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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA VICTOR HUGO DE SOUZA BARRETO FESTAS DE ORGIA PARA HOMENS: TERRITÓRIOS DE INTENSIDADE E SOCIALIDADE MASCULINA NITERÓI 2016 2 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA VICTOR HUGO DE SOUZA BARRETO FESTAS DE ORGIA PARA HOMENS: TERRITÓRIOS DE INTENSIDADE E SOCIALIDADE MASCULINA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Antropologia. NITERÓI 2016 3 Banca Examinadora __________________________________ Prof. Orientador – Dra Ana Claudia Cruz da Silva Universidade Federal Fluminense __________________________________ Prof. Co-Orientador - Dra Maria Elvira Díaz-Benítez Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dra. Laura Lowenkron Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dra. Regina Facchini Universidade Estadual de Campinas __________________________________ Prof. Dr. Antônio Rafael Barbosa Universidade Federal Fluminense __________________________________ Prof. Dr. José Colaço Dias Neto Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes __________________________________ Prof. Dra. Fatima Lima (suplente externo) Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dr. Frederico Policarpo de Mendonça Filho (suplente interno) Universidade Federal Fluminense 4 Resumo Neste trabalho, tenho a intenção de apresentar uma reflexão sobre determinadas práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do Rio de Janeiro em reuniões de orgia, a partir de uma etnografia realizada em quatro desses eventos comercialmente organizados na cidade. O que a experiência da sexualidade nessas festas parece colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, onde ao mesmo tempo em que uma determinada forma de masculinidade é elaborada há também um modo singular de engajamento no mundo. Esta tese busca compreender essas interações a partir da análise daquilo que estou chamando aqui dos três “princípios” desses eventos: a “masculinidade”, a “discrição” e a “putaria". Também me detenho no debate sobre a metodologia de pesquisas em contextos de interação sexual. Abstract In this work , I intend to present a reflection on certain sexual practices conducted among men in the city of Rio de Janeiro in orgy meetings, from an ethnography in these four commercially organized events in the city . What the experience of sexuality these parties seem to put into play are other modes of subjectivity and corporalization , properly intensive modes , where at the same time that a particular form of masculinity also is developed there a singular way of engagement in the world.This thesis seeks to understand these interactions by analyzing what I am calling here from the three "principles" of these events: "masculinity", "discretion" and "putaria." I also dwell on the debate on methodology of research in contexts of sexual interaction. Palavras-chave: Práticas sexuais, Masculinidade, Orgia, Rio de Janeiro Keywords: Sexual practices, Masculinity, Orgy, Rio de Janeiro 5 SUMÁRIO Agradecimentos....................................................................................................................9 Primeiro mergulho................................................................................................................13 Introdução............................................................................................................................17 Do tema e de como cheguei a ele.............................................................................17 De alguns recortes.....................................................................................................26 Um(não) quadro teórico............................................................................................26 Subjetividade e políticas da singularidade.....................................................26 As questões e “os princípios”....................................................................................32 Algumas observações sobre o método.....................................................................36 Negociações..............................................................................................................40 Corpo e afetação.......................................................................................................43 Estrutura do texto.....................................................................................................49 PARTE I – OS PRINCÍPIOS Instantâneos de uma “putaria entre machos”.....................................................................52 Capítulo I – O princípio da masculinidade..........................................................................56 Entre iguais, só entre machos...................................................................................57 Entre diferentes, uma masculinidade hierarquizada................................................64 Caráter espartano X gaysmo......................................................................................71 Genealogia de uma masculinidade............................................................................73 O desejo pelo macho..................................................................................................81 6 Penetrar e ser penetrado..................................................................................86 “Habitando a norma”, o exagero que (des)faz gênero......................................93 O show: exagero e grotesco..............................................................................96 O corpo do homem............................................................................................101 Fragmentos de interações sigilosas...............................................................................110 Capítulo II – O princípio da discrição............................................................................114 A química da orgia..............................................................................................115 Silêncio e escuridão.............................................................................................120 Erótica do anonimato..........................................................................................128 O devir-multidão da orgia...................................................................................142 “Lugares outros”..................................................................................................148 As festas...............................................................................................................157 Festa do Apê.............................................................................................157 Festa do Vale Tudo....................................................................................160 Clube Meetings.........................................................................................163 Black Hall...................................................................................................166 Um momento de efervescência.........................................................................................170 Capítulo III – O princípio da putaria.................................................................................173 Intensidade e experimentação...............................................................................174O corpo na economia do prazer orgiástico............................................................176 A putaria..................................................................................................................179 Putaria X romance.......................................................................................183 Disposição....................................................................................................185 7 A repetição na orgia........................................................................................190 Novo mergulho................................................................................................194 O que pode o corpo?.......................................................................................196 Limites e fissuras.............................................................................................202 Prazer e risco...................................................................................................209 E não existe desigualdade?..............................................................................218 A fim de concluir..............................................................................................224 PARTE II – OUTRAS DOBRAS A orgia e a festa...........................................................................................................230 A orgia e a pornografia.....................................................................................230 A orgia na Antropologia....................................................................................235 A orgia como ritual: entre o sagrado e o profano.............................................243 A orgia como prática hedonista.........................................................................248 “Libertinos libertários”......................................................................................253 Sexo e transgressão...........................................................................................260 A festa................................................................................................................263 