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FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO LUIZA VERONESE LACAVA A Segurança Pela Ordem e a Segurança da Garantia da Cidadania: o Desafio do Estado de São Paulo Orientador: Eduardo Saad-Diniz Ribeirão Preto 2016 LUIZA VERONESE LACAVA N° USP: 7962538 A Segurança Pela Ordem e a Segurança da Garantia da Cidadania: o Desafio do Estado de São Paulo Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Saad- Diniz. Ribeirão Preto 2016 Nome: LACAVA, Luiza Veronese Título: A segurança pela ordem e a segurança da garantia da cidadania: o desafio do Estado de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito. Aprovado em: Banca Examinadora Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________ Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________ Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________ Prof.(a) Dr.(a) ________________________ Instituição: ________________________ Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________ Ribeirão Preto, _____ de _____________________ de 2016. Ao meu pai, Ivan Otavio Lacava, que aceitou o desafio de incutir em mim um espírito crítico inabalável. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Professor Doutor Eduardo Saad-Diniz, que ao longo dos meus cinco anos de graduação não mediu esforços para me apoiar, incentivar e inspirar a me enveredar no universo das ciências criminais. À Thais Bialecki, Theuan Carvalho Gomes, Jéssica Raquel Sponchiado, Thais Guerra Leandro, e aos demais amigos do Laboratório do IBCCrim, por dividirem as aflições das ciências criminais e por serem companheiros sempre dispostos durante as maratonas de direito penal. À Professora Doutora e pesquisadora argentina María Laura Bohm, que me introduziu e norteou no estudo da Segurança Pública, e também à Universidad de Buenos Aires, minha referência acadêmica e segunda casa durante um cuadrimestre. À Natália Góis, Camilla Arioli Gebara, Raquel Altoé, Isadora de Toledo Ramos, Juliana Moyses e à todas as mulheres e amigas que me inspiram e que são referências de força e resistência nas lutas diárias pela igualdade de gênero. Nem silenciosas, Nem silenciadas. À Mariana Scarpari de Araújo, pela amizade que já nem consigo me lembrar quando começou. À Laura Campos, por ter tornado o meu lar durante a faculdade um lugar tão alegre, e especialmente à Laíssa Shimabucoro Furilli, cujo companheirismo me emociona e cuja amizade me faz sentir uma pessoa tão sortuda. À minha mãe, Silmara Aparecida Veronese, pelo carinho e amor que não caberiam em 1000 páginas de uma dissertação. Por fim, aos meus tios Suzi Veronese e Laudo Bannwart, que me acolheram durante os percalços do vestibular, e à Kazumi Obara e Marta Ovando, que sempre me receberam enquanto sua filha postiça. E é claro, às suas filhas Júlia e Aline Veronese Bannwart e Mainah e Maíra Ovando Obara, que me abrigaram com muito carinho, dividiram seus lares e me fizeram sentir sempre em casa. RESUMO A pesquisa tem por objeto a segurança, tanto amplamente considerada quanto aplicada ao contexto da segurança pública. Tem-se por objetivo realizar uma revisão bibliográfica acerca do conceito, contrapondo um viés restrito às ciências criminais à concepção de segurança integral, tendo por base a teoria do triângulo da violência de Johan Galtung. Realizou-se uma revisão teórica das principais táticas de prevenção do delito na criminologia, sendo estas a tática situacional-ambiental, a tática social e a tática comunitária, juntamente à uma análise crítica de suas respectivas experiências prévias de implementação. Ao final, examinou-se as informações fornecidas pelo portal eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, assim como da SSP - Transparência, afim de definir qual seria o perfil da política de segurança pública adotada pelo estado, assim como se esta se enquadra em algum dos modelos previamente estudados. Palavras-chave: Segurança pública. Segurança integral. Táticas de prevenção do delito. Estado de São Paulo. RESUMEN El presente trabajo tiene por objetivo realizar una revisión bibliográfica con respecto al concepto de seguridad, contraponiendo una idea restricta a las ciencias criminales a una concepción de seguridad integral, teniendo como base la teoría del triangulo de la violencia de Johan Galtung. Se realizó una revisión teórica de las principales tácticas de prevención del delito en la criminología, siendo estas la táctica situacional-ambiental, la táctica social y la táctica comunitaria, juntamente con un análisis critico de sus respectivas experiencias previas de implementación. Finalmente, se examinó la información proporcionada por el portal electrónico de la Secretaria de la Seguridad Pública de la provincia de San Pablo, así como de la SSP – Transparencia, con el objetivo de definir el perfil de la política de seguridad pública adoptada por la provincia, y de determinar si ésta encuadra en alguno de los modelos analizados previamente. Palabras clave: Seguridad publica. Seguridad integral. Tácticas de prevención del delito. Província de San Pablo. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 16 2. SEGURANÇA PÚBLICA: DE QUE ESTAMOS FALANDO? .................................................. 17 2.1 Segurança objetiva e subjetiva ................................................................................................ 20 2.2 O conflituoso matrimônio entre segurança e política criminal ................................................. 23 2 A SEGURANÇA PELA ORDEM E A SEGURANÇA DA GARANTIA DA CIDADANIA ..... 25 3.1 O conceito de segurança integral ................................................................................................ 25 3.2 O fenômeno da multiplicação de atores ..................................................................................... 27 3.3 Johan Galtung: o triângulo da violência .................................................................................... 28 4 MODELOS DE SEGURANÇA PÚBLICA ..................................................................................... 33 4.1 A tática situacional ambiental ................................................................................................... 34 4.1.1 Fontes teóricas que sustentam o modelo situacional ambiental .........................................35 4.1.2 Técnicas de intervenção ..................................................................................................... 38 4.1.3 Críticas ao modelo situacional ambiental ........................................................................... 39 4.2 A tática social ............................................................................................................................. 43 4.2.1 Fontes teóricas que sustentam o modelo social .................................................................. 44 4.2.2 Técnicas de Intervenção ...................................................................................................... 47 4.2.3 Críticas ao modelo social .................................................................................................... 49 5 A TÁTICA COMUNITÁRIA E O PAPEL DA INSTITUIÇÃO POLICIAL .................................. 53 5.1 A tática de prevenção comunitária ............................................................................................. 53 5.1.1 Fontes teóricas que sustentam o modelo comunitário ........................................................ 54 5.1.2 Técnicas de intervenção ...................................................................................................... 60 5.1.3 Críticas ao modelo de prevenção comunitária ................................................................... 63 5.2 O papel da polícia nos diversos modelos de segurança pública ................................................. 66 5.2.1 O policiamento comunitário e a experiência do modelo anglo-saxão ................................ 72 6 UMA ANÁLISE DAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO ................................................................................................................................................. 75 6.1 O Estado de São Paulo ................................................................................................................ 75 6.2 Quando a escolha é a omissão: como interpretar a ausência de planejamento? ......................... 78 6.3 – Mapeando possíveis modelos de segurança pública ................................................................ 83 6.3.1 Análise: os portais da secretaria de segurança pública e da SSP – Transparência .......... 84 6.4 – O Modelo Do Estado De São Paulo ......................................................................................... 