2020.
7 André Barrocal, op. cit.
8 Eduardo Reina, “Os documentos que levaram 
o Exército a expulsar Bolsonaro: ‘a mentira do 
capitão’”, DCM, 26 dez. 2018. 
9 Relatório do CIE no item 14, página 2, informa-
ção n. 394, de 27 de julho de 1990. Citado 
por Reina, op. cit. 
10 André Barrocal, op. cit.
11 Rede Brasil Atual – Conversa Afiada – 
03/03/2020.
12 Igor Gielow, “Bolsonaro desrespeita Congres-
so e Judiciário e estimula ‘miliciamento’ de polí-
cias” (entrevista com o governador João Doria), 
Folha de S.Paulo, 14 de mar. 2020.
6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
COBERTURA ESPECIAL – CORONAVÍRUS
Até o próximo fim do mundo...
A 
arte da prestidigitação consiste 
em direcionar a atenção do pú-
blico para que ele não perceba 
o que está diante de seus olhos. 
No coração da epidemia de Covid-19, 
o truque de mágica tomou a forma de 
um gráfico de duas curvas, transmi-
tido por televisões de todo o mundo. 
Na abscissa, o tempo; na ordenada, o 
número de casos graves da doença. 
Uma primeira curva na forma de um 
pico agudo mostra o impacto da epi-
demia se nada for feito: ela quebra a 
reta horizontal que indica as capaci-
dades máximas de acolhimento dos 
hospitais. A segunda curva ilustra 
uma situação em que as medidas de 
confinamento permitem limitar a 
propagação. Ligeiramente abobada-
da, como um casco de tartaruga, ela 
desliza para baixo do limiar fatídico.
Exibido de Washington a Paris, 
passando por Seul, Roma e Dublin, o 
gráfico aponta uma urgência: diluir o 
ritmo da contaminação ao longo do 
tempo para evitar a saturação dos ser-
viços de saúde. Chamando atenção 
para as duas ondulações, os jornalis-
tas escondem um elemento importan-
te: essa linha reta, discreta, no meio 
do gráfico, que representa o número 
de leitos disponíveis para acomodar 
os casos graves. Apresentado como 
um dado caído do céu, esse “limiar 
crítico” deriva de escolhas políticas. 
Se é necessário “achatar a curva”, 
é porque há décadas as políticas de 
austeridade diminuíram a altura da 
reta ao retirar dos serviços de saúde 
sua capacidade de acolhimento. Em 
1980, a França dispunha de onze lei-
tos hospitalares (todos os serviços 
combinados) por mil habitantes. Ho-
je há apenas seis, que um ministro da 
Saúde macronista propunha em se-
tembro entregar aos bons cuidados 
dos bed managers (administradores 
de leitos), responsáveis por alocar es-
se recurso escasso. Nos Estados Uni-
dos, os 7,9 leitos por mil habitantes 
registrados em 1970 foram reduzidos 
para 2,8 em 2016.1 Segundo a Organi-
zação Mundial da Saúde (OMS), a Itá-
lia tinha 9,22 leitos dedicados a “ca-
sos graves” por mil habitantes em 
1980, contra 2,75 trinta anos depois. 
Em todos os lugares, uma palavra de 
ordem: reduzir custos. O hospital 
funcionaria como uma fábrica de au-
tomóveis, no modo just in time. Como 
resultado, em 6 de março, a Socieda-
de Italiana de Anestesia, Analgesia, 
Reanimação e Terapia Intensiva 
(Siarti) comparou o trabalho dos mé-
dicos de emergência transalpinos à 
“medicina de catástrofe”. E alertou: 
dada a “falta de recursos”, “poderia 
ser necessário estabelecer um limite 
de idade para o acesso à terapia in-
tensiva.”2 “Medicina de guerra”: um 
termo agora comum.
Assim, a crise do coronavírus se 
deve tanto à periculosidade da doen-
ça quanto à deterioração organizada 
do sistema de saúde. Eterna câmara 
de ressonância do credo contábil, a 
grande mídia evitou o exame crítico 
dessas opções para convidar leitores 
e ouvintes para um debate filosófico 
estonteante: como decidir quem sal-
var e quem deixar morrer? Dessa vez, 
porém, será difícil esconder a ques-
tão política por trás de um dilema éti-
co. A epidemia de Covid-19 desvela 
aos olhos de todos uma organização 
econômica ainda mais aberrante do 
que todos suspeitavam. Enquanto as 
companhias aéreas operavam seus 
aviões vazios para manter os slots 
abertos, um pesquisador explicava 
como a burocracia liberal tinha de-
sencorajado a pesquisa básica sobre 
os coronavírus.3 Como se fosse preci-
so sair do habitual para entender o 
desvio, Marshall Burke, professor de 
Ciência de Ecossistemas da Universi-
dade de Stanford, observou esse pa-
radoxo: “A redução da poluição at-
mosférica causada pela epidemia de 
Covid-19 na China provavelmente 
A pandemia de Covid-19 transformou o mundo. Passear com um amigo é cada vez mais impensável quanto respeitar as 
metas fiscais: o banal torna-se a exceção; o inimaginável, cotidiano. Enquanto alguns celebram a oportunidade de fazer 
bons negócios (págs. 8, 12 e 18), outros se perguntam: salvar vidas justifica ameaçar o livre-comércio (pág. 10 e abaixo)? 
Nos prontos-socorros como nas salas de reunião, uma questão lancinante se espalha: o vírus teria matado tanto se as 
políticas de austeridade não tivessem desmantelado os serviços públicos (pág. 13)? No Brasil, a necessidade de ações 
voltadas para a população trabalhadora e que convivem com condições de moradia inadequadas (pág. 16)
POR RENAUD LAMBERT E PIERRE RIMBERT*
salvou vinte vezes o número de vidas 
perdidas devido à doença. É menos 
uma questão de concluir que as pan-
demias são benéficas que de medir 
quão ruins são nossos sistemas eco-
nômicos para a saúde. Mesmo na au-
sência de coronavírus”.4 O furo dessa 
viagem para o país do absurdo não 
estava nem no risco de escassez de 
medicamentos após a deslocalização 
das cadeias produtivas nem na obsti-
nação dos mercados financeiros em 
castigar a Itália quando o governo to-
mava suas primeiras medidas sanitá-
rias. Mas atrás das portas dos hospi-
tais. Estabelecida em meados da 
década de 2000, a “tarifação da ativi-
dade” (T2A) proporcionou o finan-
ciamento dos estabelecimentos pelo 
número de procedimentos médicos 
realizados, cada um cobrado como 
em uma loja, e não de acordo com o 
planejamento de necessidades. Se ti-
vesse sido aplicado durante a crise 
atual, esse princípio do cuidado-mer-
cadoria importado dos Estados Uni-
dos rapidamente teria estrangulado 
os estabelecimentos que recebem os 
pacientes mais afetados, uma vez que 
as formas críticas do Covid-19 exigem 
antes de tudo a aplicação de uma 
ventilação mecânica, um procedi-
mento oneroso em termos de tempo, 
mas menos remunerador na grade ta-
rifária que muitos exames negados 
por causa da epidemia...
Por um tempo, o micróbio por trás 
das medidas de confinamento mais 
severas já imaginadas em tempos de 
paz pareceu romper as barreiras do 
espaço social: o banqueiro de Wall 
Street e o trabalhador chinês não 
eram subitamente submetidos à mes-
ma ameaça? E então o dinheiro reto-
mou seus direitos. De um lado, os 
confinados das mansões, que traba-
lham a distância com um pé na pisci-
na; de outro, os invisíveis do cotidia-
no, cuidadores, agentes de superfície, 
caixas de supermercado e trabalha-
dores da logística saídos por uma vez 
das sombras por estarem expostos a 
um risco que os mais abastados des-
denham. Trabalhadores a distância 
enclausurados em um apartamento 
apertado onde reinam os ruídos das 
crianças; pessoas sem-teto que gos-
tariam muito de ficar em casa.
