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INTRODUÇÃO
1	CORRUPÇÃO E DIREITOS SOCIAIS.
	A corrupção é um mal que assola a humanidade em todas as partes da Terra, corroendo as finanças públicas e se apropriando de recursos que poderiam e deveriam ser aplicados em serviços de saúde, educação, assistência social, segurança pública, justiça, moradia e outros direitos sociais[footnoteRef:2]. [2: 	SANTIN, Valter Foleto. Vedação de nomeação para cargo de confiança de pessoa envolvida em improbidade administrativa como mecanismo de combate à corrupção no Brasil. Revista Jurídica da Presidência, [s.l.], v. 20, n. 122, p.647-668, 31 dez. 2018. Biblioteca da Presidencia da Republica.] 
	Atualmente é pacífico o entendimento de que os efeitos da corrupção são deletério, entretanto, nem sempre foi assim. Por um tempo havia quem entendesse que a corrupção não seria maléfica. Tal interpretação tinha por substrato que a corrupção implicava, apenas, na transferência de renda entre os atores econômicos. 
	Na literatura das ciências econômicas, os adeptos da primeira corrente são denominados de economicistas e os da segunda corrente, funcionalistas.
	A abordagem da corrupção como vetor positivo à sociedade (funcionalista) remonta aos anos de 1950. Lá, o problema central foi perquirir a relação entre corrupção e desenvolvimento político e econômico, com o intuito de formular uma perspectiva sistêmica da corrupção em relação aos seus custos e benefícios para a construção da modernidade capitalista[footnoteRef:3]. Para essa abordagem, a corrupção era benéfica, pois poderia lubrificar as relações políticas entre os empresários com os agentes públicos, evitando a instabilidade política[footnoteRef:4]. [3: 	Avritzer, Leonardo; Figueiras, Fernando. Corrupção e controles democráticos no Brasil. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2011. (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 32).] [4: 	SCOTT, James. Corruption, machine politics, and political change. American Political Science Review, v. 63, n. 4, 1969.] 
	Essa facilidade na interlocução entre a burocracia inerente ao Estado e empresários facilitaria o desenvolvimento econômico[footnoteRef:5]. É como se a corrupção fosse a graxa para a engrenagem da máquina burocrática do Estado. [5: 	LEFF, Nathaniel H. Economic development through bureaucratic corruption. American Behavioral Scientist, v. 8, n. 3, 1964] 
	A partir de meados de 1970 esse entendimento foi superado, através da elaboração de trabalhos que evidenciavam os efeitos negativos da corrupção. 
	Leopoldo Ubirante Carreita Pagotto, em tese de doutorado sobre o tema, traz a informação de que o trabalho “Corrupção: um estudo em economia política, publicado em 1978” de Susan Rose-Ackerman[footnoteRef:6] foi um divisor de água nesse tema. [6: 	PAGOTTO, Leopoldo Ubiratan Carreiro. O combate à corrupção: a contribuição do direito econômico. 2010. 413 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 76.] 
	Nesse novo período, o contexto geopolítico estava marcado pela abertura do mercado, reformas do Estado, agenda política liberal. Passou-se a analisar a corrupção à luz do custo e benefício, e descartaram a hipótese de que a corrupção gerava efeitos benefícios, pelo contrário, passou-se a defender que ela era responsável pelos altos custos aos cidadãos e óbice ao desenvolvimento[footnoteRef:7]. [7: 	MAURO, Paolo. The effects of corruption on growth and public expenditure. In: HEIDENHEIMER, Arnold; JOHNSTON, Michael (Ed.). Political corruption. Concepts and contexts. New Brunswick: Transaction Publishers, 2005.] 
	A corrupção é um câncer que corrói a gestão pública. É maldade, improbidade, desonestidade e afronta claramente o princípio da moralidade administrativa. “Pelo seu efeito perverso acaba por minar os princípios basilares que estruturam o Estado Democrático de Direito[footnoteRef:8]. [8: 	MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Controle da administração pública pelo Ministério Público. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 201.] 
	Souza, Piedade e Santin (2018) ao tratar sobre a corrupção, traz também a prática de improbidade administrativa, sob a perspectiva de que ambas prejudicam a sociedade. 