90 7 CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 92 8 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 95 16 1. INTRODUÇÃO Desde o ponto de vista jurídico, mas também desde o ponto de vista psicológico, “seguros” poderiam e deveriam ser, sobretudo, os sujeitos portadores de direitos fundamentais universais. (BARATTA, 1997) A segurança pública ocupa papel de indiscutível destaque na agenda dos Estados contemporâneos. Não raramente, discutem-se projetos de lei, reformas de códigos jurídicos e direcionamento de políticas públicas tendo por base o discurso da segurança, e com frequência adotam-se medidas que se justificam e se legitimam, perante os governantes e a opinião pública, por serem “imperativas para a garantia da segurança”. A despeito de constar como obrigatória proposta de governo, ser matéria constante nos veículos de comunicação e figurar como um direito individual prioritário, pouco se discute acerca do que seria, realmente, a segurança, e portanto o que significaria pertencer a um Estado seguro. No vácuo desta discussão, a lacuna da segurança vem sendo preenchida, progressivamente, pelo discurso e pelas soluções trazidas pelo universo criminal. A política criminal, usualmente vislumbrada enquanto ferramenta de “combate” às inseguridades, vem assumindo na prática quase que exclusivamente papel que deveriam desempenhar uma gama muito mais abrangente de atores e espécies de políticas públicas. Eleita instrumento fundamental de garantia da segurança, a política criminal tem se confundido com as demais políticas sociais, tornando tênue muitas vezes a sua diferenciação. Tem-se por objetivo a realização de uma revisão bibliográfica do conceito de segurança, afim de propor e investigar a sua concepção em um espectro integral. Para tanto, utilizou-se como base os estudos da tríade da violência de Johan Galtung, que leva em consideração não apenas a violência direta, mais usualmente percebida e relatada, mas também as formas de violência estrutural e cultural. A seguir, realizou-se um estudo bibliográfico das principais teorias criminológicas de prevenção do delito, sendo estas a prevenção situacional-ambiental, social e 17 comunitária, levando em consideração suas críticas relevantes e experiências de implementação mais notórias. O intuito desta revisão foi investigar, tendo por base o conceito de segurança integral, quais aspectos as referidas táticas de prevenção do delito agregam para o debate da segurança pública, e quais os fatores que estas consideram mais importantes para a persecução e a garantia da segurança. Por fim, objetivou-se analisar o planejamento de segurança pública do Estado de São Paulo, por meio de um estudo das informações fornecidas pelo portal eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, e pelo portal do SSP – Transparência, que opera sob a direção da secretaria. Buscou-se identificar dentre os modelos de prevenção analisados as características que estariam presentes nas escolhas de atuação do Estado, bem como se há predominância de alguma das táticas de prevenção do delito estudadas. Realizou-se a escolha metodológica de priorizar, sempre que possível, a análise de experiências de implementação de modelos de prevenção do delito e de planejamentos de segurança pública brasileiros ou latino-americanos. Esta escolha se deu, principalmente, uma vez que considera-se estar o Estado de São Paulo inserido em um contexto que permite aproxima-lo dos paradigmas e complexidades sociais latino–americanos, mais que ao contexto dos países desenvolvidos. 2. SEGURANÇA PÚBLICA: DE QUE ESTAMOS FALANDO? Propor-se a buscar uma definição de segurança é tarefa complexa. Em um primeiro momento provavelmente se partiria para o seu negativo, ou seja, se tentaria encontrar tudo aquilo que gera insegurança: segurança é não ter o seu carro roubado, é não ter a sua casa invadida, seus bens violados ou sua integridade física ameaçada. A segurança de um país, por outro lado, se verifica pela solidez de suas fronteiras, a habilidade de seu exército e a capacidade de resistir a ataques, afim de não ser invadido, de não ser saqueado, de não ter sua soberania ameaçada. A segurança pública seria a faculdade de andar pelas ruas da cidade livremente, sem ser roubado, furtado, sem o temor de uma possível violação sexual. A segurança, portanto, é um conceito que se define pelo seu oposto. 18 A palavra “segurança” usualmente encontra-se, implícita ou explicitamente, atrelada aos termos “nacional”, “pública”, “urbana”. Ao falar-se em “insegurança”, é comum o uso das expressões “a luta contra”, a “guerra contra” o “combate” à violência, ao crime, aos terroristas etc. 1 São expressões que denotam conotações majoritariamente coletivas, ou seja, não fazem referência a um sujeito ou aos direitos que este possui, mas sim ao conjunto de uma nação ou cidade. Quanto às expressões referentes à insegurança, nota-se o seu caráter eminentemente bélico, que acaba por verificar-se verdadeiro em alguns contextos sociais (“a guerra contra o tráfico”nas favelas do Rio de Janeiro, a “War on Drugs” na América). Alessandro Baratta (1997) alerta ainda para as conotações que tiveram as ideologias da Segurança Nacional na América Latina e a doutrina da Segurança Pública no direito penal Europeu das décadas de 70 e 80, marcadas por forte viés autoritário e que deram suporte teórico ao surgimento de muitos dos regimes militares da época. Ao se pensar este conceito por um viés negativo surgem imediatamente outras questões, igualmente complexas e inquietantes, porém cujas respostas podem dizer muito sobre o que entende-se por segurança. Protege-se o que, quais bens, quais valores? Quem ou o que ameaça estes valores? Se são bens, quem os possui? Todos os indivíduos e todos os bens gozam da mesma proteção? O que significa, para um Estado, a segurança? A segurança muda conforme o sistema de governo de cada Estado, conforme sua situação econômica, conforme a disposição e posição social ocupada por cada indivíduo? E o mais importante, é possível pensar segurança em termos positivos? Como formular políticas públicas de segurança integral, enxergando para além da insegurança? Um ponto de partida interessante para responder a estas perguntas seria analisar que papel desempenhou a emergência do neoliberalismo e dos governos neoliberais na concepção de segurança vigente hoje, nos índices de criminalidade dos países subdesenvolvidos e na resposta punitiva dada pelo Estado. Segundo Loic Wacquant 2 , a doutrina neoliberal, que ganhou espaço a partir da década de 70, possuía como principais as características: a) a desregulação econômica; b) a retirada do Estado de Bem-Estar, ou a sua retração; c) a utilização de um aparato penal expansivo, intrusivo e proativo; e d) o 1 BARATTA, Alessandro. Política criminal: entre la política de seguridad y la política social. En: Delito y Seguridad de los Habitantes. México, DF: Editorial Siglo XXI, 1997. 2 WACQUANT, Loic. The penalisation of poverty and the rise of Neo-Liberalism. European Journal on Criminal Policy and Research, 2001. Em Bohm (2013). 19 desenvolvimento de uma cultura de responsabilidade individual, que afirma que cabe a cada um determinar o que acredita ser melhor para si. Pode-se dizer que sua finalidade última seria facilitar, à máxima potência, as trocas econômicas, a livre circulação de bens e serviços, a liberdade de ação. Entretanto, é de se imaginar que essa liberdade gere riscos, e que possa ver-se constantemente obstaculizada seja pelo Estado, seja por aqueles que estão excluídos do sistema econômico e laboral, os desempregados, os pobres, aqueles que não geram riqueza. As trocas econômicas, os bens e principalmente aqueles indivíduos que estão inseridos no sistema demandam uma proteção contra essas ameaças, que vem na forma de uma forte intervenção Estatal punitiva. A segurança do sistema econômico transforma-se na própria segurança do Estado, e este chama para si a tarefa de manter sob controle aqueles que apresentam risco ao bom funcionamento do mercado, usualmente materializados em indivíduos pertencentes a classes marginalizadas, imigrantes, jovens, negros etc. 3 Ao mesmo tempo, o declínio do Welfare State e a progressiva diminuição do papel do Estado como garantidor dos direitos fundamentais e das condições mínimas de vida, assim como a acentuada queda dos programas sociais, precarização das condições de trabalho etc, acabou por intensificar a desigualdade social e criar um exército de pessoas em condição de extrema marginalização, vivendo em níveis acentuados de pobreza. A remoção de todas as restrições ao fluxo de capital e as políticas de austeridade nos países em desenvolvimento já foram apontadas como grandes fatores de crise econômica, bem como apresentam alto custo social 4 . O desemprego e a condição de precarização resultantes da queda na qualidade de vida e aumento da desigualdade social auxiliam, por sua vez, a um aumento da criminalidade, favorecendo ainda mais o aparecimento de um Estado Policial. As consequências são amplas e diversas, e afetam diretamente aquela que é hoje percebida como uma “crise de insegurança”. Para limitar-se a uma delas, cita-se o Boom do encarceramento (facilmente verificável em países como Brasil, Estados Unidos e China), que acompanha uma tendência punitivista e mais recentemente de privatização do sistema carcerário: “(...) a imposição do modelo neoliberal, necessariamente, inclui atos legislativos que levam ao endurecimento das penas a “delinquentes considerados perigosos” (que podem 3 BOHM, María Laura. Securitización. Revista Penal, n 32. 2013. 4 OSTRY, Jonathan D; LOUNGANI, Prakash; FURCERI, Davide. Neoliberalism: Oversold? Finance & Development, Vol 53, 2016. 