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- -1 CRIMINALIDADE, SOCIEDADE, VIOLÊNCIA E CONTROLE SOCIAL CAPÍTULO 1 – MODERNIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS: COMO TRATAR E ESTUDAR O FENÔMENO DA CRIMINALIDADE? Ronaldo Félix Moreira Júnior - -2 Introdução Muito se debate, seja no âmbito acadêmico ou mesmo no cotidiano, a respeito da modernidade e de seus efeitos. Atualmente, indaga-se: o que leva ao crescimento da criminalidade? Qual a relação entre a globalização e as políticas públicas de segurança de um Estado? Para responder a essas perguntas, é preciso compreender temas relevantes, como modernidade, segurança e violência. É impossível que algumas mudanças nas últimas décadas (no que diz respeito aos hábitos e até mesmo à cultura da sociedade ocidental) tenham passado despercebidas. Em boa parte, essas alterações foram trazidas pelos incontáveis avanços tecnológicos surgidos nos últimos anos. Nesse sentido, este capítulo tem como um de seus objetivos responder à seguinte indagação: em que consiste a modernidade? Além disso, ele também procurará associar os conceitos de , , entre outros, aos diferentes modernidade sociedade de consumo conflitos sociais existentes. A fim de atender a esses objetivos, em um primeiro momento faz-se necessário compreender os termos e e entender como essas ideias estão indissociáveis dos conflitos sociais.modernidade contemporaneidade Em seguida, a sociedade será analisada a partir de seus conflitos, com base na relação entre criminalidade e violência nos dias de hoje. Finalmente, uma vez que não se pode separar o estudo da contemporaneidade e violência das noções trazidas pela criminologia, a terceira parte desse capítulo se encarrega de explicar essa disciplina e mostrar sua relevância dentro do contexto do estudo da política criminal e da segurança pública como um todo. Após isso, o capítulo encerra com uma discussão a respeito da seletividade penal e do papel do Poder Executivo e Judiciário dentro desse processo. 1.1 Temporalidade: modernidade e contemporaneidade No que diz respeito à , seja na Filosofia ou na Sociologia, compreende-se que, ao observar atemporalidade realidade, é possível perceber constantes mudanças, algumas das quais são irreversíveis. O autor Anthony Giddens (1987) é responsável, entre outros, por sustentar que os últimos séculos (XIX e XX) são tão diferentes de toda história anterior do ser humano de forma que sua interpretação deve se concentrar na natureza dessas diferenças. As mudanças que aconteceram nesse curto período são, conforme ele, tão amplas quanto aquelas ocorridas nos vários milhares de anos anteriores. O estilo ou a chamada organização social surgida na Europa ao final do século XVII e que teve sua influência disseminada em praticamente todo Ocidente (inclusive nos periféricos) é, para o autor, o que pode ser considerado como , mas é necessário afirmar que a modernidade que se vive é completamentemodernidade diferente daquela surgida naquele período. 1.1.1 Modernidade e seus termos Devido às constantes transições, não apenas nos últimos séculos, mas nos últimos anos, inúmeros autores trouxeram termos para explicar o surgimento de uma nova forma da sistemática social: sociedade da ou são alguns dos exemplos mais comuns. Clique na interação a seguir parainformação sociedade de consumo entender melhor estes conceitos. Masuda (1982), por exemplo, vislumbra uma , na qual os computadores possuem umasociedade da informação função de substituição do trabalho mental dos homens, permitindo a produção em massa de conteúdos cognitivos e informações sistematizadas. Nesse sentido, segundo Giddens (2007), o que realmente está acontecendo não é o fim da modernidade (por isso, ele é um dos principais críticos ao termo ), mas a aproximação de um momento ainda ligado após-modernidade ela, um momento no qual suas consequências se tornaram mais radicalizadas e universalizadas. Desse modo, trata-se não de um fim, mas de uma , conceito que se relaciona com a noção de modernidade tardia - -3 trata-se não de um fim, mas de uma , conceito que se relaciona com a noção de modernidade tardia , de Zygmunt Bauman (2007).modernidade líquida O que se entende, por exemplo, como , é, portanto, um importante aspecto dasociedade do consumo modernidade líquida. Essa sociedade de consumo tem como premissa maior a satisfação dos desejos humanos de uma maneira nunca antes realizada ou mesmo conjecturada pelas formações sociais anteriores. Conforme Bauman (2007), essa promessa de satisfação permanecerá sedutora apenas enquanto esse desejo permanecer irrealizado. Ainda no que diz respeito ao consumo, Baudrillard (2008) menciona que a lógica do consumo ultrapassa os próprios objetos. Não há, nessa lógica, saturação ou mesmo satisfação. Entende o autor que conceitos como necessidade e utilidade não passam de aspectos ideológicos criados pela burguesia. Não se compra apenas um objeto, mas um estilo de vida que evoca todo um sistema de significados. É importante dizer que a vida no atual ponto da modernidade está sendo cada vez mais influenciada por eventos ocorridos em locais sempre mais distantes. Isso quer dizer que eventos que ocorrem do outro lado do globo podem muito bem influenciar acontecimentos no lado oposto. Os autores mencionados compreendem a globalização como algo vinculado a esse fenômeno e dão como um exemplo desse fator de influência a atual possibilidade de transmissão instantânea de informação. Para se ter uma ideia, o número de indivíduos com acesso à internet foi incrivelmente maior do que o número de indivíduos com acesso ao rádio ou ao computador pessoal no mesmo espaço de tempo quando essas tecnologias surgiram, como mostrado na figura a seguir: Figura 1 - Quantidade de 50 milhões de usuários de cada tecnologia a partir do momento em que essas mesmas tecnologias foram lançadas ao público. Fonte: GIDDENS, 2007, p. 22. É de vital importância salientar que