Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Livro do Professor Sociologia Volume 7 © Editora Positivo Ltda., 2015 Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) (Maria Teresa A. Gonzati / CRB 9-1584 / Curitiba, PR, Brasil) Presidente: Ruben Formighieri Diretor-Geral: Emerson Walter dos Santos Diretor Editorial: Joseph Razouk Junior Gerente Editorial: Júlio Röcker Neto Gerente de Arte e Iconografia: Cláudio Espósito Godoy Autoria: Flávia Regina Marchiori Oganauskas e Gabriel Cardeal Oganauskas Supervisão Editorial: Jeferson Freitas Edição de Conteúdo: Lysvania Villela Cordeiro (Coord.), Leonardo Carbonieri Campoy e Wilma Joseane Wünsch Edição de Texto: Paulo Cezar Migliozzi Paiva Revisão: Fernanda Marques Rodrigues, Mariana Bordignon e Priscila Rando Bolcato Supervisão de Arte: Elvira Fogaça Cilka Edição de Arte: Cassiano Darela Projeto Gráfico: YAN Comunicação Ícones: ©Shutterstock/ericlefrancais, ©Shutterstock/Goritza, ©Shutterstock/style-photography, ©Shutterstock/Myvector, ©Shutterstock/Chalermpol e ©Shutterstock/CoraMax Imagens de abertura: ©Shutterstock/NattapolStudiO e ©iStockphoto.com/Chris Schmidt Editoração: Debora Cristina Vilar Scarante Ilustração: DKO Estúdio Pesquisa Iconográfica: Janine Perucci (Supervisão) e Júnior Guilherme Madalosso Engenharia de Produto: Solange Szabelski Druszcz Produção Editora Positivo Ltda. Rua Major Heitor Guimarães, 174 – Seminário 80440-120 – Curitiba – PR Tel.: (0xx41) 3312-3500 Site: www.editorapositivo.com.br Impressão e acabamento Gráfica e Editora Posigraf Ltda. Rua Senador Accioly Filho, 431/500 – CIC 81310-000 – Curitiba – PR Tel.: (0xx41) 3212-5451 E-mail: posigraf@positivo.com.br 2018 Contato editora.spe@positivo.com.br Todos os direitos reservados à Editora Positivo Ltda. O34 Oganauskas, Flávia Regina Marchiori. Sociologia : ensino médio / Flávia Regina Marchiori Oganauskas, Gabriel Cardeal Oganauskas ; ilustrações DKO Estúdio. – Curitiba : Positivo, 2016. v. 7 : il. Sistema Positivo de Ensino ISBN 978-85-467-0394-4 (Livro do aluno) ISBN 978-85-467-0395-1 (Livro do professor) 1. Sociologia. 2. Ensino médio – Currículos. I. Oganauskas, Gabriel Cardeal. II. DKO Estúdio. III. Título. CDD 373.33 13 14 Sumário Violência e criminalidade ............................ 4 Violência urbana .................................................................................................. 5 Segregação socioespacial .................................................................................... 8 Criminalidade e corrupção ................................................................................. 13 Criminalidade e poder disciplinar ............... 18 Crime, desvio e controle social ........................................................................... 19 Sociedade disciplinar: vigiar e punir .................................................................. 22 Acesse o livro digital e conheça os objetos digitais e slides deste volume. Violência e criminalidade 13 1. Quais são as causas da violência? 2. Será que a nossa sociedade tem se tornado mais violenta? 3. A criminalidade tem relação com a pobreza ou com a desigualdade social? 4. Será que estamos seguros trancados em espaços privados? 1 Quais são as causas da violência? Ponto de partida 1 Getty Images/Bert Klassen 4 Violência urbana A violência é um assunto bastante comum em nosso cotidiano e está presente na vida de qualquer cidadão que resida em grandes ou pequenas cidades, em áreas urbanas ou rurais. O tema "violência" é recorrente em noticiários e programas de televisão, artigos na internet, discursos políticos, filmes, seriados, novelas, músicas e até mesmo nas conversas com vizinhos, amigos e familiares. Em meio à quantidade de informações que circula sobre violência, tornou-se comum o sentimen- to generalizado de medo e insegurança entre a população. Por vezes, esses sentimentos se desdobram em iniciativas particulares de pro- teção, como a instalação de muros altos, cercas eletrônicas e alarmes, assim como a contratação de empresas privadas de vigilância. Tudo pa- rece indicar que a violência tem tomado conta de nossas vidas. Mas será mesmo que vivemos em um mundo mais violento? Orientação didática.2 Organize as ideias O mundo nunca foi tão pacífico Quem reclama do flagelo do trânsito não se lembra de que esse era o nome do látego que cortava a carne dos escravos. Vivemos cercados pelos sinais da perversidade do modo de vida de nossos antepas- sados, mas quase não nos apercebemos deles. Assim como viajar amplia nossos horizontes mentais, uma excursão pelos significados literais da nossa herança cultural pode nos acordar para o quanto as coisas eram feitas de outro modo no passado. Em um século que começou com o ataque terrorista do Onze de Setembro nos Estados Unidos, a Guer- ra do Iraque e o genocídio de Darfur, dizer que estamos vivendo em uma época incomumente pacífica pode parecer uma alucinação obscena. PINKER, Steven. Os bons anjos da nossa natureza: por que a violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Segundo o psicólogo e neurocientista Steven Pinker, não houve um período mais pacífico na história do que os últimos 100 anos. Como você interpreta a afirmação de Pinker? Com base em seus conhecimentos sobre o passado, considera que vivemos um período mais pacífico da história ou nos encontramos numa escalada cada vez maior de violência? látego: chicote de couro ou corda. Orientação didática.3 Objetivos da unidade: compreender o papel do Esta- do como detentor do monopó- lio legítimo da força física; problematizar a relação entre desigualdade social e segrega- ção socioespacial; desconstruir a noção de senso comum que vincula pobreza e criminalidade; demonstrar a relação entre corrupção e criminalidade. Objetivos da unidade: d l d E t O surgimento do Estado moderno ocorreu em meio ao contexto de transição do feuda- lismo para o capitalismo, na Europa ociden- tal, entre os séculos XII (caso de Portugal) e XVIII (casos de Alemanha e Itália). Carac- teriza-se pela centralização das atividades administrativas e pela determinação de mé- todos burocráticos para toda prática social. Para respondermos a tais questões, devemos primeiro compreender como se estabeleceu, historicamente, a relação entre Estado e violência. Uma impor- tante contribuição acerca de tal relação é a do sociólogo alemão Max Weber. Ele aponta o surgimento do Estado moderno como instituição que detém não apenas o monopólio do poder jurídico-político, mas também o monopólio do uso da força legítima. Para o autor, o Estado moderno passou a ser responsável pela elaboração de leis e normas, determinando condutas permitidas e proibi- das. Ao mesmo tempo, passou a deter o poder de coação física e simbólica dos indivíduos. O Estado seria, portanto, a instituição responsável por impedir ou reprimir as formas ilegais ou ilegítimas de violência. 5 O sociólogo alemão Norbert Elias aponta que, conforme o Estado mo- derno assumia o monopólio da força legítima, também contribuía para a di- minuição drástica nos índices de violência da sociedade ocidental. Isso tudo porque, ao concentrar o monopólio da força, o Estado impedia que as pessoas recorressem à violência como forma de resolução dos conflitos particulares. Considere um caso de furto, por exemplo. Se antes o indivíduo podia tentar resolver esse assunto com o uso de sua própria força física, agora ele depende do Estado para intermediar tal conflito particular, necessitando da atuação policial e judicial. Ou seja, o indivíduo perdeu o direito de “fazer justiça com as próprias mãos”, e essa atribuição passou a ser exclusiva do Estado, por meio de seu sistema judiciário. Por esse motivo, afirma-se que vivemos em um Es- tado de Direito. Diante de tal situação, de modo gradativo os indivíduos começaram a refrear seus impulsos e emoções, por meio da aprendizagem do autocontrole e da internalização de comportamentos menos agressivos.Essas transformações Norbert Elias denomina processo civilizador (ver Conceitos sociológicos). Para ele, nem sempre fomos dóceis e gen- tis. Se pudéssemos ser transportados para o Período Medieval, provavelmente ficaríamos surpresos com a violência em alguns lugares. Afinal, não existiam instituições punitivas que impedissem atrocidades como saques, estupros e assassinatos. Além disso, era comum o uso de medidas como marcar a pele do rosto com ferro quente ou ainda cortar partes do corpo, como uma orelha ou o nariz, para que todos pudessem identificar um criminoso. Elias argumenta que o processo de pacificação da sociedade somente se tornou possível após a centralização política com a formação dos Estados Nacionais Modernos. Com a diminuição dos índices de violência, a aversão a atos hostis entre os indivíduos passou a se disseminar, bem como formas mais pacíficas de convivência social. O sociólogo alemão Norbert Elias (1897- 1990) escreveu em 1939 o livro O processo civilizador. Nele, interpreta o processo civilizador no Ocidente com base na ótica da Sociologia, História e Psicologia. Atitude sociológica Justiça com as próprias mãos Nu, orelha cortada com faca, marcas de espancamento no corpo, amarrado pelo pescoço em um poste na Avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Assim foi encontrado um adolescente negro, “acusado” de praticar furtos na zona sul carioca. [...] Depois de ter sido socorrido pelos bombeiros, que removeram a trava de bicicleta que o prendia, o adolescente contou ter sido abordado por três homens que se denominaram “Os Justiceiros” e usavam motos. Em nome da “justiça”, o trio espancou o jovem com uma facada na orelha. Depois, tiraram a sua roupa e o amarraram ao poste. BELCHIOR, Douglas. Menino negro é espancado e amarrado nu em poste na zona sul do Rio. Carta Capital. Blog Negro Belchior. 