ABORDAGEM COLETIVA, 
COORDENADA E AMPLA
Em sua “tipologia dos comportamen-
tos coletivos em tempos de peste” en-
tre os séculos XIV e XVIII, o historia-
dor conservador Jean Delumeau 
observa esta invariante: “Quando 
aparece o perigo do contágio, de iní-
cio as pessoas tentam não enxergá-
-lo”.5 O escritor alemão Heinrich Hei-
ne observa que após o anúncio oficial 
da epidemia de cólera em Paris, em 
1832, “os parisienses saracoteavam 
com ainda mais jovialidade nas ave-
nidas” pelo fato de “fazer um tempo 
ensolarado e agradável”.6 Em segui-
da, os ricos fugiram para o campo. 
Depois, o governo colocou a cidade 
em quarentena. Então, de repente, 
explica Delumeau, “os laços familia-
res foram abolidos. A insegurança 
não surgiu apenas da presença da 
doença, mas também de uma deses-truturação dos elementos que cons-
truíam o ambiente cotidiano. Tudo 
ficou diferente”. Os habitantes confi-
nados de Wuhan, Roma, Madri ou 
Paris experimentam isso em uma es-
cala sem precedentes.
As grandes pestes da Idade Média 
e do Renascimento eram frequente-
mente interpretadas como um sinal 
do Juízo Final ou da fúria de um Deus 
vingador desencadeada sobre um 
mundo que chegava ao fim. Então, 
cada um se virava alternadamente 
em direção ao céu para implorar gra-
ça e em direção à vizinhança em bus-
ca de culpados – os judeus, as mulhe-
res. Na Europa do século XXI, a 
epidemia de coronavírus se abate so-
7ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil
bre sociedades secularizadas, mas, 
desde a crise financeira de 2008, afe-
tadas em graus variados pelo senti-
mento de uma “perda de controle” 
ecológica, política, financeira, demo-
gráfica, migratória etc.
Nessa atmosfera de “fim do mun-
do”, em que se misturam imagens da 
Notre-Dame de Paris em chamas e 
debates sobre o colapso que se apro-
xima, os olhos se voltam para o poder 
público: o Estado, fonte de agrava-
mento do problema por sua obstina-
ção em quebrar o sistema de saúde e 
única instância, no entanto, capaz de 
ordenar e coordenar uma resposta à 
epidemia. Mas até onde ir? Durante o 
mês de fevereiro, o confinamento 
obrigatório por várias semanas de 56 
milhões de habitantes de Hubei, na 
China, o fechamento forçado das fá-
bricas, o chamado à ordem dos mora-
dores da cidade por drones equipa-
dos com câmeras e megafones 
provocaram na Europa comentários 
ridículos ou circunspectos sobre o 
punho de ferro do Partido Comunis-
ta. “Nenhuma lição pode ser aprendi-
da com a experiência chinesa sobre a 
duração potencial da epidemia”, ex-
plicou a revista L’Express, em 5 de 
março. “Ela desacelerou lá por causa 
de medidas drásticas de confina-
mento, provavelmente inaplicáveis 
em nossas democracias.” Cansados 
diante dos vírus insensíveis à supe-
rioridade de “nossos” valores, deve-
mos decidir colocar a decisão centra-
lizada no primeiro plano e o 
liberalismo econômico no segundo.
O diretor-geral da Organização 
Mundial da Saúde (OMS), Tedros 
Adhanom Ghebreyesus, especifica 
que “é possível repelir a epidemia, 
mas apenas com base em uma abor-
dagem coletiva, coordenada e am-
pla, que envolva todo o maquiná-
rio.”7 Coletivo, coordenação, Estado: 
o inverso do mercado. Em alguns 
dias, as estruturas de interpretação 
do mundo social se revertem como 
uma luva: “Tudo está diferente”. As 
noções de soberania, de fronteira, de 
limite e até de despesas públicas, as-
sociadas há meio século nos discur-
sos públicos ao “nacional-populis-
mo” ou à Coreia do Norte, de repente 
tomam a forma de uma solução em 
um mundo até então regulado pelo 
culto aos fluxos e à austeridade 
orçamentária.
Estimulada pelo pânico, a van-
guarda editocrática de repente des-
cobre aquilo que estava tentando ig-
norar. “Não podemos dizer também 
que, no fundo, essa crise nos convida 
a repensar áreas inteiras da globali-
zação: nossa dependência da China, 
do livre-comércio e do avião?”, per-
guntou na France Inter, em 9 de mar-
ço, Nicolas Demorand, ao microfone 
diante do qual os carrascos do prote-
cionismo, como Daniel Cohen, se se-
guem há anos. 
A IGNORÂNCIA DOS ESPECIALISTAS
É preciso que a razão de mercado te-
nha reconfigurado profundamente os 
entendimentos para que apenas a 
eclosão de uma pandemia mortal 
possa tornar audíveis ao poder os 
truísmos que os profissionais da área 
médica enunciaram durante décadas: 
“Sim, deve haver uma estrutura hos-
pitalar pública com leitos permanen-
temente disponíveis”, resumiram os 
médicos André Grimaldi, Anne Ger-
vais Hasenknopf e Olivier Milleron. 
“O novo coronavírus tem o mérito de 
lembrar o óbvio: não pagamos aos 
bombeiros apenas para ir apagar o fo-
go, queremos que eles estejam presen-
tes e prontos em seus quartéis, mesmo 
quando estão apenas polindo o cami-
nhão enquanto aguardam a sirene.”8
Prever o que acontece sem aviso 
(incêndio, doença, cataclismo, crise 
financeira): foi incorporando essa de-
manda popular em suas instituições, 
muitas vezes contra sua vontade, que 
o capitalismo se perpetuou e se reno-
vou entre a crise de 1929 e o fim da Se-
gunda Guerra Mundial. Planejar o 
inesperado exigia romper com a ra-
cionalidade do mercado que fixa um 
preço de acordo com a oferta e a pro-
cura, desconsidera o improvável e 
modela o futuro por meio de equa-
ções em que as sociedades não valem 
nada. Essa cegueira da economia-pa-
drão, elevada a seu ponto mais alto 
nas salas de negociação, atingiu o ex-
-corretor e estatístico Nassim Nicho-
las Taleb. Em um livro publicado al-
guns meses antes da crise de 2008, ele 
observou sobre os futurólogos de cur-
to prazo: “O problema com os espe-
cialistas é que eles não têm ideia do 
que estão ignorando”.9 Negligenciar o 
imprevisto em um mundo marcado 
pela multiplicação de eventos inespe-
rados, os “cisnes negros”, é, segundo 
ele, absurdo. No final de março de 
2020, qualquer um que ouvisse à sua 
janela o argumento do silêncio da ci-
dade confinada podia meditar sobre a 
obstinação do Estado em se despojar 
não apenas dos leitos de reanimação, 
mas também de seus instrumentos de 
planejamento, agora monopolizados 
por algumas multinacionais de segu-
ro e de resseguro.10
A fissura causada pela pandemia 
pode reverter esse curso? Reimplan-
tar o eventual e o fortuito na condu-
ção dos assuntos públicos, enxergar 
além do cálculo de custo/benefício e 
implementar um planejamento eco-
lógico envolveria socializar a maioria 
dos serviços essenciais à vida das so-
ciedades modernas, da limpeza às re-
des digitais, passando pela saúde: 
uma oscilação tamanha que rara-
mente ocorre em tempos comuns. O 
olhar de um historiador sugere que as 
mudanças de regime, trajetória, mo-
do de pensar a vida coletiva e a igual-
dade permanecem fora do alcance 
das deliberações políticas comuns. 