“corrupção e a improbidade são ilícitos que ensejam o desvio e desperdício de recursos públicos, não apenas drenam e impossibilitam a implantação das políticas públicas e precarizam o Estado como também corroem e degradam sentimentos gregários e éticos salutares para o desenvolvimento da sociedade democrática. Elas solapam a legitimidade das instituições públicas e atentam contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos[footnoteRef:9].” [9: 	SOUZA, Renee do Ó; PIEDADE, Antonio Sergio Cordeiro; SANTIN, Valter Foleto. Sinais de direito fundamental a uma boa administração no Brasil. em Tempo, Marilia, v. 17, n. 1, p.11-36, ago. 2018.] 
	E continuam:
“A corrupção e a improbidade são práticas que corrompem o tecido social de forma a tornar todas as relações entre Estado e sociedade permeados de um sentimento intolerável de desconfiança e descrédito. Essa suspeita depõe contra os maiores valores humanos da sociedade moderna como a democracia, a república, a pacificação dos conflitos social.”
	Os efeitos da corrupção são deletérios.	Rogério Gesta Leal elucida que, quando a corrupção encontra-se dispersa em todo o corpo político e mesmo tolerada pela comunidade, as pessoas mais necessitadas sofrem de forma mais direta com os efeitos disto, haja vista que as estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com os temas que lhes rendem vantagens seja de grupos, seja de indivíduos, do que com os interesses públicos vitais existentes: hospitais públicos deixam de atender pacientes na forma devida porque são desviados recursos da saúde para outras rubricas orçamentárias mais fáceis de serem manipuladas e desviadas como prática de suborno e defraudação; famílias em situação de pobreza e hipossuficiência material não podem se alimentar porque os recursos de programas sociais são desviados para setores corruptos do Estado e da Sociedade Civil; as escolas públicas não têm recursos orçamentários à aquisição de material escolar em face dos desvios de recursos para outros fins, e os alunos ficam sem condições de formação minimamente adequadas[footnoteRef:10]. [10: 	 LEAL, Rogério Gesta. Os efeitos deletérios da corrupção em face dos direitos humanos e fundamentais. In: LEAL, Rogério Gesta; SILVA, Ianaiê Simonelli da (Org.). As múltiplas faces da corrupção e seus efeitos na democracia contemporânea. Santa Cruz do Sul: Unisc, 2-14. p. 10.] 
	Percebe-se, portanto, que dentre tantos efeitos negativas da corrupção, a afetação aos direitos sociais está no epicentro, contudo verificar a conexão da corrupção e dos direitos sociais se torna complexo, pois delimitar a ação de um indivíduo, nexo e o dano consequente dessa ação, depende de investigação profunda de todos os processos da corrupção que, muitas vezes, não chegam ao conhecimento das autoridades fiscalizadoras[footnoteRef:11]. [11: 	PAIANO, Biltis Diniz. O impacto da corrupção na efetivação dos direitos sociais. Revista Diálogo Jurídico, Fortaleza, v. 20, n. 20, p.51-68, dez. 2015, p. 60.] 
	Portanto, tendo em vista a complexidade de verificar a conexão da corrupção com os direitos sociais, o presente trabalho partirá da análise um caso concreto a fim de testar nossa hipótese, verificar se a lei de improbidade administrativa pode ser um instrumento de efetivação de direitos sociais, em especial, o da moradia.
	
2	PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA E O DIREITO SOCIAL À MORADIA.
	
	O direito à moradia é um dos direitos sociais elencados no art. 6º da CRFB/1988, que foi introduzido pela Emenda Constitucional 26, de fevereiro de 2000 (EC26/2000). Esse direito pode ser conceituado como prerrogativa da pessoa possuir um local seguro para repousar e promover atividades ligadas à dignidade. Deve-se enfatizar que a questão da dignidade permeia toda a história no que diz respeito à questão de moradia[footnoteRef:12]. [12: 	GOMES, MagnoFederici; SANTOS, Ariel Augusto Pinheiro dos. Justiça social, desenvolvimento sustentável, direito fundamental à moradia e delegação legislativa disfarçada no programa Minha Casa, Minha vida. Argumenta Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 25, p. 191-214, mar. 2017. Universidade Estadual do Norte do Paraná.] 
	O programa Minha Casa, Minha vida, por sua vez, é uma política pública que visa combater o grande déficit imobiliário ainda existente no Brasil, atrelada à necessidade de efetivação dos direitos e garantias sociais previstos na redação do Artigo 6° da Constituição Federal Brasileira[footnoteRef:13]. [13: 	LUCA, Guilherme Domingos de; LEÃO JÚNIOR, Teófilo Marcelo de Arêa. Minha casa, minha vida: extensão do direito à moradia e proteção constitucional. Scientia Iuris, [s.l.], v. 20, n. 1, p.79-101, 28 abr. 2016. Universidade Estadual de Londrina.] 