4 fev. 2014. Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/02/04/menino-negro-e-espancado-e-amarrado-nu-em-poste-na-zona- sul-do-rio/>. Acesso em: 5 maio 2015. A notícia relatada apresenta um desrespeito aos direitos humanos e ao Estado de Direito? Por quê? Sim. A partir do momento em que a violência só pode ser usada legitimamente pelo Estado, então seu uso por particulares passa a ser expressamente ilegítimo ou proibido. O Estado, dessa maneira, passa a ser o mediador de todo e qualquer conflito existente entre qualquer classe de cidadãos. A violência privada é ilegítima. Orientação didática.4 © Ist itu to d i G ru pp oa na lis i d i B ol og na / Fo tó gr af o de sc on he ci do 6 Volume 7 Os órgãos responsáveis pela segurança pública têm o dever constitucional de garantir a integridade e os direitos dos cidadãos e preservar a ordem pública. Por vezes, as carências estruturais do Estado e a ineficiência de políticas públicas preventivas e de caráter social criam situações de enfrentamento. Nesses casos, as forças policiais são utilizadas como aparato de repressão. Como definir o conceito de violência? Devemos considerar que o Estado moderno estabeleceu para si o dever de manutenção da ordem e da segurança pública. Para tanto, dispõe do uso da força física como mecanismo legítimo de atuação. Logo, podemos concluir que a violência seria, portanto, o emprego da força física sem legitimidade, isto é, sem o controle do Estado. Tal concepção ainda é percebida na própria etimologia da palavra “violência”, que deriva do latim violentia. Ela faz referência ao abuso da força ou mesmo força que se usa contra o direito e a lei. Daí, é possível perceber a distinção entre aqueles que podem praticar a violência “em nome do Estado” e aqueles que a praticam “sem a permissão do Estado”. A violência, sob todas as formas de suas inúmeras manifestações, pode ser considerada como um avis, vale dizer, como uma força que transgride os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. Em outras palavras, a violência, sob todas as suas formas, desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e de deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto. ROCHA, Z. Paixão, violência e solidão: o drama de Abelardo e Heloísa no contexto cultural do século XII. Recife: UFPE, 1996. p. 10. Uma questão que surge no Estado moderno é que nem sempre os seus representantes utilizam a força de forma adequada. Há abuso de poder em benefício de interesses privados ou excessos, com a finalidade de conter a crimi- nalidade. Em tais situações, o privilégio do uso da força acarreta desigualdades no tratamento dos conflitos sociais. O principal agente, mas não o único, envolvido nessas circunstâncias é a polícia. Na maioria das vezes, esse é o agente do Estado responsável por garantir a segurança, ao cumprir ordens de membros do Executivo (presidente, governadores e seus ministros e secretários) como também decisões do Judiciário (juízes e desembargadores). A violência urbana se refere a uma multiplicidade de conflitos sociais vinculados ao modo de vida nos centros ur- banos e que podem ter motivações distintas. Podem ser citados atos de vandalismo, assaltos, brigas de torcidas, desor- dens públicas e outras manifestações – ações criminosas individuais ou de grupos. Trata-se, portanto, de um conceito amplo, que aborda uma série de conflitos cotidianos que geram sentimentos compartilhados de medo e insegurança na população. Por isso, pode-se dizer que a violência urbana é uma realidade vivenciada pela maioria dos brasileiros, em particular por aqueles que moram nas médias e grandes cidades. Diante disso, tem-se a percepção de que deter- minados espaços urbanos são mais suscetíveis à violência, enquanto outros espaços são considerados mais seguros para o trabalho, o lazer, a moradia, etc. Essa classificação dos espaços com base em critérios socialmente estabelecidos é denominada segregação socioespacial. © Ag ên ci a Br as il/ Ro ve na R os a © Pu lsa r I m ag en s/ Lu ci an a W hi ta ke r Sociologia 7 Atitude sociológica Na charge, quais relações são estabelecidas entre a ár- vore, localizada nos jardins de uma casa luxuosa, e as raízes que a sustentam? Como essas relações podem ser responsabilizadas pela violência urbana atual? Sugestão de resposta.5 Segregação socioespacial Entre as décadas de 1930 e 1980, a sociedade brasileira sofreu diversas transformações. A mais drástica delas foi a transição de uma economia agrário-exportadora para um modelo urbano-industrial. Nesse processo, a intensa in- dustrialização, associada ao êxodo rural e à urbanização acelerada, propiciou o surgimento de espaços urbanos dife- renciados. Criou-se assim uma distinção social entre bairros, empreendimentos comerciais e residenciais. Embora se observe o intenso fluxo de capital, serviços e bens de consumo nos espaços urbanos, os investimentos públicos em infraestrutura foram – e ainda são – concentrados em áreas ocupadas pela população de maior renda. Enquanto isso, as classes sociais menos favorecidas se estabeleceram em espaços precários, periféricos e desprovidos dos serviços sociais mais básicos. O avanço das desigualdades sociais nas cidades bra- sileiras incide de maneira direta na organização espacial, produzindo uma apropriação desigual dos espaços ur- banos pelas diferentes classes sociais. Esse fenômeno é denominado segregação socioespacial (ver Conceitos sociológicos). Tal processo inicialmente se estruturou nas cidades brasileiras tendo como base a relação entre o centro e a periferia. Assim, até o início da década de 1980, era comum uma organização espacial das cidades que separava geograficamente diferentes grupos sociais: as classes média e alta de um lado e as classes menos favo- recidas de outro. Enquanto aquelas ocupavam os bairros centrais, desfrutando de melhor infraestrutura urbana, estas habitavamas regiões periféricas, menos acessíveis e equipadas. Orientação didática.6 A favela de Paraisópolis é uma das maiores da cidade de São Paulo. O bairro do Morumbi faz divisa com essa favela e gera situações de contraste social, como a que sugere a foto. © An ge li – Fo lh a d e S. P au lo 1 1. 01 .2 00 7 Pu lsa r I m ag en s/ De lfi m M ar tin s 8 Volume 7 Tal modelo de urbanização foi sendo substituído de forma gradativa, a fim de diminuir a distância física entre ricos e pobres. Entretanto, mesmo que diferentes grupos sociais se encontrem es- pacialmente mais próximos, esses são separados por outras barreiras, como muros, tecnologias de segurança, sistemas de identificação e controle. Além delas, há também as barreiras materiais e simbólicas, tais como a desigualdade de acesso aos investimentos públicos e as formas de marginalização social. As barreiras materiais são instituídas no fato de que, enquanto alguns grupos sociais usufruem amplamente das infraestruturas urbanas (esgoto, saneamento, iluminação pública, coleta de lixo, instituições de ensino, postos de saúde, parques e áreas recrea- tivas, segurança pública, etc.), outros, estabelecidos em regiões periféricas ou em favelas, não recebem os mesmos recursos e investimentos dos poderes públicos. As barreiras simbólicas são fundadas em diversas categorias preconceituosas, que estipulam distinções rigorosas entre as classes sociais, por exemplo a estigmatização das camadas populares, decorrente da associação entre pobreza e criminalidade. Ou seja, existe uma rotulação, estabelecida no senso comum e muitas vezes pela mídia, de que a fa- vela e a periferia são espaços dominados pela criminalidade e insegurança e que devem ser controlados por meio da intervenção e repressão estatal. Ao contrário do que é disseminado como senso comum, não são apenas as ocupações irregulares que explicam os índices mais altos de violência. Trata-se, na realidade, de uma questão mais complexa, que envolve uma série de variáveis, articuladas em torno de uma estrutura social desigual e injusta. Nessa estrutura, verificam-se a escassez de oportunidades culturais, esportivas e sociais, a ausência de empregos, o baixo grau de escolaridade, a escassez de políticas públicas que diminuam a desigualdade social, a falta de investimentos em infraestrutura urbana, habitação, saúde pública, etc. Embora a violência urbana tenha aspecto multifatorial, centrada na desigualdade social, é comum as ações dos po- deres públicos priorizarem políticas de controle e repressão social. Tal compreensão deriva das representações sociais negativas quanto às favelas, centradas na noção de que tais locais são o foco de diversos problemas sociais. Em suma, parece existir na sociedade uma dissociação entre favela e cidade formal. A favela é vista como aglomerado