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REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 A percepção de idosos sobre a velhice 25 A R T IG O S O R IG IN A IS / O R IG IN A L A R T IC L E S Palavras-chave: envelhecimento; idoso; auto-imagem Resumo Embora seja evidente o aumento acelerado do número de idosos no Brasil, ainda se conhece muito pouco sobre a pessoa idosa, e até o momento outros atores têm falado pelos idosos, dando foco ao envelhecimento e à velhice como um processo negativo e homogeneizador. Percebendo-se a necessidade de desnaturalizar o fe- nômeno da velhice e considerá-la uma categoria social e culturalmente construída, este estudo buscou conhecer como os idosos representam a velhice, através de sua percepção do processo de envelhecimento. Utilizou-se uma abordagem metodológica qualitativa, evidenciando-se as imagens e representações dos idosos a respeito do envelhecimento. Os dados foram coletados por meio de entrevistas realizadas com dez idosos, de idade entre 60 e 85 anos (5 mulheres e 5 homens), orientadas pela seguinte pergunta: “Como você se vê no processo do envelheci- mento?”. As informações permitiram apontar que, diferentemente da visão nega- tiva e homogeneizadora do outro em torno da velhice, os idosos entrevistados vivenciam o processo do envelhecimento de formas diferentes e relatam a velhice como uma fase de prazer. Não se perceberam frustrações, conflitos e dramaticidade na forma de vivenciarem a velhice. Também não foram identificados sentimentos de rejeição e/ou inferioridade face às mudanças e perdas. Abstract Although the number of elders grows rapidly in Brazil, little is known about this group, and up to now other agents have spoken for them, focusing on aging and old age as a negative and uniform process. Aware of the need to denaturalize Correspondência / Correspondence Viviane Cristina Fonseca da Silva Jardim Rua Alberto Lundgren, 230, Bairro Novo 53030-200, Olinda-PE - Brasil E-mail: vcfsj@cpqam.fiocruz.br Um olhar sobre o processo do envelhecimento: a percepção de idosos sobre a velhice A view on the aging process: elderly’s perception of old age Viviane Cristina Fonseca da Silva Jardima Bartolomeu Figueiroa de Medeirosb Ana Maria de Britoc 26 REV. BRAS. GERIATR. GERONTOL., 2006; 9(2):25-34 REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 Key words: demographic aging; aged; self-concept. the phenomenon of old age and to consider it a social category, culturally built, this study sought to know the way elders represent old age, through their perception of the aging process. It employed a qualitative methodological approach, evincing images and representations of elders about aging. Data were collected through interviews with ten elders, aged from 60 to 85 years old (5 women and 5 men). The interview was guided by the question: “How can you see yourself in the aging process?”. The information indicated that despite the negative and uniform vision of others about old age, these elders lived the aging process in different forms and considered old age a time of pleasure. No sentiments of rejection or inferiority were identified in relation to changes and losses. INTRODUÇÃO O crescimento da população idosa vem acontecendo de forma progressiva no Brasil. Segundo dados do IBGE10 (2004), os valores da projeção dessa população seguem uma curva de crescimento acelerado. O aumento vem acompanhado de necessidades de polí- ticas públicas que atendam adequadamente às perspectivas dos idosos, emergentes no país. Como o Brasil não se projetou adequadamen- te para atender às necessidades da população idosa, o envelhecimento é tratado como um “problema” e não como uma conquista, sen- do os idosos vistos como um encargo para a família, para o Estado e para a sociedade. Afirmam Siqueira et al. 12 (2002) que o proces- so de envelhecimento populacional repercu- tiu e ainda continua repercutindo nas diferen- tes esferas da estrutura social, econômica e política da sociedade, uma vez que os idosos possuem necessidades específicas para obten- ção de condições de vida adequadas. A expectativa de vida sem dúvida aumen- tou, e este aumento se deu devido aos avan- ços ocorridos na saúde. Mas abrem-se questionamentos: como está vivendo o idoso no país? Como a sociedade vê o idoso? Como o idoso se vê no processo de envelhecimen- to? Ainda se conhece muito pouco sobre a pessoa idosa e, segundo Minayo e Coimbra Jr. 11 (2002), até o momento outros atores têm falado pelos idosos, dando foco ao envelhe- cimento e à