o fenômeno da globalização não foi responsável apenas por aumentar o número de usuários de determinado aparato tecnológico ou mesmo por disseminar esse uso pelos mais diversos países. Eventos danosos também acompanharam esse fenômeno, tais como o crescimento exagerado da desigualdade, além de crises econômicas internacionais. Clique na interação a seguir para ler alguns exemplos. Como exemplo, entre os anos 1989 e 1998, Giddens (2007) aponta que a participação da quinta parte mais pobre da população do mundo na renda global teve um declínio de 2,3% para 1,4%. Enquanto isso, a proporção relativa à quinta parte mais rica da população subiu. Não somente isso, a influência de empresas transnacionais tem se mostrado cada vez maior em países em desenvolvimento, tanto que a regulamentação da segurança ou preservação ambiental têm se tornado menos efetivas nesses lugares. É importante dizer que esse aspecto negativo da globalização nas economias capitalistas possui relevância no - -4 É importante dizer que esse aspecto negativo da globalização nas economias capitalistas possui relevância no surgimento dos conflitos contemporâneos. Pode-se mencionar, por exemplo, a situação da China que, apesar de ter tido um crescimento econômico grandioso nos últimos anos, apresenta inúmeros problemas em relação à sua população, como o crescente desemprego, que é agravado pela afluência de camponeses que escapam do campo para viver nas grandes cidades. Sukup (2002) menciona que a tendência global de racionalizações e fusões de empresas gera milhões de empregos perdidos, havendo um processo de agricultura sem camponeses ou mesmo indústria sem operários. É necessário, portanto, compreender que essas complexidades do fenômeno global são responsáveis por abalar as estruturas dos Estados nacionais, fazendo com que haja uma tentativa de controle (exercida por eles) e um maior uso do poder punitivo. Nesse sentido, quando as fronteiras globais se tornam mais intangíveis e discursos como o medo e a insegurança se espalham tão rapidamente como qualquer outra informação na atualidade, não é inesperado o surgimento de políticas violadorasde direitos e garantias fundamentais. Esse tema guarda uma estreita relação com o que é chamado de , sendo que é um dosprodução de riscos riscos principais termos utilizados pelo autor Ulrich Beck (1986). Segundo esse autor, a sociedade humana na modernidade deve ser estudada conforme a produção e distribuição dos riscos, que podem ser sociais, políticos, econômicos, naturais e que tendem a escapar de instituições. O autor cita como exemplos a possibilidade de um desastre nuclear, uma calamidade ecológica, os problemas derivados de um aumento populacional incontrolável, terrorismo e outros eventos globais potenciais que oferecem um horizonte inseguro a todas as pessoas. Esses problemas geram novos conflitos que são, por sua natureza, completamente diferentes dos conflitos típicos do início da modernidade. Figura 2 - Para Ulrich Beck (1986), as consequências da produção de riscos são mais desastrosas em países não desenvolvidos. Fonte: De Visu, Shutterstock, 2018. - -5 É de extrema importância salientar que, muito embora muitos autores da Criminologia coloquem o cerne dos conflitos contemporâneos na desigualdade de classes e no problema da distribuição de riquezas, Beck vai além, afirmando que a produção do risco também configura um cenário de desigualdades no âmbito internacional. Como exemplo, grandes laboratórios químicos costumam se instalar com maior frequência em países periféricos. Ressalta-se também que a importância dada aos riscos e sua produção não altera somente o comportamento dos indivíduos, determinando também a aplicação de certas políticas pelos Estados nacionais, que acabam por gerar mais conflitos do que por impedir que os riscos sejam efetivamente produzidos. Exemplificando, se um grupo de pessoas representa teoricamente um risco, todas as características comuns desse grupo passam a não serem levadas em consideração, restando apenas o rótulo de risco e perigo. Isso acaba fazendo com que tal grupo seja sistematicamente marginalizado e tratado com processos de exclusão (BECK, 1986). 1.1.2 Contemporaneidade e seus conflitos É de extrema relevância ressaltar, contudo, que tais medidas de exclusão e violadoras de direitos (comumente utilizadas pelo poder punitivo estatal) nunca foram tratadas por Beck como uma resposta aceitável à produção global de riscos. O autor, por outro lado, compreende que no atual estágio da modernidade deve haver uma maior noção de hospitalidade e observância a direitos. No Brasil, como se pode imaginar, os conflitos contemporâneos possuem suas próprias especificidades, mas VOCÊ O CONHECE? Ulrich Beck (1944-2015) é um dos principais autores da Sociologia contemporânea. Suas obras têm como objetivo explorar a complexidade da modernidade reflexiva. Sua principal obra, “Sociedade do Risco”, foi influenciada pelo desastre de Chernobyl ocorrido também em 1986 (BECK, 1986). CASO A diferença entre os conflitos contemporâneos e os conflitos no início da modernidade pode ser muito bem vista dentro dos estudos sobre prisões de Michel Foucault (2012). Se a pena aplicada a um determinado indivíduo antes ocorria na forma de torturas, essa pena passou a ser aplicada na forma de prisão durante a modernidade. Isso não ocorreu devido a uma iluminação do pensamento com uma tentativa de humanizar as sanções. Foucault afirma que as prisões vieram com novas exigências econômicas, e com o medo político dos movimentos populares, que se tornaram uma constante na França pós-revolução. Assim, por exemplo, se o soberano, durante o período absolutista, necessitava demonstrar seu poder sobre os corpos dos indivíduos e a submissão desses, na modernidade, esse soberano precisava docilizar esses corpos, tendo eles sob seu controle para utilização, inclusive, como mão-de-obra. - -6 No Brasil, como se pode imaginar, os conflitos