EPÍLOGO: Quando a pesquisa é o problema................................................................271 1. O sexo e a natureza......................................................................................274 2. O sexo e o bizarro.........................................................................................277 3. O pesquisador com “segundas intenções”...................................................281 4. (O riso)..........................................................................................................286 5. Escrita “erótica-científica” e seus perigos....................................................287 6. Fechando.......................................................................................................292 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................294 ANEXOS Anexo I – Cartazes das festas: imagens de uma masculinidade desejada..............319 Anexo II – “Manifesto Espartano” por Ricardo Líper..............................................330 Anexo III – Imagens do show....................................................................................343 9 Agradecimentos Ainda que a responsabilidade das coisas ditas neste trabalho sejam ao final toda minha, o percurso de sua construção não se fez sozinho. E esse é o momento onde devo/posso agradecer àqueles que, mesmo nos mais rápidos encontros, contribuíram de alguma forma para que essa tese fosse feita. Em primeiro lugar, quero agradecer a todos aqueles que durante os quatro anos de doutorado ocuparam a posição de meus interlocutores, tanto os que já eram conhecidos ou se tornaram mais próximos quanto aos inúmeros que permaneceram anônimos. Todos aqueles que seja dentro ou fora dos espaços das festas compartilharam comigo alguma informação, experiência, fantasia ou desejo que me ajudou a pensar sobre o tema da tese. Que durante o trabalho de campo me deixaram passear, observar e me permitiram atravessar seus desejos e corpos nem sempre sabendo que aquilo poderia contribuir para uma pesquisa. Obrigado pelos bons e mesmo pelos maus encontros. Agradeço especialmente a Chicão, Igor, Renato, Jack e Felipe por permitirem que seus eventos fossem espaços possíveis de etnografia, além da paciência e interesse com que receberam as minhas constantes perguntas. Três professores foram essenciais para que esse trabalho fosse realizado. Não digo que foram figuras inspiradoras, porque nenhum dos três possui vocação para totem, mas foram “estimuladores” das ideias que levaram a minha formação e a essa tese. Agradeço à Ana Claudia Cruz da Silva, minha orientadora, que mesmo não tendo uma intimidade com os debates específicos do tema, aceitou o desafio de me ajudar a pensá-lo e de orientar um objeto de pesquisa complexo em vários sentidos (e todas as configurações que a pesquisa tinha anteriormente até chegar a esse recorte final). Obrigado pela confiança, pela cumplicidade, pela leitura e comentários dedicados, pela disposição nos meandros burocráticos, pelas palavras de incentivo e os puxões de orelha necessários. A Maria Elvira Díaz-Benítez, minha co-orientadora, cujo acompanhamento nesse percurso foi essencial. Foi a partir de seus cursos, seus trabalhos e suas falas que tive contato com uma bibliografia e discussões que, até então, desconhecia. E foi com o convívio tanto nas salas de aula quanto nas divertidas saídas e reuniões que muitos dos insights 10 dessa tese se produziram. Obrigado por ter me recebido, pelos comentários e indicações, além das incontáveis chamadas de atenção para coisas que eu teimava em deixar de lado. A Antônio Rafael Barbosa, professor presente na banca, cujo acompanhamento foi essencial em minha formação. Foi a partir de seus cursos e do contato com seus trabalhos que não só eu, mas toda uma geração de pesquisadores, foi afetada tanto no pensamento como na maneira de se fazer Antropologia. Agradeço pela amizade, pelos encontros e trocas durante esses anos, tanto pelas orientações anteriores quanto, principalmente, por ter me apresentado uma possibilidade de perspectiva e questionamento das coisas muito mais interessante e produtiva. Dois outros professores precisam ser mencionados na contribuição desse trabalho. Miguel Vale de Almeida, meu co-orientador em Portugal, por ter aceitado me acompanhar durante o período de estágio em Lisboa. Agradeço pela tranquila e confortável recepção num país estrangeiro, pelos comentários sobre as primeiras versões dos capítulos, pelas indicações de leitura e pelas conversas e cafés sempre com observações e trocas de ideia interessantes. Agradeço também ao professor Roberto Kant de Lima não só pelo interesse e disposição de ajuda durante os anos de doutorado, mas também por ter me proporcionado um espaço que foi essencial em minha formação de pesquisador desde a graduação nos núcleos os quais coordena. A Laura Lowenkron pelos seus importantes comentários durante a qualificação deste trabalho e por ter aceitado fazer parte da banca. Aos outros professores participantes da banca: Regina Facchini, Antônio Rafael Barbosa, José Colaço Dias Neto, Fátima Lima e Frederico Policarpo Filho já agradeço a disponibilidade e a leitura. Agradeço aos comentários e diálogos realizados com outros professores em eventos e congressos onde pude apresentar os desenvolvimentos iniciais dessa pesquisa, principalmente a Regina Facchini, Isadora Lins França, Júlio Assis Simões, Sergio Carrara, Fátima Lima, Luiz Rojo e José Resende. Do Programa de Pós-Graduação em Antropologiada UFF, queria agradecer aos professores Ovídio de Abreu Filho, Simoni Lahud Guedes, Rolf Malungo de Souza, Carolina Grillo e José Colaço Neto pelos cursos acompanhados durante o doutorado e que contribuíram para as discussões da tese. A equipe administrativa na pessoa de Marcelo de Souza por ter me ajudado e aguentado com as questões burocráticas e constantes perguntas sobre a possibilidade de bolsas. Ainda aos amigos de vida, carreira e “correria” 11 Alessandra Freixo, Alex Machado, Eric Macedo, Flavia Medeiros, Rômulo Labronici e Vânia Nascimento pelas presenças, bares, almoços, viagens e constantes trocas. Aos colegas pesquisadores e funcionários do NUFEP (Núcleo Flumimense de Estudos e Pesquisas) e do INCT-InEAC (Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos) coordenados pelo professor Roberto Kant, pelo ambiente de socialização e incentivo à pesquisa. Do outro lado da Baía a composição de um novo território no PPGAS do Museu Nacional-UFRJ me foi uma das coisas mais ricas tanto pessoalmente quanto no agenciamento de diálogos. Agradeço aos cursos e falas de professores como Maria Elvira, Adriana Vianna, Laura Lowenkron e Luiz Fernando Dias Duarte. A todos os colegas pesquisadores componentes do NuSEX (Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade) pelo estimulante debate e troca sem os quais essa pesquisa definitivamente não teria sido possível. Agradeço especialmente aos novos e já queridos amigos Lucas Freire, Michel Carvalho, Everton Rangel e Barbara Pires. Do outro lado do oceano, um pouco antes do término do doutorado, uma outra importante composição territorial me foi possível. Agradeço ao Cnpq pelos recursos financeiros durante os nove meses de bolsa de doutorado-sanduíche realizado no ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa) sob orientação do professor Miguel. Aos professores José Resende e Bruno Dionísio da CESNOVA (Universidade Nova de Lisboa) pela disposição e disponibilidade de ajuda com as primeiras tentativas de pedido de bolsa. A Pedro Pinela com a ajuda burocrática. Aos colegas pesquisadores e funcionários do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia) meu muito obrigado pela calorosa e afetuosa recepção e pela troca de ideias, principalmente a Antónia de Lima, Catarina Frois, Cristina Santinho, Mafalda Sousa, Fernanda Oliveira e Cecilia Luis. Aos “colegas de sanduíche” Felipe Viero, Normando Viana e Edyr Oliveira. A Gloria Martins pela amizade e atenção. E a Rodrigo Oliveira, melhor “rommie” que eu podia pedir. Aos colegas de trabalho e alunos do curso de Segurança Pública da UFF (durante os períodos de estágio docência), do Colégio e Curso PH e do Colégio Pedro II. Os dois últimos foram durante quase todo o doutorado a minha única fonte de recursos para essa pesquisa (realizada em sua maioria sem bolsa). Agradeço a meus alunos por terem me ensinado a gostar de dar aulas e a me esforçar para tentar ser um bom professor como os que tive e, 12 principalmente, aos alunos do Ensino Médio pelas insistentes perguntas e curiosidades sobre a minha pesquisa depois que procuraram meu nome no Google. As minhas amigas desde o tempo de colégio Ana Pires, Luciana Ramos, Renata Raeder e Virginia Bitencourt pelas trajetórias que ainda permanecem unidas. Obrigado pelos cafés e o nosso ritual do fondue anual, cada vez mais numeroso com a vinda dos sobrinhos. A minha família, principalmente minha mãe e minha avó, eternas incentivadoras de minhas escolhas. A Nei Fonseca por ter acompanhado boa parte desse processo, agradeço ao incentivo e torcida incondicional e à paciência em incontáveis momentos. A Jôse Sales por ter me ajudado no equilíbrio e a pensar questões que estavam ali, mas que não me dava conta. A Erika Fraenkel pela “assessoria energética”. Do campo alguns bons encontros levaram a novas amizades. Obrigado Nelson, Ricardo, Diego, João, Everton, Halisson e Marcio. Durante o período do sanduíche em Portugal e das visitas a outras cidades, alguns bons encontros também fizeram toda a diferença. De pequenas ajudas, dicas e informações compartilhadas, apresentações da cidade, boas companhias, cafés e bebidas, ensinamentos e experiências que foram compondo meus trajetos. Em Lisboa, meu obrigado a Filipe, Vasco, Rui, Louke, Gonçalo e Nuno. Em Paris, Jean e Gilles. Em Barcelona, Matthew e Marko. Em Roma, Michele. Em Praga, Lubôs. Em Amsterdã, Javier. E em Berlim, Jann, Frank e Alexander. 