invasor, espaço da violência, do crime e da ilegalidade. Afinal, foi a negligência dos poderes públicos nas áreas com moradores de menos recursos que encorajou o surgimento, nesses lugares, de poderes paralelos ao Estado. A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, é a maior favela da América Latina, com quase 70 mil moradores. Historiadores apontam as origens das favelas ainda n o século XIX. Os poderes públicos passaram a destruir cortiços, ha bitações con- sideradas antissanitárias, e a proibir a construção de les. Diante de tais proibições, no início do século XX, a população residente dos antigos cortiços foi ocupar irregularmente as regiõe s dos morros cariocas, em particular o morro da Providência. Ess e morro tam- bém foi ocupado por soldados remanescentes da G uerra de Ca- nudos, que não receberam o soldo prometido pelo governo. Eles passaram a chamar o morro da Providência de “ favella”, uma planta bastante comum no estado da Bahia, local o nde se deu o conflito de Canudos. A partir de então, os aglomerad os de casebres sem arruamento ou sem acesso aos serviços público s começaram a se multiplicar pela cidade do Rio de Janeiro. ©Wikimedia Commons/chensiyuan Sociologia 9 Atitude sociológica A charge faz menção a dados relativos ao Censo do IBGE de 2010 sobre os chamados aglomerados subnormais ou, em outras palavras, as favelas. Ao apontar os benefícios conquistados por essas comunidades e as carências que ain- da persistem, o que a charge permite interpretar? Houve algum processo de inclusão? Em que medida as populações que residem nesses espaços ainda permanecem excluídas? Diante de tal situação, surge no imaginário da população a associação entre as favelas e o tráfico de drogas; isso, não ra- ras vezes, serve de justificativa para a violência contra os seus moradores. Nesse sentido, os moradores de favelas, periferias e áreas pobres enfrentam cotidianamente o estigma de serem tratados como criminosos. Esse estigma dificulta a inserção deles no mercado de trabalho e o acesso aos bens essenciais à vida. Desse modo, é possível concluir que as favelas e as regiões periféricas são vítimas não apenas de uma violência estrutural, tendo em vista que sofrem as desigualdades sociais acima descritas, mas de uma violência simbólica, em razão do preconceito e da marginalização social. Outro aspecto a ser superado é o entendimento de que as favelas são aglomerados urbanos homogêneos, carac- terizados pela pobreza absoluta de seus moradores, que seriam também desprovidos de valores sociais. Embora haja pobreza, isso não significa dizer que se trata de um espaço onde não existam valores como solidariedade, relações de trabalho, etc. Além do mais, não se trata de um espaço alheio ou externo à cidade. Pelo contrário, as favelas fazem parte das dinâmicas urbanas, na medida em que se constata a circulação de pessoas, bens e serviços. Segundo dados do instituto de pesquisa Data Favela, em 2015, a população residente em favelas no Brasil era de aproximadamente 12,3 milhões de pessoas, que movimentam cerca de R$ 68,6 bilhões por ano. Sugestão de resposta.7 © Br un o Ga lv ão 10 Volume 7 Atitude sociológica É próprio da sociologia “desconstruir” noções que, a princípio, são dadas como naturais. Dito de outro modo, ela contribui para pensar como algumas noções que temos a respeito das coisas foram e são construídas socialmente, opondo-se à ideia de “naturalização” das relações sociais, que apregoa que “as coisas sempre foram assim”, destituindo dos indivíduos o seu papel na construção das “coisas como elas são”. FACHINETTO, Rochele Fellini. Juventude e violência: onde fica o jovem numa sociedade “sem lugares?” IN: ALMEIDA, Maria da Graça Blaya (Org.). A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Partindo do pressuposto acima, reflita sobre as questões a seguir: • A violência é sentida por todos os grupos de brasileiros na mesma intensidade? Justifique a sua resposta. • A estigmatização das populações que habitam bairros pobres e favelas é recente na história brasileira? Como se deu esse processo? Sugestão de encaminhamento da atividade e sugestão de gabarito.8 Ao questionar a correlação entre pobreza e criminalidade, o sociólogo brasileiro Michel Misse argumenta que, se a pobreza fosse a causa da criminalidade, a maioria das pessoas pobres seria criminosa. E isso não corresponde à realidade. Para o sociólogo, o fato de a população carcerária ser formada majoritariamente por pessoas de baixa renda é uma consequência imediata do estigma e do preconceito existentes em nossa sociedade. Segundo dados do ano de 2012, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), dos quase 550 mil encarcerados, 54% eram negros ou pardos e 55% tinham entre 18 e 29 anos, o que indicava um perfil jovem para os prisioneiros. Quanto à escolaridade, 5,6% eram analfabetos, 13% eram alfabetizados e 46% não completaram o Ensino Fundamental. Tal fato denota pouco estudo e baixa oportunidade de desenvolvimento profissional. Somado a isso, os noticiários geralmente enfatizam os crimes que ocorrem nas regiões marginalizadasda cidade, agravando assim a sensação de que a criminalidade é um fenômeno associado à pobreza. Enclaves fortificados O processo de urbanização desigual também gera o fenômeno da autossegregação das classes média e alta, em uma reação à cultura do medo disseminada nas sociedades urbanas. A antropóloga brasileira Teresa Caldeira aponta a proliferação, nas últimas décadas, de espaços privatizados, fechados e monitorados entre as classes sociais com maior poder aquisitivo. Eles recebem a denominação de enclaves fortificados (ver Conceitos sociológicos). Esses espaços podem até mesmo estar situados em regiões consideradas periféricas, pobres e perigosas, porém são projetados estabelecendo uma barreira física, social e psicológica em relação à pobreza e à marginalidade que os cercam. Com a alta concentração urbana e o aumento populacional, acentua-se também a criminalidade, o que gera a consequente sensação de medo e insegurança da população. Com isso, intensificam-se, desde a década de 1990, os Sociologia 11 empreendimentos que buscam a separação física e o isolamento social em relação ao espaço externo. Trata-se de es- paços voltados para residência, lazer, trabalho e consumo, tais como os condomínios e os prédios residenciais, centros comerciais, shopping centers, escolas, hospitais, parques e clubes esportivos. O próprio cenário urbano se transformou com os aparatos de segurança, como cercas eletrônicas, câmeras, muros altos, vigias, etc. Os enclaves fortificados são, portanto, propriedades privadas, fisicamente demarcadas e isoladas por muros, impondo regras de inclusão e exclusão. Existe um rígido sistema de controle quanto às pessoas que entram e saem. Isso significa que esses enclaves são arquitetados para permitir uma seleção da população que pode, ou não, frequentá-los. O mesmo ocorre quanto ao acesso a prédios comerciais, shopping centers, escolas, hospitais, etc. Segundo Teresa Caldeira, os enclaves fortificados valorizam os espaços privados, protegidos e restritos, ao mesmo tempo que desvalorizam os espaços públicos e abertos das cidades. Os enclaves fortificados residenciais representam o tipo ideal de moradia das classes sociais mais favorecidas e evidenciam o seu isolamento das áreas urbanas populares. Organize as ideias Sugestão de resposta.9 Minha alma (a paz que eu não quero) As grades do condomínio São para trazer proteção Mas também trazem a dúvida Se é você que está nessa prisão YUKA, Marcelo. Minha alma (a paz que eu não quero). Intérprete: O Rappa. In: O RAPPA. Lado B lado A. Rio de Janeiro: Warner Music, 1999. Estamos livres e seguros atrás das grades de um condomínio? Por que a música diz que existe uma dúvida se não somos nós que estamos em uma prisão? Nas grandes cidades, cresce vertiginosamente o número de empreendimentos residenciais que visam vender espaços mais tranquilos, seguros e com estrutura de serviços para atender aos moradores. Esses enclaves fortifi- cados residenciais tendem a se localizar em regiões mais distantes do centro, em áreas verdes da periferia urbana. Isso caracteriza uma transferência da população de alto poder aquisitivo do centro para as periferias, o que gera a necessidade de bons sistemas de transporte. Ao mesmo tempo, tais espaços visam fornecer aos moradores a sensa- ção de que não precisam sair de casa para realizar atividades cotidianas. O motivo é que estes desfrutam de “áreas comuns”, como piscinas, parques, quadras esportivas, espaços de lazer, salões de festa, espaço gourmet, academias e até mesmo salões de beleza. Em síntese, os enclaves fortificados têm alterado as formas de viver, trabalhar, consumir e se divertir nas sociedades urbanas. Tal fato muda o cenário das grandes cidades e o caráter das interações sociais nos espaços públicos e privados. Além disso, os enclaves geram um novo tipo de segregação urbana, na qual as distâncias sociais se tornam fisicamente demarcadas. Isso porque a desigualdade social se materializa no espaço por meio da separação física e da exclusão das classes sociais mais baixas dos espaços privatizados e fortificados. As diferenças entre as classes sociais passam a se centrar na exclusividade de acesso a determinados espaços da cidade. 