contemporâneos possuem suas próprias especificidades, mas normalmente associados a dois aspectos da pobreza – aspecto relativo e absoluto –, e principalmente em relação à pobreza absoluta. Essas características são explicadas por Coutinho (2015). Clique nos a seguir paracards conhecer as diferenças entre estes dois conceitos. Pobreza absoluta A é derivada do processo de exclusão, de rejeição do circuito de emprego e renda e do circuitopobreza absoluta de consumo da sociedade. Pobreza relativa A pobreza relativa diz respeito ao indivíduo incluso, aquele que ganha pouco e possui um patrimônio, ainda que pequeno. - -7 Figura 3 - Segundo Foucault (2012), o poder disciplinar seria exercido não somente nas prisões, mas também em outras instituições. Fonte: Chris Howey, Shutterstock, 2018. Segundo Coutinho (2015), o capitalismo é o sistema mais dinâmico para criar a desigualdade, exigindo mais políticas públicas do Estado. Entretanto, o que se percebe em muitos países periféricos (como o Brasil) é um distanciamento de políticas garantistas – com o objetivo de reduzir ambos os aspectos da pobreza – e uma aproximação de políticas não garantidoras de direitos, fazendo com que a pobreza absoluta se alastre. Esses processos podem ser analisados em diferentes realidades do Brasil, seja na área rural ou na metropolitana. - -8 1.2 Contemporaneidade e complexidade O termo está ligado a muitos fatores e pode ser utilizado para explicar diversos fenômenos nacomplexidade modernidade. Para o autor britânico John Urry (2004), o que muitos analistas do século XXI (como Bauman e Giddens) fazem é aplicar o que ele chama de na ciência social contemporânea, aindafísicas da complexidade que não façam uso expresso do termo. O estudo da complexidade, para Urry, trata da pesquisa sobre sistemas emergentes, dinâmicos e auto- organizáveis, que se interagem de forma a influenciar as probabilidades dos eventos futuros (URRY, 2004). Com efeito, é imperativo compreender, como já mencionado, que atualmente essas complexidades do global geram uma maior tentativa de controle e um maior exercício do poder punitivo. 1.2.1 A relação entre criminalidade e violência na contemporaneidade A violência é, no Brasil, um fenômeno estrutural que na modernidade se mostra incontrolável. Assim, o modo de se combater essa violência também depende de mudanças de estruturas. Questiona-se, portanto, o fato de que se a população considerada pobre no país representa uma percentagem tão baixa de perpetradores de condutas positivadas como crimes – apenas 1% dos trabalhadores urbanos pauperizados está envolvido direta ou indiretamente com a criminalidade (ADORNO, 2015) –, por que motivos a punição do poder estatal recai preferencialmente sobre os mais pobres? Não se pode descartar o fato de que há uma associação entre indicadores socioeconômicos com a evolução da criminalidade. Não obstante, Adorno (2015) tem apontado para algumas mudanças contemporâneas nos aspectos da criminalidade. Uma mudança central diz respeito ao fato de que o crime tem seguido a rota da riqueza, e não da pobreza. Segue-se a circulação do dinheiro e riqueza mobiliária e imobiliária (por fronteiras estaduais e nacionais), o que provoca mudanças abruptas no perfil urbano de cidades que antes eram consideradas núcleos constituídos em torno de atividades rurais ou mesmo do comércio local. VOCÊ QUER LER? “O olhar do turista”, escrito por John Urry (1996), é uma grande contribuição para as ciências sociais. Apesar de tratar de uma sociologia do turismo, Urry afirma a necessidade de um novo modo de se fazer sociologia (voltado para a contemporaneidade) e aborda temas de grande relevância, como o fato de que o próprio turismo é um elemento central de diversas mudanças culturais que têm ocorrido na sociedade atual. - -9 Figura 4 - Conforme Adorno (2015), a criminalidade tem seguido a rota de circulação de capitais, o que tem mudado o perfil urbano de determinadas cidades. Fonte: Fred Cardoso, Shutterstock, 2018. É certo que como resultados claros desse processo ocorrem alterações nos estilos de vida e nos padrões cotidianos de consumo (como o aumento do consumo de álcool e drogas). Essa mudança pode ser verificadapor meio de um aumento na demanda por certos serviços não necessariamente especializados, como auxílio doméstico, vigilância e até mesmo higiene pessoal. Com efeito, tem-se uma mão-de-obra empobrecida que se destaca do campo e das pequenas cidades em que há uma diminuta oferta de empregos. Em cenários com essas características, é comum que haja o surgimento (ou aumento) de fenômenos como o tráfico de drogas, que necessita de um mercado consumidor e também de pessoas que possam ser utilizadas como peças descartáveis – como vigias para a chegada de drogas ou vendedores em pontos estratégicos (ADORNO, 2015). O crescimento das condutas violentas e criminosas, além da corrupção de autoridades, cria um círculo perverso responsável por aumentar a própria demanda pela lei e pela ordem. Exige-se mais polícia, não importando que, por vezes, ela seja arbitrária e até mesmo empregue o abuso da força, fechando o mencionado círculo sem VOCÊ SABIA? Cuiabá é hoje uma das capitais com a maior concentração de taxas de homicídio, ao mesmo tempo em que tem atraído um número grande de trabalhadores das regiões circunvizinhas do extremo oeste do estado de São Paulo, demonstrando a atração do fenômeno da criminalidade para localidades de circulação de dinheiro e riqueza (ADORNO, 2015). - -10 por vezes, ela seja arbitrária e até mesmo empregue o abuso da força, fechando o mencionado círculo sem aparentes saídas. Clique na interação a seguir para continuar lendo sobre este assunto. Dessa forma, no atual ponto da modernidade, costuma-se afirmar que houve uma promoção – por uma ideologia neoliberal e um discurso fortalecido da lei e da ordem – de um neoconservadorismo no tocante à sua expressão política. Para Thiago Fabres de Carvalho (2014), isso