20 ser qualquer cidadão comum), o recorte de verba para o sistema penitenciário público e a privatização dos estabelecimentos penais”. 5 Porém até mesmo este fenômeno cumpriria um papel no funcionamento do modelo neoliberal, como atesta Michel Foucault em “Vigiar e Punir” (1975). Os presos, segundo ele, aliviariam uma tensão social provocada pelo excedente de população e desemprego (alguns autores afirmam que sem o aumento do encarceramento, em 1990 os níveis de desemprego nos Estados Unidos teriam sido dois pontos maiores do que foram 6 , além se servir como mão de obra barata e disponível para o setor privado e para diversos programas governamentais (nos Estados Unidos, o trabalho no cárcere já produz quase 100% dos equipamentos militares, 92% da montagem de fogões, 36% dos aparelhos domésticos, 30% dos fones de ouvido e 21% dos móveis para escritório 7 ). Para o autor, a política criminal seria na verdade uma “gestão diferencial de ilegalidades”, ou seja, o próprio “fracasso” do sistema penal teria a sua função no modelo neoliberal. 2.1 Segurança objetiva e subjetiva Outra distinção importante a se considerar quando se estuda segurança, e que é muito comumente confundida pelo senso comum, é a diferença entre as chamadas segurança objetiva e subjetiva. A segurança objetiva, por um lado, seria a probabilidade de ser vítima de um delito, com base em diversos fatores tais como idade, gênero, classe social, rotina, condições de vida, bairro onde habita etc. Esta categoria é verificável por meio de cifras de criminalidade, com dados coletados a partir do número de delitos cometidos em uma determinada região. A segurança subjetiva, por outro lado, representa o temor em ser vítima de um delito, ou seja, a percepção subjetiva de cada indivíduo sobre a sua segurança. Essa percepção está relacionada a diversos fatores, alguns mais tangíveis que outros, tais como a construção social da insegurança, o nível de confiança que se tem no governo e na polícia 5 ALFONSO, Silva Sernaque y Silva. El Neoliberalismo y el Derecho Penal en las sociedades democráticas. Barco de Papel, n 2, 1998. Em: Bohm (2013). 6 WESTERN, Bruce; BECKETT, Katherine. How Unregulated is the U.S Labor Market? The Penal Sistem as a Penal Market Institution. American Journal of Sociology, 1999. Em: Bohm (2013). 7 MELO; João Ozorio de. Trabalho de Presos está mais forte e controverso do que nunca. Consultor Jurídico, 2014. 21 local, a influência dos meios de comunicação etc. Apesar de subjetiva, esta insegurança pode ser auferida por meio de pesquisas de opinião 8 . É importante observar, entretanto, que nem sempre a percepção subjetiva de segurança está atrelada à segurança objetiva – cifras de criminalidade. Um primeiro fator que gera essa distorção é a existência da chamada cifra oculta, ou seja, a ineficácia do Estado em registrar com precisão a ocorrência de delitos, muitas vezes porque eles próprios não são reportados e nunca chegarãoao conhecimento da polícia (seja porque existe uma descrença na instituição policial, porque são fruto de atividade ilícita, por descrença na justiça etc.), por inexistência de um sistema eficiente de registro, ou mesmo por manipulação política dos dados coletados. Seja como for, o resultado indica a existência de um porcentual substancial de delitos que não são registrados 9 , e logo também não são apenados: “O sistema só pode aplicar sanções penais previstas na lei a um percentual dos reais infratores que, numa média relativa a todas as figuras delitivas, nas sociedades centrais, não é superior a um por cento” 10 . Outro fator que causa distorção entre a sensação de insegurança e os delitos realmente cometidos é a ascensão, típica da sociedade contemporânea e do pós modernismo, de uma “cultura do medo”. Esta, associada à volatilidade das mudanças sociais, à flexibilização do trabalho, à perda de garantias e referenciais concretos de apoio em caso de crise (consequências diretas de políticas neoliberais). Troca-se uma aparente liberdade por um sentimento de semi-segurança crônico e permanente 11 . Débora Regina Pastana, em “Cultura do Medo: Reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil” (2003) aponta que o início do crescimento desta sensação de insegurança no país se deu em fins da década de 70 e início da década de 80, quando supostamente se teria substituído o medo da violência por parte do Estado (autoritário) por um medo difuso, sem um objeto facilmente identificável. Segundo pesquisas realizadas em São Paulo 12 , já em 1978, 71% dos entrevistados declararam que tinham medo de serem assaltados, proporção que era de 60% em 1975. Esta mesma pesquisa mostra que 65% dos paulistanos tinham medo de dar carona e 37% de pedi-la. Outros 37% tinham medo 8 TAVOSNANSKA, Norberto. Seguridad y Política Criminal. Buenos Aires: Ed. Cátedra Jurídica, 2010. 9 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 1995. 10 BARATTA, Alessandro. Integración-prevención: Una nueva fundamentación de la pena dentro de la teoría sistémica. Derecho Penal y Criminología: Revista del Instituto de ciencias penales y criminología de la Universidad Externado de Colombia, n 29, 1986. 11 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Editora Zahar, 2006. Em: Bohm, 2013. 12 Índice Gallup de opinião pública, ano IV, n. 76, 1978. Em: Pastana, 2003. 22 de falar com estranhos na rua, inclusive com a polícia (12%). O que chama a atenção da autora, entretanto, é o caráter multifacetado do temor, que não provinha mais de situações conjunturais com causas específicas: “Já não se tratava, portanto, deste ou daquele temor, mas de uma sensação fortemente internalizada que passou a ser inerente à vida cotidiana” 13 . É importante ressaltar o papel que desempenham os meios de comunicação na difusão do medo e no aumento da insegurança subjetiva. Ainda segundo Débora Regina Pastana, foi no início da década de 80 que os grandes jornais e veículos de comunicação brasileiros passaram a dedicar uma parte relevante de seu conteúdo a notícias criminais, com manchetes como “Índices de crimes crescem em São Paulo” (Folha de S. Paulo, 19.03.1978), “O tempo da violência” (Folha de S. Paulo, 06.11.1979) e “São Paulo, a capital do medo” (O Estado de S. Paulo, 15.07.1980). Ainda que os crimes como pequenos furtos e lesões corporais causadas por brigas sejam de longe os mais comumente registrados, são raramente notificados devido ao baixo interesse que provocam, enquanto homicídios, estupros, sequestros e demais ações violentas, ainda que muito menos frequentes, ganham com frequência a primeira página dos jornais, devido a seu caráter sensacionalista. Um homicídio isolado, quando noticiado diversas vezes e por diversos veículos de comunicação distintos (rádio, televisão, jornal, internet), transforma-se em inúmeros, provocando sensação de grande descontrole e criminalidade crescente. Por fim, outro ponto importante a destacar é a influência desta “cultura do medo” no sistema penal, que acaba por justificar processos de criminalização e validar clamores públicos por maior punitivismo. Um exemplo direto desta influência é a recente aprovação no Brasil da chamada “Lei Anti-Terrorismo” (Lei n 13.260/2016), que apresenta tipos penais bastante amplos e se propõe a combater uma atividade ainda pouco definida, dando margem para discricionariedades, uso político do sistema de justiça e contribuindo para a expansão do direito penal. Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo 14 . 13 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. Editora IBCCrim, 2003. 14 BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013. 23 2.2 O conflituoso matrimônio entre segurança e política criminal Na concepção de Eugenio Raul Zaffaroni (2010), política criminal pode ser entendida hoje com: a) uma “disciplina de observação”, que determina quais são os objetivos dos sistemas penais e em que medida eles estão sendo alcançados e b) arte de legislar e aplicar a lei, e a partir disso tentar tirar seus melhores frutos na prevenção do delito. O autor ressalta a importância de não se perder de vista o caráter político da norma recém criada, na medida em que surge para atender a uma determinada demanda, e principalmente para tutelar um determinado bem jurídico. A dogmática penal não seria estanque, não seria totalmente separada da política. A decisão política é a carga genética que leva a norma, então a dogmática, de certa forma, estará conectada a ela. Qual seria, entretanto, a correlação entre política criminal e segurança? Seria a segurança o fim a ser atingido pela política criminal? Ou a política criminal o meio a ser utilizado para se alcançar a segurança? Em um primeiro momento, é importante considerar que a política criminal, enquanto gênero e tomando-a em seus níveis mais altos de elaboração, representa um universo muito mais complexo que a espécie “política penal”. Entretanto, quando se atinge um largo campo de abrangência, a linha de distinção entre a política criminal e suas diversas outras modalidades (política social, política econômica, urbanística etc.) já não se apresenta de modo claro, de modo que na prática, em muitas ocasiões, é difícil determinar se o que se faz é política social ou política criminal. 