velhice como um processo nega- tivo. Esses atores tentam falar a respeito, mas são carregados de estereótipos que impedem a construção de uma identidade positiva do idoso. Por isso, a maior necessidade é buscar conhecer a vida dos idosos, escutando-os a respeito de como se sentem nessa estrada, contando com a participação deles para a re- alização de seus anseios e para a construção de vida que lhes seja adequada. Quando o outro define o envelhecimen- to e a velhice, percebe-se que o preconceito é uma característica marcante e são utiliza- dos estereótipos negativos sobre a velhice. Conhecer a visão do idoso a respeito do en- velhecimento e da velhice é importante para se construir representações positivas dessa fase, visto que muitos estudos realizados mostraram que os idosos não se sentem en- quadrados nos estereótipos que os outros formulam sobre a velhice. REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 A percepção de idosos sobre a velhice 27 Pelo estudo realizado por Uchôa et al.14 (2002) na região de Bambuí, percebeu-se que o olhar do outro a respeito da velhice é carre- gado de negativismo, o que dá um caráter homogeneizador ao processo do envelheci- mento. Em contraponto, o mesmo estudo mostra que, quando o idoso é interrogado a respeito do envelhecimento, relata histórias de vidas que positivam a velhice e mostram que é uma fase heterogênea, na qual cada idoso envelhece de forma diferente. O envelhecimento e a velhice são tratados por meio de representações sociais dos pró- prios idosos, de seus familiares, de cuidadores e de profissionais de saúde. Conhecer como os idosos representam a velhice é uma pro- posta deste trabalho. Conhecer como se dão essas representações é importante para saber como esses atores sociais, que estão enfren- tando essa fase, se vêem no processo do en- velhecimento. Que tal olhar nos impulsione para uma busca mais profunda do conhecimento dessa população, sem idéias preconcebidas pela so- ciedade, mas idéias construídas pelas pessoas que já vivenciam essa etapa da vida. Um olhar sobre a velhice Delimitar velhice através de conceituações não é algo fácil, pois requer um conhecimen- to amplo de como os idosos estão inseridos no processo de construção social. A velhice, do ponto de vista biológico, é percebida como um desgaste natural das estruturas orgânicas que, com isso, passam por transformações com o progredir da idade, prevalecendo os processos degenerativos (Caldas7, 2002). Tentar definir velhice usando apenas a visão biológi- ca é cair num erro de demarcação meramen- te cronológica, tratando-se a população ido- sa de forma homogênea, não levando em consideração aspectos importantes do con- texto sociocultural em que os idosos estão inseridos. Uchôa et al.14 (2002) sustentam que o en- velhecimento é vivido de modo diferente de um indivíduo para o outro, de uma geração para outra e de uma sociedade para outra. Conforme Debert8 (1999), a velhice foi trata- da a partir da segunda metade do século XIX como uma etapa da vida caracterizada pela decadência e pela ausência de papéis sociais. No imaginário social, o envelhecer está associado com o fim de uma etapa; é sinôni- mo de sofrimento, solidão, doença e morte. Dificilmente neste imaginário se vê algum pra- zer de viver essa fase da vida. O negativismo em torno do processo de envelhecimento foi construído historicamente na sociedade. Scott13 (2002) sustenta que a sociedade constrói dife- rentes práticas e representaçõessobre a velhi- ce. Afirmam Heck e Langdon9 (2002) que o processo do envelhecimento apresenta varia- ções construídas socialmente nos diferentes grupos sociais, de acordo com a visão de mundo compartilhada em práticas, crenças e valores. Para tentar definir velhice, é importante a contribuição de outras áreas do conhecimen- to, que levem em consideração as diferenças socioculturais em que os idosos vivem. Para 28 REV. BRAS. GERIATR. GERONTOL., 2006; 9(2):25-34 REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 Minayo e Coimbra Jr.11 (2002), existe uma necessidade de desnaturalizar o fenômeno da velhice e considerá-la uma categoria social e culturalmente construída. Recentemente, a visão sobre a velhice como fator orgânico foi perdendo força, e a velhice e o envelhecimento passaram a cons- tituir objetos de reflexão da antropologia. A abordagem antropológica sobre a velhice visa a transcender particularismos culturais e en- contrar alguns traços comuns do fenômeno que poderiam ser considerados universais. Segundo Uchôa et al.14 (2002), a