não apenas obliterou as bases assistenciais do Estado, como também acentuou o déficit social nas democracias tanto dos países periféricos (como o Brasil) quanto nos modelos “democráticos” das demais nações. Para melhor exemplificar o que foi dito, pode-se entender o neoliberalismo como uma verdadeira doutrina econômica que pretende ser uma opção diante do liberalismo clássico, de modo a evitar crises como a que ocorreu em 1929 e que vem sendo exportada para países periféricos como o Brasil (MASSIMO, 2013). Da mesma forma, entende-se como neoconservadorismo o conjunto de políticas públicas criminais voltadas ao punitivismo, como as políticas criminais atuariais. O que foi mencionado a respeito da sociedade do consumo possui sua relevância na temática atual por estar ligada ao próprio conceito de dignidade humana, que, juntamente ao termo reconhecimento, são aspectos da dependência de uma possibilidade de participação em uma sociedade de consumidores (CARVALHO, 2014). Em outras palavras, o reconhecido é apenas aquele que for capaz de se mostrar pertencente a esse grupo por meio do consumo, pois um discurso que foi incluído na contemporaneidade pelo modelo capitalista prega justamente o único modo de vida digno aquele em que o indivíduo só é capaz de se realizar caso seja detentor de determinados bens. O outro lado do discurso do consumo também tem efeitos devastadores, pois prega que aqueles não habilitados fiquem do lado de fora da sociedade, servindo de exemplo para os incluídos (CARVALHO, 2014). O controle penal é totalmente voltado para os marginalizados, um controle do crime que despende de consideráveis quantias estatais para seu setor repressivo. Desse modo, enquanto que, por um lado, esse controle é responsável pela proteção das pessoas do grupo de incluídos e principalmente de seus bens, ao mesmo tempo, por outro lado, ele é incumbido de depositar os economicamente incapazes em qualquer lugar longe da sociedade privilegiada (como os presídios). Com a prevalência da ideia de segurança sobre a ideia da solidariedade, parte da própria criminologia tem se tornado administrativa e atuarial, sendo também chamada de “criminologia de guerra”. A segurança que é, supostamente, exaltada (CARVALHO, 2014), encontra-se sob o gerenciamento de um verdadeiro Estado de exceção que prega as ideias de uma sociedade do risco. Assim, é possível afirmar que há evidências e características de um Estado de exceção dentro de uma sociedade que se diz democrática, havendo clara e sistemática violação a direitos de certos grupos. 1.3 Criminologia, política criminal e segurança pública Após a necessária explanação sobre modernidade e suas consequências – dentre as quais estão a extrema mudança de hábitos e costumes humanos, além da necessidade constante do consumo – e dos eventos ligados à violência e criminalidade na sociedade contemporânea, faz-se necessário também apontar o estudo específico do fenômeno criminoso. A Criminologia, como um conjunto de saberes derivados de outras ciências (como a Sociologia, a Filosofia e até mesmo a Psicanálise), presta-se a esse papel de análise, mas antes que a criminalidade, na sociedade brasileira, seja colocada em foco, é preciso compreender o nascimento dessa disciplina, assim como suas mais importantes alterações com o passar dos anos. 1.3.1 Criminologia e escolas do pensamento criminológico A origem etimológica do termo criminologia, conforme Penteado Filho (2016), é grega ( – crime; e crimino logos – estudo). A disciplina tem como seu objeto o estudo de processos de criminalização, mas passou por grandes mudanças desde que o termo foi utilizado em âmbito internacional no livro “Criminologia” (escrito por Rafael - -11 mudanças desde que o termo foi utilizado em âmbito internacional no livro “Criminologia” (escrito por Rafael Garófalo, em 1885). De modo geral, pode-se afirmar que a Criminologia tem sido responsável, de maneira interdisciplinar, por analisar o que é considerado crime, o autor do delito e sua personalidade, a vítima e o controle social das condutas positivadas criminalmente. A origem da Criminologia é, contudo, incerta. Apesar de boa parte dos autores compreender que a Criminologia como disciplina científica tenha surgido com os estudos de Garófalo e Lombroso (com o livro “O homem delinquente”, em 1876), há quem acredite haver a existência de resquícios de uma Criminologia ainda na Idade Média, sendo o livro “Malleus Maleficarum”, de 1487, considerado por alguns como um manual criminológico rudimentar, uma vez que era utilizado durante o período inquisitorial e continha informações sobre o processamento e julgamento de indivíduos considerados hereges e bruxas (KRAMER; SPRENGER, 2015). Não obstante, a Criminologia também não pode ser vista como uma disciplina indivisível, de modo que não se pode falar em Criminologia, mas em Criminologias. A principal divisão pode ser assim caracterizada: Quadro 1 - Divisões da Criminologia e suas vertentes. Fonte: Elaborado pelo autor, baseado em PENTEADO FILHO, 2016. Este capítulo apresenta o estudo de diversas vertentes da Criminologia, sendo que o tópico atual possui uma maior influência da Criminologia Crítica, por estar diretamente ligada a aspectos sociais da violência e da própria atuação estatal. Ainda sobre a gênese da disciplina criminológica, é preciso mencionar as diferentes escolas de pensamento a respeito das legislações criminais. A primeira linha de pensamento veio com a , muito embora ela nunca tenha existidoEscola Clássica propriamente (mas assim era denominada pelos positivistas). Conforme Penteado Filho (2016), era embasada pelas ideias iluministas que fizeram com que Cesare Beccaria redigisse a obra “Dos delitos e das penas” (1764). As ideias principais do pensamento de Beccaria estavam ligadas ao processo de humanização das ciências penais. Outros pensadores, como Francesco Carrara e Giovanni Carmignani, compartilhavam de seu