15 Diversos autores já alertaram para as ameaças da utilização do aparato penal como ferramenta única de solução de problemas que tem origens sociais múltiplas. Para Alessandro Baratta, uma maneira de desmascarar uma política criminal travestida de política social seria observar não a sua finalidade objetiva ou função social, mas a sua finalidade subjetiva, ou seja, a intenção dos atores que a colocaram em prática. Embora em um primeiro momento esta solução possa parecer pouco prática e pouco auferível objetivamente, é possível observar de qual instituição partiu a política (não é irrelevante se ela teve origem no Ministério Público, no departamento de polícia ou no Ministério da Saúde ou Educação), qual órgão 15 BARATTA, Alessandro. Política criminal: entre la política de seguridad y la política social. En: Delito y Seguridad de los Habitantes. México, DF: Editorial Siglo XXI,1997. 24 governamental ou da iniciativa privada forneceu os recursos para que ela fosse aplicada, ou quais as ferramentas escolhidas para coloca-la em prática. A ambiguidade ideológica do conceito de política criminal se destaca todavia mais quando a relacionamos com o outro aspecto do aparente dilema: a política social. Neste caso se produz uma espécie de compensação para aqueles que tiveram seus direitos subtraídos no cálculo da segurança. Depois que foram esquecidos uma série de sujeitos vulneráveis provenientes de grupos marginais ou “perigosos” quando se estava em jogo a segurança de seus direitos, a política criminal os reencontra como objetos de política social. Objetos, porém não sujeitos, porque também desta vez a finalidade (subjetiva) dos programas de ação não é a segurança de seus direitos, senão a segurança de suas potenciais vítimas. Para proteger essas respeitáveis pessoas, e não para proporcionar aos sujeitos que se encontram socialmente em desvantagem o usufruto de seus direito civis, econômicos e sociais, a política social se transforma (usando um conceito da nova prevenção) em “prevenção social da criminalidade”. Sujeitos vulnerados ou vulneráveis que sofrem lesões (reais) de direitos por parte do Estado e da sociedade, como são as lesões a direitos econômicos, sociais, se transformam em potenciais infratores de direitos fortes de sujeitos socialmente mais protegidos 16 . Estes questionamentos são importantes na medida em que definem e traçam estratégias de segurança. A segurança, por si só uma concepção ampla e bastante influenciada por fatores subjetivos, precisa ser analisada com especial cautela quando serve de fiança e justificativa para ações de cunho penal. Para Alessandro Baratta (1997), a intervenção é inócua na medida em que o sistema penal: a) atua sobre os efeitos, e não as causas da criminalidade; b) atua sobre as pessoas, e não sobre situações, considerando o conceito de culpa, que enxerga os indivíduos enquanto variáveis independentes, e não vinculadas a contextos; c) atua sobre as situações depois que já ocorreram; e d) não protege os indivíduos, e sim a validade das normas. O direito penal, que tem como um de seus pilares o princípio da legalidade, e que exige para a configuração de um crime a sua inequívoca tipificação, não pode-se prestar a tutelar termos amplos como a “segurança nacional”, a condenar indivíduos que provoquem uma “sensação de insegurança”, a promover ações militares em nome da “segurança e da ordem”. O perigo desta associação, além de permitir, como já foi salientado, a expansão do direito penal 17 , é auxiliar enquanto diretamente responsável a conquista de apoio popular à jornadas militares anti-terror, justificar a restrição à políticas de imigração, reforçar estereótipos de indivíduos que ameaçam a segurança individual e nacional (os árabes, os latinos, afrodescendentes etc.) e demais ações de intolerância e punitivismo. 16 BARATTA, Alessandro. Política criminal: entre la política de seguridad y la política social. En: Delito y Seguridad de los Habitantes. México, DF: Editorial Siglo XXI, 1997. 17 Para uma análise mais profunda deste fenômeno recomenda-se Silva Sánchez, A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais (2002). 25 Não é possível negar à política criminal o cumprimento de uma função crítica, tanto dos valores jurídicos quanto da realização social desses valores. A política penal não pode estar separada das distintas posições políticas gerais que a sinalizam, e, portanto, o seu aspecto crítico é inegável 18 . Até o momento foram apresentadas noções amplas de segurança, com conotação principalmente vinculada à concepção criminal, e fez-se uma exposição das principais questões que se colocam em relação ao tema. Seria possível, entretanto, enxergar a problemática da segurança sob outra égide, que foge do foco criminal para concentrar-se na garantia de direitos? No capítulo seguinte, será dada sequência à investigação da essência do conceito de segurança, e será analisada a possibilidade de concepção de uma segurança integral. 2 A SEGURANÇA PELA ORDEM E A SEGURANÇA DA GARANTIA DA CIDADANIA 3.1 O conceito de segurança integral A aliança entre direito penal e segurança, como já vimos, apesar de oferecer uma resposta politicamente atraente a curto prazo, se mostra em larga escala uma estratégia socialmente nociva e jurídico-penalmente autodestrutiva 19 . Além de ineficiente, a resposta penal não está e nem deveria estar preparada para solucionar as causas da insegurança, de modo que este discurso via de regra não contempla reais soluções duradouras e a longo prazo. Pensar segurança de uma forma integral significa principalmente pensar além do marco da política criminal. Estar seguro integralmente significaria não apenas estar blindado frente à criminalidade e às ameaças externas, mas também ter garantidos os seus direitos fundamentais, poder gozar plenamente da cidadania e ter acesso a todos os bens e direitos básicos. Apesar de amplo, este conceito quebra o paradigma de que se pode estar seguro com mais policiamento na rua, porém enquanto as políticas de saneamento ainda são insuficientes, 18 RIVERA BEIRAS, Iñaki (Coord). Política Criminal y Sistema Penal: viejas y nuevas racionalidades punitivas. Barcelona: Anthropos Editorial, 2005. 19 BOHM, María Laura. Securitización. Revista Penal, n 32. 2013. 26 quando não se tem pleno acesso à educação, à saúde básica etc. É a segurança não a serviço da ordem, mas da garantia da cidadania. Se no lugar de tentar procurar ampla e solidamente a desejada segurança, se combate uma ampla e difusa insegurança, aquilo que poderia ter sido uma ação positiva de proveito geral se torna uma ação negativa de exclusão e destruição. Assim, em lugar de procurar construir em prol da segurança educativa, da segurança sanitária, da segurança laboral, da segurança econômica, da segurança ambiental, etc, dos cidadãos e habitantes do estado, a atuação parece reduzir-se ao combate de inseguranças e/ou aqueles que são vistos como causadores dessa insegurança. Essa é precisamente a modalidade discursiva que se deu nas ultimas décadas em numerosos âmbitos estatais, e que também na América Latina tem ganhado terreno nos últimos anos. As políticas de segurança são, em realidade, políticas de combate a insegurança, o que soa parecido, mas no final é muito diferente: se combate a insegurança personificando-a em distintos grupos sociais, sem que fique previamente definidos os termos da segurança que se pretende atingir 20 . Enxergar a segurança de maneira integralizada modifica substancialmente a maneira de pensar políticas públicas preventivas da criminalidade. Trazer segurança para um bairro não significaria apenas instalar uma nova unidade policial, adquirir novas viaturas e modernizar os aparatos de vigilância e controle, mas sim realizar um mapeamento detalhado das deficiências em serviços públicos, dos núcleos familiares desassistidos, das residências precarizadas etc. Seguindo este raciocínio, uma política de segurança integral poderia contemplar, por exemplo, a abertura de novas vagas em uma creche, o lançamento de um programa laboral de aprendizado para jovens, a construção e reforma de habitações, entre outras medidas que visem à inclusão do cidadão na comunidade como sujeito de direitos. Isso não significa, entretanto, que a segurança integralizada ignore o papel da instituição policial e seja indiferente às problemáticas diárias da criminalidade para a construção da cidadania. Resta buscar, no marco desta perspectiva, soluções que adaptem um planejamento de prevenção do delito a uma noção mais inclusivae abrangente de segurança, que deve ocorrer em um primeiro momento com a quebra do monopólio penal da tutela das inseguranças. A inclusão de outros atores, metas e objetivos que fujam da resposta unilateralmente criminal, assim como a reformulação da relação polícia-cidadão (sendo o policial também um membro da comunidade) podem surgir como possibilidades de resposta a estas questões. 