13 Primeiro mergulho Desembarco das barcas e chego à Praça XV por volta das quinze horas. Nessa tarde de domingo o número de pessoas que fazem a travessia entre as cidades de Niterói e Rio de Janeiro pela Baía de Guanabara não chega perto do volume dos dias durante a semana. À primeira vista, até causa estranheza ver o Centro da cidade tão pouco movimentado como de costume. Ali perto do Paço Imperial apenas vendedores ambulantes, moradores de rua e jovens praticando acrobacias no skate. Nem cinco minutos de caminhada e numa rua estreita de paralelepípedos chego em frente a um dos principais locais onde, desde o início do ano de 2013, faço trabalho de campo, desenvolvendo minha pesquisa para a tese de doutorado sobre festas de orgia. Um cartaz na porta com a imagem de sombras de corpos masculinos e de espadas se cruzando indica: “Festa do Vale Tudo” e embaixo: “Apenas para homens”. Um segurança abre a pesada porta para mim e chego à pequena recepção, de onde ouço os sons abafados de música alta. Sou atendido pelo recepcionista que me pede um primeiro nome para o registro (esse nome não precisa ser conferido por nenhum tipo de documento) e para quem faço o pagamento adiantado do ingresso da festa (nesse dia quarenta reais no dinheiro ou quarenta e cinco reais no cartão) e também recebo uma chave numerada de um armário para guardar meus pertences. Ao mesmo tempo, um rapaz negro musculoso usando apenas uma apertada sunga branca coloca no meu pulso uma pulseira colorida numerada (o número da pulseira vai indicar no serviço computadorizado o que eu, porventura, consumir durante a festa) e entrega em minhas mãos duas camisinhas e um sachê de lubrificante. Enquanto abre uma segunda porta para mim, avisa que se eu precisar de mais camisinha posso voltar para pegar. O ambiente de entrada da festa é uma boate, o que faz com que já seja recebido por uma música eletrônica alta e por uma grande quantidade de luzes se movimentando rapidamente. A chave que recebi indica que meu armário fica no quarto andar, por isso passo rápido pela boate até alcançar a escada, já um pouco tonto pela mudança de ambiente e excesso de estímulos. Enquanto passo e subo as escadas, percebo os olhares de avaliação e curiosidade dos homens de sunga ou cueca já presentes no local. É um olhar 14 característico que começa pelos olhos, desce percorrendo o corpo da pessoa, prestando atenção nas formas e nos volumes, e sobe para parar nos olhos novamente. Se houver interesse o contato visual permanece e se intensifica, se não, desvia-se em busca de outro. Os lances de escada são separados por longos corredores e por espaços com uma luz muito baixa, ou mesmo na penumbra. De início, até que possa acostumar meu olhar com a iluminação e o clima do local, faço esse percurso ainda tonto e com cuidado para não esbarrar ou tropeçar no caminho ou nas pessoas que estão em permanente movimento pela casa. Vejo espaços com luzes vermelhas, outras verdes e também azuis. Os outros sentidos começam a se aguçar. Passando pelo segundo andar, ouço gemidos vindos do “dark room" (espécie de “quarto escuro”, ambiente de completa penumbra onde ocorrem interações sexuais; é muito comum em boates e saunas). Na entrada do dark estão alguns rapazes parados encostados na parede. Meu olhar cruza com um deles, que ao repará-lo, abaixa a mão e pega no próprio volume dopênis marcado na cueca e fica ali massageando e me observando ao mesmo tempo. Quando passo por ele, o rapaz estende a mão e segura meu braço carinhosamente, mas com força suficiente para me puxar para perto. Aproxima-se e diz no meu ouvido: “Não gosta?” Roça o pênis já ereto na minha perna e me olha para ver minha reação: “Só de te ver... Olha como eu fico!” Os outros também observam a cena. Sorrio, me afasto devagar e continuo o caminho para o quarto andar. Passo rápido pela outra boate do terceiro andar também com música alta, mas de estilo diferente da primeira, pois aqui o repertório é de clássicos da MPB. Cruzo com outras pessoas que dão maior ou menor atenção à minha passagem. E finalmente consigo chegar à área dos armários do quarto andar. Tiro a camisa e a bermuda que estou vestindo, ficando apenas com sunga e tênis. O vestuário obrigatório dessa festa apenas permite sungas, cuecas ou nudez completa. No quarto andar é também onde ficam as “suítes”: são três quartos com camas coletivas iluminadas por uma luz vermelha baixa ou no escuro. Na primeira entro com certa dificuldade pela quantidade de pessoas que já estão ali dentro, chego a contar em torno de vinte homens. Demoro a conseguir distinguir alguma coisa na confusão de corpos, no cheiro de perfumes misturados, suor e umidade e nos sons de sexo e gemidos do ambiente. Consigo perceber uma pessoa deitada na cama, de barriga para cima, sendo chupada por um rapaz que está de pé e inclinado, enquanto um terceiro o penetra por trás. O que está sendo 15 penetrado interrompe às vezes o sexo oral para gemer alto, o que estimula outros a se aproximarem dele e também oferecerem o pênis para serem chupados. Outros apenas permanecem observando a penetração enquanto se estimulam. Toda a ação é feita no silêncio, ou melhor, na ausência de fala, já que os gemidos, suspiros, respirações ofegantes, e os barulhos do sexo são os únicos sons do ambiente. A linguagem utilizada aqui é a corporal e do desejo desencadeado por ela. Nesse agrupamento, a própria proximidade com outros corpos e o “roça-roça” característico é fonte de estímulo. Tentando visualizar melhor a interação da cama coletiva, levo um tempo para me dar conta que alguém ao meu lado tenta colocar a mão por dentro da minha sunga e alcançar o meu pênis. Retiro a mão da pessoa devagar, sem demonstrar “falta de educação” ou de “fairplay” com a interação e continuo observando as várias atividades que acontecem ao mesmo tempo ao meu redor. O rapaz que está deitado na cama sendo chupado goza, se levanta e sai do quarto. A multidão se desfaz por um momento com sua saída e toma uma outra configuração com outras pessoas. Saio do quarto também e vou olhar o que está ocorrendo nos outros espaços da casa. Sou atraído pelos sons vindos da suíte de luz vermelha baixa. Quando entro vejo apenas um casal transando. O que está sendo penetrado está de pé com as pernas afastadas e inclinado apoiando as mãos na borda de uma hidromassagem presente no quarto. Não consigo ver o seu rosto. O que o está penetrando está de pé, por trás dele e de frente para a porta. Assim que entro, ele me olha, mas não para o que está fazendo. É negro e carrega no pescoço um terço de cor branca com crucifixo que chama a atenção. Depois, conversando com ele, me disse que o uso do crucifixo é mais por motivos estéticos, “porque dá um contraste legal com a pele, o preto e o branco”, do que por motivos religiosos. Outros começam a se aproximar também e ficam ali vendo a interação. Mesmo assim, o rapaz do crucifixo continua olhando fixamente para mim. Fico sem saber o que fazer, se sustento ou desvio o olhar, desconfortável e interessado ao mesmo tempo com a situação. Um dos expectadores se aproxima de mim e fala no meu ouvido: “ele quer fazer o mesmo com você...”. Continuo sem saber se permaneço ou não observando a cena, mas penso que talvez manter o olhar e o interesse vai me permitir uma aproximação posterior com o rapaz, por isso escolho ficar. 16 A observação dessas práticas sexuais ainda ia se estender por toda aquela tarde de domingo, pelas sete horas de duração da festa, que culmina, ao final, com a apresentação de um show de sexo ao vivo com atores na boate do primeiro andar. Essa festa voltada apenas para homens, uma nas quais desenvolvo a pesquisa, ocorre duas vezes ao mês, sempre aos domingos, nessa casa de cinco andares que também funciona nos outros dias como clube de swing. Soube que teve uma tentativa de uma festa de orgia voltada apenas para mulheres, mas que não deu certo por falta de público. Em comparação com os outros eventos que acontecem nesse local (o swing, as festas privadas e os eventos trans), a “Festa do Vale Tudo” é a que reúne o maior número de pessoas, de cento e cinquenta a duzentas, no caso aqui, de apenas homens. 