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filosofia e interioridade

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FILOSOFIA 
E INTERIORIDADE
C O L E Ç Ã O E D U C A Ç Ã O P A R A A I N T E R I O R I D A D E
PREFÁCIO DE OSWALDO GIACOIA JUNIOR
FILOSOFIA 
E INTERIORIDADE
C O L E Ç Ã O E D U C A Ç Ã O P A R A A I N T E R I O R I D A D E
Curitiba
2019
Curitiba
2019
PREFÁCIO DE OSWALDO GIACOIA JUNIOR
©2019, Observatório de Educação para Interioridade
 2019, PUCPRESS 
Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qual-
quer meio sem autorização expressa por escrito da Editora. 
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
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Edição de arte: Rafael Matta Carnasciali
Preparação de texto: Pamela P. Cabral da Silva
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Diagramação: Rafael Matta Carnasciali
Impressão: Corgraf
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Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
Edilene de Oliveira dos Santos CRB/9-1636
Filosofia e interioridade / Fabiano Incerti, Jelson Oliveira (organizadores).
F488 – 1. ed. – Curitiba : PUCPRESS, 2019
2019 82 p. ; 23 cm
 
 Vários autores
 Inclui bibliografia
 ISBN 978-85-54945-62-6
 978-85-54945-63-3 (e-book)
1. Filosofia. 2. Existencialismo. 3. Ontologia. 4. Espiritualidade. 5. Morte. I. Oliveira, 
Jelson, 1973-. II. Incerti, Fabiano.
 19-042 CDD 23. ed. – 100
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................5
O valor da interioridade
PREFÁCIO ................................................................9
Oswaldo Giacóia Júnior 
MONTAIGNE E A MORTE .................................... 21
Jelson Oliveira
SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO ................... 31
Diana Chao Decock
NIETZSCHE E A SOLIDÃO ................................... 39
Jelson Oliveira
GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA ................... 49
José André de Azevedo
MERLEAU-PONTY E O CORPO ........................... 57
Ericson Falabretti
FOUCAULT, CUIDADO DE SI E INQUIETUDE .... 67
Cesar Candiotto
PIERRE HADOT E A ESPIRITUALIDADE .............. 77
Fabiano Incerti
INTRODUÇÃO
O valor da interioridade
Um dos grandes prejuízos de nosso tempo 
é a superficialidade das experiências vitais. Vive-
mos a ânsia da quantidade, mas, quase sempre, 
ela nos conduz à pobreza da qualidade do que é 
vivido. O resultado é uma vida insossa e até enfa-
donha. A velocidade e a pressa que marcam nos-
sa época, são produtos daquilo que Byung-Chul 
Han chama de sociedade do desempenho, a qual, 
não por acaso, é também a sociedade do cansaço. 
Cansados, vivemos sem tempo para nós mesmos, 
espremidos sob a pressão da competência e da 
competição, gastando nossas horas de vida de 
forma pouco significativa, como mera rotina dis-
traída que deixa escapar o essencial, que escorre 
líquido entre os dedos da mão inábil.
Falar em interioridade, nesse contexto, é 
buscar um pouco de ar puro. Colocar a cabeça 
para fora da fumaça e do barulho para escapar da 
ablepsia insensata que cresce como epidemia, tal 
como no Ensaio de Saramago. Trata-se de estabe-
lecer um novo tipo de vínculo com a vida, segundo 
o qual possamos cultivar nossa sensibilidade para 
o que é basilar, dedicar tempo para o mais funda-
mental de tudo, aquilo que nos liga a nós mesmos, 
6 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
aos outros e ao transcendente. No fundo estamos 
tentando reinterpretar a promessa evangélica da 
vida em abundância, fugindo da pobreza do nu-
meroso para encontrar a fartura e a fecundidade 
do que é primordial. Interiorizados, não estamos 
separados do mundo ou encapsulados nele; inte-
riorizados estamos mais dispostos para a alegria 
existencial, mais atentos e mais preparados para 
a vida, que é dom e graça.
Como nossa sociedade nos induz para o 
contrário, então precisamos nos educar para 
a interioridade, tarefa mútua e compartilhada 
que a própria universidade assume, como uma 
espécie de laboratório daquilo que nós gostaría-
mos que toda a sociedade fosse. É aqui, entre 
colaboradores(as), professores(as), gestores(as) 
e estudantes, que nos encontramos diante do 
desafio de viver com intensidade e responsabili-
dade os valores que dão sentido às nossas vidas, 
sobretudo porque é aqui, na universidade, que 
gestamos o futuro, todos os dias, com entusias-
mo e perseverança. Aqui as jovens gerações se 
encontram com o conhecimento do mundo e de 
si mesmos. E desse encontro depende o tipo de 
humanidade que seremos amanhã.