20 Idem. 27 3.2 O fenômeno da multiplicação de atores Em Em Busca das Penas Perdidas (1991) Eugenio Raul Zaffaroni sustenta a impossibilidade da centralização pelo direito penal, como disciplina e ferramenta de modificação da realidade, de todos os esforços em direção à garantia dos direitos humanos. Segundo o autor, em lugar de atuar como garantidor, o sistema penal converteu-se, graças à violência operacional do exercício de seu poder punitivo, em instrumento de perpetuação de desigualdades e a uma ameaça às garantias fundamentais. Ele estaria, sob este ponto de vista, a serviço da manutenção de um status quo desigual, fenômeno que se faz mais marcante nos países periféricos e regiões marginalizadas. “Em resumo, o exercício do poder nos sistemas penais é incompatível com a ideologia dos direitos humanos” 21 . A proposta que surge a partir desta constatação, a da emergência de um “direito penal mínimo”, não é desconhecida das ciências criminais, sendo o próprio autor citado um adepto, que vê na limitação progressiva do direito penal uma via de alcance para a sua possível futura abolição. Ainda que a discussão desta corrente criminológica de pensamento não seja objeto do presente trabalho, fato é que a política criminal tem se mostrado falha para atuar, sozinha, na garantia dos direitos fundamentais, e portanto também na garantia da segurança. O direito penal mínimo, de acordo com o autor, seria o direito penal da Constituição. Ele seria forte justamente por saber ser mínimo, por reconhecer que não está sozinho na proteção dos direitos fundamentais, e dar margem à redução do seu espaço para a emergência de outros atores, frente à grave violação de direitos. A contração do sistema penal, por meio da recuperação de garantias jurídicas e do respeito aos Direitos Humanos, permitiria a emergência de interdisciplinaridade, não como um apêndice auxiliar à ciência penal, mas como um ator essencial na construção da cidadania. A ciência criminal, em muitos aspectos isolada das demais ciências sociais e alienada enquanto ferramenta de manutenção de privilégios, precisa começar a dar espaço a outros atores. [...] o atraso da ciência jurídica em face da ciência social contemporânea é enorme. É recuperável esse atraso? A tese que queremos aqui propor é que não é. Disso deriva que não é mais possível reconstruir um modelo integrado de ciência penal 21 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Editora Revan, 1991. 28 fundado sobre o caráter auxiliar da ciência social em face da ciência jurídica. [...] O atraso não é superável porque a ciência jurídica formal não se revela em condições de refletir e de superar a própria ideologia negativa. A crítica e superação desta não provém do interior, mas do exterior dela, por obra de uma ciência social com a qual a ciência jurídica não conseguiu encontrar, ainda, uma nova relação de colaboração. Também para a construção de uma nova estratégia político-criminal a ciência jurídica está, agora, inteiramente entregue à contribuição da ciência social” 22 . Este fenômeno, conhecido por “multiplicação de atores”, se traduz na segurança pela progressiva participação de agentes que não fazem parte do espectro usual do sistema penal, porém que atuam junto aos programas institucionais e autônomos de promoção de políticas públicas. Se considerada a segurança de maneira integral, tornam-se agentes promotores de segurança também os assistentes sociais, os psicólogos, os professores, os membros atuantes da comunidade. Assim como eles, tornam-se instituições propagadoras de segurança não apenas os postos de polícia, centros de detenção e instituições do judiciário, mas também os postos de saúde comunitária, as escolas, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS e CREAS), os centros culturais, as organizações não governamentais etc. Esta percepção é relevante na medida em que busca romper a histórica resistência das ciências jurídicas (em especial as ciências criminais) em admitir novas concepções extra- jurídicas na atuação de problemáticas classicamente criminais (segurança). A interpretação da segurança além da política criminal e a sua percepção enquanto fenômeno multifacetado exige, necessariamente, a abertura para uma solução também fora dos limites da problemática penal. 3.3 Johan Galtung: o triângulo da violência Johan Galtung (nascido em 24 de outubro de 1930) é um sociólogo e matemático Norueguês, e o principal fundador da disciplina de estudos para o conflito e a paz. 23 Tendo 22 BARATTA, Alessandro. Política criminal: entre la política de seguridad y la política social. En: Delito y Seguridad de los Habitantes. México, DF: Editorial Siglo XXI, 1997. 23 Johan Galtung possui vinculação à universidade de Columbia, Universidade de Oslo e ao Instituto de Pesquisas para a Paz de Oslo (PRIO). Deu inúmeras contribuições nos campos da sociologia, ciência política, economia e história, e foi o fundador dos conceitos de paz negativa e paz positiva, violência estrutural, e diversas 29 desenvolvido e aprofundado a relação entre violência cultural, violência estrutural e violência direta, assim como seus impactos na busca pela paz e segurança, é hoje uma das grandes referências mundiais em resolução de conflitos e segurança integral. A seguir, faz-se um breve apanhado de suas ideias principais, em especial no que se refere às diferentes formas de violência e sua manifestação. Galtung entende violência enquanto manifestação das diversas afrontas às necessidades básicas humanas (sendo a ameaça de violência também uma de suas formas). As quatro classes de necessidades básicas – fruto, segundo o autor, de exaustivos debates ao redor do mundo - seriam: a necessidade de sobrevivência (negação: morte, mortalidade); a necessidade de bem-estar (negação: sofrimento, doença); a identidade, ou necessidade de representação (negação: alienação); e a necessidade de liberdade (negação: repressão). 24 A partir daí, seria possível realizar a distinção entre duas manifestações de violência: a violência direta (mais perceptível, caracteriza-se pela afronta inequívoca e direcionada às necessidades básicas humanas), e a violência estrutural. Esta última, segundo o autor, teria como principais características a exploração e a desigualdade. Uma estrutura violenta deixaria marcas não apenas no corpo, mas significaria uma série de afrontas à constituição plena e capaz do ser humano, impedindo a formação de mobilizações conscientes e das condições necessárias para a luta contra essa exploração. Ele aponta quatro características de uma estrutura violenta: a penetração, ou a implantação dos dominantes (econômica, social e culturalmente) dentro da estrutura dos dominados; a segmentação, ou a baixa percepção dos dominados em relação à situação em que se encontram; a marginalização, ou a exclusão dos dominados de acesso a bens e direitos; e a fragmentação, o esforço para manter separados os indivíduos das classes inferiores. Todas estas manifestações de violência se traduzem na prática por uma estrutura social excludente, na qual a qualidade e expectativa de vida não são as mesmas para todos os cidadãos, não existe a igualdade de acesso à educação, a saúde, ao trabalhodigno, ao transporte, moradia etc. teorias no campo da resolução de conflitos. Em 1987 foi premiado com o Right Livelihood Award, além de diversas outras premiações. 24 GALTUNG, Johan. Violencia Cultural. Bizkaia: Centro de Investigación por la Paz Fundación Gernika Gogoratuz, 2003. 30 Fonte: GALTUNG, Johan. Violencia Cultural. Bizkaia: Centro de Investigación por la Paz Fundación Gernika Gogoratuz, 2003. A tabela acima representa de maneira esquemática a relação entre as diversas manifestações de violência no âmbito direto e estrutural. As formas de violência devem ser interpretadas enquanto megaversões de uma série de micro-violências, que englobam diversas modalidades de manifestação. Por exemplo, por morte pode-se entender holocausto, extermínio, genocídio. Por mutilações pode-se entender as mortes lentas provocadas por desnutrição e falta de assistência médica, que atingem primeiro as pessoas mais débeis (crianças, idosos, mulheres). Por repressão tem-se um duplo entendimento: por um lado, a reclusão (encarceramento, campos de concentração), e por outro, a exclusão (imigração compulsória, expatriação). Sobre esta classificação, o autor chama também a atenção para a necessidade de equilíbrio ecológico, que apesar de não constar da tabela acima figura como uma das necessidades básicas humanas, sem as quais não existe vida. O equilíbrio ecológico é aqui identificado como manutenção do sistema do meio ambiente, abiótico e biótico. A violência contra a natureza se dá manifestamente de forma estrutural, não com a intenção inequívoca de destruí-la, mas por meio da contaminação das águas, poluição provocada pelas indústrias, desmatamento para comércio de madeira, corrosão da camada de ozônio etc. Se esse equilíbrio não é satisfeito, o resultado é a degradação humana. A estas duas manifestações de violência (direta e estrutural) se pode acrescentar uma terceira, a violência cultural, que daria legitimidade às anteriores e que completaria o triângulo de violência. Por violência cultural entende-se todos os aspectos da cultura 31 (representáveis no campo simbólico, tais como a religião, a ideologia, as artes, a linguagem, a matemática) que podem ser utilizados para justificar a violência direta ou estrutural. O autor tem a precaução de não afirmar uma cultura enquanto violenta, mas sim algumas manifestações desta cultura. Para tanto, é necessária uma profunda investigação e um profundo entendimento da cultura que se deseja estudar, assim como as suas influências. Para Galtung, assim como existem culturas para a violência, existem também culturas para a paz, e