	Referido programa é regulado pela lei nacional n° 11.9777/2019, e tem por objetivo promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais ou a requalificação de imóveis urbanos (art. 4°).
	Sobre a existência do grande déficit imobiliário ainda existente no Brasil, José Antonio Remédio e Larissa dos reis Nunes, trazem uma explicação histórica.
	Para referidos autores, quando no Brasil se iniciou o movimento que culminou com a abolição da escravatura, a terra passou a ser o objeto de lucro para o sistema capitalista e, portanto, foi necessária a produção de uma série de normas, como a Lei n. 556, de 25-6-1850 (Código Comercial), a Lei n. 601, de 3 18- 9-1850 (que estabeleceu no país o sistema de compra e venda da propriedade) e a Lei n. 1.237, de 24-9-1864 (Legislação Hipotecária), que viessem a proteger a propriedade privada, uma vez que a terra, à época, era ocupada através das sesmarias e, posteriormente, com a extinção deste regime, por meio de ocupações individuais[footnoteRef:14]. [14: 	REMEDIO, José Antonio; NUNES, Larissa dos Reis. Direito fundamental à moradia: justiciabilidade e efetividade. Argumenta Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 28, p. 125-154, jul. 2018. Universidade Estadual do Norte do Paraná.] 
	Nesse contexto é que se mostra necessidade garantir a efetividade do direito à moradia.	Brito Filho e Ferreira, ao tratar sobre o direito à moradia sob uma perspectiva rawsiniana, afirmam que, garantir a efetividade do direito à moradia traz, como decorrência, não apenas a salvaguarda da dignidade, como também reduz a desigualdade social, um dos objetivos expressos na CRFB/88[footnoteRef:15]. [15: 	FERREIRA, VERSALHES ENOS NUNES; BRITO FILHO, JOSÉ CLAUDIO MONTEIRO DE. Direito à moradia e liberalismo Rawsiano. Argumenta Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 30, p. 239-272, jun. 2019] 
	Contudo, para garantir o direito social à moradia é preciso, antes de tudo, salvaguardá-la, e por isso é que o Estado precisa dispor de mecanismos capazes de protegê-la.
	Corrupção e irregularidades no Programa Minha Casa, Minha Vida, inexoravelmente trazem prejuízos ao direito à moradia, pois implicam em qualidade ruim das casas, desvio de recursos, menos investimentos, redução no número de famílias beneficiadas, etc.
	
3	INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E RELATÓRIO DA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO.
	O Ministério Público Federal tem investigação em aberto sob n° 0013288-86.2014.4.03.6181[footnoteRef:16] em que se investiga se ex-servidores do Ministério da Cidade, entre eles os Daniel Vital Nolasco, ex-Diretor da Produção Habitacional até 2008, e José Iran Alves dos Santos, ex-garçom. Ambos são acusados de valer-se de conhecimentos sobre o funcionamento e as fragilidades do Programa Minha Casa Minha Vida, para fraudá-lo. [16: 	FEDERAL, Ministério Público. Notificada: RCA ASSESSORIA. Disponível em: <http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/index2#/detalhe/920000000000011460572modulo=0&sistema=portal>. Acesso em: 26 fev. 2020.] 
	A investigação aponta que as fraudes voltavam-se tanto contra o Programa Minha Casa Minha Vida, como contra as construtoras que se propunham a participar da construção das casas populares.
	No primeiro caso, consistiam em falsificar assinaturas de prefeitos para viabilizar a liberação de financiamentos e em criar empresas de fachada com os mesmos sócios da RCA Assessoria para obter repasses dos valores públicos. No segundo, consistia em cobrar valores indevidos, a título de consultoria, das construtoras envolvidas. 
	A investigação acusa que Daniel Vital Nolasco e José Iran Alves dos Santos, não eram apenas sócio das RCA Assessoria, mas de várias empresas de fachada, localizadas no mesmo endereço e constituídas com o único propósito de receber os valores dos financiamentos das moradias, que jamais viriam a ser construídas. Segundo a investigação, a RCA Assessoria era, ao mesmo tempo, fiscalizadora e fiscalizada. Era correspondente bancário de 7 (sete) pequenas instituições financeiras autorizadas a repassar verbas federais nos programas de casas populares para cidades com menos de 50.000 (cinquenta mil) habitantes (Luso Brasileiro, Bonsucesso, Paulista, Schahin, Tricury e Morada) e, nessa condição, era responsável por acompanhar o desenvolvimento das obras para assegurar a adequada utilização dos recursos do programa e, ao mesmo tempo, era também a proprietária, direta ou indiretamente, das empresas de fachada contratadas para a edificação das moradias. 