pensamento. Penteado Filho (2016) ainda menciona que as bases teóricas para os clássicos se encontravam com o jusnaturalismo (a ideia do direito natural, eterno e imutável) e com o contratualismo (as noções trazidas por filósofos como Rousseau do contrato social). Apesar dessas teorias terem fundamentos contrários entre elas, - -12 filósofoscomo Rousseau do contrato social). Apesar dessas teorias terem fundamentos contrários entre elas, ambas surgiram como uma tentativa da burguesia em afastar o poder opressor do absolutismo, abordando a existência de sistemas normativos que fossem anteriores e até superiores à noção do Estado. São princípios fundamentais da Escola Clássica (PENTEADO FILHO, 2016) os listados a seguir. Clique para ver. • A ideia de que o crime é um ente jurídico, uma infração e não uma mera ação. • A punibilidade só pode ser baseada no livre-arbítrio. • A pena deve ter um necessário caráter retributivo pela culpa moral do infrator, prevenindo delitos posteriores e restaurando a ordem externa social. • O método e o raciocínio lógico-dedutivo. Pode-se concluir com a afirmação de que a Escola Clássica parte da noção de que o indivíduo é livre e racional, possível de tomar decisões por si mesmo e agir conforme sua consciência, acreditando na possibilidade de ter algum benefício com a ação delitiva. Por outro lado, a punição não pode ter um caráter meramente brutal. Deve ser proporcional ao delito praticado e com o intuito e a capacidade de prevenir futuras condutas delitivas. A , por sua vez, encontra suas raízes no século XIX, possuindo três fases distintas marcadasEscola Positivista cada uma por um expoente: a fase antropológica, marcada por Lombroso; a fase sociológica, por Ferri; e a jurídica, por Garófalo. Cesare Lombroso (1835-1909) foi responsável por publicar, no ano de 1976, o livro “O homem delinquente”, dando início ao período científico dos estudos criminológicos ao sistematizar os conhecimentos até então esparsos sobre delinquência e criminalidade. Considerado o precursor da Antropologia Criminal, muitas das ideias lombrosianas provinham de estudos da medicina, incluindo a ideia de muitos fisionomistas em traçar um perfil físico do indivíduo criminoso. A maioria das pesquisas realizadas por Lombroso ocorreram em manicômios e prisões e chegou a uma conclusão sobre o caráter atávico do chamado criminoso nato: ele seria um indivíduo que regredia a um estado primitivo. Nesse caso, a pessoa já nascia um criminoso, cuja degeneração era causada pela epilepsia. Assim, o crime não seria uma entidade jurídica, mas um fenômeno biológico, motivo pelo qual não havia outro método de análise senão o indutivo experimental (prevalecia o determinismo biológico). Muitas críticas foram dirigidas a Lombroso, uma delas derivava do fato de que muitos indivíduos vítimas de epilepsia não cometiam crimes. Havia também a crítica de uma total ausência de fatores sociais para a prática delituosa. O pensamento de (discípulo de Lombroso, 1856-1929) surgiu para responder, em partes,Enrico Ferri a essas questões. O crime agora não estava mais ligado somente a um determinismo biológico, mas a aspectos físicos, antropológicos e também culturais – surgiu então a disciplina que ficou conhecida como Sociologia Criminal. Ainda é preciso apontar, como um dos expoentes da Escola Positivista, (1851-1934),Rafael Garófalo responsável por afirmar que o crime se encontrava no próprio homem, revelando-se como uma forma de degeneração (PENTEADO FILHO, 2016). Foi esse pesquisador que cunhou o termo , responsávelpericulosidade por “medir” a porção que se deveria temer em um delinquente, concebendo a ideia de intervenção penal por meio da medida de segurança. Ele também dividiu a delinquência em nata (infratores instintivos); fortuita (ocasional); e por defeito moral (caso de assassinos violentos). Ao contrário da Escola Clássica, é possível citar como corolários da Escola Positiva os listados na interação a seguir. Clique para ver. Direito penal como uma obra humana, não derivada de uma fonte natural. • • • • - -13 A responsabilidade social decorrente de um determinismo social. Delito como fenômeno natural e também social. Pena como instrumento de defesa social. Utilização primordial de um método indutivo experimental. Crime, criminoso, pena e processo como objetos principais do estudo da ciência penal. Além disso, não pode ser deixada de lado a denominada (ou Escola Sociológica Alemã Escola de Política ), tendo como um de seus principais expoentes, responsável por ampliar os conceitosCriminal Franz von Lizst de criminologia (explicando as causas do delito) e penologia (as causas e efeitos da pena). Penteado Filho (2016) apresenta como principais postulados da Escola de Política Criminal os itens listados a seguir. Clique para ver. Método indutivo experimental para a criminologia – a metodologia de análise de casos particulares comumente utilizada nas ciências naturais. A distinção entre imputáveis e inimputáveis com penas para os criminosos “normais” e medida de segurança para os perigosos – havendo assim uma clara distinção entre o indivíduo “louco” e o criminoso consciente. A apresentação do crime como fenômeno humano-social e também como fato jurídico – a aceitação de que o crime é um fato comum ao convívio social e que deve ser tratado pelo Direito. A função finalística da pena (prevenção especial) – direcionada principalmente ao agente que comete a infração. A eliminação (ou substituição) das penas privativas de liberdade de curta duração – havendo uma maior justificativa para a aplicação de penas mais graves. Por mais que as principais escolas do pensamento criminal tenham abarcado ideias e conceitos que hoje são impensáveis dentro de um Estado de direito, é inegável a importância de seu estudo para que se possa compreender as mudanças na atualidade, pautadas no , uma corrente de pensamento queGarantismo Penal preza por um sistema de garantias imprescindível