aspectos culturais que influenciam a não violência, a solidariedade, a união. Como exemplo de violência cultural, o autor cita a ideologia do nacionalismo, que é marcada principalmente pela eleição, por grupos sociais com poder de influência, de um povo escolhido e superior em relação aos demais, e que portanto estaria legitimado ao uso da violência para expandir-se e prosperar. Faz-se uma distinção entre o “Eu” e o “Outro”, sendo o “Outro” indesejável e inferior. Logo o “Outro” torna-se um perigo para o desenvolvimento dos escolhidos, uma “escória de bactérias” (como Hitler se referia aos judeus), o “inimigo da classe” (como dizia Stálin em relação aos kulaks) os maníacos criminosos (como se refere Washington aos “terroristas”). A formação destas concepções, aliada à estruturação de um Estado-Nação, são os principais componentes ideológicos para a justificação de guerras, genocídios, perseguições 25 . Outras manifestações culturais percebidas pelo autor como ensejos de violência são, por exemplo, o eurocentrismo, o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia. Por estas concepções, bastante enraizadas na sociedade moderna, formam-se crenças que justificam a superioridade dos homens em relação às mulheres, dos brancos em relação aos não-brancos, de certas nações em relação a outras. Também auxiliam a solidificação da percepção da sociedade moderna enquanto uma civilização com igualdade de oportunidades, na qual a ascensão social dependeria apenas do esforço pessoal, e não seria fruto de uma estrutura social desigual e injusta. Segundo o autor, existiria uma diferenciação temporal básica entre as três manifestações de violência: a violência direta é um acontecimento; a violência estrutural, um processo, com altos e baixos; enquanto a violência cultural seria uma constante, que se manteria igual por largos períodos, dada a lenta transformação da cultura básica (Galtung, 2003). Este triângulo ajudaria a compreensão da formação de estratos de violência. No fundo, 25 GALTUNG, Johan. Violencia, guerra y su impacto sobre los efectos visibles e invisibles de la violencia. Bizkaia: Centro de Investigación por la Paz Fundación Gernika Gogoratuz, 2003. 32 a constante da violência cultural, da qual as outras formas de violência retiram sua legitimação; em seguida, a violência estrutural, que dá margem à exploração, ajuda a minar os focos de revolta e resistência e fragmenta os setores sociais marginalizados; e na parte de cima, visível a olho nu, a violência direta, com toda a sua história de crueldade direcionada a outros seres humanos e à natureza de forma geral. A violência é a privação de necessidades, e esta privação é bastante grave, o que muitas vezes gera outras formas de violência, como a violência direta (que pode surgir por exemplo na forma de criminalidade), mas não apenas: pode dar origem a um sentimento generalizado de frustração, privação, desesperança e medo. Em outras palavras, “a violência gera violência”. 26 Fonte: GALTUNG, Johan. Violencia, guerra y su impacto sobre los efectos visibles e invisibles de la violencia. Bizkaia: Centro de Investigación por la Paz Fundación Gernika Gogoratuz, 2003. Os fluxos no triângulo, como ressalta Galtung, podem se iniciar de diferentes pontos. Um exemplo possível dado pelo autor é a escravidão, que teve início pela vinda compulsória massiva de diferentes povos da África (em veemente violência direta) para trabalhar forçadamente na América, morrendo milhares neste processo. Ao largo dos séculos, esta violência direta se traduz em violência estrutural, com a população branca se afirmando enquanto segmento mais favorecido da sociedade, com maior acesso a bens, melhores trabalhos, melhor condição de vida etc, e em violência cultural, com o racismo persistente nas sociedades modernas. Com o passar dos anos, e “superada” a violência direta, permanecem na sociedade as suas consequências, porém moldadas a tornarem-se palatáveis e toleraveis, são temas de artigos acadêmicos, e não pautas políticas e sociais urgentes. A classificação da violência de Galtung é essencial na medida em que escancara a violência como processo múltiplo, complexo e proveniente de diversas fontes. Ao contrário 26 GALTUNG, Johan. Violencia Cultural. Bizkaia: Centro de Investigación por la Paz Fundación Gernika Gogoratuz, 2003. 33 daquilo que é comumente percebido e taxado (pela percepção social, pelos veículos de comunicação, pelas políticas públicas governamentais) como sendo violência, ou seja, a violência direta, esta não se legitima sozinha e está involucrada em um ciclo de outras violências, comumente ignoradas e raramente percebidas enquanto causadoras de violência. Entretanto, o mais importante desta constatação é seu teor positivo, o novo entendimento que traz sobre a percepção de violência e seu potencial de formulação de estratégias e políticas para a paz. Trazendo para o campo da segurança integral,fica evidente a ineficácia em se buscar a segurança apenas por combater as supostas causas da violência direta, ou seja, buscar a repressão e prevenção da criminalidade e dos atos criminosos contra a vida e o patrimônio, se há uma negligência aos demais fenômenos causadores de insegurança. Percebendo-se a violência e a insegurança enquanto fenômenos cíclicos, é possível a criação de estratégias preventivas integralizadas, que contem não apenas com o teor repressivo (usualmente manifestado por meio do direito penal e pelas instituições repressivas do Estado – agentes policias, estabelecimentos prisionais, exército etc), mas com uma agenda positiva de reforço à cidadania, às instituições democráticas, ao meio ambiente e ao acesso aos bens e direitos básicos de todo cidadão. 4 MODELOS DE SEGURANÇA PÚBLICA Feitas algumas reflexões acerca do conceito de segurança, dar-se-á prosseguimento nos próximos capítulos a uma análise das principais teorias criminológicas de prevenção do delito, sendo elas a prevenção situacional ambiental, a prevenção social e a prevenção comunitária, assim como suas respectivas estratégias de intervenção. O objetivo deste breve apanhado é a discussão, à luz das reflexões a respeito do conceito de segurança integral, das principais correntes criminológicas de prevenção do delito, e quais os aspectos que estas levam em consideração para a busca da segurança. Tendo por base as teorias e suas respectivas experiências de aplicação, se tentará realizar uma análise da conjuntura da segurança pública no Estado de São Paulo, e buscar soluções que levem em conta aspectos de aplicação mais integrais, e não apenas centralizados no modelo de política criminal. Para isso, entretanto, entende-se que é necessária uma revisão IMPORTANTE!!! 34 teórica do conceito de segurança, analisando-se aquilo que já foi aplicado em termos de política criminal e seus resultados concretos. 4.1 A tática situacional ambiental A tática situacional ambiental surgiu no princípio dos anos 80, notadamente nos países baixos e no mundo Anglo-Saxão, e de maneira simplificada pode ser caracterizada como a redução de oportunidades para o cometimento de delitos. A sua emergência coincide principalmente com a instalação de governos de caráter neoliberal. Máximo Sozzo (2000) define como principais características da prevenção situacional ambiental as seguintes: a) medidas dirigidas a formas altamente específicas de delito; b) que dizem respeito a mudanças no desenho ou manipulação do ambiente imediato no qual esses delitos ocorrem; c) da maneira mais sistemática e permanente possível; d) de forma tal a reduzir as oportunidades de cometimento de tais delitos; e e) tal como são percebidos por um amplo conjunto de potenciais opressores. Esse conjunto de ações visando a reduzir a oportunidade de cometimento de delitos foi sistematizado por Clarke (1992) em três direções: aumentar os esforços involucrados no cometimento dos delitos, aumentar os riscos (sejam eles reais ou percebidos como tais) de detenção do agente, e reduzir as recompensas dos delitos. Entretanto, os potenciais delinquentes não são os únicos sujeitos aos quais estão dirigidas as táticas mencionadas. Tomando por base um estudo pioneiro realizado na década de 70 por Brantingham e Faust em relação à saúde pública, construiu-se nas ciências criminais, por analogia, as concepções de prevenção primária, secundária e terciária 27 , as quais se dirigem respectivamente a população em geral, à aqueles que estariam em situação de risco de cometerem delitos e aos que já realizaram condutas delitivas. Tenta-se, com isso, não apenas prevenir a ocorrência de delitos, mas também intervir preventivamente para evitar que os indivíduos sejam vítimas de delitos 28 . 27 ROBERT, Philip. Researchers and Prevention Policy. Report to the International Conferece on Urban Safety, Drugs and Crime Prevention. Paris, 1991. 