17 INTRODUÇÃO “Enganam-se aqueles que pensam que erótico é o corpo. O corpo só é erótico pelos mundos que andam nele. A erótica não caminha segundo as direções da carne. Ela vive no interstício das palavras. Não existe amor que resista a um corpo vazio de fantasias. Um corpo vazio de fantasias é um instrumento mudo, do qual não sai melodia alguma” (Rubem Alves) Do tema e de como cheguei a ele Comecemos pelas apresentações. Esta tese é sobre a prática do sexo grupal/coletivo realizada entre homens em reuniões ou eventos de orgia. Mais especificamente uma etnografia de festas de orgia entre homens que acontecem na cidade do Rio de Janeiro. Note-se que esse primeiro recorte (o fato de ser um evento exclusivo para homens) não foi intencional. Foi uma característica dada pelo campo e que vai ser um dos pontos que irei explorar nesse trabalho. Algo que é importante já apontar é que a etnografia de práticas sexuais efetivas é um campo que vem se estabelecendo cada vez mais na antropologia brasileira. Os trabalhos com esses cenários etnográficos exploram como é possível produzir conhecimento das “práticas sexuais/eróticas que desafiam os efeitos políticos da repugnância e da transgressão”. São trabalhos que lidam com os limites daquilo que se naturalizou achar aceitável, correto ou normal. “Abordam ainda as maneiras como se constroem subjetividades e identidades coletivas a partir de práticas sexuais alternativas, identificando suas condições de produção, suas transformações e os discursos que os agentes utilizam para legitimá-las” (Fígari e Díaz-Benitez, 2009, 21). Esses estudos acabam por permitir não só o entendimento dos limites das práticas em si, mas também das nossas próprias ferramentas de análise ao colocarem esses temas em questão. Este trabalho pode ser entendido como uma contribuição a essa temática de pesquisa. Aqui dedico-me, por um lado, a mapear as orgias entre homens enquanto zona de intensidade, propondo-me a investigar antes territorialidades do que identidades, e, por outro, a descrever e analisar o funcionamento desses eventos tal como acionado pelos 18 frequentadores dessas festas. Meu interesse é analisar a multiplicidade em relação aos jogos e às práticas sexuais desses eventos buscando entender o que dizem os corpos que interagem no sexo coletivo e que utilizam essas festas como territórios existenciais para a efetuação de suas práticas e a realização de seus desejos. Considero também, neste exercício etnográfico, os processos de construção da subjetividade dos atores e da micropolítica dos corpos gestada nesses contextos e cenários, levando em conta a molecularidade de seus desejos. Já dizia Deleuze que: O desejo é o sistema de signos a-significantes com os quais se produz fluxos de inconsciente no campo social. Não há eclosão de desejo, seja qual for o lugar em que aconteça, pequena família ou escolinha de bairro, que não coloque em xeque as estruturas estabelecidas. O desejoé revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos (Deleuze e Parnet, 1998, 53). Desejo é entendido aqui como vontade, como algo que nos coloca em movimento, o que constitui nossos interesses pelas coisas e que encadeia nossos afetos. E é isso o que procuro aqui: o desejo como “processo de produção de universos psicossociais. O próprio movimento de produção desses universos” (Rolnik, 1989, 25), já que Não existe sociedade que não seja feita de investimentos de desejo nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, atualização de um certo tipo de sociedade. (Rolnik, 1989, 58) O analista social (ou o “cartógrafo”, nos dizeres de Rolnik) precisa estar atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar: sejam “os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência, a delinquência” (idem), ou, como principalmente no caso aqui, as práticas sexuais realizadas em festas de orgia. 19 Não é a primeira vez que adoto como estratégia de análise traçar o percurso dos desejos envolvidos em determinado campo. Explico-me: na minha dissertação de mestrado, defendida em abril de 2012, no âmbito do PPGA/UFF (e no prelo para publicação pela EdUFF), desenvolvi uma etnografia sobre a prostituição masculina junto a alguns garotos de programa, chamados de “boys”, a partir do trabalho de campo feito em algumas saunas da cidade do Rio de Janeiro (Barreto, 2012). As incursões iniciais e a exposição física nos espaços da sauna me fizeram perceber que as aproximações nesses contextos estão permeadas por expectativas que giram em torno do desejo. A estratégia adotada foi tentar mapear esse campo através desse elemento, tornando-o “objeto” e fio condutor da análise. O que fiz foi me aproximar, portanto, de uma “antropologia do desejo” (Perlongher, 1993), procurando compreender de que forma são compostos ou acionados os fluxos de afeto por um lado e o fluxo de dinheiro por outro, característica principal da prostituição. Após o término do mestrado e da aprovação na seleção do doutorado, pensei em enveredar pelo tema das novas configurações familiares e afetivas numa comparação entre Brasil e Argentina, acompanhando processos judiciais de adoção e casamento homoafetivos, um campo que, já que estamos falando disso, não me despertou tanto desejo. De saída já me incomodava um fenômeno que Handler (1994) aponta de que quanto mais próximo do aparelho de Estado, maior um processo de “endurecimento” das identidades, mais “identificações”, maior captura das formas de subjetivação. E o que está me interessando no momento é justamente a tensão entre esses “endurecimentos”, de como os atores demonstram um certo desejo pela norma e como buscam, ao mesmo tempo, uma dissolução dessas identidades, dos significados, da fuga de aparelhos de captura, estabelecendo, dessa forma, um campo que se pode chamar de “contra- representações” ou de uma própria socialidade contra o Estado (Barbosa, 2004)1 ou de “puro desejo”. 1 O uso do conceito socialidade aqui, ao invés de sociabilidade, é uma escolha consciente e metodológica. Já que, como vem demonstrando Strathern em seu trabalho na Melanésia (2006), ambas são formas distintas de se pensar a construção de relações sociais. A proposta que adoto nesse trabalho é a de entender as relações que se dão aqui a partir de um esquema de fluxos e de forças, nas quais se produzem formas específicas e singulares de se estabelecer vínculos interpessoais, suas socialidades. Não há aqui uma determinada moldura pré-existente que se referenciaria a um modelo de sociabilidade. Acredito que essa escolha conceitual e seu uso ficarão mais claros no segundo capítulo. 20 Reconheço a especificidade (e dificuldades) da minha investigação. Entre muitas possibilidades de práticas sexuais, certamente estou olhando para uma das que costumam ser consideradas “extremas” (principalmente para quem olha de fora), no duplo sentido de uso intenso da prática e de um tipo de experiência realizada apenas por uma determinada parcela de homens que enveredam nesse universo (ainda que a quantidade de pessoas presentes nessas festas seja sempre significativa). O que me impede tanto de generalizar o que se passa aí quanto de tomar o tempo dessas festas como algo da totalidade da vida dessas pessoas. Não que pensar a “totalidade” seja a minha intenção aqui (ou que a Antropologia ainda reivindique para si esse papel). Mas de, justamente, pensar o local desses eventos, o desejo pela intensidade dessas festas, aquilo que é produzido nas orgias e na prática do sexo coletivo que fazem com que seus participantes a desejem e retornem a elas. Com todos os riscos envolvidos nessa opção, acredito que há, ao menos, a vantagem de trazer tal temática para o debate antropológico. De alguns recortes Antes de partir para as discussões teóricas efetivamente, algumas palavras sobre as minhas escolhas. Definido o tema, o primeiro recorte feito foi quanto aos espaços a serem pesquisados. A opção foi por centrar minhas observações em lugares comerciais que realizassem ou organizassem esses eventos periodicamente. Há todo um mercado voltado para a realização dessas festas que envolveria o arranjo de locais, a negociação de datas e valores, aluguéis, comidas e bebidas, materiais, formas de divulgação etc. Foi minha opção não estender a análise para as festas de orgia privadas, as chamadas “sociais”. Não que eu não tenha conseguido acesso a elas (foram constantes os convites) nem porque eu achasse que fosse atrapalhar os dados já produzidos (pelo contrário), mas sim pela volatilidade e “privacidade” desses eventos. Em sua maioria, essas sociais são combinadas ao acaso, sem um calendário fixo, entre pessoas já previamente conhecidas ou mesmo entre grupos de amigos fechados. Podem ser marcadas via email, aplicativos de celular, através de listas de eventos que circulam pela internet, ou mesmo acontecem espontaneamente numa saída de bar ou boate mais empolgada, quando a noite pode terminar numa orgia na casa de um dos presentes. Esses eventos trazem, portanto, algumas dificuldades maiores para uma 21 pesquisa de caráter mais prolongado e assíduo, daí o recorte. As sociais irão aparecer no texto mais como comparação na fala dos próprios participantes2. Outro recorte que deve ser explicitado diz respeito ao fenômeno investigado. Ao falar para outras pessoas, seja ou não em ambiente acadêmico, que o meu tema de pesquisa para o doutorado está sendo realizado em festas de orgia, as perguntas das pessoas (passado o choque inicial) costumam apresentar a suposição de que estudo festas de swing. E mesmo uma busca por palavras-chave em arquivos de bibliotecas sobre “orgia” ou “sexo coletivo/grupal” direciona às pesquisas realizadas sobre a prática do swing. O swing possui princípios e todo um conjunto de regras bastante diferentes desses eventos onde fiz a pesquisa. Também conhecido como troca de casais ou troca de esposas, o swing é uma prática que ganhou força nos EUA a partir dos anos 1950 e atualmente pode ser encontrada em casas ou clubes espalhados por vários países (Bartell, 1972). É preciso dizer que eu nunca tive a oportunidade de fazer uma visita a algum clube de swing, nem mesmo durante a presente pesquisa para, quem sabe, poder fazer algumas possíveis comparações, afinal seria uma prática de sexo coletivo onde a presença das mulheres é não só permitida como necessária (já que parece ser a sua “troca” que baseia a prática). Estou me valendo aqui, portanto, da leitura de algumas etnografias e outras pesquisas que tiveram oswing como tema (Silvério, 2014; Von der Weid, 2008; Braz e Silveira, 2013; 2 Desde o fim da pesquisa, começou a surgir