para a existência do próprio Estado democrático de direito. Para essa linha de pensamento (representada principalmente por ), os direitos fundamentaisLuigi Ferrajoli exercem um importante papel na limitação da atuação do poder estatal. O garantismo penal surge devido a necessidades específicas ligadas à crise do direito penal, sendo elas mostradas na interação a seguir (PENTEADO FILHO, 2016): A deslegitimação do sistema penal como um todo – sendo que ele se encontrava em crise devido à incapacidade geral de coibir as atividades criminosas. A existência clara de uma ligação entre o sistema penal e o sistema econômico – havendo, portanto, a aceitação de razões econômicas para a prática criminosa, bem como um sistema seletivo de punição. A contradição existente entre um sistema jurídico de caráter liberal e o processo contemporâneo de encarceramento – não sendo mais aceitável que um sistema garantidor de direitos tivesse como uma de suas consequências o hiperencarceramento (com todas as suas mazelas). Há uma dupla função do garantismo: uma prevenção geral negativa, capaz de coibir a prática de delitos pelos indivíduos, e uma prevenção de penas arbitrárias que sejam exercidas por particulares (e também de penas injustas realizadas pelo poder público). A análise garantista, no que pese sua complexidade teórica e finalidades pautadas na observância de direitos e - -14 A análise garantista, no que pese sua complexidade teórica e finalidades pautadas na observância de direitos e garantias fundamentais, não está livre de críticas, de forma que, em relação à ideia de prevenção geral, não se possui comprovação estatística de que a mera ameaça de punição seria eficaz, por si só, para reduzir o número de cometimento de delitos. Não obstante, a tentativa de impedir as punições arbitrárias encontra grande dificuldade, sendo, portanto, uma função inconsistente, tendo em vista as chamadas cifras ocultas – que são os crimes não solucionados ou não punidos, números não considerados oficialmente. O sistema penal é, em si, uma máquina deficiente, de modo que inúmeras situações descritas e positivadas como delitos ficam à sua própria margem, sem qualquer interferência estatal. Recorda-se ainda que muitas vezes as chamadas reações arbitrárias são causadas pelo próprio processo de criminalização de uma conduta (BARRETO, 2016). Além das escolas apresentadas, outrasescolas de pensamento têm ganhado força nos últimos anos. O , encabeçado por , tem como objetivo justificar os institutos do Direito PenalFuncionalismo Penal Claus Roxin por meio de suas funções político-criminais, com o intuito de reduzir as fronteiras existentes entre a política criminal e a própria dogmática jurídico-penal para que se possa efetivamente chegar aos fins do direito. A pena tem, portanto, a tarefa de tornar estáveis as expectativas existentes no meio social (BARRETO, 2016). Já o , que surgiu na segunda metade do século XX no norte da Europa e tem se disseminadoAbolicionismo Penal no restante do Ocidente, tem como base o paradigma criminológico do , ou teoria dolabeling approach etiquetamento (proveniente da ideia de reação social), responsável pela virada criminológica (criminological ) ao compreender não ser um fator determinante o estudo do criminoso em si, nem mesmos de suasturn motivações. Para essa teoria é preciso, primeiramente, realizar um estudo a respeito da própria natureza e definição do que seria um delito. Barreto (2016) aponta duas correntes derivadas do próprio abolicionismo. O Abolicionismo Fenomenológico, de , prega a abolição do sistema penal devido a: 1) ocasionamento de sofrimentos desnecessáriosLouk Hulsman repartidos injustamente na sociedade; 2) ausência de efeito positivo sobre os indivíduos envolvidos nos conflitos; 3) dificuldade na manutenção do controle sobre tais indivíduos. Propõe o autor uma espécie de substituição do sistema penal por instâncias intermediárias de solução de conflitos, com o fulcro de atender às necessidades reais das partes envolvidas. Já o abolicionismo de , de derivação marxista, compreende o sistema penal como umThomas Mathiesen produto de uma estrutura produtiva capitalista. Mathiesen não defende apenas a abolição do sistema penal, mas de todas as estruturas repressivas existentes na sociedade (BARRETO, 2016). VOCÊ QUER VER? O filme , com direção de Juan José Campanella, trata de umO segredo dos seus olhos importante aspecto do Direito Penal: a vingança. Um dos personagens, Benjamin, relata o momento em que foi designado para investigar o estupro e assassinato de uma jovem, momento em que conhece Ricardo, marido da garota falecida e a quem promete encontrar o responsável pelos atos. O filme é considerado por muitos criminólogos como um verdadeiro tratado sobre a punição, trazendo à tela diferentes versões e perspectivas do que seria o ato violento, sendo que “crime” é apenas uma dessas perspectivas apontadas. Além disso, o filme traz a discussão da necessidade de existência de um direito penal e da suposta importância do Estado como o único regulador das atitudes de uma sociedade. - -15 Apesar do pensamento garantista atual, bem como das demais correntes voltadas para a redução da criminalidade e à observância de garantias fundamentais, nota-se, não somente no Brasil, uma quantidade considerável de políticas públicas direcionadas aos processos de criminalização. Como mencionado, as políticas de lei e ordem têm ganhado força, ainda que tenham caminhado em um sentido contrário ao dos representantes da criminologia atual, pautando-se em uma lógica do risco. 