12 Volume 7 Atitude sociológica Orientação didática.11Criminalidade e corrupção Por que será que pouco se comenta sobre a criminalidade das camadas sociais mais altas da sociedade? Um dos primeiros estudos sobre os crimes cometidos nas classes sociais mais elevadas foi desenvolvido pelo sociólogo estadunidense Edwin Sutherland (1883-1950), no fim da década de 1930. Sutherland denominou os crimes cometidos por pessoas que tinham status social elevado de white collar crimes ou, em português, crimes do colarinho-branco. Assim, o foco dos estudos de Sutherland eram os crimes cometidos por empresários e políticos, que na maio- ria das vezes ficavam impunes ou nem mesmo eram indiciados por esses crimes. Em suas pesquisas, Sutherland constatou que a punição de condutas crimino- sas cometidas por pessoas com elevado status social, quando ocorria, era realizada na esfera civil ou administrativa. Portanto, não havia o caráter estigmatizante do processo criminal. Práticas frequentes nos grupos empresariais, como fraudes, suborno de agentes públicos, chantagem, lavagem de dinheiro, falências frau- dulentas e propagandas enganosas, não eram identificadas como práticas criminosas. O autor afirma que a maior parte dos delitos perpetrados pela “elite do crime” não tem condenação, tendo em vista que as vítimas são coletividades desorganizadas ou até mesmo toda a sociedade. Por esse motivo, Sutherland aponta a dificul- dade em se determinar a frequência dos crimes do colarinho-branco, a extensão dos seus danos e suas variantes. Portanto, são considerados crimes praticamente invisíveis à população. Enquanto os crimes das camadas populares ou crimes de rua são visíveis e aparecem nas estatísticas oficiais, os crimes das elites ficam escondidos ao olhar do público. Isso gera a impressão de que a criminalidade seria exclusiva das populações com menor poder aquisitivo, tal como já observamos. Sutherland aponta que os prejuízos causados pelo crime do colarinho-branco seriam muito superiores aos causados pelos crimes comuns. A falência de um banco ou instituição financeira, por exemplo, teria o potencial de gerar prejuízos muito superiores a todo o valor subtraído em furtos comuns no decorrer de um ano inteiro. O mesmo poderia ocorrer com os desvios do dinheiro público em órgãos governamentais, que podem impactar diretamente na vida dos cidadãos. O crime do colarinho-branco é caracterizado pela execução de uma ação criminosa, em geral de ordem econômica ou política, realizada por pessoa “respeitável” e de alta posição social no exercício de uma atuação profissional. Você já presenciou a exclusão de alguma pessoa de um am- biente privado pelo fato de ela não se enquadrar nos padrões sociais estabelecidos? Pesqui- se exemplos em jornais e re- vistas e demonstre como eles se enquadram no conceito de exclusão gerado pelos encla- ves fortificados. Ac er vo A gê nc ia R BS /F er na nd o Ra m os Ge tty Im ag es /D ar rin K lim ek Sugestão de resposta.10 Sociologia 13 Existem vítimas nos crimes de corrupção? Se existe o crime, se existe o criminoso, se existe a violência, quem é vítima dos crimes de corrup- ção? Quem é lesado? Analisando a dimensão interna da corrupção, os estudiosos dizem que: “O ato de corrupção, que pode atingir em cheio ao particular que dela é vítima, alcança no resto da sociedade um efeito por vezes diluído [...] daí que as sociedades suportem certa quantidade de corrupção sem grande prejuízo. Note-se bem: sob o aspecto ético, a corrupção é sempre grave e inaceitável, mas do ponto de vista das consequências práticas no todo social, ela pode dissolver-se de modo a ser absorvida sem gran- de dano”. (Oliveira, 1994:107). SCHILLING, Flávia. O Estado do mal-estar.Corrupção e violência. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 47-55, 1999. Leitura sociológica Nos chamados crimes do colarinho-branco, enquadram-se os atos que promovem enriquecimento ilícito ou aqui- sição de benefícios ou vantagens por meio do uso de posições, cargos ou influências oriundas do serviço público. Trata-se de corromper os fins do serviço público para obter vantagens pessoais ou para terceiros. Os atos de corrupção em geral relacionam duas facetas: a do corrupto e a do corruptor. O corrupto é representado por um agente público (podendo ser um funcionário público, um político eleito ou um comissionado nomeado por um político). O corruptor é um ente representante de uma instituição privada (em geral, simbolizado por um empresário) que busca privilégios e benefícios por vias ilegais. Uma prática muito comum nessas relações entre entes privados e públicos é a do tráfico de influências. Nele, ocorre uma “troca de favores” entre as partes de modo que ambas saiam beneficiadas. Um exemplo de tráfico de influência é o acesso privilegiado de um empresário a informações que permitam a ele obter vantagens na participação de uma concorrência pública. Ao conhecer as regras de um edital de licitação de forma antecipada, pode se adiantar a seus concorrentes moldando sua proposta de participação de acordo com os requisitos elegíveis. Isso o coloca em melho- res condições de aprovação. Outras formas de corrupção são as práticas de nepotismo (nomeação de parentes para ocupação de cargos públicos) e o clientelismo (obtenção do apoio popular usando a compra do voto com dinheiro ou a concessão de benefícios). Atitude sociológica Sugestão de resposta.12 Qual é a contradição entre a ação de um dos mem- bros do protesto e o motivo para a reunião do grupo representado na charge? © Du ke 14 Volume 7 A corrupção no Brasil, muitas vezes, relaciona-se à noção de patrimonialismo, isto é, a uma prática de governo na qual os limites entre os interesses públicos e os privados não são claros. Tal prática permite que recursos públicos sejam utili- zados por uma classe dominante para satisfação de seus interesses privados. O sociólogo Raymundo Faoro (1925-2003) considera o patrimonialismo como uma forma arcaica e de origem colonial, que caracteriza os governos brasileiros. A corrupção não é exclusividade do Brasil. Atitudes corruptas de funcionários públicos estão presentes nas mais diver- sas sociedades e formas de governo. O grande problema desse tipo de criminalidade está na impunidade. De um universo de 550 mil presos pertencentes ao sistema penitenciário brasileiro, apenas 722 estão presos por corrupção, o que equivale a pouco mais de 0,1% do total. Considerando apenas os presos condenados por crimes contra a administração pública, há um total de 2 703 pessoas. Esse número representa apenas 0,5% do total de presos julgados por tal crime, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, em relatório de dezembro de 2012. De todos os processos julgados contra corrupção nos tribunais estaduais entre janeiro e julho de 2014, apenas 31% apresentaram a condenação do réu, conforme dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os números de condenação por crimes de corrupção são irrisórios diante dos de presos por crimes de furto (subtração de objetos alheios sem o uso de violência). Estes, até dezembro de 2012, estavam na casa dos 38 mil detentos. Desde a re- democratização do Brasil, após o Regime Militar (1964-1985), poucos políticos foram julgados e condenados diante do vo- lume de acusações e do aumento da percepção que a opinião pública tem da existência da corrupção na política nacional. Não podemos esquecer que a corrupção não está atribuída apenas às práticas de políticos nos cargos executivos e legisla- tivos, mas também às nossas ações cotidianas. Quando um cidadão suborna um agente público para se livrar de uma multa, sonega seus impostos, usa de artifícios como o tráfico de influências para furar a fila de um serviço público ou adquire um pro- duto pirata, entre outros exemplos, comete um ato de corrupção. Logo, essas ações necessitam ser repensadas e reavaliadas para que alcancemos uma melhor representatividade política e um melhor funcionamento das instituições políticas e sociais. Percebe-se, portanto, que a criminalidade e a violência são temas não só complexos, mas, sobretudo, realidades geradas por ações de todas as pessoas, de distintas classes sociais e em diferentes situações. Da mesma forma, para amenizar os problemas causados pela violência e pelo crime, são necessárias ações em variadas esferas sociais, envol- vendo ricos e pobres, políticos e eleitores. Interprete a charge e responda: O crime do colarinho branco afeta você? Em caso afirmativo, explique de que forma. Organize as ideias Sugestão de resposta.13 © Na ni Sociologia 15 Hora de estudo Gabarito.14 1. (UEL – PR) As recentes transformações urbanas im- plicam um aprofundamento do processo de segre- gação socioespacial agravado pela violência urbana. A emergência de um novo padrão de segregação residencial é marcada pelos denominados “enclaves fortificados”, os quais representam a incorporação de um estilo de vida relacionado a novos compor- tamentos de consumo, inspirado nas metrópoles americanas. O consumo refere-se, principalmente, ao acesso de bens, serviços e valores socioespa- ciais simbólicos, tais como o verde, a privacidade, o status e a segurança. São representantes da situa- ção acima descrita: a) Os conjuntos habitacionais, os conjuntos comerciais e os espaços de lazer e turismo. X b) Os condomínios fechados residenciais, os conjuntos de escritórios e os shopping centers. c) As favelas, os condomínios comerciais e as fábricas. d) As associações de moradores, as galerias comer- ciais e os parques fabris. e) Os cortiços, os pontos de comércio urbano e as áreas de trocas informais. 