antropologia deve interrogar sobre o papel de fatos socioculturais mais gerais na construção de uma representação da velhice arraigada nas idéias de deterioração e perda. Muitos estudos mostram que a velhice é tratada como um problema social (político e/ou de saúde). Minayo e Coimbra Jr.11 (2002) afirmam que no imaginário social a velhice sempre foi pensada como uma carga econômica, tanto para a família quanto para a sociedade, e como uma ameaça à mudança. Esta noção tem levado a sociedade a negar a seus idosos o direito de decidir o próprio destino. O que é uma exceção quando se fala do papel de respeito que o pajé tem em sua comunidade, bem como o idoso poderoso e rico na nossa sociedade. A representação que os outros têm da ve- lhice, como perda da autonomia, leva a um estigma de que o idoso é um problema soci- al. O olhar do outro em relação à velhice é um olhar estigmatizado e negativizado. Mas será que esses idosos se vêem como um pro- blema? O que eles pensam a respeito da estigmatização que lhe é imposta? Conforme Minayo e Coimbra Jr.11 (2002), a visão depre- ciativa dos idosos tem sido alimentada pela ideologia produtivista que sustentou a socie- dade capitalista industrial, na qual predomina a visão que se uma pessoa não é capaz de trabalhar e ter renda própria, não serve para uma comunidade ou país. Tratar o envelhecimento como um pro- blema social é um profundo desrespeito com aqueles que construíram e sustentaram uma sociedade, com seu poder de decisão e auto- nomia. E hoje, mesmo não querendo delegar seu direito de decisão a outros, suas opiniões são descartadas e eles são tratados como um encargo para a sociedade. No Brasil, a idéia de que os idosos consti- tuem um problema social vem sendo construída sobretudo pelo Estado, segundo avaliação de Minayo e Coimbra Jr.11 (2002). Os formuladores de políticas públicas sem- pre trataram os idosos com abandono e des- caso: um exemplo foi o ex-presidente Fernando Henrique, que num pronunciamen- to chamou os idosos aposentados de vaga- bundos, quando ele mesmo se aposentou aos 54 anos. Numa sociedade capitalista que visa à for- ça física para a produção de bens e consumo é evidente um culto à juventude, que faz com que os idosos utilizem subterfúgios para ga- rantir a eterna juventude e possível “beleza” que a sociedade tanto valoriza. É em torno desse culto à beleza que se firmam os merca- dos de consumo voltados para a população REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 A percepção de idosos sobre a velhice 29 idosa: cultura, lazer, estéticas, serviços de saú- de, entre outros. Esse grupo social crescente promoveu mudanças nos diversos setores sociais – político, trabalho, economia e cultu- ra – e atribuíram novo significado a seu espa- ço, muitas vezes percebido como de deca- dência física e inatividade. Para redefinir o papel social do idoso, a expressão contemporânea usada é “terceira idade”, uma nova construção social referida entre a vida adulta e a velhice. Esta termino- logia é usada para designar um envelhecimen- to ativo e independente. Os idosos brasileiros estão construindo seu espaço de sociabilização e inclusão social, e se percebe um crescimento dos movimentos de aposentados e de terceira idade. O primeiro é um movimento mais político congregado por homens, enquanto que o segundo, sociocultural, reúne mais mulheres. Esses es- paços de sociabilização são importantes na construção social da identidade do idoso du- rante a velhice, pois permitem uma interação dos mesmos, na busca de uma positivização da velhice que afaste a solidão e o preconcei- to, permitindo um envelhecimento ativo e in- dependente. Bassit1 (2002), diz que as contribuições de diferentes histórias de vida podem estar pau- tadas no pressuposto de que o envelhecimen- to é uma experiência diversificada e sujeita às influências de diferentes contextos sociais, históricos e culturais. Segundo o mesmo au- tor, os idosos têm representação muito mais positiva sobre sua condição do que alguns especialistas em envelhecimento. Para ele, é importante conhecer as necessidades e ex- periências de vida dos idosos com base em seus próprios relatos, para verificar quais são os pontos de vista entre o discurso dos ido- sos e dos outros em torno do processo de envelhecimento. Com base em estudos realizados sobre a representação da velhice, verifica-se que o es- tigma negativo da velhice sempre vem na vi- são do outro; o próprio idoso vê o processo do envelhecimento como um tempo opor- tuno para a construção de algo novo. A positivação da identidade do idoso significa reconhecer o que há de importante nessa eta- pa de vida para desfrutá-la da melhor manei- ra. Mesmo com limitações, a velhice pode ser vista com alegria e não tristeza. ABORDAGEM METODOLÓGICA Com o objetivo de conhecer o olhar do idoso a respeito do processo de envelheci- mento, utilizou-se uma abordagem qualitati- va, evidenciando-se as imagens e representa- ções dos idosos a respeito do envelhecimen- to. Os dados foram coletados por meio de entrevistas realizadas com dez idosos de ida- de entre 60 e 85 anos (5 mulheres e 5 ho- mens), orientadas pela pergunta: “Como você se vê no processo do envelhecimento?”