1.3.2 Teorias criminológicas e segurança pública O distanciamento entre a ação estatal nas políticas públicas e ideias criminológicas críticas atuais é bem evidente. Isso pode muito bem ser representado pela lógica da gestão penal nas últimas décadas, que não apenas fomentou a discriminação e segregação de determinados segmentos sociais, como também foi responsável por criar, na concepção social, a ideia do condenado pelas instâncias penais como um inimigo, um . Dieteroutsider (2013) relembra que, como foi apontado pela crítica criminológica, cada modo de produção possui formas específicas de punição e encarceramento adequadas à sua reprodução e a seu desenvolvimento. Dessa maneira, se na gênese do Estado capitalista era necessário que os encarcerados sofressem um constante processo de “docilização” para que formassem a principal mão-de-obra para o desenvolvimento desse modo de produção (conforme apontado por Foucault (2012)), atualmente, com o excesso dessa mão-de-obra, dentro da sociedade contemporânea nasceu um crescente grupo de indivíduos não só incapazes de reproduzir essa execução de trabalho, como também inaptos até mesmo para o consumo. Menciona-se, como exemplo dessas “novas” políticas de segurança pública, as análises de risco de reincidência nos Estados Unidos (política criminal atuarial) realizadas já no início do século XX. Em cada preso era realizada uma análise para pontuar sua possível reincidência, mas os quesitos utilizados apenas serviam para estabelecer uma rotulação segregadora, tendo em vista que entre os quesitos analisados estavam: tabagismo; falta de ocupação lícita; prática de religião não-cristã; uso de drogas; e pais com antecedentes criminais (DIETER, 2013). A crítica a esse tipo de política é uma crítica direta ao pensamento pautado no neoconservadorismo americano e a ideias como a teoria das janelas quebradas, elaborada por expoentes da Escola de Chicago, como James Q. Wilson. VOCÊ QUER LER? O livro “Antimanual de criminologia”, de Salo de Carvalho, é uma obra útil para docentes e alunos que pretendem se aprofundar nos estudos criminológicos. Salo de Carvalho aponta, com suas pesquisas, para a contradição inerente ao sistema penal, que atualmente é responsável por realizar o oposto de seu escopo oficial: a segurança da sociedade e a proteção de bens jurídicos. - -16 Diante das atuais circunstâncias relacionadas à criminalidade na sociedade, muitos autores, principalmente aqueles vinculados aos estudos da criminologia crítica, vêm trazendo opções (ou soluções) não necessariamente criminais, no intuito de efetivamente reduzirem a prática de crimes, bem como de impedir o aumento da violência. Tem-se como exemplos dessas opções as políticas de descriminalização de certas condutas, como o consumo e venda em menor quantidade de entorpecentes (sendo a punição substituída por uma política de redução de danos) e a aplicação de penas alternativas para delitos considerados menos graves, impedindo, assim, que um condenado considerado de baixa periculosidade acabe sendo “contratado” pelas grandes organizações criminosas que atuam dentro de presídios. Desse modo, também seria reduzida a população carcerária e facilitados o controle da instituição prisional e a aplicação das diretrizes trazidas pela Lei de Execução Penal, Lei n. 7.210 (BRASIL, 1984). Figura 5 - Apontamentos das diferenças entre as políticas punitivas e políticas de redução de danos no que diz respeito ao uso de entorpecentes. Fonte: Elaborado pelo autor, baseado em GUADANHIN; GOMES, 2017. Ganha força também o debate relacionado à justiça restaurativa, tida como uma técnica de solução de conflitos que tem como objetivo a sensibilidade durante a escuta não somente das vítimas como também dos ofensores. Trata-se de uma técnica incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Protocolo de Cooperação para a Difusão da Justiça Restaurativa (CNJ, 2014). VOCÊ SABIA? A , fundada pela Escola de Chicago (DIETER, 2013), postula queteoria das janelas quebradas se a janela de um carro ou edifício for quebrada e for rapidamente reparada, há a tendência de que o edifício ou carro sofrerão novos estragos. Assim, qualquer ato mínimo de vandalismo deveria ser punido, para que não piore o “nível de criminalidade” em um determinado local. - -17 1.4 Seletividade penal: Poder Executivo e Poder Judiciário Alessandro Baratta (2011), influenciado pela perspectiva da Sociologia do conflito de Austin T. Turk, definiu, em “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal”, a criminalidade como um social atribuído a um indivíduostatus por aquele que detêm o poder de definição (Estado). Esse indivíduo acaba então por se tornar revestido de uma condição: a de violador de uma norma. A visão mencionada do sistema criminal como o criador de seus próprios alvos ganhou força dentro do campo de estudocriminológico. O sistema penal não é mais analisado como um conjunto inerte de normas sociais, pelo contrário, é mais um sistema dinâmico de funções com três importantes características: 1) seu mecanismo de produção de normas, responsável pela criminalização primária (legal); 2) seu mecanismo de aplicação das normas, o processo penal em si (do inquérito policial ao julgamento pelo magistrado); 3) o mecanismo de execução penal ou de medidas de segurança (BARATTA, 2011). É preciso deixar claro que o direito penal não defende todos e também não defende somente os bens ditos essenciais, não obstante, quando pune as ofensas aos bens que diz proteger o faz com desigual intensidade e de forma fragmentária. Não somente isso, a lei penal não é igual para todos os indivíduos: ocorre uma distribuição desigual do de criminoso na sociedade.status De igual forma ao que foi exposto por Alessandro Baratta, Juarez Cirino dos Santos (2006) entende que a definição legal do crime está intimamente ligada à ideologia de uma suposta neutralidade do Direito como mera ferramenta de justiça social, quando em verdade atua realizando o controle das vítimas da exploração e opressão social, ou seja, dos marginalizados socialmente. 