2. Leia este texto. Como a recente crise mundial mostrou sobejamente (já nos esquecemos dela?), a cor- rupção é endêmica tanto no mercado quanto no Estado em qualquer latitude do globo. A mitigação da corrupção em qualquer esfera da vida ocorre quando os mecanismos de con- trole ganham eficiência. A leitura seletiva do Estado como ineficiente e corrupto e do mer- cado como pura virtude esconde a ambigui- dade constitutiva dessas duas instituições que podem servir ao bem ou ao mal conforme seu uso. SOUZA, Jessé. O Estado de todas as culpas. O Estado de S.Paulo. Caderno Aliás. 5 set. 2009. Disponível em: <http://alias.estadao. com.br/noticias/geral,o-estado-de-todas-as-culpas-por-jesse- souza,430094>. Acesso em: 3 maio 2015. Analise as afirmativas a seguir. I. Os casos de corrupção que estampam os noticiá- rios em diversos países demonstram como o Estado democrático é incapaz de conter a corrupção, em virtude da interferência de interesses particulares em seu funcionamento. II. A solução para o controle do uso privado dos recur- sos públicos está na eficiência do combate à cor- rupção e na superação da impunidade. III. As instituições privadas, na pessoa de seus em- presários, representam os sujeitos capazes de im- pulsionar o desenvolvimento de um país mais justo e igualitário, na medida em que, por causa da sua competência administrativa, sempre inibem os ca- sos de corrupção que afetam o funcionamento do Estado brasileiro. Assinale a alternativa correta. a) As afirmativas I e II estão corretas. b) As afirmativas I e III estão corretas. c) As afirmativas II e III estão corretas. X d) Somente a afirmativa II está correta. e) Todas as afirmativas estão corretas. 3. (ENEM) Texto I O que vemos no país é uma espécie de es- praiamento e a manifestação da agressivida- de através da violência. Isso se desdobra de maneira evidente na criminalidade, que está presente em todos os redutos – seja nas áreas abandonadas pelo poder público, seja na polí- tica ou no futebol. O brasileironão é mais vio- lento do que outros povos, mas a fragilidade do exercício e do reconhecimento da cidada- nia e a ausência do Estado em vários territórios do país se impõem como um caldo de cultura no qual a agressividade e a violência fincam suas raízes. Entrevista com Joel Birman. A corrupção é um crime sem rosto. ISTOÉ. Edição 2009, 3 fev. 2010. 16 Volume 7 Texto II Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo, sem um controle muito específico de seu com- portamento. Nenhum controle desse tipo é possível sem que as pessoas anteponham limi- tações umas às outras, e todas as limitações são convertidas, na pessoa a quem são impostas, em medo de um tipo ou de outro tipo. Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Considerando-se a dinâmica do processo civilizador, tal como descrito no texto II, o argumento do texto I acer- ca da violência e agressividade na sociedade brasileira expressa a: a) Incompatibilidade entre os modos democráticos de convívio social e a presença de aparatos de controle policial. b) Manutenção de práticas repressivas herdadas dos períodos ditatoriais sob a forma de leis e atos administrativos. c) Inabilidade das forças militares em conter a violên- cia decorrente das ondas migratórias nas grandes cidades brasileiras. X d) Dificuldade histórica da sociedade brasileira em ins- titucionalizar formas de controle social compatíveis com valores democráticos. e) Incapacidade das instituições políticos-legislativas em formular mecanismos de controle social espe- cíficos à realidade social brasileira. 4. Leia o trecho da música abaixo. O calibre [...] Há quanto tempo você sente medo? Quantos amigos você já perdeu? Entrincheirado, vivendo em segredo E ainda diz que não é problema seu [...] VIANNA, Herbert. O calibre. Intérprete: Os Paralamas do Sucesso. In: OS PARALAMAS DO SUCESSO. Longo caminho. Rio de Janeiro: EMI, 2002. De acordo com a letra da música e os conteúdos da unidade sobre violência urbana, assinale a afirmativa verdadeira. a) A vulnerabilidade da vida nas grandes cidades causa a incerteza quanto à expectativa de vida da classe média, principal vítima do fogo cruzado entre ricos e pobres. b) O entrincheiramento da vida urbana nos remete a práticas de sociedades que alcançaram a paz por meio de estruturas de guerra, apaziguando conflitos e diferenças sociais. c) A atitude de alegar que a violência urbana “não é problema seu” é resultado do total desinteresse da população em procurar formas de proteção contra a violência. X d) A referência ao medo, presente na letra da músi- ca, retrata uma cultura urbana de imprevisibilidade das ações violentas, criando uma sensação de que a qualquer momento podemos ser vítimas de uma ação criminosa. e) A busca por maior segurança tende a desfazer as trincheiras sociais, superando as barreiras em prol do fim da segregação socioespacial. 5. Sobre os estudos desenvolvidos pelo sociólogo estadu- nidense Edwin Sutherland acerca dos crimes do colari- nho-branco, assinale a alternativa correta. a) Os crimes do colarinho-branco envolvem práticas como fraudes, suborno de agentes públicos, chan- tagem, lavagem de dinheiro, falências fraudulentas e propagandas enganosas, que são rigorosamente punidas pela justiça. b) As aquisições de benefícios ou vantagens por meio do uso de posições, cargos ou influências oriundas do serviço público não se enquadram na categoria de crimes do colarinho-branco. X c) A maior parte dos crimes cometidos por pes- soas com elevado status social não é condenada judicialmente, pois as vítimas são mais difíceis de serem identificadas, sendo diluídas em cole- tividades desorganizadas ou mesmo em toda a sociedade. d) Edwin Sutherland ressalta o caráter estigmatizante dos processos criminais associados aos crimes do colarinho-branco. e) As condutas criminosas cometidas por pessoas com elevado status social possuem penas elevadas por causa da divulgação da mídia e da pressão da opi- nião pública em geral. 17Sociologia 18 Criminalidade e poder disciplinar 14 1. O que leva as pessoas a transgredir as normas socialmente estabelecidas? 2. Por que algumas pessoas não se enquadram nos estilos de vida considerados normais? 3. Você tem a sensação de estar sendo observado nos ambientes urbanos? 4. Por que as prisões se tornaram a principal forma de controle social na atualidade? 1 O que leva as pessoas a transgredir as normas socialmente estabelecidas? Ponto de partida 1 ©Shutterstock/NattapolStudiO 1919 Atitude sociológica São inúmeros os problemas encontrados nos estabelecimentos prisionais, tais como: ausência de respeito aos presos; a superpopulação carcerária, que contribui para situação degradante das prisões brasileiras; ausência de atividades laborativas dentro dos presídios, gerando o ócio improdutivo dos de- tentos; elevados índices de consumo de drogas, [...]. Todas essas circunstâncias revelam a problemática existente dentro dos presídios, o que revela a extrema dificuldade em se obter a reabilitação do conde- nado em face da situação ao qual é submetido. COSTA NETO, Nilo de Siqueira. Sistema penitenciário brasileiro: a falibilidade da prisão no tocante ao seu papel socializador. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3.560, 31 mar. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24073>. Acesso em: 24 maio 2015. Você considera o sistema penitenciário no Brasil eficaz? As prisões brasileiras permitem a ressocialização dos indiví- duos? Justifique sua resposta. Sugestão de resposta.3 Ao se deparar com pessoas que violam uma regra social ou norma jurídica amplamente difundida, em geral a sociedade as enquadra como desviantes ou criminosas. No entanto, devemos considerar que desvio e crime não são sinônimos, embora sejam conceitos, por vezes, sobrepostos. O conceito de desvio é muito mais amplo do que o de crime. Enquanto o primeiro diz respeito às ações individuais ou coletivas que transgridem os padrões de comportamento dominantes de uma sociedade, o segundo implica tão somente as ações que infringem as nor- Orientação didática.2 Crime, desvio e controle social Como seria uma sociedade sem normas, regras ou padrões de comportamento estabelecidos entre os indivíduos? Será que existiria consenso? Havendo discordâncias, como seriam resolvi- das? Se tal situação hipotética existisse, com certeza vislumbra- ríamos uma sociedade caótica, marcada por constantes conflitos entre os indivíduos. Nela, muito provavelmente sobressairia a lei do mais forte. Não é à toa que existem regras e normas que visam estabelecer comportamentos considerados apro- priados, dividindo as ações humanas em certas e erradas, normais e anormais, lícitas e ilícitas. Trata-se de mecanismos de controle social (ver Conceitos sociológicos), que visam diminuir ou eliminar os comportamentos considerados desviantes em nossa sociedade. O controle