28 SOZZO, Máximo. Seguridad urbana y tácticas de prevención del delito. Buenos Aires: Cuadernos de Jurisprudencia y Doctrina Penal, Ad-Hoc N. 10, 2000. Isso para isso: 35 4.1.1 Fontes teóricas que sustentam o modelo situacional ambiental O modelo de apresentação das correntes teóricas escolhido (ou seja, a apresentação da tática de prevenção seguida por uma breve explanação das teorias que a influenciaram) serve apenas a propósitos acadêmicos e visa sistematizar, da melhor forma possível, um panorama geral dos conceitos desenvolvidos em matéria de prevenção do delito e segurança pública. As diversas técnicas de intervenção, como será depois demonstrado, sofrem intercâmbio de diversas correntes, que se influenciam e se modificam mutualmente. Como já antes mencionado, o modelo situacional ambiental aparece como alternativa a uma “crise de segurança”, fruto do aumento nos índices de criminalidade e na sensação de insegurança ocasionados, entre outros fatores, pelas políticas neoliberais que tomaram forma na América Latina no início dos anos 70 29 . Como uma das respostas a esse fenômeno, populariza-se no mundo anglo-saxão nas décadas de 70 e 80 o chamado “realismo criminológico”, ou “Nothing Works”, que se traduz em expectativas moderadas em relação à contenção da criminalidade (a vitória absoluta na luta contra o crime é uma utopia), e em táticas de prevenção de delito altamente probabilísticas (a mudança nos fatores ambientais é muito mais palpável e manipulável a curto prazo que uma possível transformação social) 30 . A seguir, procura-se apontar em linhas gerais os sustentáculos teóricos que baseiam o modelo situacional ambiental, com base nas fontes destacadas por Adam Crawford (1998). 4.1.1.1 Teoria da escolha racional Trata-se de uma construção teórica que resgata os clássicos pensadores criminológicos, e considera o crime como sendo fruto de um processo cognitivo racional e voluntário levado a cabo pelo indivíduo. É um modelo de “economia do crime”, ou seja, admite que toda a realização de um delito teria envolvido um raciocínio “custo-benefício”, no qual seriam pesados os custos e benefícios de cada uma das opções, buscando otimizar os resultados com o mínimo de risco. 29 BÖHM, María Laura. Securitización. Revista Penal, n 32. 2013. 30 SOZZO, Máximo. Seguridad urbana y tácticas de prevención del delito. Buenos Aires: Cuadernos de Jurisprudencia y Doctrina Penal, Ad-Hoc N. 10, 2000. 36 É uma corrente teórica bastante influente nos campos da microeconomia e ciência política, nos quais admite-se o homem como sendo um ser egoísta, guiado portanto por seu interesse pessoal, sujeito a tentar tirar o máximo proveito das situações nas quais se encontra, independentemente da complexidade da escolha que necessite fazer. Assim, durante a década de 70 resgata-se a concepção de que a inevitabilidade da detenção e da pena seriam os fatores mais eficientes em termos de prevenção do delito 31 , uma vez que com isso se elevariam os riscos e se diminuiriam as recompensas da atividade criminosa. Crawford aponta criticamente em relação a este modelo criminológico a desconsideração, para fins de análise das causas do delito, de quaisquer fatores de nível social, estrutural (tais como a desigualdade social, marginalização de setores da população etc) e da vida pregressa do agente, adotando para tal um conceito de indivíduo “abstrato, universal e abiográfico”. Nesse sentido, também aponta O’Malley (1992) para a consequência da total responsabilização do indivíduo pelo seu próprio destino, seja no cometimento de crimes, seja na sua própria vitimização. 4.1.1.2 Designing out crime Mais que uma concepção teórica, é um esforço prático para inter-relacionar a prevenção da criminalidade com o desenvolvimentoespacial urbano. No início da década de 70, o arquiteto e urbanista norte-americano Oscar Newman cria a teoria do “defensible space”, que se traduz pela idealização de modelos de casas e planejamento de ruas e condomínios estruturados a inibir o cometimento de delitos. Para o urbanista, o “defensible space” é um fenômeno sócio-físico, ou seja, tanto fatores sociais quanto físicos contribuem para um espaço que desfavoreça o crime. Nesta teoria as noções de pertencimento e de apropriação do espaço são muito importantes, de modo que na concepção do arquiteto as casas térreas e condomínios apresentariam menor tendência a criminalidade que grandes edifícios com muitos andares, pois estes dificultariam a apropriação do espaço pelos moradores. Alguns dos princípios arquitetônicos mais importantes são a construção de casas com janelas voltadas para a parte externa, permitindo que os moradores tenham controle de toda a área e vice-versa, e de modo 31 “A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará, sempre, impressão mais forte que o vago temor de terrível suplício, em torno do qual se oferece a esperança da impunidade”. Cesare Beccaria (1738- 1794) em Dos Delitos e das Penas (1764). 37 que os habitantes do local possam monitorar o entorno. Ressalta-se a necessidade de construção de edifícios e planejamento urbano de modo a não permitir o isolamento de um determinado grupo de habitantes ou o aparecimento de áreas escuras ou isoladas. Por fim, encoraja-se a construção de habitações que favoreçam a vigilância, a proximidade com postos de polícia, condomínios com ruas largas etc. 32 Uma das críticas mais contundentes à teoria de Newman é a de que se trata de um “determinismo arquitetônico”, que não leva em consideração o impacto social das transformações no meio ambiente urbano. As críticas deram origem às suas principais reformulações, de modo a abarcar o projeto arquitetônico não como fonte de exclusão, mas como fator de integração entre os habitantes de determinado espaço, tangenciando assim a tática situacional a tática comunitária, conforme será visto com mais detalhes adiante. 4.1.1.3 Teoria das atividades rotineiras Desenvolvida em 1979 por Marcus Felson e Lawrence E. Cohen 33 , esta teoria visa estabelecer uma relação causal que justifique a ocorrência de delitos enquanto acontecimentos envolvendo objetivos e sujeitos localizados em determinado tempo e espaço 34 . Segundo este marco teórico, existem três elementos essenciais à ocorrência de um delito: um potencial ofensor (não importando a razão pela qual chegue a praticar o ato); um potencial alvo (seja um objeto ou uma pessoa); e a ausência de um guardião capaz, que engloba não somente as autoridades policiais, mas a sociedade como um todo (pais, vizinhos, amigos etc.) A cidade, por sua própria dinâmica, constituição espacial e variabilidade de oportunidades e atores, configura-se como um local ideal para a ocorrência de delitos, uma vez que proporciona diversas situações nas quais estes três elementos possam estar presentes. Ausente um dos elementos, não ocorre o delito. Para esta vertente teórica, existiriam diversos níveis de responsabilização pela prevenção de um delito, de acordo com o papel ocupado por cada ator na sociedade. A chave para diminuir a sua ocorrência seria, então, aumentar o grau de responsabilização de cada ator, desde aqueles cuja função está relacionada diretamente a prevenção de delitos (agentes 32 NEWMAN, Oscar. Defensible space: crime prevention through urban design. Paperback, 1973. 33 COHEN, Lawrence E; FELSON, Marcus. Social Change and Crime Rate Trends: A routine Activity Approach. American Sociological Review, 1979. 34 CRAWFORD, Adam. Crime prevention and community safety: politics, policies and practices. Longman Criminology Series, 1998. 38 policiais), até aqueles que ocupam um papel social mais geral, não necessariamente vinculados por relações de função ou parentesco com a possível vítima. A teoria das atividades rotineiras se relaciona de maneira direta com a teoria da escolha racional, agregando a esta o fator oportunidade. Como aponta David Garland (1996), fazendo referência à estas teorias: [O delito é] “um aspecto normal, um lugar comum na vida moderna. É um evento, ou melhor dizendo, uma gama de eventos, que não requerem uma motivação ou disposição especial, nem uma patologia ou anormalidade e está inscrito nas rotinas da vida econômica e social contemporânea.” Ambas sedimentam a base da chamada teoria ecológica do crime, que coloca a situação e o ambiente como um fator central na ocorrência de delitos. É importante notar, neste sentido, que todas as teorias apresentadas refletem um pessimismo em relação à possibilidade de se frear a ocorrência de delitos, uma vez que os veem como denominadores comuns da vida em sociedade. 4.1.2 Técnicas de intervenção As estratégias de intervenção em âmbito de prevenção situacional focam-se principalmente em mudanças no ambiente, via de regra visando à diminuição de oportunidades de cometimento de delitos, elevação do risco de uma possível detenção e aumento da dificuldade em praticar o ato delituoso. Para tanto, são comuns os exemplos de ampliação da iluminação pública nas ruas, o deslocamento de viaturas de polícia para locais onde existe uma maior taxa de cometimento de crimes, a colocação de câmeras de segurança e circuitos fechados de televisão cobrindo ambientes públicos ou privados, o corte de árvores ou a poda para melhorar a iluminação das ruas durante a noite, a arquitetura de edifícios, condomínios ou áreas urbanas visando à diminuição de espaços isolados/mal iluminados, becos etc. É relevante notar que mais além das medidas visando o ofensor ou a comunidade/vizinhança, a prevenção situacional também engloba o esforço quanto a potencial vítima, e as medidas direcionadas a diminuir a possibilidade de vitimização. Nesse sentido, ganham força os atores e tecnologias da segurança privada, tais como câmeras de segurança, redes de alta voltagem, contratação de agentes e empresas de segurança privada, uso de armas 39 e tecnologias não letais 35 , circuitos de segurança internos para residências etc. No âmbito do “Designing out Crime”, é notável o crescimento e frequência nas cidades de condomínios privados, assim como conjuntos de edifícios murados e do próprio cercamento de ruas por associações de moradores. No mesmo sentido, assiste-se ao surgimento dos cada vez mais frequentes patrulhamentos de bairros por agentes da segurança privada, muitas vezes contratados por coletivos de moradores da própria vizinhança. 