Precisamente por isso, a PUCPR, por meio 
do Observatório de Educação para a Interiorida-
de, um dos quatro observatórios da Diretoria de 
Identidade, escolheu como uma das suas priori-
dades o cultivo da interioridade: retomamos, as-
sim, o elemento central da educação, como culti-
vo do que é principal e do que contribui para que 
7INTRODUÇÃO
o presente seja um ensaio do futuro e que este 
seja pleno de oportunidades para que a vida, a 
ciência e a fé sejam seus alicerces, um tempo em 
que seres humanos autênticos vivam em harmo-
nia com toda a comunidade da vida.
A interioridade, assim, é uma espécie de 
resistência continuada a todos os processos de 
superficialização e empobrecimento da vida. 
Educar para a interioridade é cultivar a atenção 
plena, a consciência limpa e o olhar esperançoso. 
Ora, poucas disciplinas do conhecimento nos aju-
dam tanto nesses quesitos quanto a Filosofia. Ao 
longo da história o papel da Filosofia foi sempre 
oxigenar os tempos, seja com o desenvolvimento 
do senso crítico, seja com o esforço de trazer à 
luz o que permanecia sob as sombras e as poei-
ras de cada época histórica. A herança filosófica, 
guardada na forma de ideias, autores e livros, 
tem sido, portanto, uma espécie de tesouro culti-
vado pela universidade e um legado que precisa 
ser preservado da corrosão por meio de sempre 
novas interpretações. Nesse erário, portanto, fo-
mos buscar inspiração para pensar os desafios 
do tempo que é nosso. Nasceu daí o projeto de 
oficinas intituladas Filosofia e Interioridade, reali-
zadas ao longo de 2018 na PUCPR. Hora de refle-
xão e de aprofundamento orientada por um(a) 
professor(a) de Filosofia, com a participação de 
pessoas de toda a comunidade (a universitária e 
a extrauniversitária). 
Neste pequeno livro reunimos alguns tex-
tos que orientaram a nossa reflexão. Escritos de 
8 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
forma simples e direta, eles querem continuar 
ecoando algumas ideias que nos retiram do ma-
quinal, do súbito e do impensado, para nos pro-
jetar diante da responsabilidade que temos no 
tempo e no espaço que nos cabe: viver e ajudar 
a viver de forma mais plena e integral. Eis o dom. 
Eis o valor da interioridade. 
9
PREFÁCIO
O presente volume nasce com base em 
oficinas culturais com idêntico título, que foram 
realizadas ao longo do ano de 2018, por meio do 
recém-criado Observatório de Educação para a In-
terioridade da PUCPR. A instituição elegeu como 
uma das suas prioridades o cultivo da interiorida-
de, retomando, desse modo, um dos elementos 
nucleares da atividade de formação, a saber, a 
educação entendida e praticada como cultivo do 
que é fundamental, e daquilo que contribui para 
que o presente seja um ensaio do futuro, alicer-
çado na vida, na ciência e na fé - um compro-
misso assumido com a comunidade acadêmica e 
extra-acadêmica, com vistas a um tempoem que 
seres humanos autênticos vivam em harmonia. 
Sob esse signo, originou-se o projeto das oficinas 
culturais intituladas Filosofia e Interioridade, reali-
zadas ao longo de 2018 na PUCPR.
O foco está voltado, portanto, para a dimen-
são da interioridade, numa época em que essa pa-
rece ensombrecida pelo espectro de sua dispersão 
na espiral das pressões por reconhecimento social 
que nos exigem plena dedicação, com urgência 
cada vez maior, e sempre em termos de produti-
vidade, status, poder de influência, capacidade de 
10 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
rendimento, pretensões hedonistas voltadas ao 
consumo, bem-estar e segurança, e consideradas 
como o correspondente atual do sumo bem. Num 
cenário como esse, é saudável o recurso à filosofia 
como retorno a si, como reflexão sobre o autêntico 
Si-Próprio, que nos constitui em nossa mais íntima 
dimensão. Essa é a diretriz que orienta a compo-
sição deste volume ao reunir reflexões enraizadas 
em Michel de Montaigne, Arthur Schopenhauer, 
Friedrich Nietzsche, Gabriel Marcel, Maurice Mer-
leau-Ponty, Michel Foucault e Pierre Hadot, e que 
visam à condição ontológica do ser humano como 
indivíduo sofredor e mortal, portanto, a relação en-
tre a finitude e a facticidade do existir humano no 
mundo e na história.