social pode ser entendido, de modo geral, como a capacidade que a sociedade tem de se autorre- gular, por normas, instituições e processos sociais. Tal controle se manifesta informalmente na socialização. Nesse processo, regras, costumes, crenças e valores são assimilados pelos indivíduos por meio da atuação de instituições sociais como a família, a escola, os meios de comunicação e outros. Entretanto, quando as instâncias informais do controle social fracassam, são as instâncias formais que se impõem sobre os indivíduos. Isso se dá por meio da atuação do Estado, que institui normas, leis, códigos, instituições e procedimentos de controle. Nesse sentido, entra em funcionamento o sistema penal, que corresponde a um mecanismo de controle social do Estado, composto das instituições policial, judicial e penitenciária. Objetivos da unidade: diferenciar as noções de crime e desvio; compreender as relações entre comportamentos desviantes e pro- cesso de estigmatização; compreender o conceito de poder disciplinarem Michel Foucault. mas estabelecidas em lei. O desvio tem uma conotação social mais abrangente, ao passo que o conceito de crime está associado de maneira direta às normas jurídicas, sendo, portanto, mais restrito. Desse modo, podemos dizer que todo crime é uma forma espe- cífica de desvio, embora nem todo desvio seja considerado crime. Howard Becker, sociólogo estadunidense, interpreta o desvio como um processo de interação so- cial, em que um grupo social é capaz de rotular os demais indivíduos como desviantes. Por esse motivo, Becker é considerado um dos representantes da Teoria da Rotulação (ver Conceitos sociológicos). Isso porque sua análise visa compreender o modo como as pessoas impõem determinadas definições de moralidade aos outros. De um lado, há os rotuladores, aqueles considerados “normais” (definidos por eles mesmos). De outro, existem os outsiders ou desviantes (assim definidos pelos rotuladores). Um outsider é aquele considerado “anormal” pelos outros, justamente por não corresponder aos padrões estabelecidos pela sociedade. Howard Becker entende que o comportamento desviante nada mais é do que o comportamento assim rotulado pelas demais pessoas. Mesmo que as ati- vidades ou as condutas dos indivíduos estejam, de maneira formal, dentro da lei, o modo de vida não convencional os qualificaria como outsiders (desviantes). Assim, o desvio seria uma classificação social pela qual um grupo identifica em outros indivíduos atributos seletivamente reconhecidos como negativos. Para Howard Becker (1928- ), o indivíduo que é taxado de desviante, mesmo que não se veja como tal, pode acabar incorporando essa noção na formação de sua identidade, reforçando a rotulação e a noção de controle social. Para compreender como ocorrem as relações dos indivíduos outsiders com a sociedade, Howard Becker pesquisou as rotinas dos músicos de jazz nas casas noturnas da cidade de Chicago. O autor identificou o dilema dos músicos: manter a originalidade artística ou adaptar suas músicas conforme as pressões comerciais. Becker constata que aqueles músicos que não atendiam às vontades de seus clientes ficavam à margem dos empregos e das oportunidades. Ou seja, mesmo entre um grupo social restrito, como o de músicos, existem condutas consideradas aceitáveis, que, quando não são seguidas, dificultam o sucesso profissional. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal. Como o desvio é, entre outras coisas, uma consequência das reações dos outros ao ato de uma pessoa, os estudiosos do desvio não podem supor que estão lidando com uma categoria homogênea quando estudam pessoas rotuladas como desviantes. Isto é, não podem supor que essas pessoas cometeram realmente um ato desviante ou infringiram alguma regra, porque o processo de rotulação pode não ser infalível, algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra. BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 21-22. Leitura sociológica O filme biográfico intitulado Na natureza selvagem, de 2007, retrata a história do jovem Christopher McCandless. Ao terminar a faculdade, ele resolve abandonar tudo e viajar sozinho até o Alasca, em busca de uma vida mais livre, sem amarras e em contato com a natureza. McCandless tornou-se um exemplo de comportamento desviante ao romper com as regras e os padrões da sociedade para tentar viver uma vida mais livre em meio à natureza. © NG C ol le ct io n/ In te rfo to /S ea n Pe nn © W ik im ed ia C om m on s/ Th ie rry C ar o ©Shutterstock/Matthias G. Ziegler 20 Volume 7 Nessa perspectiva, o sociólogo canadense Erving Goffman afirma que os indiví- duos rotulados como desviantes costumam ser, em geral, estigmatizados (ver Con- ceitos sociológicos). Em outras palavras, eles são rejeitados ou excluídos socialmente. Desse modo, ser estigmatizado significa ser identificado pelos outros com atributos negativos, sendo considerado perigoso, incapaz, anormal, fracassado ou inconstante. O estigma pode ser caracterizado como mecanismo prévio de identificação do ou- tro, a elaboração de um preconceito superficial, formado com base em classificações estabelecidas socialmente. Por esse motivo, o estigma funciona como uma imagem estereotipada e deteriorada do outro, que lhe confere um amplo descrédito em sua vida. Ele pode estar relacionado a atributos físicos, psíquicos e sociais. O estigma constrói uma identidade virtual do outro, capaz de distorcer os atri- butos reais dos indivíduos e rotulá-los de modo que os aspectos negativos se so- breponham às suas demais características individuais. Observa-se que o processo de estigmatização pode ocorrer em diversos casos, envolvendo dependentes de drogas, moradores da periferia, ex-presidiários, doentes mentais, desempregados, portadores de necessidades especiais, entre outros. Trata-se, portanto, de um processo cruel, fun- dado em preconceitos e na visão limitada do outro, que tem consequências diretas para o indivíduo estigmatizado. Erving Goffman (1922- -1982) estabelece a noção de estigma como forma de interpretar os que são excluídos socialmente. O estigma seria uma marca que cada indivíduo excluído carrega consigo, como um símbolo que o deprecia perante os indivíduos considerados "normais". Invisibilidade social: os catadores de lixo Durante os meses de março e maio de 2007, o repórter fotográ- fico Paulo Giandalia percorreu parte da cidade de São Paulo regis- trando o trabalho dos catadores de material reciclável. O serviço ár- duo, o cotidiano e os rostos desses trabalhadores, quase anônimos, foram retratados por Giandalia. Os catadores retiram em média, individualmente, 200 kg de material reciclável por dia, em São Pau- lo. Ganham de R$ 20 a R$ 40 por dia. Ao todo são cerca de 20 mil pessoas, um exército invisível a serviço do meio ambiente. FUKUDA, Nilton. Catadores: guardiões da sustentabilidade. O Estado de S.Paulo. Blog Olhar sobre o mundo. 1º. maio 2010. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/olhar- sobre-o-mundo/catadores-guardioes-da-sustentabilidade/>. Acesso em: 10 maio 2015. Como o conceito de estigma se aplica à condição social vivenciada pelos catadores de lixo? Qual o valor que a sociedade aplica ao trabalho des- ses profissionais? Organize as ideias Sugestão de resposta.4 Catador de lixo na Rua Líbero Badaró, Centro de São Paulo © W ik im ed ia C om m on s/ Fo tó gr af o de sc on he ci do In st itu to H um an ita s U ni sin os /P au lo G ia nd al ia Sociologia 21 Sociedade disciplinar: vigiar e punir Na atualidade, a prisão é a principal e mais rigorosa instância de controle social, que deve ser acionada somente quando as demais instituições da sociedade falharem. O sistema penal é um instrumento do poder de punição do Estado, que impõe sanções aos indivíduos, a fim de evitar comportamentos considerados ilícitos. Mas como o sistema penal se constituiu como principal forma de controle social? Que funções cumpre o sistema prisional? O filósofo francês Michel Foucault foi um dos primeiros teóricos a investigar como a prisão se tornou a principal instituição de controle social na modernidade. Na obra Vigiar e punir, publicada em 1975, Foucault desenvolve um amplo estudo acerca das variações históricas dos métodos punitivos, identificados por ele como técnicas de poder disciplinar (ver Conceitos sociológicos). Dessemodo, o autor realiza uma análise históri- ca das mudanças nas relações entre crime e punição. Essa análise é feita desde o Período Medieval até a Modernidade, ou seja, das punições físicas por meio dos suplícios até o desenvolvimento do sistema carcerário. ROBERT-FRANÇOIS Damiens executado em Paris em 28 de março de 1757. 1757. 