“Em todos os momentos”, escreve o 
historiador austríaco Walter Scheidel, 
professor de Stanford, “os maiores 
achatamentos resultaram dos cho-
ques mais severos. Assim, quatro ti-
pos de rupturas violentas consegui-
ram aplanar as desigualdades: guerra, 
quando envolveu uma mobilização 
em massa, as revoluções, as falências 
estatais e as pandemias mortais”.11 
Estaríamos nessa situação? Por outro 
lado, o sistema econômico mostrou 
ao longo de sua história uma extraor-
dinária capacidade de absorver os 
choques cada vez mais frequentes a 
que sua irracionalidade dá origem. 
Tanto é assim que as convulsões mais 
brutais geralmente beneficiam os fia-
dores do status quo, que se apoiam na 
catástrofe para estender o domínio do 
mercado. Esse capitalismo do desas-
tre dissecado pouco antes da grande 
recessão de 2008 por Naomi Klein 
zomba do esgotamento de recursos 
naturais e das instituições de prote-
ção social capazes de amortecer as 
crises. Num ímpeto de otimismo, a 
ensaísta canadense observou: “Nem 
sempre reagimos a choques regredin-
do. Em tempos de crise, às vezes cres-
cemos – e rápido”.
É uma impressão desse tipo que o 
presidente francês Emmanuel Ma-
cron quis passar ao expressar, em 12 
de março de 2020, seu desejo de 
“questionar o modelo de desenvolvi-
mento em que nosso mundo se lan-
çou há décadas e que revela suas fa-
lhas à luz do dia, questionar as 
fraquezas de nossas democracias. O 
que essa pandemia revela a partir de 
agora é que os cuidados de saúde gra-
tuitos, independentemente da renda, 
carreira ou profissão, e nosso Estado 
de bem-estar não são custos ou en-
cargos, mas bens preciosos, bens es-
senciais quando o destino ataca. O 
que essa pandemia revela é que exis-
tem bens e serviços que devem ser 
colocados fora das leis do mercado. 
Delegar nossa alimentação, nossa 
proteção, nossa capacidade de cuidar 
de nosso ambiente de vida a outras 
pessoas é loucura. Devemos recupe-
rar o controle disso tudo”. Três dias 
depois, ele adiava a reforma da previ-
dência, outra do auxílio-desemprego, 
depois decretava a implementação 
de medidasconsideradas até então 
© Giorgia Massetani
8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
fermagem, e os testes de triagem per-
manecem inacessíveis à grande 
maioria após três meses de epidemia? 
Por que esses testes estão no centro 
do debate global, da Coreia do Sul aos 
Estados Unidos, passando pela Ale-
manha, Austrália e Lombardia, mas 
continuam sendo cuidadosamente 
evitados na França, onde o diretor-
-geral de Saúde, Jérôme Salomon, só 
considera seu uso maciço “no final do 
confinamento”? Ao contrário dos 
anúncios do governo, longe de ser 
uma guerra contra um vírus cuja úni-
ca arma seria a quarentena, a batalha 
diz respeito à nossa própria organiza-
ção econômica e social. É uma crise 
de nossa política de saúde, pesquisa e 
produção, na qual a indústria farma-
cêutica desempenha um papel cen-
tral, mas cuidadosamente mantido a 
distância do debate público.
Nas últimas semanas, a pande-
mia de coronavírus revelou as falhas 
de um modelo social baseado na 
ideia da rentabilidade econômica da 
saúde, justificando cortes orçamen-
tários cada vez mais restritivos para 
funcionários e pacientes. Na França, 
com a saturação das salas de reani-
mação e dos serviços de emergência, 
já lutando há meses no coletivo Inter-
-urgences para pedir mais recursos, 
os profissionais devem fazer esco-
lhas dramáticas entre os cuidados 
vitais, cuja lista está diminuindo, e 
aqueles que são sacrificados, sempre 
mais numerosos. Em alguns casos, 
como na Alsácia, a questão já passa a 
ser quem deve ser mantido vivo e 
quem se deve deixar morrer. Mas co-
mo explicar que, em 22 de março, já 
houvesse 271 mortos na região do 
Grande Leste, enquanto a poucos 
passos de distância, do outro lado do 
Reno, em Baden-Württemberg, onde 
a população é duas vezes maior e a 
epidemia mais precoce, houvesse 
apenas 23, ou seja, mais de dez vezes 
menos?
Uma das respostas a essa pergun-
ta pode ser encontrada no papel po-
lítico que a indústria farmacêutica 
desempenha em nossos sistemas de 
saúde. É ela quem produz as ferra-
mentas que permitem fazer a tria-
gem do vírus, nos vacinar contra ele 
ou tratá-lo. Ainda que a França seja 
extremamente carente dos kits de 
triagem – cuja tecnologia por reação 
de polimerase em cadeia (PCR) iden-
tifica o vírus amplificando seu DNA 
–, estes são, no entanto, simples de 
fabricar. Muitas empresas se lança-
ram nesse mercado colossal, que 
acaba de emergir como um gêiser: 
Abbott, Quiagen, Quest Diagnostics, 
Thermo Fischer, Roche, BioMé-
rieux... A técnica é barata – cerca de 
12 euros por um kit vendido por 112 
euros na França, dos quais 54 euros 
cobrados dos pacientes. No entanto, 
ela pode ser objeto de acordos tarifá-
rios proibitivos em um contexto de 
monopolização do mercado entre al-
gumas grandes empresas, como Ab-
bott ou Roche, que vende platafor-
mas tecnológicas caras a laboratórios 
menores.1
A França revelou-se incapaz de rastrear maciçamente os doentes com Covid-19, 
revelando a dependência da saúde pública em relação aos laboratórios privados 
POR QUENTIN RAVELLI*
Uma mina de ouro 
para os laboratórios
A
s crises econômicas são tão se-
letivas quanto as epidemias: 
em meados de março, enquan-
to as Bolsas de Valores entra-
vam em colapso, as ações do labora-
tório farmacêutico Gilead subiam 
20% após o anúncio dos testes clíni-
cos do remdesivir contra a Covid-19. 
As da Inovio Pharmaceuticals au-
mentavam 200% após o anúncio de 
uma vacina experimental, a INO-
4800. As da Alpha Pro Tech, fabrican-
te de máscaras de proteção, saltaram 
232%. Quanto às ações da Co-Diag-
nostics, subiram mais de 1.370% gra-
ças ao seu kit de diagnóstico molecu-
lar do Coronavírus 2 da Síndrome 
Respiratória Aguda Grave (Sars-
-Cov-2), responsável pela pandemia 
de Covid-19.
Como explicar que, no centro da 
turbulência, seja possível enriquecer 
assim, mesmo quando há falta de 
máscaras de proteção, inclusive para 
os médicos e para as equipes de en-
A FEBRIL INDÚSTRIA DO VÍRUS
impossíveis – limitação das demis-
sões, abandono de todas as restrições 
orçamentárias. As circunstâncias 
acentuarão por si mesmas essa redu-
ção: com o colapso dos valores do 
mercado de ações, a obsessão do pre-
sidente em levar a poupança e as 
pensões dos executivos para os mer-
cados de ações soa como um golpe de 
gênio visionário. No entanto, suspen-
der a lei trabalhista, restringir as li-
berdades públicas, financiar as em-
presas de guichês abertos, isentá-las 
das contribuições para a previdência 
social nas quais se ampara o sistema 
de saúde não marca uma ruptura ra-
dical com as políticas anteriores. Es-
sa transferência maciça de dinheiro 
público para o setor privado é uma 
reminiscência do resgate dos bancos 
pelo Estado em 2008. A conta tinha 
assumido a forma de austeridade im-
posta aos funcionários e serviços pú-
blicos. Menos leitos? Sim: era preciso 
socorrer os bancos.