4.1.3 Críticas ao modelo situacional ambiental A tática situacional ambiental vem sendo apontada como eficiente para coibir determinados tipos de delito, praticados por determinados ofensores, em determinados locais e em determinadas circunstâncias. Sua eficácia como modelo de segurança pública e seu impacto na efetiva redução da prática de delitos é ainda bastante questionável. Como uma das principais consequências negativas advindas da sua implementação pode-se citar o fenômeno do “deslocamento”, ou seja, a coibição da prática de determinado delito em determinada rua, por exemplo, não extinguirá a prática deste delito, apenas o “deslocará” para outro local. Os impactos de redução da criminalidade como um fenômeno globalmente considerado, portanto, ficam seriamente prejudicados 36 . O fenômeno do deslocamento tem características multifacetadas. Pode significar somente um deslocamento espacial (mesmo delito, mesma vítima porém em espaço geográfico diverso), um delocamento temporal (mesmo espaço, porém em outro momento), um delocamento tático (mesmo delito, mesma vítima,porém com métodos ou estratégias diferentes), deslocamento de vítimas (alvos), ou por fim, uma mudança do delito em si a ser cometido. Uma vez que o objetivo da tática situacional não está relacionado a investigação e combate às causas de origem do fenômeno delitivo, mas sim a criação de barreiras e a diminuição de oportunidades para que ele ocorra 37 , surgem os debates acerca das 35 Neste sentido, ver: LACAVA, Luiza; SAAD-DINIZ, Eduardo. “Entre Junhos”: das manifestações aos megaeventos, a escalada da repressão policial. Franca: Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 19, n. 29, 2015. 36 SOZZO, Máximo. Seguridad urbana y tácticas de prevención del delito. Buenos Aires: Cuadernos de Jurisprudencia y Doctrina Penal, Ad-Hoc N. 10, 2000. 37 O’MALLEY, P; HUTCHINSON, S. Reinventing Prevention: Why did “Crime Prevention” develop so late? British Journal of Criminology, Vol.47, 2007. 40 consequências sociais e urbanas desse deslocamento 38 . Ora, se a prevenção gira em torno de um determinado tipo de delito executado por um modelo de ofensor, da-se margem a estigmatização e posterior exclusão de grupos sociais, taxados socialmente como “perigosos” 39 . Essa dinâmica favorece fenômenos de exclusão social, ao gerar “territórios sociais protegidos” e “terrirórios sociais desprotegidos”. A estigmatização social, juntamente a exclusão e segregação do espaço físico, acabam por “empurrar” o delito para as zonas periféricas, atingindo aqueles que estão menos equipados (econômica e socialmente) para gerar medidas de segurança e onde os danos acabam sendo maiores 40 . Além disso, nota-se também que este tipo de estratégia prioriza quase que exclusivamente os delitos contra a propriedade ocorridos em espaços públicos, em uma clara escolha ideológica e política pela proteção de determinados bem jurídicos (e portanto inevitavelmente de grupos sociais) em detrimento de outros, silenciando assim a agenda de prevenção à criminalidade na esfera privada (notadamente a violência doméstica contra mulheres e crianças), a prevenção aos crimes econômicos, aos crimes ambientais, a criminalidade organizada e institucional. Por fim, sua característica de priorizar os resultados a curto e medio prazo, apoiada em uma descrença na efetividade dos programas de identificação e redução das causas da criminalidade (realismo criminológico), acaba por estimular o mercado da segurança privada, apoiada pela cada mais mais expressiva indústria de equipamentos tecnológicos de segurança (alarmes, iluminação, câmeras de vigilância, armamentos não letais). Esse papel cada vez maior da tecnologia na prevenção do delito acaba por afastar a importância do fator humano nos planejamentos de segurança pública, assim como tem efeitos praticamente nulos sobre as causas e motivos estruturais da ocorrência de delitos. Além disso, é um fator que atua quase que exclusivamente em favor da redução da vitimização daqueles que tem condições e recursos para lançar mão destes aparatos privados, deixando exposta grande parte da população. 38 Nesse sentido ver a distinção elaborada por Barr e Pease (1990) acerca do deslocamento “maligno” (aquele que acaba criando condições para a ocorrência de delitos mais graves e com consequências sociais mais donosas) e o deslocamento “benigno” (que dá origem a delitos menos graves ou com a mesma gravidade, porém direcionados a vítimas cujo dano é menor). 39 As ciências criminais tem vasta literatura acerca do fenômeno da estigmatização social e a taxação de determinados grupos como “perigosos”, tanto de uma perspectiva social como enquanto política de Estado. Reconhecendo-se a impossibilidade de esgotar o tema, cita-se enquanto autores de especial relevância Gunther Jakobs, formulador da teoria do “direito penal do inimigo”, e David Garland, autor da teoria da “criminologia do outro”. 40 CRAWFORD, Adam. Crime prevention and community safety: politics, policies and practices. Longman Criminology Series, 1998. 41 Nas grandes cidades da América Latina, nas quais a concentração de renda, a desigualdade social e o segregacionismo urbano são fenômenos bastante acentuados, ficam evidentes alguns dos efeitos negativos de políticas de segurança voltadas ao caráter situcional- ambiental. A título de contraste, é relevante analisar os índices de delitos cometidos na cidade de São Paulo tendo por base o fator espacial, ou seja, as taxas de crimes patrimoniais e homicídios cometidos em bairros de centro e de periferia. Analisando-se os dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo referentes ao ano 1998 41 , percebe-se que a despeito dos bairros centrais (de classe média e classe média alta) contarem via de regra com maior visibilidade da mídia em questões de segurança, terem proporcionalmente o maior efetivo policial, unidades e postos de polícia mais equipados e terem suas reivindicações atendidas mais prontamente, estão entre os bairros de menor incidência de criminalidade na cidade. Enquanto isso, é notável a disparidade de cifras de violência nas regiões periféricas. De acordo com os dados fornecidos pela secretaria, enquanto na Vila Mariana o roubo corresponde a 14% dos registros policiais, no Parque São Lucas (zona leste), os roubos representam 50% dos registros. Enquanto na Vila Mariana ocorreu um homicídio a cada 980 registros, na Cidade Tiradentes (zona leste) e no Capão Redondo (zona sul), um assassinato é registrado a cada 21 boletins de ocorrência. Ou seja, considerando-se as cifras oficiais, a probabilidade de um morador do Capão Redondo ser vítima de um homicídio é 46 vezes maior que a de um morador da Vila Mariana 42 . A constatação desta desigualdade denota o quanto a criação de “zonas sociais protegidas” -que contam com maior apoio da força de segurança estatal e possuem mais recursos para investir em segurança privada- não interfere diretamente na diminuição da criminalidade geral e muito menos atua em suas causas, mas tão somente a “desloca” do centro para a periferia, atingindo zonas populacionais mais vulneráveis. O modelo de segurança ambiental também é sem dúvida elemento que interfere diretamente na configuração do espaço urbano, contribuindo junto a outros fatores para a criação de zonas de exclusão, o esvaziamento dos locais de convívio público e a proliferação dos condomínios privados. A tentativa de criar zonas de proteção as classes média e alta vem configurando desde a década de 40 na cidade de São Paulo o padrão de urbanização centro- periferia, marcado por um distanciamento das classes sociais: os bairros centrais legalizados e 41 Secretaria da Segurança Pública – Governo do Estado de São Paulo. “Produtividade Policial”. Disponível em: <http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx> Acessado em: 14/06/2016. 42 SILVA FILHO, José Vicente; PERES NETTO, José. Um novo mapa da criminalidade no Estado de São Paulo. Fundação Armando Álvares Penteado, Cadeira pão de açúcar de pesquisa em segurança pública. 42 bem equipados, e os periféricos precarizados, quase sempre ilegais 43 . Nesta nova configuração, fica evidente o papel sempre crescente da segurança privada, privilégio de grupos sociais restritos: Os condomínios fechados são a versão residencial de uma categoria mais ampla de novos empreendimentos urbanos que chamo de enclaves fortificados. Os condomínios [...] estão mudando o panorama da cidade, seu padrão de segregação espacial e o caráter do espaço público e das interações públicas entre as classes. Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas características básicas. São propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e
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