1.4.1 O papel decisivo do Poder Judiciário É possível comprovar não somente a atuação seletiva por meio da atuação das polícias, mas também do Poder Judiciário. Isso se torna possível ao se analisar o contingente carcerário no Brasil. Percebe-se uma atuação racista do Poder Judiciário ao analisar determinados casos relacionados à aplicação de determinadas legislações. Adotando a categoria negro (o que inclui pretos e pardos), é possível concluir que dois terços da população encarcerada brasileira é negra. Segundo relatório do Ministério da Justiça, em todas as regiões da Federação existe uma sobrerrepresentação do negro na população prisional. Ou seja, a proporção de pessoas negras encarceradas é sempre maior do que a proporção de pessoas negras na população da região (CARVALHO, 2015). Salo de Carvalho (2015) traz uma série de exemplos, entre eles, a aplicação da Lei n. 8.072, a Lei de Crimes Hediondos (BRASIL, 1990). O autor aponta a demora de mais de 15 anos para que o Supremo Tribunal Federal decretasse inconstitucional o dispositivo da legislação que determinava o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, algo cabalmente inconstitucional desde sua essência, contribuindo, assim, para o aumento do encarceramento nacional. - -18 Figura 6 - Para Salo de Carvalho (2015), o Poder Judiciário exerce uma importante contribuição para o encarceramento da juventude negra e pobre da sociedade brasileira. Fonte: oneword, Shutterstock, 2018. No que diz respeito à Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, é importante mencionar que caberia ao Judiciário a definição de diretrizes básicas de imputação, a criação de certos guias de interpretação para restringir a vagueza e ambuiguidade da legislação, responsáveis por provocar o encarceramento massivo da juventude negra das periferias. Carvalho (2015) menciona ainda os crimes patrimoniais sem violência, que somam mais de cem mil pessoas, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional. Interessante mencionar que há inúmeros dispositivos de tutela das elites que permitem que o condenado pelo crime contra o erário se isente de pena em caso de devolução dos valores devidos. Os crimes contra o patrimônio público, nesse sentido, sequer constam nas estatísticas carcerárias nacionais. Também deve-se ressaltar que não há quaisquer óbices à extinção da punibilidade na legislação pelo pagamento do tributo nos casos de reincidência (tratando-se, claramente, dos crimes comumente associados às elites econômicas brancas). Ainda assim, conforme mencionado por Carvalho (2015), soou um escândalo nos meios jurídicos quando determinadas cortes cogitaram a possibilidade de uma aplicação analógica de causa de extinção de punibilidade nos casos em que o autor do crime patrimonial não violento indenizava ou restituía a coisa à vítima. Foi admitido, para esses casos, no máximo uma aplicação de uma causa especial de diminuição de pena – vinculada ao arrependimento posterior no artigo 16, do Código Penal (BRASIL, 1940) – ou da utilização da atenuante do artigo 65, III, b, do mesmo código. - -19 Síntese O capítulo chega ao seu fim, tendo sido abordados os principais temas relacionados a assuntos como modernidade e contemporaneidade; violência e processos de criminalização. O capítulo teve como objetivo apontar como as mudanças atuais da modernidade e o discurso da insegurança e do risco têm sido responsáveis por intensificar um já violento processo de criminalização que, ao contrário de corroborar com a redução da criminalidade, presta-se somente a um processo cada vez maior de exclusão das camadas periféricas da sociedade. Neste capítulo, você teve a oportunidade de: • entender os diferentes conceitos de modernidade e como esse assunto é abordado por renomados autores da Sociologia britânica; • distinguir os conflitos contemporâneos e conflitos típicos da modernidade; • compreender a complexidade da relação entre criminalidade e violência na contemporaneidade; • reconhecer os processos de seletividade penal; • enumerar casos em que a atuação do Poder Judiciário tem corroborado para os atuais processos de exclusão; • formular críticas às práticas contemporâneas de segurança pública vinculadas à seletividade penal. Bibliografia ADORNO, S. Riqueza e violência no cenário brasileiro. In: FERRAZ JÚNIOR, T. S.; SALOMÃO FILHO, C.; NUSDEO, F. (Orgs.). : direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri: Manole, 2015. p. 121-133.Poder econômico BARATTA, A. : introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio deCriminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Janeiro: Revan, 2002. BARRETTO, A. S. Uma análise crítica do sistema garantista de Luigi Ferrajoli ante o abolicionismo de Louk Hulsman. , São Paulo, n. 21, p. 91-109, jan./abr. 2016.Revista Liberdades BAUDRILLARD, J. . São Paulo: Edições 70, 2008.A sociedade do consumo BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. ______. . Rio de Janeiro: Zahar, 2007.Vida líquida BECK. . Rio de Janeiro: Editora 34, 1986.Sociedade de risco BRASIL. . Código Penal. Disponível em: <Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 12/12/2018. ______. . Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 http://www. planalto.gov.br/ccIVIL_03/leis/L7210.htm>. Acesso em: 12/12/2018. ______. . Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, incisoLei n. 8.072, de 25 de julho de 1990 XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/LEIS/L8072.htm>. Acesso em: 12/12/2018. ______. . Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas -Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 12/12/2018. CARVALHO, S. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2015. ______. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. In: • • • • • • http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/leis/L7210.htm http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/leis/L7210.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm - -20 ______. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. In: , Belo Horizonte, n. 67, p, 623-652, jul./dez. 2015.Rev. Fac. Direito UFMG CARVALHO, T. F. 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