É por isso que a epifania do chefe 
de Estado evoca aquela que atingiu 
Nicolas Sarkozy em um dia de setem-
bro de 2008, logo após o colapso do 
Lehman Brothers. Diante de seus 
apoiadores estupefatos, o presidente 
da República anunciou solenemente: 
“Uma ideia de globalização termina 
com o fim de um capitalismo finan-
ceiro que havia imposto sua lógica a 
toda a economia e tinha contribuído 
para pervertê-la. [...] A ideia de que os 
mercados estão sempre certos era 
uma ideia louca”.12 Algo que não o im-
pediu de, passada a tempestade, reto-
mar o curso da loucura habitual. 
*Renaud Lambert e Pierre Rimbert são 
jornalistas do Le Monde Diplomatique.
1 Fonte: OCDE.
2 “Raccomandazioni di etica clinica per l’ammis-
sione a trattamenti intensivi e per la loro sos-
pensione” [Procedimentos clínicos éticos 
para a admissão em tratamentos intensivos e 
para sua suspensão], Siaarti, Roma, 6 mar. 
2020.
3 Bruno Canard, “J’ai pensé que vous avions 
momentanément perdu la partie” [Eu pensei 
que havíamos perdido temporariamente o 
jogo], declaração de 5 mar. 2020, disponível 
no site da Academia, https://academia.hypo-
theses.org.
4 Twitter, 9 mar. 2020.
5 Jean Delumeau, La Peur en Occident, XIVe-X-
VIIIe siècle [Medo no Ocidente, séculos XIV-
-XVIII], Fayard, Paris, 1978.
6 Heinrich (Henri) Heine, De la France, Galli-
mard, Paris, 1994.
7 New York Times, 9 mar. 2020.
8 Le Monde, 11 mar. 2020.
9 Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan. The 
Impact of the Highly Improbable [O cisne ne-
gro. O impacto do altamente improvável], 
Random House, Nova York, 2007.
10 Razmig Keucheyan, La Nature est un champ 
de bataille. Essai d’écologie politique [A natu-
reza é um campo de batalha. Ensaio de ecolo-
gia política], La Découverte, Paris, 2014.
11 Walter Scheidel, The Great Leveler. Violence 
and the History of Inequality from the Stone 
Age to the 21st Century [O grande nivelador. 
A violência e a história da desigualdade desde 
a Idade da Pedra até o século XXI], Princeton 
University Press, 2017.
12 Discurso de Toulon, 25 set. 2008.
© Deposit Photos
85% dos remédios são consumidos em países com 17% da população mundial
9ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil
MAIS PESQUISAS SOBRE 
OBESIDADE QUE INFECÇÕES
Mesmo com essas limitações econô-
micas, como explicar que a França 
tenha realizado, em 20 de março, 
quase metade do número de testes 
por milhão de habitantes que o Irã ou 
a Áustria? Que, com menos de 40 mil 
testes realizados até essa data, esteja 
muito atrás dos 316.644 da Coreia do 
Sul, dos 167 mil da Alemanha, dos 
143.619 da Rússia ou dos 113.615 da 
Austrália?2 Na Coreia do Sul, as pes-
soas podem ser testadas no carro ou 
em cabines de vidro, onde os profis-
sionais colhem amostras com luvas 
de borracha. A triagem sistemática, 
acompanhada do monitoramento de 
cada pessoa infectada, possibilita 
romper as cadeias de transmissão, 
isolando aqueles que estão doentes, e 
não os outros. Consequentemente, as 
medidas de confinamento são muito 
menos restritivas, a taxa de mortali-
dade dos pacientes positivos é mais 
baixa e, acima de tudo,o número de 
mortes é bem menos elevado que na 
França, apesar da proximidade do fo-
co infeccioso chinês. 
Se a triagem é um dos pontos cegos 
da luta francesa contra a epidemia, 
também existe outro ponto cego no 
interior deste: a escassez de reagentes, 
esses componentes químicos essen-
ciais para a triagem, que atestam a 
presença do vírus. Dessas moléculas 
quase nada se sabe: nem de onde elas 
vêm, nem para que servem, nem 
quanto custam realmente. Por que 
não levantar todos os segredos indus-
triais, todos os segredos comerciais e 
todas as patentes sobre a composição 
desses reagentes tão preciosos para a 
saúde de bilhões de seres humanos, e 
conscientizar o público sobre a ori-
gem de suas matérias-primas, bem 
como sobre as vias de sua fabricação? 
Além da triagem, a segunda arma 
essencial nessa guerra é a da droga 
que permitiria curar a Covid-19. De 
acordo com um anúncio do governo 
chinês, o favipiravir – o princípio ati-
vo do antigripal Avigan, produzido 
pela empresa japonesa Fujifilm – te-
ria dado “resultados muito bons” 
contra o vírus, reduzindo o tempo de 
cura. Outro candidato, o Kezvara, um 
anticorpo monoclonal que inibe os 
receptores da interleucina-6, indica-
do para a poliartrite reumatoide, ava-
liado numa parceria entre Sanofi e 
Regeneron, poderia reduzir a reação 
pulmonar inflamatória do vírus em 
pacientes gravemente afetados pela 
Covid-19. Essas reconversões de mo-
léculas em regime de urgência signi-
ficam uma falta de planejamento pa-
ra problemas de saúde e uma 
febrilidade oportunista em vez de 
uma política industrial.
Muitos diriam que, por definição, 
é impossível predizer uma pandemia 
e que a pesquisa está fadada a ser pe-
ga de surpresa. Esse argumento não 
se sustenta: podemos prever, orientar 
a pesquisa com base em uma visão 
geral da ciência, da medicina, da eco-
logia. Essas pesquisas não podem ser 
realizadas a curto prazo, com impe-
rativos de lucro. Elas são conduzidas 
a longo prazo, de acordo com as reais 
necessidades da população. No en-
tanto, essas necessidades não corres-
pondem estruturalmente aos merca-
dos solventes: 85% dos medicamentos 
são consumidos em países que abri-
gam 17% da população mundial, e há 
mais pesquisas sobre medicamentos 
para depressão e obesidade que para 
doenças infecciosas, que são a princi-
pal causa de mortalidade no mundo.
Quando a crise ocorre, essa dis-
crepância leva a situações aberran-
tes, cuja terceira arma – as vacinas – 
já está repleta de exemplos. Donald 
Trump, por exemplo, propõe a com-
pra da patente da vacina contra o co-
ronavírus da empresa alemã CureVac 
para uso “somente nos Estados Uni-
dos”, causando uma recusa categóri-
ca por Angela Merkel e uma conces-
são relâmpago de 80 milhões de 
euros da União Europeia. Essa corri-
da diplomática, não desprovida de 
segundas intenções eleitorais, reflete 
uma realidade industrial: como a 
pesquisa é feita principalmente por 
incentivo financeiro e por patentes, 
as grandes empresas farmacêuticas 
estão reduzindo seus investimentos 
em áreas médicas essenciais, das 
quais fazem parte as infecções, se-
jam elas bacterianas ou virais. Mas 
aqui novamente o ritmo real da pes-
quisa não está adaptado: a empresa 
Moderna Therapeutics, considerada 
a primeira a desenvolver uma vacina, 
só poderá colocá-la no mercado da-
qui a vários meses – o que não impe-
diu que suas ações dessem um salto 
após o anúncio de seu projeto.