. An- tes de cada entrevista foram explicados os objetivos do trabalho, a forma como os da- dos seriam tratados e o compromisso com a manutenção do anonimato dos depoimentos de vida. A pesquisa atendeu às normas éticas da Resolução nº 196/96, da CONEP, que norteia pesquisas envolvendo seres humanos. 30 REV. BRAS. GERIATR. GERONTOL., 2006; 9(2):25-34 REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 Os participantes assinaram o termo de con- sentimento informado, e o estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães/ Fundação Oswaldo Cruz. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Nas entrevistas realizadas com os idosos, a velhice e o envelhecimento foram associados a diferentes problemas, entre os quais o mais evidente foi a relação da velhice com a doença, seguida de várias perdas e incapacidade. “A velhice é a pior fase porque aparece muito problema. É doença em cima de doença, um dia dói o dedo do pé, um dia dói a cabeça, outro dia dói a perna [...]. É uma insônia danada, cochilo acordo [...]. A doença entra, mas para sair é nó cego. A pior doença é a velhice.” (J.A.B, mascu- lino, 69 anos, aposentado). Britto da Motta4 (2002) diz que as per- das são tratadas como problemas de saúde, expressas na aparência do corpo, pelo senti- mento em relação a ele e ao que lhe acontece: enrugamento, encolhimento, descoramento dos cabelos, “enfeiamento”. Conforme refe- re uma idosa entrevistada: “[...] eu me olho no espelho e me sinto diferente do que eu era quando era moça, me sinto mais feia, acabada, di- ferente da mocidade.” (J.S.F, feminino, 76 anos, aposentada). Quando a velhice está associada à doença, os idosos tendem a representar imagens bem negativas davelhice, mas isto vai depender do contexto sociocultural em que estão inse- ridos, visto que a velhice e o envelhecimento são processos social e culturalmente construídos. Quando são focalizadas as his- tórias de vida, surgem imagens bem mais positivas da velhice e do envelhecimento. Para outros idosos entrevistados, mesmo com a presença da doença, a velhice pode trazer fe- licidade, pois o convívio familiar com filhos e netos, bem como a autonomia para realizar as atividades, é algo prazeroso. “Não estou com muita saúde, mas es- tou contente porque vivo com meus familiares [...] Não me arrependo do tempo que eu vivo, nem de coisa ne- nhuma. E minha vida é essa trabalhan- do sempre, quando me levanto da cama vou trabalhar, vou fazer meus serviços, no dia que eu posso faço, no dia em não posso, as meninas me ajudam. Acho a velhice muito boa.” (N.F.T, feminino, 82 anos, dona de casa). É evidente a importância dada pelo ido- so à família, pois é no convívio familiar que ele reafirma seu papel enquanto ser social, positivando a velhice e o envelhecimento. Barros2 (2004) ressalta a importância da fa- mília como valor social e fundamental na sociedade, para a construção da identidade do idoso. “Eu me sinto feliz porque tenho meus netos, meus filhos, todos são bons para mim.”(J.S.F, feminino, 76 anos, aposen- tada). “Para mim está tudo bem, não há nada que eu não goste na velhice, o apareci- mento dos problemas é normal. Eu gos- to de todo o pessoal, gosto de toda a minha família e eles gostam de mim. REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 A percepção de idosos sobre a velhice 31 Para que melhor do que isso?” (L.M.F, masculino, 82 anos, aposentado). “Me sinto feliz de ver a família traba- lhando e o outro estudando para ter um dia melhor.” (C.H.T, masculino, 80 anos, aposentado). O estigma de uma velhice associada à perda, doença e incapacidade que o outro tem a res- peito da velhice muitas vezes é absorvido pelo próprio idoso. Este tende a não se olhar como velho, por não se enquadrar nesse estigma. Como relatou a seguinte idosa entrevistada: “Não me acho velha, nem me sinto ve- lha, as pessoas dizem que não aparento ter essa idade, não. Eu sou muito dinâ- mica, gosto de falar, de correr [...]