uma nova “cena” na noite carioca que são algumas festas “eróticas” ou “liberais” que não só permitem como incentivam a nudez e a interação sexual entre os presentes. Fruto de uma influência da chamada “cultura queer" e de uma política de diluição dos gêneros, essas festas promovem um grande encontro (a princípio sem a regra exclusiva de um evento masculino) com indistinção de sexo, gênero ou orientação sexual com o intuito de uma “despudorização” ao som de música pop ou eletrônica. Uma das pioneiras nesse sentido foi a festa “PopPorn” em São Paulo. No Rio, desde o ano de 2015, já começaram a aparecer festas semelhantes como a “Flesh Lovers" e a “Hole”. Conferir matéria publicada em http://www.musicnonstop.com.br/a-galera-esta-tirando-a-roupa-e-transando-nas-festas-queer-mais- descoladas-do-brasil/. A descrição de uma dessas festas em sua página no facebook dizia: 69 FRANGO ASSADO CACHORRINHO PAPAI MAMÃE CAVALGANDO BORBOLETA DE LADINHO COURO LÁTEX RENDA PELE PELOS CUECA CALCINHA HARNESS JOCK MAIÔ SALTO MEIA CALÇA FIO DENTAL ANEL DILDO PLUG CHICOTE ALGEMAS BONDAGE FISTING MIJO PORRA BABA SUOR PERFUME PESCOÇO LÍNGUA PÉ BOCA OLHOS CU Sem frescura, sem censura, sem restrições, sem regras, sem padrões, sem caixa, sem normas, sem armário, sem nada, só buraco; http://www.musicnonstop.com.br/a-galera-esta-tirando-a-roupa-e-transando-nas-festas-queer-mais-descoladas-do-brasil/ http://www.musicnonstop.com.br/a-galera-esta-tirando-a-roupa-e-transando-nas-festas-queer-mais-descoladas-do-brasil/ 22 Blanc, 2013; Nogueira, 2014). E o que esses estudos mostram, porém, é que o que se encontra nessas festas é nada mais do que o velho e conhecido comportamento tradicional: Pode-se pensar que o swing é uma tentativa para controlar um dos principais fantasmas que aparecem nos relacionamentos conjugais: a infidelidade. Praticar o “adultério consentido” seria uma maneira de se proteger contra o adultério não- consentido – “se você pode fazer na minha frente, por que fazer escondido?” (Von der Weid, 2008, 123) O que esses autores dizem é que a prática do swing acabará por reafirmar os mesmos princípios que já regem as relações conjugais heterossexuais, monogâmicas e de “dominação masculina”. Em um ambiente de suposta liberdade sexual, onde homens e mulheres, casados ou com algum tipo de “compromisso”, relacionam-se sexualmente com outros casais, algumas premissas e regras fundamentais buscam estabelecer limites a essa liberdade e adequá-la a padrões aceitáveis para os participantes. Talvez o maior exemplo dessa estratificação fique com o lugar do homoerotismo no swing: Esse “poder tudo” esbarra em uma das principais “proibições” - talvez a única – que, explícita ou implicitamente, encontrei no meio swinger: “não tem homossexualismo (sic) masculino”. Ao tentar compreendê-la, pude perceber como, no Brasil, a construção da masculinidade é fortemente baseada no desempenho de determinado comportamento sexual. Provar que é “homem de verdade”, defender essa postura ativa, inclui se comportar de determinada maneira e não de outra, se vestir de certa forma e não ter sua imagem exposta ou exibida em fotografias para não ser acusado ou confundido com um ‘gay’. Já no caso feminino, ser mulher não depende de se relacionar sexualmente apenas com homens. Entre as praticantes de swing, relacionar-se com mulheres é muito comum e ter tido esta experiência não coloca em dúvida sua feminilidade nem para elas mesmas, nem para os outros. (op.cit., 123)3 3 Ao longo da pesquisa, em encontros com amigos e outros pesquisadores, quando a conversa iniciada pela confusão entre swing e orgia se desdobrava, ouvi relatos de frequentadores desses clubes de swing expondo uma visão completamente diferente daquela que é predominante nos trabalhos aos quais tive acesso, principalmente no que diz respeito à agência da mulher nesses eventos. Ela seria muito maior do que esses trabalhos deixariam ver. Da mesma forma, o homoerotismo entre os homens não seria algo tão abominável apesar de, de fato, não ser uma prática constante. 23 Portanto, ainda que seja comum as pessoas associarem orgia e swing, tratam-se de práticas diferentes. Da mesma forma, como disse antes, não foi possível encontrar festas de orgia voltadas apenas para mulheres - a única de que tive notícia foi uma ideia que não foi adiante por falta de público4. Sobre o fato de ser uma festa exclusiva para homens, é preciso se demorar um pouco mais. É possível afirmar que no Brasil as investigações sobre interações de sexo ocasional entre homens em lugares públicos e semi-públicos têm uma certa tradição nas ciências sociais. Já desde os anos 1980 aparecem pesquisas importantes, como O negócio do Michê, de Nestor Perlongher (1989), sobre prostituição masculina em São Paulo, e No escurinho do cinema, de Veriano Terto Jr. (1989), sobre a interação sexual entre frequentadores, em sua maioria homens, de um cinema de filmes pornográficos no Rio de Janeiro, dentre outras que serão citadas aqui. E é cada vez mais visível o crescimento desses estudos no Brasil, visto o aparecimento de mesas e grupos de trabalho em nossas reuniões e congressos anuais. A maioria desses trabalhos tem em comum o fato de tratarem de uma prática muito corriqueira nas grandes cidades que é a “pegação” entre homens. Em seu conceito mais usual, “pegação” é um termo empregado para designar a prática sexual anônima, efêmera e fugaz entre homens que exercem práticas homoeróticas, realizada em espaços simbolicamente demarcados nos grandes centros urbanos, como banheiros de shopping centers, parques, praias, saunas, cinemas e clubes de sexo, os quais são conhecidos por quem os frequenta como “locais de pegação”, informalmente apropriados para intercursos sexuais furtivos e sem prévia vinculação afetiva. São espaços onde se territorializam desejos, identidades e toda uma micropolítica dos corpos (sobre a “pegação” cf. pesquisa de Neto, 2008). Chama a atenção também o fato dos trabalhos que se dedicam a esses estudos encontrarem nas relações homoeróticas masculinas seu objeto privilegiado. Há como que um consenso de que em um “universo homossexual”, relações sexuais podem ser 4 Lembremos que estou falando aqui de espaços comerciais que são voltados para determinados eventos ou determinados públicos específicos. Minhas observação e análise estão excluindo eventos ou orgias que podem acontecer em ambientes domésticos, entre grupos de amigos e que podem ter configurações diferentes das que tive contato durante a pesquisa. 24 estabelecidas sem a necessidade sequer de uma conversa. Embora muitos homens que se identificam como homossexuais tenham pouco ou nenhum interesse em sexo fora de um relacionamento íntimo ou estável, certamente outros indivíduos engajam-se em uma prática que podemos classificar de sexo casual e anônimo. Os trabalhos analisados mostram que a razão seria dupla: eles teriam tanto o desejo como a oportunidade para fazer isso. Ter o desejo aqui, creio, é muito mais entendido sobre o fato de estarmos falando sobre “homens” do que sobre uma determinada orientação sexual específica, “homossexual”. Entende-se que as pessoas variam no grau em que se gosta de sexo, na ausência de compromisso ou proximidade emocional. Porém, em nosso imaginário, é predominante a ideia de que os homens estão mais interessados do que as mulheres em ter sexo com alguém com quem não se sentem comprometidos. Sugerindo também que homens heterossexuais e homossexuais não seriam diferentes a este respeito. Estaríamos falando aqui de algo que seria da ordem de uma masculinidadecompartilhada, ultrapassando as orientações sexuais. A prova disso seria a ausência desses espaços para uma “pegação” entre mulheres. Já em minha pesquisa para o mestrado sobre prostituição masculina em saunas (Barreto, 2012), sempre me deparava com a pergunta: “mas não existem saunas para mulheres?”; e, de fato, foi curioso não ter conseguido encontrá-las (a não ser aquelas onde o corpo que se prostituía era o delas). Um dos autores da coletânea Public sex, gay space (Leap, 1999), dá uma explicação para isso: diz que as mulheres não migram para locais públicos para ter sexo anônimo pelos seguintes fatores: pela dominação masculina nesses assuntos, pelo medo do estupro, e pelo fato da "sexualização da aventura” talvez não ser atrativo a elas; explicações que, a meu ver, não dão conta de toda a complexidade da questão. O outro motivo dado por esses autores para a “pegação” ser uma prática sexual quase exclusiva das relações entre homens seria a oportunidade. Quando o sexo envolve apenas os homens, a possibilidade de encontrar um parceiro para encontros casuais ou anônimos seria maior. Banheiros públicos, vestiários de academia, saunas, esportes coletivos praticados em clubes, quadras públicas, dentre muitos outros espaços: são diferenciadas as oportunidades em que os homens poderiam se expor a uma situação que possa ou não se tornar homoerótica. As razões disso ainda são um pouco nebulosas e normalmente se é usada uma justificativa tradicional: se lembrarmos da interpretação 25 referente aos domínios do espaço na sociedade brasileira, a casa e a rua, sendo o primeiro tradicionalmente relacionado ao feminino e o segundo ao masculino (DaMatta, 1997), ou seja, a acessibilidade maior dos homens ao espaço público, a rua, teria facilitado os encontros eróticos entre eles. O que parece subjazer a essa interpretação é, na verdade, um processo maior. Não só de uma invisibilidade do erotismo das mulheres, mas até mesmo um apagamento da sexualidade feminina, como seres considerados sem desejo (Trevisan, 2000; Figari, 2007). Além disso, os poucos lugares de interação erótica para mulheres que podem ser encontrados na cidade pressupõem a heterossexualidade como forma de relação, como as saunas de prostituição feminina e as casas de massagem onde as mulheres aparecem no mercado da prostituição, como os próprios clubes de swing ou os “clubes das mulheres” com apresentações de strippers e gogoboys5. As interações eróticas entre mulheres é algo que vem chamando a atenção aos poucos no Brasil em algumas etnografias interessantes como sobre a masculinidade lésbica em bares (Lacombe, 2005) e na tese de Facchini em que a autora descreve diferentes cenários de lazer (mesmo sexuais) lésbico levando em consideração a interseccionalidade como geração, raça, classe, gênero etc. (Facchini, 2008). Algumas pesquisas mais recentes vêm chamando a atenção para o surgimento de alguns clubes BDSM6, principalmente em São Paulo, onde poderíamos ver toda uma ritualização erótica em relações estabelecidas entre elas (Facchini, 2008; Gregori, 2010)7. 