Esses impasses da pesquisa priva-
da não são compensados pela pes-
quisa pública. Os cortes orçamentá-
rios geralmente caem como 
guilhotinas em projetos paciente-
mente desenvolvidos. Em 4 de março, 
o pesquisador Bruno Canard, espe-
cialista em replicação dos “vírus para 
RNA” – um vírus cujo material gené-
tico consiste em ácido ribonucleico –, 
como o coronavírus, explicava numa 
coluna: “A partir de 2006, o interesse 
dos políticos pelo Sars-CoV desapa-
receu; não sabíamos se ele voltaria. A 
Europa se retirou desses grandes pro-
jetos de antecipação em nome da sa-
tisfação dos contribuintes. Agora, 
quando um vírus emerge, pede-se 
aos pesquisadores que se mobilizem 
urgentemente e encontrem uma so-
lução para o dia seguinte. Com cole-
gas belgas e holandeses, enviamos há 
cinco anos duas cartas de intenção à 
Comissão Europeia, dizendo que era 
preciso se antecipar”.3 O pesquisador 
pode afirmar que “a ciência básica é 
nosso melhor seguro contra epide-
mias”4 e constatar que certos ramos 
da virologia e da bacteriologia per-
manecem os primos pobres da pes-
quisa – quer se trate de pesquisa far-
macêutica aplicada ou microbiologia 
básica. O “chamado instantâneo” da 
Agência Nacional de Pesquisa, dota-
do de 3 milhões de euros, parece irri-
sório quando chega após anos de de-
sinvestimento e de outras epidemias 
semelhantes. Após o coronavírus 
responsável pela síndrome respirató-
ria do Oriente Médio (Mers) em 2015 
e pela Sars de 2003, que surgiu na 
China (8.096 pessoas infectadas em 
cerca de trinta países, causando 774 
mortes), a Coreia do Sul finalmente 
reorientou suas políticas de saúde 
pública e preparou as bases para sua 
ação atual. Para que os governos se 
lembrem, o trauma obviamente pre-
cisa ser forte e repetido. E, mesmo as-
sim, geralmente é a amnésia que pre-
valece. 
*Quentin Ravelli é pesquisador do Cen-
tre National de la Recherche Scientifique, 
da França, e autor de La stratégie de la 
bactérie [A estratégia da bactéria], Le 
Seuil, Paris, 2015. 
1 Comunicado de imprensa, Observatoire de la 
Transparence dans les Politiques du Médica-
ment [Observatório da Transparência nas Po-
líticas de Medicamentos], 18 mar. 2020.
2 Esteban Ortiz-Espina e Joe Hasell, “How 
many tests for Covid-19 are being performed 
around the world?” [Quantos testes para o 
Covid-19 estão sendo realizados em todo o 
mundo?], plataforma de dados Our World in 
Data, 20 mar. 2020. Disponível em: https://
ourworldindata.org.
3 Bruno Canard, “Coronavirus: la science ne 
marche pas dans l’urgence!” [Coronavírus: a 
ciência não funciona em termos de urgên-
cia!], site Université ouverte, 4 mar. 2020. 
Disponível em: https://universiteouverte.org.
4 Bruno Canard, “La science fondamentale est 
notre meilleure assurance contre les épidé-
mies” [A ciência básica é nosso melhor segu-
ro contra epidemias], CNRS Le Journal, 13 
mar. 2020.
A França realizou, em 20 
de março, quase metade 
do número de testes por 
milhão de habitantes 
que o Irã ou a Áustria
10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
A tentação 
de recorrer 
ao “inevitável”
Preocupado com os riscos de estagnação econômica, 
o primeiro-ministro britânico Boris Johnson lançou 
uma aposta arriscada: a da imunidade coletiva. 
Em poucos dias, deu uma guinada de 180º
POR THÉO BOURGERON*
ESTRATÉGIA DA IMUNIDADE COLETIVA NO REINO UNIDO
E
m 12 de março, o primeiro-mi-
nistro britânico, Boris Johnson, 
anunciou que levaria seu país a 
uma aposta arriscada. Ao con-
trário da doutrina de confinamento 
radical decretada por vários países 
asiáticos e pela Itália, o Reino Unido 
decidiu “conter [...] mas não erradi-
car o vírus”, a fim de “criar imunida-
de de grupo” dentro a população:1 
sem confinamento de indivíduos, 
sem fechamento de escolas ou mes-
mo proibição de grandes eventos, 
principalmente os futebolísticos.
Sem conhecer o nível exato de 
contaminação necessário para a 
imunidade desse grupo (a proporção 
da população que deveria ser conta-
minada para que o vírus parasse de 
se espalhar), especialistas do gover-
no britânico definiram como hipóte-
se pessimista a taxa de 80% da popu-
lação britânica. O benefício de tal 
estratégia? Assim que a meta for al-
cançada, o Reino Unido poderá pros-
perar novamente no comércio inter-
nacional sem medo de focos futuros 
de contágio. Seu custo? Até 500 mil 
indivíduos em risco (idosos ou so-
frendo de comorbidades), para que 
estes se beneficiassem da imunidade 
adquirida pelos primeiros. Embora 
apenas os britânicos tenham se atre-
vido a expor essa abordagem de for-
ma explícita, outrosa consideraram.
Quando o primeiro-ministro ho-
landês, Mark Rutte, diz que espera 
que 60% da população da Holanda 
seja infectada eventualmente,3 ele 
não diz nada demais. Os Estados Uni-
dos também aplicaram tal aborda-
gem durante a primeira fase da epi-
demia: enquanto, em meados de 
março, o vírus Sars-Cov-2 circulava 
no território norte-americano e a 
grande maioria dos casos não estava 
ligada a nenhum foco identificado, o 
governo federal tomou apenas medi-
das menores ou simbólicas (como a 
interrupção de voos de países em ris-
co), deixando para cada estado fede-
rado ou até para cada agência de saú-
de os cuidados para gerenciar o risco, 
em um país onde quase 27,5 milhões 
de pessoas não têm acesso à cobertu-
ra de saúde e um dia de hospitaliza-
ção custa, em média, R$ 21 mil. Até o 
reforço das medidas de distancia-
mento social anunciadas em 12 de 
março, a doutrina francesa não esta-
va radicalmente distante desta.
A abordagem britânica, porém, 
mostra uma tendência neoliberal e li-
bertária da ordem das coisas, em um 
mundo “aberto” caracterizado por 
sistemas de saúde e sanitários desi-
guais. Segundo Patrick Vallance, ex-
-diretor de pesquisa e desenvolvi-
mento da gigante farmacêutica 
GlaxoSmithKline (GSK), que se tor-
nou o principal consultor científico 
do governo britânico, o coronavírus 
necessariamente continuará a circu-
lar e poderá se tornar anual. Se é pos-
sível contê-la completamente por 
meio de medidas drásticas como os 
chineses fizeram, não é concebível 
que um país como o Reino Unido 
apoie confinamentos de mais de al-
gumas semanas – menos ainda se a 
situação se repetir todo ano. Vallance 
baseia-se aqui no conceito de “fadiga 
social”, desenvolvido pela Equipe de 
Percepções Comportamentais, ou 
“Unidade Nudge”, célula de economia 
comportamental criada em 2014 por 
David Cameron junto ao Gabinete do 
primeiro-ministro britânico para in-
troduzir o behaviorismo nas princi-
pais decisões governamentais do 
país.4 Essa estrutura foi reforçada pela 
chegada, à Downing Street n. 10, de 
Dominic Cummings, consultor espe-
cial de Boris Johnson, ele próprio um 
fervoroso admirador da economia 
comportamental. Medidas estritas de 
contenção não são apenas prejudi-
ciais do ponto de vista econômico, 
mas também socialmente insustentá-
veis a longo prazo. A vitória dos países 
mortos.2 Sob tais circunstâncias, 
Johnson reconheceu em 12 de março: 
“Todos precisam se preparar para a 
perda precoce de entes queridos”.
Diante da pressão da Organização 
Mundial da Saúde (OMS), da opinião 
pública e de muitos cientistas, o pri-
meiro-ministro ajustou sua política 
quatro dias depois. Finalmente, proi-
biu certas reuniões esportivas, impôs 
confinamentos aos doentes e elevou 
a perspectiva de um aperto gradual 
das políticas de distanciamento so-
cial de acordo com a taxa de preen-
chimento de UTIs no país – sem, no 
entanto, mudar radicalmente a aná-
lise de que se trata de uma epidemia 
“inevitável”.