. Ido- so só por causa da idade, mas meu cor- po, minha mente, não me acho idosa, não.” (J.L.S, feminino, 61 anos, profes- sora aposentada). Britto da Motta5 (1998), diz ser difícil re- conhecer-se como velho, porque a velhice, na nossa sociedade, é sempre associada à deca- dência, muito mais que à sabedoria e experi- ência. Alguns idosos assumem para si esse es- tigma social e passam a ter um negativismo em torno do envelhecimento e da velhice. “A velhice é muito ruim [...] Não queria ficar velha, não. Queria que Deus me tirasse antes de ficar velha.” (J.S.F, fe- minino, 76 anos, aposentada). Percebe-se no depoimento acima que, embora a idosa esteja no processo do enve- lhecimento, ela não o aceita. Segundo Debert8 (1999), os idosos reconhecem que a velhice existe, mas não é aquilo que estão neles. Velho é sempre o outro. Segundo Britto da Motta4 (2004), há natu- ralmente, por parte dos idosos, a clara per- cepção do processo do envelhecimento, tan- to do corpo como da reação social a ele. A construção de identidades depende da cons- trução das imagens do corpo. Afirma Bar- ros3 (1998) que o corpo e o uso de artifício para arrumá-lo fazem parte de uma forma de controle de expressão da velhice. “Eu hoje caminhei do Derby até o Tre- ze de Maio andando, fui para o médi- co, gosto de cuidar da minha saúde, faço ioga. Me sinto muito bem na ve- lhice. Sou muito vaidosa gosto de me arrumar e sair arrumada. Se for para sair e não tiver o cabelo arrumado eu desisto [...].” (J.LS, feminino, 62 anos, aposentada). A preocupação com a manutenção da beleza do corpo físico é alimentada por uma sociedade capitalista que cultua a juventude como forma de beleza, atividade e poder. Britto da Motta6 (2004) diz que a referência ao envelhecimento e ao corpo é feita sobre- tudo às mulheres, porque do ponto de vista do gênero, as mulheres sempre foram avalia- das pela aparência física e pela capacidade reprodutiva. É evidente a exclusão social do idoso em todos os meios sociais, pois o imaginário so- cial construído em torno da velhice é arraiga- do de estereótipos e preconceitos, absorvi- dos pelos mais jovens e transmitidos aos ido- sos. É evidente como algumas pessoas da sociedade tendem a tratar os idosos de for- ma discriminatória e como alguém à parte na sociedade. Ao se perceber na velhice, o idoso 32 REV. BRAS. GERIATR. GERONTOL., 2006; 9(2):25-34 REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 aponta para o preconceito que sofre na soci- edade por ser velho. “[...] Existe muita discriminação, se você vir, às vezes no ônibus o próprio moto- rista tem abuso de velho. Uma vez eu fui ao médico um tempo desse e ele me discriminou, eu fui fazer exame de pele para tomar banho na piscina do clube, em Aldeia e ele pegou minha camisa como que estivesse com nojo [...]. Ou- tro dia fui no ônibus o motorista olhou para mim e disse vá lá para trás e eu disse vou descer logo lá na frente, tá com raiva de mim só porque sou velho [...]. Algumas pessoas discriminam, mas não são todas.” (C.H.T, masculino, 80 anos, aposentado). O descaso com que é tratado o idoso em nosso país é algo evidente. Basta olhar- mos para nossas calçadas mal projetadas, os altos degraus dos ônibus, bem como o aces- so dos idosos aos serviços públicos de previ- dência e saúde. O desrespeito com a pessoa idosa é relatado na fala deste idoso, sendo percebido no processo de envelhecimento como algo negativo. “Eu me sinto muito bem na velhice. Se não fossem estes escândalos aí, esta fal- ta de assistência aos idosos, a velhice seria melhor.” (L.M.F, masculino, 81 anos, aposentado). A independência financeira é importante fa- tor de positivação da velhice por parte do idoso, quando ele redefine o seu papel social, que muitas vezes é tirado do idoso pobre e dependente. Quando o idoso é uma pessoa que conquistou sua independência financeira, ele constrói uma vi- são da velhice como uma fase normal, no qual existem mais conquistas do que perdas. “A velhice é uma coisa normal. Me acho uma pessoa normal. É uma coisa natu- ral que vai acontecendo comigo, mas vai acontecendo com todo mundo. Você quando chega na velhice vai se tornando independente financeiramente e social- mente. É lógico que na juventude você tem um potencial energético maior, uma atividade maior, mas por outro lado você não está realizado financeiramente, nem socialmente, você está buscando e isso vai chegar numa certa idade.” (M.B.S, masculino, 62 anos, médico). É importante