	Além da contratação de empregas de fachada, a investigação busca verificar se a RCA Assessoria também cobrava valores indevidos em detrimento de pequenas construtoras interessadas em participar do programa, sob o pretexto de prestação de consultorias, prática que é expressamente vedado nos contratos de correspondente bancário.
	A Controladoria Geral da União também produziu relatório de auditoria especial n° 00190.007767/2013-01[footnoteRef:17], cuja unidade auditada foi a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades – SNH. 	Esse relatório teve por objeto realizar uma auditoria Especial no Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV, especificamente na modalidade Oferta Pública de Recursos orientada para municípios com população de até 50.000 habitantes. [17: 	UNIÃO, Controladoria Geral da. Controladoria Geral da União: relatório de auditoria especial n° 00190.007767/2013-01,. Disponível em: <https://auditoria.cgu.gov.br/download/3258.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2020.] 
	Os resultados das fiscalizações indicaram uma baixa qualidade generalizada dos imóveis entregues, falta de infraestrutura mínima, baixa execução com atrasos e obras abandonadas. Os principais problemas constatados no relatório de auditoria especial n° 00190.007767/2013-01 foram:
1. Qualidade deficiente dos imóveis entregues: grande ocorrência de defeitos construtivos e da não entrega de serviços contratados e pagos (reboco, pintura, forro, vidros entre outros);
2. Grande ocorrência de atrasos nas obras: da Oferta de 2009, 32% dos imóveis ainda não foram concluídos e da Oferta de 2012, 83% dos contratos ainda não iniciados;
3. Grande ocorrência de obras em terrenos sem regularidade fundiária e imóveis entregues também sem a devida regularização;
4. Obras entregues sem a infraestrutura mínima, principalmente quanto à solução para o esgotamento sanitário;
5. Trabalho informal na maioria das obras visitadas. Trabalhadores sem registro e sem equipamentos de proteção individual;
6. Risco patrimonial do Governo Federal ao antecipar recursos aos bancos e agentes financeiros sem qualquer garantia.
7. Ganhos financeiros indevidos dos bancos e agentes financeiros com os recursos antecipados e não repassados para as construtoras (“floating”).
	Em resumo, foi verificado que os problemas apontados devem-se principalmente às fragilidades dos normativos e à falta de atuação e capacidade técnico-operacional da maioria dos bancos e agentes financeiros, associado à deficiência na supervisão do Ministério sobre esses agentes. 
	Ainda no que se refere ao âmbito do relatório da CGU, ele apontou que construtoras com vínculos com a RCA Assessoria em Controle de Obras e Serviços Ltda, ou com ex-servidores do Ministériodas Cidades realizam obras no Programa (fl. 115). Para tanto, afirma que 
"Na oportunidade, os sócis da RCA Assessoria em Controle de Obras e Serviços Ltda, D**** V**** N***, principal responsável pelas articulações, era o Diretor de Produção Habitacional do Ministério das Cidades. Os requeridos, visando captar recursos, montaram diversas empresas em sues nomes ou de terceiros, para o fim de ‘atestarem a execução de serviços que não seriam prestados’. Estas empresas montadas viriam a contratar as construtoras, que por sua vez, eram constituídas em nome de familiares ou ‘laranjas’ dos sócios da RCA”[footnoteRef:18] [18: 	UNIÃO, Controladoria Geral da. Controladoria Geral da União: relatório de auditoria especial n° 00190.007767/2013-01,. Disponível em: <https://auditoria.cgu.gov.br/download/3258.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2020. fl. 115.] 
	Portanto, os exemplos acima mencionados, que aponta irregularidades envolvendo agentes públicos e empresas no desempenho da política pública de moradia do programa Minha Casa, Minha Vida, permite inferir que há prejuízos aos beneficiários e ao erário, afinal, se há uma empresa responsável por acompanhar o desenvolvimento das obras para assegurar a adequada utilização dos recursos do programa ela jamais poderia ser, ao mesmo tempo, a proprietária, direta ou indiretamente, das empresas de fachada contratadas para a edificação das moradias.
	Nessa senda é que se apresenta a lei de improbidade como mecanismo para reparar os danos ocorridos que, se confirmados, poderão implicar em penalidades graves aos agentes públicos, agentes privados, e empresas envolvidas, nos termos do art. 12 da lei n° 8.429/92.