Do ponto de vista científico, con-
tudo, a abordagem britânica inicial-
mente desenvolvida não era irracio-
nal. Em vez de procurar erradicar a 
epidemia, concentrava-se em con-
trolar a propagação do vírus na po-
pulação. O objetivo era evitar uma 
disseminação descontrolada, con-
centrando a infecção nas pessoas 
menos vulneráveis e confinando os 
asiáticos (China, Cingapura, Taiwan) 
sobre o Sars-CoV-2 graças à proibição 
do movimento de populações seria 
uma farsa segundo essa teoria, pois, 
assim que os países se reabrissem ao 
movimento interno e externo de pes-
soas – uma abertura percebida pelos 
especialistas britânicos como um 
princípio inevitável da organização 
das sociedades –, novos focos de in-
fecção apareceriam e exigiriam novas 
e caras medidas de bloqueio. Essa si-
tuação já é confirmada pela “impor-
tação” de novos casos chineses.5 Con-
sequentemente, não há outra solução: 
o vírus precisa se espalhar, mas retar-
dando sua circulação.
ABORDAGEM LIBERAL 
DAS EPIDEMIAS
A ordem neoliberal segredou suas re-
gras e suas instâncias de coordena-
ção internacional no campo das epi-
demias, sendo a linha de frente a 
OMS. A instituição defende uma 
abordagem global do problema e pro-
move o gerenciamento “aberto” da 
disseminação de vírus: ela se apoia 
no confinamento de cidades e re-
giões decretado pelos Estados dos 
países afetados, mas recusa o fecha-
mento de fronteiras (descrito como 
contraproducente por não ser 100% 
eficaz e impedir a rastreabilidade dos 
pacientes) e defende o embargo de 
insumos médicos – gerando compor-
tamentos de pânico que levam ao ex-
cesso de armazenamento nos países 
que aguardam a epidemia e à penúria 
nos países já amplamente afetados 
pela pandemia. Em suma, essa orga-
nização constitui o cerne de um con-
junto de regras multilaterais destina-
das a gerenciar epidemias em um 
mundo composto por Estados supos-
tamente cooperativos, mas dos quais 
um bom número rejeita precisamen-
te a ordem do jogo internacional mul-
tilateral herdado das décadas de 1990 
e 2000. E, entre estes, o principal são 
os Estados Unidos.
Um exemplo: como as regras da 
OMS podem se aplicar a um país co-
mo o Irã, submetido a um embargo 
norte-americano, obrigado a comer-
cializar com a China para sua sobre-
vivência apesar da epidemia e para o 
qual até o direito soberano de receber 
ajuda humanitária é questionado?6 
Deixar essa potência regional de 81 
milhões de habitantes tornar-se um 
repositório de Covid-19 é condenar a 
Europa e a Ásia ao constante ressur-
gimento de contaminações.
A doutrina britânica é um novo 
passo na abordagem liberal das epi-
demias. Desenvolvida entre 2010 e 
2017 por meio de vários relatórios do 
Ministério da Saúde e do Serviço Na-
cional de Saúde (NHS), baseia-se não 
apenas em pesquisadores e médicos 
de epidemiologia matemática, mas 
© REUTERS/Hannah McKay
O primeiro-ministro, Boris Johnson, primeiro optou por “criar imunidade de grupo”
11ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil
também em psicólogos sociais e eco-
nomistas comportamentais, reunidos 
no grupo consultivo da estrutura de 
preparação para a gripe pandêmica. 
Tomando como base de trabalho as 
principais pandemias de gripe do sé-
culo XX, da gripe espanhola de 1918-
1919 à gripe suína de 2009-2010, o gru-
po observou a impossibilidade de 
conter uma pandemia no Reino Uni-
do dada sua relação econômica com o 
resto do mundo: “A circulação em 
massa globalizada própria do mundo 
moderno permite que o vírus se espa-
lhe rapidamente por todo o planeta. 
[...] Isso significa que é impossível 
conter ou erradicar o vírus em seu 
país de origem ou na chegada ao Rei-
no Unido. É de esperar que o vírus se 
espalhe inevitavelmente, e todas as 
medidas destinadas a bloquear ou re-
duzir sua propagação [...] certamente 
terão um impacto muito limitado ou 
parcial e não poderão nem sequer ser 
utilizadas de forma paliativa para ga-
nhar tempo”.7 Desde então, o governo 
britânico não tem escolha a não ser 
deixar o vírus se espalhar pela popu-
lação, “minimizando picos” de conta-
minação e “assegurando uma comu-
nicação eficaz” que evite o pânico.
A promulgação dessa nova doutri-
na ilustra o desenvolvimento de dire-
trizes de poder e doutrinas de saúde 
radicalmente individualistas, nota-
damente dentro do arcabouço ideoló-
gico estatal do Reino Unido e dos Es-
tados Unidos. Na última década, 
muitos comentaristas mostraram co-
mo o núcleo ideológico do Partido 
Conservador mudou gradualmente 
da centro-direita para os think tanks 
da Tufton Street, nome da rua no dis-
trito de Westminster onde se locali-
zam empresas de consultoria alinha-
das à direita radical da era Thatcher, 
frequentemente céticas em relação à 
União Europeia e a questões de clima 
e libertárias. Muito antes da crise do 
coronavírus, apesar do ressurgimen-
to de epidemias de sarampo no Reino 
Unido, essas instituições recomenda-
ram o abandono das políticas de vaci-
nação obrigatória para doenças da in-
fância. Algumas delas consideraram 
a “imunidade de grupo” adquirida 
pelavacinação voluntária suficiente-
mente alta8 e outras propuseram 
substituí-la por estratégias de merca-
do. Think tank liberal, o Instituto 
Adam Smith propunha, por exemplo, 
que os pais fossem remunerados pela 
vacinação de seus filhos em nome da 
externalidade positiva, o que sugere 
que a sociedade como um todo se be-
neficia sem apoiar o custo.9
Durante a fase chinesa da epide-
mia, muitos editorialistas liberais ce-
lebraram a ideia de que a crise dispa-
rada pelo Covid-19 demonstraria a 
superioridade do sistema neoliberal 
ocidental sobre o autoritarismo chi-
nês. Em fevereiro, o editorialista do 
France Culture Brice Couturier cha-
mou a crise de “o Chernobyl de Xi 
Jinping”, tratando de deslegitimar a 
atuação do Partido Comunista chi-
nês da mesma forma que Chernobyl 
deslegitimou a União Soviética.10 Aos 
olhos de alguns comentaristas, a cri-
se realmente oferecia a possibilidade 
de um experimento econômico em 
grande escala. De um lado (China, 
Hong Kong, Cingapura) estariam as 
soluções estatais clássicas de confi-
namento autoritário e interrupção da 
circulação interna e externa da popu-
lação até a erradicação do vírus no 
território. Do outro (países ociden-
tais ricos, entre eles o Reino Unido à 
frente), soluções de autorregulação 
organizadas pelo Estado, sem fecha-
mento ou confinamento, com base 
na canalização da contaminação pa-
ra os grupos menos vulneráveis. No 
final do experimento, as medidas se-
riam analisadas de forma retroativa e 
seria possível determinar as caracte-
rísticas de cada um desses dois mo-
delos – em número de mortes, falên-
cias, queda do PIB. Uma experiência 
natural, sem dúvida, mas com um 
custo exorbitante: centenas de mi-
lhares de mortes.