levar em consideração que a associação da velhice com perdas e incapa- cidade, muitas vezes vista pelo outro, tem uma nova conotação para o idoso. Ele, ao se per- ceber na velhice, relata ser esta uma fase de muita atividade e prazer de viver, considera- da como o momento mais tranqüilo, livre e feliz de sua vida. “Eu, graças a Deus, me vejo muito bem e feliz. O pouco que tenho dá para so- breviver mais ou menos, divido também com a família. Eu adoro trabalhar, as minhas costurinhas eu adoro, faço a comidinha de acordo com que gosto, faço com prazer. Gosto das minhas brin- cadeiras, passeio, adoro passear, adoro um forrozinho e por aí vai.” (M.B.M, feminina, 72 anos, aposentada). Embora sejam evidentes algumas limitações na velhice, a percepção da maioria dos idosos entrevistados em torno da velhice não é uma visão negativa e homogeneizadora, como a do outro que define a velhice como uma fase de perdas, limitações e incapacidade. Cada idoso entrevistado percebe a velhice de forma dife- rente, o que dá uma conotação heterogênea ao REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 A percepção de idosos sobre a velhice 33 processo de envelhecer, em que o valor da vida é algo bastante importante. “[...] o idoso tem mais cuidado com a vida do que os mais jovens,eu estou feliz por ser idoso. Nós nos cuidamos mais que os jovens, damos mais valor à vida.” (J. F.S, masculino, 64 anos, ambulante). CONSIDERAÇÕES FINAIS O interesse em realizar este estudo foi co- nhecer a percepção dos idosos em torno da velhice e do envelhecimento, a fim de ver como eles representam essa fase da vida. Muitas vezes a fala vem do outro (especialis- tas, jovens, familiares), que, ao definir a velhi- ce, está carregado de estigmas e trata o enve- lhecimento de forma homogênea, dando um foco negativo a esse processo. Partindo da hipótese de que a velhice é uma categoria social e culturalmente construída, na qual o processo de envelhecer se dá de forma diferente entre os indivíduos, buscamos no re- lato dos próprios idosos a representação da velhice e do envelhecimento, dando fala aos atores que vivenciam essa fase da vida. Dos dez idosos entrevistados, apenas dois associaram a velhice a uma fase ruim da vida, devido ao aparecimento das doenças, limita- ções e mudanças no corpo. Os outros idosos, mesmo apresentando alguma limitação nessa fase, vêem a velhice de forma positiva. Foi evi- dente que a valorização do papel do idoso na família dá uma positivação ao processo do en- velhecimento, bem como a capacidade para exercer atividades e a independência financei- ra. Percebemos, também, que as mulheres ido- sas valorizam a imagem do corpo que está en- velhecendo, diferentemente dos homens ido- sos. Muitas vezes o estigma do outro em torno da velhice é absorvido por alguns idosos, bem como o preconceito com o ser “velho” na so- ciedade é sentido pelo idoso. Diferentemente da visão negativa e homogeneizadora do outro em torno da ve- lhice, de maneira geral os idosos entrevistados vivenciam o processo do envelhecimento de forma diferente e relatam a velhice como uma fase de prazer, não sendo percebidos confli- tos, frustrações ou dramaticidade na forma de vivenciarem a velhice. Também não foram iden- tificados sentimentos de rejeição e/ou inferio- ridade face às mudanças e perdas. Como estrutura etária dinâmica no pro- cesso de construção social, os idosos estão aos poucos redefinindo seu papel na socieda- de. Através de sua visão a respeito do que é a velhice e como vivenciam o processo do en- velhecer, podem mostrar à sociedade que a velhice não está associada só a perdas e inca- pacidades, mas a uma grande atividade na reconstrução de um imaginário que positive a velhice e não estereotipe o “velho”. Na velhi- ce são evidentes algumas limitações, mas não a ponto de incapacitar o idoso para a vida. NOTAS a Enfermeira, especialista em antropologia da saúde, mestranda em Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz/ Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães. E-mail: vcfsj@cpqam.fiocruz.br 34 REV. BRAS. GERIATR. GERONTOL., 2006; 9(2):25-34 REV. BRAS. GERIATRIA E GERONTOLOGIA; 2006; 8(1); 9-20 b Doutor em antropologia social, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais – UFPE. E-mail: antrop@npd.ufpe.br c Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do CPqAM/ Fiocruz. E-mail: anabrito@cpqam.fiocruz.br REFERÊNCIAS 1. Bassit AZ. História de mulheres: reflexões sobre a maturidade e a velhice. 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