Pois essa é uma via privilegiada para a inte-
rioridade, que nos coloca face a face conosco mes-
mos, como ex-sistência essencialmente temporal, 
singular, única, irresgatável, insubsumível a qual-
quer generalidade ou abstração. Assim Heidegger 
descreve nossa condição existenciária, como seres-
no-mundo, que é essencialmente cura e preocupa-
ção. Portanto, cuidado de si, mas também Besorgen 
(o cuidado com alguma coisa, com providenciar 
alguma coisa); e Fürsorgen (a cura como tomar cui-
dado de algo, ou de alguém - como preocupação, 
ocupar-se de algo ou alguém, tratar dele e com 
ele). Ser-no-mundo é existir como cura: que inclui 
o modo do providenciar utilitário, no trato com 
objetos e utensílios, mas também a pré-ocupação 
como encargo, que se pre-ocupa e toma sob seus 
préstimos. Cura, como preocupação e cuidado com 
11PREFÁCIO
o mundo, é, portanto, uma dimensão essencial de 
nossa existência como Ser-O-Aí.
Ora, ao nos situarmos nesse horizonte, po-
demos divisar um entendimento de ética que faz 
comunicar as filosofias mobilizadas no presente 
volume com as reflexões de Martin Heidegger e 
de Giorgio Agamben, comunicação que se faz no 
elemento de numa acepção originária e funda-
mental da palavra “ética”, que nos importa es-
sencialmente nesse contexto: 
Uma vez que o ser mais próprio do homem 
é o de ser a sua própria possibilidade ou po-
tência, então, e apenas por isso (na medida 
em que o seu ser mais próprio, sendo potên-
cia, num certo sentido, falta-lhe, pode não 
ser, é pois privado de fundo e não está desde 
sempre na posse do ser), ele está e sente-se 
em dívida. O homem, sendo potência de ser e 
de não ser, está desde sempre em dívida, tem 
desde logo uma má consciência antes de ter 
cometido algum ato passível de culpa. Este é 
o único conteúdo da antiga doutrina.1
Ética só faz sentido porque o homem é 
abertura e existe no aberto - ou seja, sua exis-
tência é ex-stase, e, portanto, não referida a uma 
essência ou natureza substancial, permanente-
mente idêntica a si mesma, uma identidade está-
vel, submetida à inflexibilidade de uma destina-
ção, mas existindo como experiência ética, como 
modo ou forma de vida a ser dado a si mesmo, 
1 AGAMBEN, G. A Comunidade que Vem. Tradução de Antonio Guerreiro. 
Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 38.
12 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
na contingência e facticidade de sua ex-sistência. 
O ethos, portanto, guarda uma relação essencial 
com uma negatividade originária do ser huma-
no - mas essa parece ter desaparecido de nosso 
horizonte, que só se abre para o positivo, para o 
necessário, para o útil, e para o útil como o único 
necessário. Razão pela qual torna-se imprescin-
dível uma recuperação da potência do negativo, 
que se mostra de maneira superlativa no parado-
xo da possibilidade de morrer a própria morte.
É notório o modo pelo qual, em um ponto 
crucial de Sein und Zwit [§ 50-53], na tentativa 
de abrir caminho à compreensão do Dasein 
como um todo, Heidegger situa a relação do 
Dasein com sua morte. De encontro à com-
preensão cotidiana, que subtrai ao Dasein 
a sua morte e iguala o morrer a “um evento 
que certamente diz respeito ao Dasein, mas 
não pertence propriamente a ninguém” (Hei-
degger, I, p. 253), a morte, como fim do Dasein 
revela-se aqui como “a possibilidade mais 
própria, incondicionada, certa e, com tal, in-
determinada e insuperável do Dasein” (p. 258). 
O Dasein é, na sua estrutura mesma, um ser-
para-o-fim, ou seja, para a morte e, como tal, 
está desde sempre em relação com ela “Sendo 
para a própria morte, ele morre facticiamen-
te e constantemente até o momento de seu 
decesso” (p. 259). A morte assim concebida 
não é, obviamente, aquela do animal, não é, 
portanto, simplesmente, um fato biológico. 