Londres parece ter finalmente re-
cuado dessa proposta. Sem dúvida, 
as respostas à crise da Covid-19 são 
limitadas pelo esgotamento do siste-
ma produtivo.11 Com a prática, nas úl-
timas quatro décadas, de produção a 
“estoque zero” e just in time, cujo ob-
jetivo é “recuperar alguns pontos do 
capital empregado” e maximizar o 
“valor para o acionista”,12 as empre-
sas europeias se veem impotentes 
diante das cadeias de fornecimento 
interrompidas. Sujeitos ao imperati-
vo da competitividade fiscal, os Esta-
dos também pressionaram seus gas-
tos: serviços públicos e leitos 
disponíveis em hospitais foram “oti-
mizados”, assim como as estratégias 
de estocagem, de modo que a França 
viu a pandemia se aproximar de seu 
território sem nenhum estoque de 
máscaras protetoras do tipo FFP2.13 
Os países que passaram pela virada 
neoliberal da década de 1980 são eco-
nomicamente capazes de organizar 
um confinamento nos modelos chi-
nês ou de Cingapura? Se foi ofensivo 
ouvir Emmanuel Macron colocar la-
do a lado a defesa dos mais vulnerá-
veis e o apoio às empresas em seu dis-
curso no dia 12 de março, os fatos 
estão aí: são necessários pelo menos 
quinze dias para sair do neoliberalis-
mo, enquanto a produção emergen-
cial de serviços médicos, remédios, 
máscaras, respiradores artificiais e 
alimentos urgentes para a vida dos 
habitantes não tem outro apoio se-
não as infraestruturas econômicas 
herdadas de quarentenas passadas.
MAIS LIBERDADE AOS GOVERNOS?
No entanto, essa pandemia também 
exaspera os sentimentos de revolta 
das populações diante do imenso so-
frimento a que são submetidas. As 
centenas de milhares de mortes es-
peradas por especialistas dos países 
ocidentais, ou “a perda de muitos en-
tes queridos” prometida por Boris 
Johnson, são suficientes para causar 
uma inquietação considerável. Sabe-
-se que o vírus provocou fortes pro-
testos na China: discursos na inter-
net, barricadas nas estradas de 
Hubei, revolta em Hong Kong contra 
a entrada em seu território das popu-
lações do continente chinês. Da mes-
ma forma que a livre circulação de 
mercadorias causou imensa tensão 
social no Reino Unido no século 
XIX,14 o sentimento de livre circula-
ção da Covid-19 causa considerável 
preocupação entre a população. Pes-
quisas recentes sobre o assunto des-
tacam esse fato: a opinião pública es-
tá pressionando os governos por 
medidas mais radicais de distancia-
mento social, e não o contrário. No 
Reino Unido, 41% dos britânicos en-
trevistados acreditam que seu gover-
no não está tomando medidas sufi-
cientemente fortes, contra os 12% de 
opinião contrária.15 Na França, as 
medidas de distanciamento social, 
como o fechamento de escolas, rece-
bem apoio maciço (82% dos entrevis-
tados são a favor do fechamento de 
estabelecimentos de ensino). Para-
doxalmente, a medida menos bem 
recebida entre as anunciadas em 12 
de março foi a manutenção do trans-
porte público.16 Diante da implemen-
tação de novas doutrinas sanitárias, 
pode-se esperar movimentos popu-
lares e reações proporcionais ao so-
frimento a que a população está 
submetida.
Não se deve dar aos governos 
mais liberdade do que têm. Em tem-
pos de crise, eles foram surpreendi-
dos pelo conflito entre as estruturas 
produtivas de seus países e o sofri-
mento popular causado pela pande-
mia. O que se revela neste momento 
– e já havia sido experimentado com 
a epidemia da aids – não são as esco-
lhas políticas individuais, mas o mo-
do como uma situação-limite – uma 
pandemia – é administrada em um 
regime de acumulação neoliberal. A 
doutrina britânica de gerenciamen-
to da Covid-19 é apenas uma doutri-
na: sob pressão do povo, o governo 
Johnson já começou a recuar. Mas as 
doutrinas não são onipotentes, tam-
bém não são apenas elucubração: 
elas revelam como os intelectuais de 
um regime buscam soluções para 
salvá-lo de suas próprias contradi-
ções e crises. Um regime que exige 
medidas de salvação desumanas 
merece ser salvo? 
*Théo Bourgeron, pós-doutor em Econo-
mia Política e Sociologia da Saúde da Uni-
versity College Dublin, é pesquisador asso-
ciado do laboratório Instituições e 
Dinâmicas Históricas de Economia e So-
ciedade (Idhes-Nanterre).
1 “Coronavirus: science chief defends UK plan 
from criticism” [Coronavírus: chefe de ciência 
defende plano britânico contra críticas], The 
Guardian, Londres, 13 mar. 2020.
2 “Johnson under fire as coronavirus enters dan-
gerous phase” [Johnson sob ataque quando o 
coronavírus entra em fase perigosa], Financial 
Times, Londres, 12 mar. 2020.
3 “Coronavirus: pas de confinement aux Pays-
-Bas, où le gouvernement prône ‘l’immunité de 
groupe’” [Coronavírus: não há confinamento 
na Holanda, onde o governo defende a imuni-
dade coletiva], France 3 Hauts de France, 17 
mar. 2020.
4 Tony Yates, “Why is the government relying on 
nudge theory to fight coronavirus?” [Por que 
o governo está confiando na teoria do empur-
rão para lutar contra o coronavírus?], The 
Guardian, 13 mar. 2020. Ler também Laura 
Raim, “Pire que l’autre, la nouvelle science 
économique” [Pior que a outra, a nova ciência 
econômica], Le Monde Diplomatique, jul. 
2013.
5 Cf. Shivani Singh e Winni Zhou, “China’s im-
ported coronavirus cases rise as local infec-
tions drop again” [Casos importados de coro-
navírus na China aumentam, enquanto as 
infecções locais caem], Reuters, 14 mar. 
2020.
6 Cf. Eli Clifton, “Amid coronavirus outbreak, 
Trump-aligned pressure group pushes to stop 
medicine sales to Iran” [Em meio à pandemia 
de coronavírus, grupo aliado a Trump pressio-
na para interromper a venda de medicamen-
tos ao Irã], The Intercept, 5 mar. 2020.
7 “UK Influenza Pandemic Preparedness Strate-
gy 2011” [Estratégia de preparação para a 
pandemia de Influenza, 2011], Department of 
Health, Londres, 2011.
8 Len Shackleton, “Compulsion is not the ans-
wer to the recent fall in vaccination uptake” 
[Obrigatoriedade não é a resposta para a re-
cente queda nos índices de vacinação], Insti-
tute of Economic Affairs, Londres, 9 out. 
2019.
9 Sam Bowman, “A neat solution to the vaccine 
problem” [Uma solução prática para o proble-
ma da vacinação], Instituto Adam Smith, Lon-
dres, 18 fev. 2015.
10 Brice Couturier, “L’épidémie de coronavirus 
peut-elle être le Tchernobyl deXi Jinping?” [A 
epidemia de coronavírus pode ser a Cher-
nobyl de Xi Jinping?], Le Tour du Monde des 
Idées, 10 fev. 2020.
11 Cf. a tribuna de Cédric Durand e Razmig 
Keucheyan, “L’emboîtement de quatre crises 
met en lumière les limites des marchés” [En-
cavalamento de quatro crises marca os limi-
tes dos mercados], Le Monde, 13 mar. 
2020.
12 Frédéric Lordon, “La ‘création de valeur’ com-
me rhétorique et comme pratique. Généalogie 
et sociologie de la ‘valeur actionnariale’” [A 
“criação de valor” como retórica e como práti-
ca. Genealogia e sociologia do “valor para o 
acionista”], L’Année de la Régulation, v.4, 
p.115-164.
13 Clémentine Maligorne, “Coronavirus: la Fran-
ce ne parvient pas à répondre à la demande 
de masques de protection” [Coronavírus: a 
França não conseguiu responder à demanda 
por máscaras de proteção], Le Figaro, 26 fev. 
2020.
14 Karl Polanyi, La Grande Transformation [A 
grande transformação], Paris, Gallimard, 
1983 (reedição).
15 Toby Helm, “Only 36% of Britons trust Boris 
Johnson on coronavirus, polls find” [Apenas 
36% dos britânicos confiam em Boris John-
son em relação ao coronavírus, dizem pesqui-
sas], The Guardian, 14 mar. 2020.