1 gravura em água-forte. Biblioteca Nacional da França, Coleção Michel Hennin. A gravura representa a execução de Robert Damiens em 1757, condenado por tentar assassinar o rei Luís XV da França. A ilustração demonstra a tortura e o suplício pelos quais o acusado passou, como forma de reparar a ofensa cometida e dar o exemplo para que outros não tentassem o mesmo crime. Orientação didática.5 Michel Foucault (1926-1984). O surgimento de novas tecnologias que permitem a ampliação e a manutenção de diferentes formas de poder atualiza cada dia mais as ideias de Foucault. A disciplina sobre os corpos, os comportamentos, os hábitos e as formas se difunde nas práticas de diversas instituições, como a escola, o trabalho e a mídia. Há pouco mais de dois séculos, era frequente que as punições aos criminosos envolvessem práticas de suplício, ou seja, as torturas físicas eram usadas como método punitivo, e os delitos eram considerados uma afronta direta ao soberano. Os propósitos do suplício eram produzir um sofrimento físico proporcional ao crime cometido e marcar o corpo do criminoso, como forma de demonstração efetiva de poder. Foucault observa que, no fim do século XVIII, atrocidades vinculadas aos suplícios, que em geral chegavam a supe- rar os delitos praticados pelos condenados, passaram a ser questionadas. Diante desses questionamentos, o início do século XIX foi marcado por um movimento de reformulação dos códigos penais europeus. Visava-se estabelecer um processo penal justo, instituído por um júri, com testemunhas e a possibilidade de ampla defesa do réu. Além disso, a prisão se tornou o modelo de prevenção e repressão dos delitos praticados na sociedade, em substituição às práticas de suplício. As prisões se transformaram em instituições disciplinares. Assim, as relações de poder não mais incidiam di- La tin st oc k/ Co rb is/ Be ttm an n Bi bl io te ca N ac io na l d a Fr an ça , C ol eç ão M ic he l H en ni n 22 Volume 7 retamente sobre os corpos dos indivíduos, como acontecia nas penas de suplício, mas ocorriam por meio do controle e do disciplinamento deles. A prisão se tornou o espaço de readequação dos comportamentos dos detentos por intermé- dio da vigilância e de uma rotina disciplinada. O próprio conjunto arquitetônico das prisões foi pensado para distribuir espacialmente os deten- tos a fim de que esses fossem vigiados e contro- lados de maneira constante. Foucault aponta que o pan-óptico, desenhado em 1785 pelo filósofo britânico Jeremy Bentham (1748-1832), corres- ponderia a um conjunto arquitetônico ideal para disciplinar os detentos, sendo constituído por uma torre central de formato circular, com as celas dispostas ao redor. Da torre, um vigia poderia mo- nitorar a todo instante os presos, sem que pudesse ser visto por eles. Tal modelo impunha a sensação de vigilância permanente. A proposta seria a de que a interiorização da constante vigilância promoveria uma autodisciplina corporal e moral dos indivíduos. Para além das prisões, a arquitetura do pan-óptico poderia ser estendida para outras instituições, como escolas, asilos, hospitais, quartéis e fábricas. Tal processo é entendido por Foucault como o surgimento do poder disciplinar. Nele se verifica a expansão de uma forma de poder que age sobre os corpos individuais e que visa inculcar a obediência a regras, procedimentos, padrões de comportamento, etc. Tais instituições responsáveis por esse poder disciplinar teriam sua origem entre os séculos XVII e XVIII, compondo o que o filósofo denomina sociedade disciplinar. Esta seria formada por um conjunto de ações que parte de um poder central (Estado) e se multiplica em uma rede de poderes interligados até alcançar os indivíduos. Que efeito a sensação de constante monitoramento causa sobre a percepção dos indivíduos? Como relacionar tais efeitos com a noção de sociedade disciplinar de Michel Foucault? ©Creative Commons/Flickr/Ilona Gaylor/David Leventi Organize as ideias Sugestão de resposta.6 A Penitenciária de Stateville, localizada em Illinois, nos Estados Unidos, foi elaborada nos moldes dos edifícios concebidos em 1787 pelo projeto de Jeremy Bentham, chamado de pan-óptico. Da torre de vigilância central, todas as celas podem ser vigiadas. A impressão dos presidiários é a de uma constante vigilância, por não saberem quando estão sendo observados nem quem os observa. © An dr e Da hm er Sociologia 23 Segundo Foucault, o propósito central do poder disciplinar se- ria o de formar corpos úteis, dóceis e disciplinados. Assim, o po- der punitivo do Estado seria aplicado naqueles que se desviavam do padrão produtivo e submisso de indivíduo. É possível perce- ber, portanto, que Foucault realiza uma crítica acerca da natureza opressora da sociedade disciplinar, que se estabelece com vigilân- cia e punição, para docilizar e adestrar os indivíduos. Para o filósofo, as técnicas de vigilância aplicadas pelas instituições disciplinares têm a finalidade de fabricar indivíduos submissos, na medida em que estes sabem que estão sendo constantemente observados, vigiados e avaliados. VAN GOGH, Vincent. A ronda dos prisioneiros. 1890. 1 óleo sobre tela, color., 80 cm x 64 cm. Museu Estadual Pushkin de Belas Artes, Moscou. O poder disciplinar pode ser percebido na imagem da obra de Van Gogh (1853-1890), que demonstra a submissão dos indivíduos às rotinas padronizadas de uma instituição prisional. Leia um trecho do livro Vigiar e punir, de Michel Foucault, e observe como o poder disciplinar se manifesta por meio do pan-óptico. Pan-óptico e o poder disciplinar O Pan-óptico pode até se constituir em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente, modificar o seu compor- tamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado. Um inspetor que surja sem avisar no centro do Pan-óptico julgará com uma única olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o estabelecimento. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. p. 193-194. Leitura sociológica DK O E st úd io . 2 01 5. D ig ita l. M us eu E st ad ua l P us hk in d e Be la s A rte s, M os co u Na análise de Foucault, a escola é uma instituição social que se utiliza de mecanismos de poder para disciplinar os alunos, produzindo indivíduos dóceis e submissos. 24 Volume 7 O conceito de sociedade disciplinar apresentado por Michel Foucault também nos permite analisar as diferentes formas de controle e vigilância utilizadas na atualidade. Você já reparou que o comportamento dos indivíduos é cons- tantemente monitorado? Nas grandes cidades, nosso comportamento é vigiado todos os dias por câmeras de monito- ramento do trânsito, câmeras de segurança nos espaços públicos e privados, celulares que permitem a geolocalização das pessoas, redes sociais que tornam públicos dados pessoais, equipamentos de raios X utilizados em aeroportos. Talvez não haja como escapar da sociedade disciplinar. Atitude sociológica Espionagem e invasão de privacidade [...] O ex-técnico da CIA Edward Snowden, de 29 anos, é acusado de espionagem por vazar informações sigilosas de segurança dos Estados Unidos e revelar em de- talhes alguns dos programas de vigilância que o país usa para espionar a população americana [...] e vários países da Europa e da América Latina, entre eles o Brasil, inclusivefazendo monitoramento de conversas da presidente Dilma Rousseff com seus principais assessores. [...] ENTENDA o caso de Edward Snowden, que revelou espionagem dos EUA. Portal G1, São Paulo, 14 jul. 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/07/entenda-o-caso-de-edward-snowden-que-revelou- espionagem-dos-eua.html>. Acesso em: 9 maio 2015. Como a prática da espionagem exercida pelos Estados Unidos representa uma tentativa de controle sobre sua população e a de outros países? Em sua resposta, relacione a espiona- gem realizada pelos Estados Unidos com a noção de poder de Michel Foucault. Sugestão de resposta.7 Edward Joseph Snowden foi administrador de sistemas da CIA e técnico da NSA (Agên- cia de Segurança Nacional). Ele foi o responsável por tornar público o programa de espionagem global desenvolvido pelo governo dos Estados Unidos. As formas de monitoramento e controle nas grandes cidades tendem a se sofisticar cada vez mais. Centrais de vigilância e monitoramento são frequentes e novas tecnologias já começam a ser usadas, como os drones e o sistema de geolocalização e monitoramento de imagens pelas redes sociais. O pan-óptico moderno se reinventa e se difunde sobre a vida dos indivíduos. © Sh ut te rs to ck /V ia pp y © Sh ut te rs to ck /a lik © W ik im ed ia C om m on s/ Pr ax is Fil m s/ La ur a Pr oi ta s Sociologia 25 Processo civilizador: conceito desenvolvido pelo soció- logo Norbert Elias que designa o processo histórico que envolve a progressiva multiplicação de restrições e proi- bições aos indivíduos e a pacificação física da sociedade. Segregação socioespacial: o sociólogo espanhol Manuel Castells entende o processo de segregação socioespacial como reflexo da distribuição espacial das diversas classes sociais, de acordo com determinações políticas, econô- micas e ideológicas. Enclaves fortificados: empreendimentos privados, fe- chados e monitorados, com finalidade de moradia, con- sumo, lazer e trabalho. Eles se caracterizam pela vigilância e pelo isolamento em razão do uso de muros altos, gra- des, cercas eletrônicas, câmeras de monitoramento, etc. Controle social: capacidade que a sociedade tem de se autorregular, com base em normas, instituições e proces- sos sociais. O controle social se manifesta informalmente na socialização e formalmente por meio da atuação do Estado, que institui normas, leis, códigos, instituições e procedimentos de controle. Teoria da Rotulação: compreende o desvio como uma sistemática categorização de atributos a uma pessoa ou grupo, de modo que eles sejam admitidos por seu porta- dor e pelos outros com quem se relaciona. Estigmatização: conceito sociológico apresentado por Erving Goffman para demonstrar o processo pelo qual os indivíduos são categorizados por meio de atributos negativos e depreciativos. Assim, os indivíduos estigma- tizados têm suas identidades deterioradas, na medida em que são inferiorizados e menosprezados por não corresponderem ao padrão de “normalidade” construído socialmente. Poder disciplinar: conceito elaborado pelo filósofo Michel Foucault para designar o conjunto de mecanismos de controle social que se manifesta por meio da disciplina e da vigilância. Conceitos sociológicos Hora de estudo 1. (ENEM) O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. O aparta- mento do inspetor ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser, de alojamento do inspe- tor. A moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução difundida; os encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve ser, sobre uma rocha; o nó górdio da Lei sobre os Pobres não cortado, mas desfeito – tudo por uma simples ideia de arquitetura! BENTHAM, J. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Essa é a proposta de um sistema conhecido como pan- -óptico, um modelo que mostra o poder da disciplina nas sociedades contemporâneas, exercido preferen- cialmente por mecanismos: a) religiosos, que se constituem como um olho divino controlador que tudo vê. b) ideológicos, que estabelecem limites pela alienação, impedindo a visão da dominação sofrida. c) repressivos, que perpetuam as relações de domina- ção entre os homens por meio da tortura física. X d) sutis, que adestram os corpos no espaço-tempo por meio do olhar como instrumento de controle. e) consensuais, que pactuam acordos com base na compreensão dos benefícios gerais de se ter as próprias ações controladas. Gabarito.8 26 Volume 7 2. (UEM – PR) “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais de- finem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como ‘certas’ e proibindo outras como ‘erra- das’. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipu- ladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider”. (BECKER, H. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 15). Considerando a citação e as análises sociológicas sobre o tema do desvio social, assinale o que for correto. X (01) A conduta “desviante” surge como uma conse- quência da aplicação, por parte de outras pes- soas, de normas e de sanções que classificam e qualificam determinadas práticas sociais como “transgressões”. (02) Como as regras que definem as condutas indivi- duais são regras jurídicas, todo comportamento social deve estar de acordo com a Constituição do país, pois nada poderia ser mais prejudicial ao corpo social do que desobedecer ao sistema de leis que o governa. X (04) Compreender toda forma de comportamento como uma construção social e histórica permite visualizar as estruturas de poder que fixam os padrões de aceitação ou de rejeição de práticas e de identidades em uma sociedade. (08) Quando um indivíduo infringe uma regra social estabelecida, ele precisa estar ciente de que será penalizado com o máximo rigor, pois esse comportamento não pode se repetir sob pena de que a sociedade se dissolva. (16) O desvio da regra é uma atitude cada vez menos frequente nas sociedades contemporâneas, pois a evolução dos sistemas democráticos trouxe novas regras e novos valores para ajudar a orga- nizar a vida social e a diminuir os desvios. 3. Leia a notícia sobre as dificuldades que ex-detentos encontram na ressocialização. Encontrar um trabalho e ser aceito de vol- ta no seio familiar são os principais obstáculos enfrentados pelo egresso do sistema prisional, segundo Fátima Sales, assistente social da Fun- dação Dom Avelar, que presta apoio a detentos e ex-presidiários. “A maioria das famílias não quer (o ex-detento) de volta. Elas veem como um estorvo”, observa. [...] Para Calixto, o mais difícil após o encarcera- mento é o olhar de desprezo que sente no co- tidiano. “Tenho que provar todos os dias que mudei. É como matar um leão por dia”, diz. Sua mudança, no entanto, é reconhecida por seus colegas de trabalho. TEIXEIRA, Ailma; SILVA, Rodrigo Daniel. Fora das grades, ex-detentos lutam contra o preconceito na busca pela ressocialização. Correio 24 Horas, 30 nov. 2014. Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/fora-das- grades-ex-detentos-lutam-contra-o-preconceito-na-busca-pela-re ssocialzacao/?cHash=59163303e1ef0a9816c21b2fe855d93c>. Acesso em: 10 maio 2015. Agora, analise as afirmativas e assinale a alternativa correta. I. O caráter permanentemente desviante dos ex-de- tentos justifica a dificuldade de socialização deles. II. A afirmação de Calixto, “Tenho que provar todos os dias que mudei”, demonstra como os ex-detentos são estigmatizados na sociedade, mesmo após cumprirem as suas penas. III. A dificuldade do ex-detento em se reinserir na so- ciedade deriva de sua incapacidade deseguir as regras sociais e as normas jurídicas. IV. A ressocialização do ex-detento é dificultada em ra- zão do rótulo, construído socialmente, de desviante ou outsider, que permanece mesmo após deixar a instituição prisional. a) I e II estão corretas. X b) II e IV estão corretas. c) II e III estão corretas. d) II, III e IV estão corretas. e) I, II e III estão corretas. 27Sociologia 4. Leia o texto abaixo sobre a privacidade nas redes sociais. Para poder aproveitar o potencial das redes é preciso mostrar para elas quem você é. São várias perguntas sobre sua localização, estudos, empregos, viagens, quem são seus amigos, o que você gosta de ver, comer, ler, ouvir, o que te faz rir, o que te irrita e muitas outras questões. Não se lembra de ter respondido tudo isso? Pois as redes sabem as respostas que você daria. O que você pesquisa nos buscadores on-line, suas conversas com amigos pelas diversas pla- taformas de bate-papo, as páginas “curtidas”, tudo vai para o banco de dados de grandes corporações como o Google e o Facebook. E essas informações são trocadas, ou vendidas, com outras empresas, que criam, por exemplo, anúncios publicitários dirigidos para um deter- minado público, ou que só serão visíveis para um grupo restrito de pessoas. TIEGHI, Ana Luiza. Existe privacidade no mundo virtual? Revista Espaço Aberto, ano XIII, ed. 159, abr. 2014. Disponível em: <http://www.usp.br/espacoaberto/?materia=existe-privacidade-no- mundo-virtual-2>. Acesso em: 12 maio 2015. Analise as afirmativas e assinale a alternativa correta. I. A sociedade disciplinar não atua apenas no aspecto punitivo dos indivíduos, observando seus compor- tamentos e estabelecendo as normas sociais. Age também por meio do controle de informações como forma de estabelecer a disciplina e inculcar compor- tamentos, estimulando hábitos e costumes. II. O uso comercial de informações presentes nos per- fis pessoais dispostos nas redes sociais representa um controle social, pois elimina a liberdade de esco- lha das pessoas. III. O controle de informações sobre os hábitos e os costumes de uma população interfere na elaboração de produtos, campanhas de marketing e na forma- ção dos hábitos de consumo. a) Somente a afirmativa III está correta. b) As afirmativas I e II estão corretas. c) Somente a afirmativa II está correta. X d) As afirmativas I e III estão corretas. e) Todas as afirmativas estão corretas. 5. Leia o texto abaixo. [...] A hanseníase é uma enfermidade mile- nar que traz consigo a marca do preconceito, discriminação e exclusão social desde o seu surgimento. Durante um longo tempo os indi- víduos foram rejeitados pela sociedade, famí- lia e amigos e condenados a viver em total si- tuação de privação perdendo o contato com o mundo externo para evitar a contaminação. O estigma se faz presente desde os tempos bíbli- cos e continua fazendo parte do imaginário das pessoas ainda nos dias atuais. Embora, atual- mente a hanseníase tenha tratamento e cura, o estigma e o preconceito permanecem enraiza- dos em nossa cultura e dificultam o indivíduo no enfrentamento da doença, trazendo-lhes sérias repercussões em sua vida pessoal e pro- fissional. BAIALARDI, Katia Salomão. O estigma da hanseníase: relato de experiência em grupo com pessoas portadoras. Hansenol. int., Bauru, v. 32, n. 1, p. 27, 2007. Com base no texto acima e nos seus conhecimentos sobre o conceito de estigma, de Erving Goffman, anali- se as assertivas: I. A consequência do estigma para os indivíduos é a exclusão social. Segundo Goffman, o estigma não interfere na identidade pessoal dos indivíduos, ape- nas no seu relacionamento com outras pessoas, grupos e instituições sociais. II. Os portadores de hanseníase são estigmatizados, tendo em vista o fato de serem excluídos da convi- vência social por causa do preconceito e da falta de informações acerca da doença. III. O estigma corresponde a um mecanismo de identi- ficação do outro, por meio de atributos negativos e depreciativos, relacionados a aspectos físicos, psí- quicos e sociais. a) As alternativas I e II estão corretas. b) As alternativas I e III estão corretas. X c) As alternativas II e III estão corretas. d) Todas as alternativas estão erradas. e) Todas as alternativas estão corretas. 28 Volume 7
Compartilhar