5 Agradeço ao colega Lucas Freire por ter me chamado a atenção para este ponto. 6 BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) é a sigla que agrupa um conjunto de práticas eróticas que ritualizam jogos de poder. 7 Sem querer me estender muito, já que esse tema não é o foco deste trabalho, é interessante perceber como a prática do BDSM entre mulheres não é algo novo e já foi o campo de análise teórica preferido das chamadas feministas lésbicas radicais ou feministas “pró-sex”. Tratam-se de autoras que apareceram nos EUA a partir da década de 1980 dentro de uma disputa com outras pensadoras mais conservadoras sobre o papel e a agência feminina nas relações eróticas. Dessa época ficaram famosas as críticas à pornografia como forma de objetificação da mulher e como essas feministas pró-sex buscaram mostrar a agência feminina em situações que antes eram consideradas de opressão e dominação, como no próprio BDSM. Entre elas estão nomes como Gayle Rubin, Pat Califia, Monique Wittig e De Lauretis, que muito vão influenciar a teoria queer. 26 Um (não) quadro teórico É minha intenção agora apresentar, num debate mais denso, algumas questões teóricas na relação entre conceitos como subjetividade, sexo e singularidade. O que apresento aqui é um conjunto de questões que me interessam particularmente e que acredito serem contribuições para o debate teórico. Não é um “marco teórico”, no sentido de que não se propõe a ser um enquadramento das reflexões que irão estar presentes no restante do trabalho, nem um guia delas. Acredito que o campo das festas de orgia pode ajudar a pensar não só nessas problemáticas colocadas pelos autores que exponho a seguir, como também me permitiu perceber o que os próprios participantes dessas festas criam ali, na efervescência de suas interações. Apresento essa discussão, portanto, não para limitar ou recortar um “campo teórico” utilizado, mas sim alimentá-lo, estimulá-lo e mesmo desestabilizá-lo com a análise das práticas observadas durante o trabalho de campo. Subjetividade e políticas da singularidade A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade é apresentada então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose. (Deleuze, 1991, 113). Essa tese fala de determinados processos de produção de subjetividade. Meu ponto inicial começa pela própria dessencialização da ideia de subjetividade. Pois, como afirma Paul Veyne sobre o papel da obra de Foucault, quem somos não é uma pergunta que se restrinja a um âmbito pessoal ou psicológico, mas a proposta de um deslocamento para a questão de como “viemos a ser com relação às práticas que nos constituem/subjetivizam, as quais organizam nossa relação conosco e com os outros” (Veyne, 1995, 175). A questão “quem somos?”, para Foucault, é ao mesmo tempo a oportunidade de perguntar como poderíamos ser de outra forma, como poderíamos estabelecer outra forma de convivência, 27 como pensar de outro modo: “(...) saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (Foucault, 2009b, 14). A questão da subjetividade no pensamento de Foucault se faz “nos termos de sua produção, do governo de si e governo dos outros”, e “também da procura de estilos de existência tão diferentes quanto possíveis uns dos outros”(Paiva, 2000). Ou seja, “uma pesquisa crítica acerca da compreensão atual de si” (Rabinow, 1995, 283). A singularidade aqui é vista como um projeto político de resistência, de ruptura com as modelizações da subjetividade capitalística (Guattari e Rolnik, 2005). Guardemos esse ponto, porque voltarei a ele adiante. Guattari propõe que as “revoluções moleculares” perfaçam um movimento: da alienação e opressão pelos modelos da subjetividade à ousadia de inventar “subjetividades delirantes” (op. cit., 45) pelo processo de criação de singularidades. E é precisamente por causa desses movimentos de ruptura, de estratégias de se lidar com esses modelos, dessas linhas de fuga, que há espaço para o exercício de singularização. O pensamento de Deleuze sustenta que as linhas de fuga, no caso identificadas como campo produtivo de desejo, são os dados primeiros do campo social: (...) uma sociedade, um campo social não se contradiz, mas ele foge, e isto é primeiro. Ele foge de antemão por todos os lados; as linhas de fuga é que são primeiras (mesmo que “primeiro”não seja cronológico). Longe de estar fora do campo social ou dele sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma ou cartografia. As linhas de fuga são quase a mesma coisa que os movimentos de desterritorialização: elas não implicam qualquer retorno à natureza; elas são as pontas de desterritorialização nos agenciamentos de desejo. (...) Encontro também aí o primado do desejo, pois o desejo está precisamente nas linhas de fuga, na conjugação e dissociação de fluxo. O desejo se confunde com elas. (Deleuze, 1996, 19-20) Também para Rolnik, não há outra alternativa senão abandonar a reivindicação identitária em favor dos processos de singularização. Tais processos de singularização implicam abrir mão do vício em identidades, dos “kits de subjetividades”, de perfis-padrão que estão tão presentes em nosso cotidiano e que apenas se aprimoram com a globalização e as novas tecnologias (Rolnik, 1997, 20). Para Rolnik, cabe não tentar domesticar as forças 28 de instabilização. Ao “biopoder” (poder(es) sobre a vida) responderia uma “biopotência” (poder da vida, da vitalidade social), esta última é onde residiria uma “força-invenção” que é continuamente vampirizada pelos poderes de controle. Uma primeira questão necessária aqui é cartografar essas forças em jogo. Compartilho com Foucault a ideia de que é na sexualidade, nos “usos do prazer”, que se encontra um território privilegiado onde poderemos ver esse exercício de uma singularização. Que fique claro que venho entendendo “singularidade” aqui não como uma singularidade individual, mas singularidade como um modo de ser, de existência e de estilo de vida (por isso partilhável na forma de relações sociais, discursivas, físicas etc.). E também, não estranhamente, vai ser na relação entre subjetividade, sexo e verdade que Foucault vai acabar por centrar a sua atenção. “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”, é o que pergunta Foucault em um artigo publicado em 1980. Em suas últimas obras, o autor se dedicou a mostrar como no Ocidente a “scientia sexualis”, ao contrário de uma “ars erotica” das sociedades orientais, prevaleceu enquanto pensamento e discurso (ou dispositivo) predominante. É devido a essa maneira, de uma “ciência sexual”, que deu forma a nosso dispositivo da sexualidade, que vem sendo feita a relação entre sexo e verdade. Tal dispositivo vem dando sentido a uma ideia de que é no sexo que se deveriam procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo, que é nele que se pode melhor descobrir quem ele é, e aquilo que o determina, “e se, durante séculos, se acreditou que era preciso esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabe-se agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de suas fantasias, as raízes do seu eu, as formas de sua relação com a realidade. No fundo do sexo, a verdade” (Foucault, 2012, 84). É dessa maneira, inclusive, que a psicanálise irá se consolidar como um saber, justamente nessa relação entre sexo, verdade e subjetividade. Daí, para Foucault, o interesse nas relações complexas, obscuras e essenciais entre sexo e verdade e de como essa relação está longe de ser dissipada. E isso ficaria claro na análise das práticas que transgrediriam essas “leis”, e de como continuamos a pensar que algumas delas insultam “a verdade” e dá exemplos dessas transgressões como o homem “passivo”, a mulher “viril”, pessoas do mesmo sexo que se amam etc. Esses e outros exemplos demonstram que estaríamos sempre prontos a acreditar que há nelas algo como 29 um “erro”. “Um ‘erro’ entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade (...) Despertai, jovens, de vossos gozos ilusórios; despojai-vos de vossos disfarces e lembrai-vos de que tendes apenas um verdadeiro sexo!” (op. cit, 84). O silêncio ou a “não-enunciação” acaba por ser o elemento integrante essencial a respeito dessas práticas “erradas”, “não adequadas”, melhor que se deixe sob o benefício da sombra aquilo que se tornaria perigoso à luz do dia, “doces prazeres que a não identidade sexual descobre e provoca” (op.cit., 87, grifo meu). Não à toa, por exemplo, a maioria das interações nas festas de orgia acompanhadas serem em um ambiente escuro ou de penumbra, onde também o