O animal, o somente-vivente (Nur-lebenden, 
p. 240), não morre, mas cessa de viver.2
2 AGAMBEN, G. A Linguagem e a Morte: um seminário sobre o lugar da ne-
gatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 
2006. p. 12. 
13PREFÁCIO
Heidegger tinha aguda consciência da “pleto-
ra do ente” no mundo contemporâneo. Com isso, 
quero dizer que, em nossas sociedades tecnologi-
camente desenvolvidas, todos os espaços do mun-
do da vida encontram-se saturados de positividade, 
inflados pelas mais variadas formas de entidades 
reais e virtuais: realidades físicas, imateriais, imagi-
narias; cores, sons, sabores, relevos, estímulos de 
todas as modalidades; fluxos e ondas, redes de co-
nexões impalpáveis - demarcando, por toda parte, 
em todas as esferas da vida, o domínio avassalador 
da Pre-Sença, que se coloca como um manto pro-
tetor perante a possibilidade do vazio. Justamente 
sob a égide dessa presença positiva e opressiva, 
quedamos entorpecidos para o espanto, para a 
maravilhosa descoberta de que os entes são ab-
solutamente contingentes, de que eles existem na 
clareira aberta entre o Ser e o Nada.
Novas demandas nos enredam sempre 
mais na espiral das positividades, e isso inclui a 
matilha em ladrido constante de nossas paixões 
e atrocidades permanentemente em busca de 
satisfação imediata. Uma vez que podemos ser 
felizes, então também somos compelidos a sê-lo, 
pois é cada vez mais verdadeiro que saber é po-
der. Somente nos importa o que é útil para nossos 
fins, e nosso fim último se identifica com um ideal 
de felicidade tecnologicamente assegurado, cuja 
realização é, por certo, permanentemente adiada, 
mas é sempre considerada como possível, e não 
apenas teoricamente. Já não há mais utopias nem 
finais escatológicos da história. Necessário, para 
14 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
nós, é apenas o que nos é útil; o que proporciona 
satisfação imediata; como, porém, essa exigência 
de satisfação, por sua própria natureza, reprodu-
z-se em espiral infinita, o útil tornou-se, por sua 
vez, também incondicionalmente necessário. 
Tornou-se para nós dificilmente audível a voz 
da angústia, ofuscados que estamos por nosso 
próprio delírio de onipotência. Hoje em dia a ilusão 
de que tudo dá certo se tornou paradoxalmente 
perturbadora e digna de ser pensada. Ominosa 
é a certeza - que já desperta incômoda suspeita 
- de que podemos fazer cessar todas as inquieta-
ções; afinal, na era da mobilização total de todos 
os entes para fins de produção e consumo, todos 
os macro e microproblemas da humanidade pare-
cem ser tecnologicamente resolúveis. E, no entan-
to, desperta a suspeita de que talvez venhamos a 
compreender, algum dia, a essência da devastação 
justamente nos lugares em que a terra e o povo 
não foram afetados por efeitos destruidores de 
guerras, catástrofes naturais e cataclismos: 
Onde, portanto, o mundo resplandece no 
brilho da ascensão, das vantagens e dos bens 
que proporcionam a felicidade,onde os di-
reitos humanos são respeitados, e a ordem 
civil burguesa é sustentada, sobretudo onde 
está garantido o aporte provisional para a 
saturação permanente de um bem estar sem 
perturbação, de modo que tudo é calculado 
e inserido no âmbito do útil aproveitável e 
aí permanece. Onde sobretudo o inútil (das 
Unnötige) inibe o curso dos dias, e traz consigo 
15PREFÁCIO
as temidas horas vazias, nas quais o homem 
torna-se tedioso para si mesmo.3 
Esse paradoxo está essencialmente ligado 
a outro: o homem torna-se tedioso para si mes-
mo quando constata a insuperável dificuldade 
de entrar em contato íntimo e autêntico consigo, 
nessa nossa impossibilidade de ser contemporâ-
neo de nós mesmos.
Vivemos um tempo em que todos os entes 
- inclusive o próprio homem - tornaram-se po-
sitivos, isto é, elementos disponíveis, em parcelas 
calculáveis, num processo contínuo de produção 
e consumo (desgaste) de tudo o que existe, cuja 
única estabilidade consiste na intensificação dos 
dispositivos de transformação, disponibilização 
e circulação cuja dinâmica homens e coisas per-
dem a essência em que repousam, não podem 
mais conciliar-se com aquilo que são, e passam a 
ser tragadas na voragem devastadora do desgas-
te dos materiais.