16 Etude Elabe e Laurent Berger, pesquisa publi-
cada pela BFM TV em 14 de março, realizada 
pela internet nos dias 12 e 13 de março de 
2020.
12 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2020
Por trás dos 
muros da “fábrica 
de encomendas”
Em todo o mundo, os funcionários dos armazéns logísticos 
da Amazon enfrentam um afluxo sem precedentes de 
pedidos. O que está acontecendo nas gigantescas 
plataformas da transnacional norte-americana?
POR JEAN-BAPTISTE MALET*
E
m tempos de confinamento, co-
mo obter tapete de ginástica, 
halteres, cortador de grama, es-
preguiçadeiras, churrasqueira 
ou massinha para manter as crian-
ças ocupadas? Para milhões de pes-
soas obrigadas a ficar em casa, a res-
posta está em seis letras: Amazon. 
No auge da pandemia, como um gê-
nio saído de sua lâmpada mágica, 
apesar das instruções das autorida-
des, o número um do mundo em ven-
das on-line está atendendo aos mais 
variados desejos.
A situação é paradoxal. No mundo 
inteiro, fábricas estão fechando. Li-
vrarias, lojas de esportes e outros es-
tabelecimentos especializados cerra-
ram as portas, e alguns infratores 
receberam multas pesadas. Mas, nos 
arredores das grandes cidades, há lu-
gares onde se amontoam mais de mil: 
os armazéns logísticos. No final de 
março de 2020, plataformas de distri-
buição em massa, centros de triagem 
postal e hangares de vendas on-line 
estavam a pleno vapor.
“É simples, nunca vi tanta ativida-
de no meu armazém Amazon”, resu-
me Giampaolo Meloni, da Confedera-
ção Geral Italiana do Trabalho 
(CGIL), na região de Castel San Gio-
vanni (Emília-Romanha). Na França, 
durante a semana de 2 a 8 de março, o 
crescimento das vendas on-line foi 
quatro vezes maior que o das lojas fí-
sicas, no entanto tomadas de assalto. 
Desde então, a tendência se acen-
tuou, e a Amazon, que geralmente 
capta 20% das compras on-line feitas 
pelos franceses, teve forte impulso.
“Desde o início da crise, o que ob-
servo em meu armazém milanês é 
obsceno”, confessa Antonio Bandini, 
da CGIL na Lombardia. “Ao contrário 
do que a propaganda da Amazon diz, 
entregamos poucas coisas realmente 
essenciais para os italianos. O que 
vejo nos carrinhos? Esmaltes de 
unha, bolas de espuma, brinquedos 
sexuais.”
“Meu armazém não é um depósito 
de alimentos, vendemos menos de 5% 
desse tipo de produto”, anuncia Fou-
zia Benmalek, delegada sindical da 
Confederação Geral do Trabalho 
(CGT) do armazém da Amazon em 
Montélimar (Drôme). “Rodas de car-
ro, videogames, discos... Em uma dú-
zia de carrinhos que inspecionei 
aleatoriamente ontem, não havia ne-
nhum produto de primeira necessi-
dade.” Na região de Sevrey (Saône-et-
-Loire), “somos especializados em 
sapatos e roupas!”, afirma Antoine 
Delorme, delegado da CGT. “É o mes-
mo comigo na Alemanha, em Bad 
Hersfeld”, observa Christian 
Kraehling, do Ver.di – o sindicato uni-
ficado dos serviços. “Meu armazém 
envia principalmente roupas, sapatos 
e garrafas de bebidas alcoólicas.”
NENHUMA PROTEÇÃO NO LOCAL
Para responder a esse pico de ativida-
de sem precedentes, são necessários 
braços. Em 16 de março, a Amazon 
anunciou o recrutamento de 100 mil 
trabalhadores temporários apenas 
nos Estados Unidos. Acrescentados 
aos 800 mil funcionários regulares, 
além do uso maciço de trabalhadores 
temporários em outros continentes, a 
empresa lidera um exército indus-
trial de pouco menos de 1 milhão de 
trabalhadores em todo o mundo. “No 
Reino Unido”, constata Mick Rix, 
coordenador nacional responsável 
pela Amazon no sindicato GMB, 
“agora a maioria dos funcionários 
trabalha 50 horas por semana e não é 
incomum que alguns façam jornadas 
de 13 horas. O recurso às horas extras 
é intenso.”
Enquanto isso, na sede da multi-
nacional em Seattle, Washington, os 
executivos acumulam as mensagens 
confidenciais que os informam dos 
casos de funcionários que testaram 
positivo para o Covid-19. No dia 1o de 
março, a Amazon reconheceu ofi-
cialmente dois primeiros casos ita-
lianos. Em 3 de março, o primeiro 
doente norte-americano. Segundo os 
sindicatos, ao longo do mês os casos 
se multiplicaram nos armazéns ita-
lianos, espanhóis, franceses e ale-
mães, assim como nos Estados Uni-
dos, sem que o vendedor on-line 
declarasse oficialmente a maior par-
te deles.
“SE FICAREM DOENTES, 
A CULPA É SUA”
Em San Fernando de Henares, um su-
búrbio de Madri, Douglas Harper, se-
cretário-geral da Confederação Sin-
dical das Comissões de Trabalhadores 
(CCOO), fulmina: “Em 19 de março 
nós registramos oficialmente quatro 
casos positivos na região. Mas, na 
realidade, são mais de cem trabalha-
dores que apresentam os sintomas de 
pessoas infectadas com coronavírus. 
Todos estavam em contato no traba-
lho com esses quatro casos positi-
vos”. Por causa da urgência da situa-
ção, a CCOO solicitou o fechamento 
imediato do armazém madrilenho, 
bem como sua completa desinfecção. 
A Amazon recusou. “Em vez de fazer 
uma investigação no armazém”, con-
tinua Harper, “a empresa recrutou 
outros trabalhadores temporários 
para substituir os doentes. Alguns só 
conseguiram trabalhar por alguns 
dias, porque, assim que entraram, 
desenvolveram os sintomas.”
Foi o caso de uma funcionária 
temporária francesa que trabalhava 
no turno da noite na região de Lau-
win-Planque (norte). “Entrei na Ama-
zon em 7 de março”, ela nos diz por 
telefone, enquanto lida com a febre. 
“Dez dias depois, tive de parar porque 
meu médico me diagnosticou com o 
coronavírus. Entrei então em contato 
com os recursos humanos da Ama-
zon para avisá-los, a fim de que eles 
protegessem outros funcionários. A 
única coisa que disseram foi que eu 
tinha sido contratada pela Adecco 
[uma agência de recrutamento de 
temporários] e que, portanto, eles não 
iam se ocupar de mim! A Amazon não 
oferece nenhuma proteção no local. 
Do vestiário ao relógio de ponto, pas-
sando pelas estações de trabalho, to-
dos estão aglomerados.”1 O mesmo 
cenário ocorre em Barcelona e nos ar-
mazéns italianos da Emília-Roma-
nha, do Piemonte e da Lombardia. 
Durante todo o mês de março, os 
sindicalistas solicitaram insistente-
mente o fornecimento de máscaras, 
luvas, óculos de proteção e gel desin-
fetante. Em vão. No Japão, um fun-
cionário do armazém de Odawara 
(prefeitura de Kanagawa) nos disse 
em 20 de março que, com exceção da 
instalação de um dispenser de solu-
ção hidroalcoólica na entrada da 
cantina, nenhuma medida de prote-
ção contra o coronavírus havia sido 
tomada: “Um gerente nos disse que, 
se ficássemos doentes, a culpa seria 
nossa e que cabia a nós respeitar as 
distâncias de segurança. Ele nos avi-
sou que, em caso de ausência, não se-
ríamos pagos, e nos estimulou a vir 
trabalhar com febre”.
Em reunião com sindicalistas em 
19 de março, o CEO da Amazon Fran-
ce Logistique, Ronan Bolé, reconhe-
ceu violações em matéria de segu-

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