silêncio, ou a ausência da fala, predominam. As conversas, os discursos sobre a vida cotidiana “lá de fora”, as explicações e interpretações para o antropólogo pesquisador são evitadas ali. Nome e sobrenome não interessam nada. Dizer o nome estraga o jogo. Falar qualquer coisa fora dos comandos convencionais aniquila o jogo. “Erótica do anonimato”. A comunicação ocorre pelos outros sentidos e pelo prazer/desprazer que eles causam. A diferenciação apresentada por Foucault entre “scientia sexualis” e “ars erotica” explicita isso. O que o autor faz é uma oposição entre as sociedades que tentam sustentar um discurso científico sobre a sexualidade, como fazemos na nossa, e sociedades em que o discurso sobre a sexualidade, ainda que igualmente abundante, não visa a instituir uma ciência. Busca, pelo contrário, definir uma arte, uma arte que visaria produzir, através da relação sexual ou com os órgãos sexuais, um tipo de prazer que se procura tornar o mais intenso, o mais forte ou o mais duradouro possível. No Ocidente não temos a arte erótica. Em outras palavras, não se ensina a fazer amor, a obter o prazer, a dar prazer aos outros, a maximizar, a intensificar seu próprio prazer pelo prazer dos outros. Nada disso é ensinado no ocidente, e não há discurso ou iniciação outra a essa arte erótica senão a clandestina e puramente interindividual. Em compensação, temos ou tentamos ter uma ciência sexual – scientia sexualis – sobre a sexualidade das pessoas, e não sobre o prazer delas, alguma coisa que não seria como fazer para que o prazer seja o mais intenso 30 possível, mas sim qual é a verdade dessa coisa que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade: verdade do sexo, e não intensidade do prazer. (Foucault, 2012, 60)8 Caberia a nós, portanto, no que concerne à nossa experiência de sexualidade, desprivilegiar a “teoria científica geral do sexo”, pela demonstração de que esta noção do sexo é invenção da verdade do poder e que se encontra na dependência histórica da sexualidade, maquinaria que constituiu uma própria experiência subjetiva (Paiva, 2000). Foucault aponta em sua História da Sexualidade que será preciso inventar uma “outra economia dos corpos e dos prazeres” (2009a, 147), promover uma insurreição contra a monarquia do sexo: partir dessa experiência majoritária de sexualidade e “atravessá-la para ir em direção a outras afirmações” (1990, 234): “(...) trata-se, não digo de ‘redescobrir’, mas de fabricar outras formas de prazer, de relações, de coexistência, de laços, de amores, de intensidades” (op. cit, 235). Vai ser dessas colocações de Foucault que muito vai se alimentar a teoria queer posteriormente. O próprio termo inglês “queer” - que significa algo como “estranho”, “esquisito” numa tradução direta - como forma de criar/fazer política. Uma política sem sujeito fixo ou definido e contra o Estado. O que esse pensamento põe em pauta é compreender as vidas e os modos de existência que elaboramos em nossos cotidianos não em termos de identidade, mas de identificações, de pertencimento, ou melhor ainda, de estratégias9. Voltemos ao ponto da singularidade como projeto político de resistência. Ou como também afirma Deleuze: “Resistir é criar”. Porém, é preciso não colar ou associar a ideia de 8 Ainda que o próprio Foucault tenha, anos depois, relativizado essa divisão justificando que era uma generalização necessária para a argumentação que ele propunha (Foucault, 2013), acredito que ela ainda possua rendimentos de análise e permanecefazendo sentido no tema que estamos tratando. 9 Talvez seja melhor “cercar” logo aquilo que estou chamando de teoria queer. Sáez a define como um conjunto de trabalhos que começam a aparecer nos anos 1990 influenciados pelas novas correntes filosóficas pós-estruturalistas (“que questionam as identidades essencialistas da subjetividade e destacam os efeitos produtivos do discurso”) e os desenvolvimentos críticos do feminismo sobre as noções de sexo e gênero (2004, 126). Alguns pontos centrais da teoria queer são resumidos pelo autor em: “1- Crítica dos dispositivos heterocentrados e do binômio hetero/homo; 2 - O sexo como produto do dispositivo de gênero; 3 - O gênero como tecnologia. Crítica da diferença sexual; 4 - Resistência à normalização. Importância de articular entre si os discursos de raça, sexo, cultura, identidade sexual e posição de classe; 5 - Produção contínua de ‘identidades’ diferentes. Nomadismo. Anti-assimilacionismo; 6 - Localizar os dispositivos de normalização de sexo e gênero que atravessam o tecido social e cultural; 7 - Performatividade de gênero e de sexo. Crítica da ideia de “original”. Suplemento e travestismo; 8 - Análise pós-feminista (questionamento da identidade da mulher ou da lésbica); 9 - O sexo como prótese. Práticas contrasexuais” (op.cit., 126- 150). Sobre a grande influência do pensamento de Michel Foucault e Judith Butler na teoria queer conferir, respectivamente, Spargo (2009) e Salih (2012). Para uma leitura crítica às contribuições trazidas pela teoria queer ver Coll-Planas (2012). 31 resistência aqui com a de liberdade, transgressão ou resistência libertária, já que uma resposta ou reação reativa a algo nem sempre necessariamente se está contra e posta nesses termos (Lima, 2015, 24). Como as descrições etnográficas dessas festas deixarão mais claro, as coisas se dão de forma mais complexa. O movimento de “resistência criativa”, como coloca Deleuze, está na própria agência estratégica dos indivíduos em suas negociações cotidianas. O que interessa aqui é a produção de um novo jogo, de um novo campo de forças (mesmo que ele se restrinja às horas passadas numa festa de orgia); é desterritorializar no que se está e criar outro, um outro novo, uma reterritorialização do jogo de forças em um novo esquema que é preciso cartografar. “É ingressar em uma aventura sem modelo, perigosa, com todos os riscos de desmoronamento possíveis” (idem, 57). Indo na contra-mão de uma “investigação científica ou administrativa que determina quem somos”, a proposta de Foucault é, dessa forma, a de buscar uma ética (ou uma micropolítica), “enquanto relação a si, relação à produção de singularidades, muito menos afirmadora de princípios, que uma ética do desfazer dos modos estabelecidos de nossas subjetividades, uma ética do desprender-se, do despojar-se de si” (Paiva, 2000, 217). Uma ética, pois, “sem ideais”: “A ética foucaultiana não vislumbra um ideal, a partir do qual se possa pensar um mundo melhor; ele retoma a ideia de uma ética sem ideal, onde as pessoas lutam em situações concretas, sem que suas lutas sejam idealistas” (ibidem)10. A ética de que se trata aqui é a de “buscar novas formas de comunidade, coexistência e prazer, de reabrir virtualidades afetivas e relacionais”. Ainda que essas relações estabeleçam novas configurações de poder. O pensamento de Foucault parece se esforçar para esse “direito ao diverso” passando por uma outra política de subjetividade orientada pelos riscos da singularização, “por uma vida não-fascista” (op. cit., 217). É entender que a sexualidade aqui é vivida e mesmo “teorizada” pelos participantes das festas não como uma questão de verdade e identidade, mas sim em outros termos como, por exemplo, uma reapropriação da antiga teoria de humores, apetites, pulsões, instinto, 10 Um exemplo sobre a falsa oposição entre luta idealista ou “política” e “festa” é aquela analisada na etnografia de França sobre a Parada do Orgulho LGBT (2006). A autora mostra como as críticas de que um movimento que se pretendia político se diluiu em um “carnaval” seriam infundadas, já que o que se coloca em pauta ali, principalmente, é a visibilização de modos de existência e isso já é uma forma estratégica de se fazer política. 32 química ou apenas a orgia como questão de esporte; entender e deixar passar, afinal, qual é a “teoria nativa”. Não é ignorar, por exemplo, numa das falas ouvidas de que “é no sexo que se conhece alguém, na intimidade do penetrar e no se deixar penetrar”. Ao invés de tratar isso como um senso comum sobre o sexo e como dentro de um paradigma moral onde “sexo é verdade” ou ainda como uma ideia de interioridade e intimidade, ver que as pessoas estão me chamando a atenção para suas construções próprias de sexualidade, que fogem e que reterritorializam os discursos de controle em outros termos. Portanto, as questões que vêm me norteando do que foi apontado até aqui são: Quais as indicações para uma “política de singularidade” (no sentido indicado por Deleuze e Guattari) que nos permita aquele exercício apontado por Foucault de nos deslocarmos de nossas experiências e de nossos vínculos? Como criar espaço, no pensamento e nas experiências, para o exercício de singularidades, para a experiência do diverso? Em que medida esta produção de subjetividades modelizadas pode ser alterada por processos singularizantes? E o que acontece quando nem sempre se deseja essa “revolução do singular” enquanto resistência e reação, mas sim a reafirmação da norma, do poder e dos modelos de dominação? O que acontece quando é justamente essa subjetividade modelizada (ainda que colocada em outros termos) que atrai, que excita, que dá tesão? Como se dá a tensão entre esses movimentos? Acredito que as festas de orgia sejam um bom campo para pensar essas questões. As questões e “os princípios” A pergunta “mas qual é a sua questão nas festas de orgia?” foi uma das que me perseguiram durante a pesquisa. Era acionada toda vez que apresentava meu local de trabalho de campo e era principalmente feita pelos pares acadêmicos. “Ter uma questão” para se começar a etnografia ou como guia para se ter durante a pesquisa é sempre ensinado como prerrogativa metodológica, como algo necessário em nossos trabalhos. Do contrário, corre-se o risco de um trabalho de pesquisa vazio, desacreditado, em que o não comprometimento com as regras do método científico questiona a própria integridade não só da pesquisa como do pesquisador. Não é necessário dizer que essa “desconfiança” ou 33 mesmo descrédito alcança níveis maiores quando estamos falando de uma etnografia de práticas sexuais. Digo que isso foi um problema para mim, porque durante boa parte do trabalho de campo não tinha como dar uma resposta exata a essa questão por não ter previamente qualquer projeto de pesquisa em mente e não saber ao certo em que resultaria esta experiência. Quando decidi me aprofundar no estudo das práticas sexuais, procurei visitar e interagir em vários espaços e eventos onde diversas formas dessas práticas podem ser encontradas. Há um “circuito do sexo” que perpassa a cidade, nem sempre estabelecido por uma rede de mercado e comercialização, e que se diversifica a depender dos estilos e daquilo que se deseja: sexo anônimo em lugares públicos, cinemas pornôs, cabines eróticas, saunas (de prostituição ou de pegação), estacionamentos, parques, banheiros, clubes, praias, ruas, enfim a lista é grande. Como até então só conhecia os espaços voltados para a prostituição masculina, quis dar preferência às práticas sexuais que não se estabelecessem a partir de uma troca monetária. No campo anterior (da prostituição) realizado durante o mestrado, percebia-se a estrutura de um mercado, de um negócio, que condicionava os encontros e as interações. Havia uma série de desejos quecorrespondia a uma série monetária (não necessariamente dinheiro). Aqui não há esse elemento “sustentador” estruturante. Por mais que se objetifiquem os corpos (ou partes deles), não há necessária correlação com troca monetária, nem cabe nesses espaços essa prática. As trocas aqui se dão em outros termos. Há o “ter disposição” e o “se jogar” por sua própria vontade. As festas de orgia me chamaram a atenção por diversos motivos. Logo de início fiquei muito surpreso pela quantidade de homens que se reuniam nesses espaços para se engajar em uma forma de sexo totalmente avessa aos modelos tidos como padrões e onde o que importava era aquele encontro e a mistura de corpos anônimos e desconhecidos, o puro prazer que o corpo do(s) Outro(s) pode proporcionar ou não. Onde a palavra falada quase desaparece, a linguagem toma outros meios como os toques e os gestos, onde a visão pode ser desprivilegiada pelo tato, e o cheiro e a audição tornam-se mais sensíveis e são estimulados pela multidão de corpos misturados no sexo coletivo. Foi grande a surpresa e também a sedução (por que não?) da riqueza do material de campo que tinha para explorar. Entretanto, comecei a frequentar as festas de orgia sem ainda ter muita clareza sobre como 34 dali conseguiria “tirar” uma tese antropológica. O que quero dizer é que decidi ir a campo sem questões. Ir sem questões não quer dizer ir a campo “sem conhecimento” ou não ter uma leitura teórica sobre as práticas, mas sim estar aberto ao encontro do pensamento, e nesse caso do corpo mesmo do Outro. Este foi o “exercício etnográfico” que me propus aqui. Através de um intensivo trabalho de campo entender quais são as questões que importam nesse contexto e as que, por consequência, geram mais conflitos. O esforço inicial não era em pensar sobre o sexo e as práticas que aconteciam ali imediatamente, mas sim pensar através delas (Holbraad, 2007). A questão era então como e o que pensar através do sexo orgiástico que acontecia nesses espaços? Procurar saber afinal, o que é importante para esses homens que se reúnem nesses eventos e como se dão esses encontros e, aí sim, do que deles podemos pensar sobre as práticas sexuais e outros elementos. O esforço não é novo, já Evans-Pritchard dizia que ao começar seu estudo sobre o povo Zande se deparou com a necessidade de falar sobre coisas que não tinha pensado ou escolhido (ou nas quais nem mesmo acreditava), como a bruxaria, por exemplo, já que eram essas as questões colocadas como problemas pelos Azande (2005). Nem sempre essas recomendações básicas são levadas a sério, em preferência por uma abordagem de explicação da sociedade e dos fatos sociais como uma forma de engenharia, um domínio particular e primeiro da realidade. (...)a ‘sociedade’, longe de ser o contexto ‘no qual’ tudo se enquadra, deveria antes ser concebida como um entre muitos conectores que circulam pelo interior de estreitas condutas [tiny conduits]. Esta segunda escola de pensamento poderia adoptar como slogan, com alguma provocação, a famosa exclamação da Senhora Thatcher (mas por razões diferentes!): “A sociedade não existe”. (Latour, 2006, 5) A proposição central de Latour é o abandono da sociologia como ciência da sociedade e a adoção de uma ‘ciência das associações’. Argumenta o autor que a tarefa da sociologia é traçar as “associações”, “reassociações” e “reconfigurações’” entre “agentes humanos e não humanos” que compõem o mundo. Autores mais contemporâneos vêm retomando a importância de pensar o social não como um enquadramento externo, mas sim colocando o nosso olhar naquilo que é “de fato” do social, ou seja, no que se passa nas 35 relações entre os seres (Latour, 2006; Callon e Law, 1997; Strathern et.al, 1996; Ingold, 2011). A tarefa aí, portanto, é seguir os agentes, mapear as relações, perceber as controvérsias e analisar o campo a partir daquilo que de fato importa naquele contexto. “Não é metodologia, mas sim guia de viagem”(Latour 2006,16) A tarefa já não é a de impor uma ordem, de limitar o leque de entidades aceitáveis, de ensinar aos actores o que eles são, ou de acrescentar alguma reflexividade à sua prática inconsciente. Para retomar um slogan da Teoria do actor-rede, é preciso ‘seguir os próprios actores’, quer dizer, tentar lidar com as suas inovações muitas vezes indomáveis, de modo a aprender com eles o que a existência colectiva se tornou nas suas mãos, que métodos é que elaboraram para a ajustar, e quais são os relatos que melhor definem as novas associações que foram obrigados a estabelecer. (Latour 2006, 11) Essa foi a maneira que adotei para encontrar as tais “questões”. Desde o início do trabalho de campo procurei perceber em torno de quais elementos se centralizava aquilo que os participantes da festa tinham como importante para a prática do sexo coletivo nesses espaços. Foi assim que cheguei no que estou chamando de “princípios” dessas festas. Os princípios funcionam como pontos nodais aqui, eles dão diretrizes não só de performance, mas da própria ética local, balizando as relações entre os participantes. São eles que potencializam as interações sexuais, que são fontes de conflitos, que dão conteúdo e expressão a essas festas e que, ao mesmo tempo, podem se apresentar tanto como norma quanto como possibilidade de linhas de fuga a elas. São três: o princípio da masculinidade, o da discrição e o da putaria. Nesse contexto, portanto, são produzidas algumas formas de subjetividade específicas: o macho, o discreto e o puto. Lembrando que elas não são tratadas como algo que se encontraria em separado, mas sim são buscadas em conjunto, como fluxos que funcionam agenciados para uma mesma figura de indivíduo desejado. Portanto, nas festas de orgia, o macho, o discreto e o puto não são só subjetividades, são também dentre outras coisas, roteiros de desejo, formas de relação, maneiras de se portar, éticas locais etc. Percebi que era dos princípios que a minha descrição tinha que partir para o entendimento desses eventos, já que esses eram os conceitos “nativos” elaborados ali. É preciso ter em mente o aviso de Viveiros de Castro: 36 Agora não se trataria mais, ou apenas, da descrição antropológica do kula (enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição melanésia (da “socialidade” como forma antropológica), (...) constituindo ela própria um dispositivo de compreensão. (...) É preciso transformar as concepções em conceitos, extraí-los delas e devolvê-los a elas. Os conceitos nativos são os conceitos do antropólogo. (Viveiros de Castro, 2015, 225) Algumas observações sobre o método O desenvolvimento desse trabalho deu-se do acompanhamento durante dois anos e meio (do início de 2013 à metade de 2015) de quatro dessas festas de orgia que acontecem periodicamente no Rio. Elas acontecem em torno de uma ou duas vezes ao mês em diferentes locais da cidade: Praça XV, Praça Tiradentes, Lapa, Botafogo, Campo Grande, Barra, seja em clubes, saunas, apartamentos comerciais, ou mesmo em um sítio ou em um barco (a chamada “Orgia em Alto Mar”). Dessas quatro festas, duas fazem o que eles chamam de processo seletivo, isto é, há uma escolha ou avaliação do público que pode entrar no evento (a festa “Clube Meetings” e a festa “Black Hall”). E as outras duas são abertas a quem quiser ir, desde que corresponda à exigência de ser homem e a um perfil que corresponda aos três princípios, é claro (a “Festa do Apê” e a “Festa do Vale Tudo”). O número de participantes varia muito, mas fica em torno de 150 a 200 homens naqueles eventos que não exigem seleção e no máximo 50 naqueles onde há o processo seletivo. A flutuação e o fluxo de pessoas nesses eventos são muito grandes. Isso fez com que essa pesquisa não contasse com “interlocutores privilegiados”, muito menos o estudo de um grupo fixo de participantes dessas
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