A malignidade desse desgaste alcança seu 
ponto extremo precisamente na aparência en-
ganadora de seu oposto, a saber: “quando ela 
se instalou na aparência irrefletida de um esta-
do do mundo assegurado para colocar diante 
do homem, como meta suprema de sua exis-
tência um standard de vida satisfatório, cuja 
3 HEIDEGGER, M. Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlager. In: 
HEIDEGGER, M. Feldweg-Gespräche. Gesamtausgabe. Band 77. Frankfur-
t/M: Vittorio Klostermann, 2007. p. 216.
16 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
efetivação tem de ser garantida”4. A garantia de 
realização desse pretenso ideal de bem-estar, 
prosperidade, segurança e conforto parece ter 
como condição um estado de paz consolidada. 
No entanto o que efetivamente ocorre é que, 
em nosso tempo, a paz é apenas a perpetuação 
da guerra por meio da política, a própria paz 
constitui uma peça integrante da dinâmica com-
pulsória da devastação. 
Um conceito estranho, como o de “altíssima 
pobreza”, tal como pensado por Giorgio Agam-
ben, talvez possa nos indicar um caminho para 
preservação da liberdade humana. Para nós, e 
nas condições de urgência em que nos encon-
tramos, esse caminho pode ser o resgate da es-
sência da pobreza, ou da reversão da penúria em 
plenitude e riqueza verdadeira. 
A essência da pobreza repousa num Ser. Ser 
verdadeiramente pobre quer dizer: ser de tal 
modo que não carecemos de nada, a não ser 
do desnecessário (das Unnötige). O desneces-
sário é aquilo que não advém da necessidade 
constringente, não provém da coação, mas do 
que é livre (aus dem Freien). Todavia, o que é o 
livre? De acordo com a saga de nossa mais an-
tiga linguagem, o livre é frî, o ileso, o poupado, 
aquilo que não foi tomado para nenhum uso. 
“Libertar” significa originaria e propriamente: 
poupar, proteger, deixar algo repousar em sua 
própria essência. Proteger, porém, é conservar 
a essência no abrigo, no qual ela só perma-
4 HEIDEGGER, M. Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlager. In: 
HEIDEGGER, M. Feldweg-Gespräche. Gesamtausgabe. Band 77. Frankfur-
t/M: Vittorio Klostermann, 2007. p. 214.
17PREFÁCIO
nece se lhe é permitido repousar no retorno 
para a própria essência. Proteger é auxiliar 
continuamente nesse repousar, acalentá-lo. 
Só essa é primeiramente a essência do poupar 
que se apropria de si mesma, que não se es-
gota de modo algum na negatividade do não 
tocar e do mero não-utilizar.5
À luz dessa diretriz podemos pensar numa 
postura ética assumida como forma de vida, 
como reapropriação de si, que supera a aliena-
ção e a reificação em que nossas vidas se encon-
tram sequestradas pelos inúmeros dispositivos 
que se empenham em apropriar-se delas, para 
submetê-las às suas pautas. Uma forma de vida 
que conserva e abriga sua essência, que a pro-
tege e a mantém sob um cuidado diligente para 
com seus espaços de liberdade. E então, justa-
mente por causa disso, o pensamento se reco-
locaria em condições de resgatar também uma 
das significações mais autênticas e originárias da 
ética e também da política, pois, 
[...] o pensamento é forma-de-vida, vida inse-
gregável da sua forma, e em qualquer lugar 
em que se mostre a intimidade dessa vida 
inseparável, na materialidade dos processos 
corpóreos e dos modos de vida habituais não 
menos do que na teoria, ali e somente ali há 
pensamento. E é esse pensamento, essa for-
ma-de-vida que, abandonando a vida nua ao 
“homem” e ao “cidadão”, que a vestem proviso-
riamente e a representam com os seus “direi-
5 HEIDEGGER, M. Die Armut. Heidegger Studies, v. 10, p. 8, 1994.
18 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
tos”, deve tornar-se o conceito-guia e o centro 
unitário da política que vem.6
Penso que o projeto Filosofia e Interioridade 
preocupa-se com tais questões. E, ao fazê-lo, recu-
pera também a centralidade da esperança, uma 
das três virtudes teologais da tradição cristã. Da 
esperança brota confiança no possível, portanto 
nas possibilidades - também nas intramundanas 
- de superação do estado de coisas vigente: 
A vida de todos os homens é impregnada de 
sonhos de olhos abertos, uma parte dos quais 
é somente casca, também fuga que esgota, 
presa para trapaceiros; mas uma outra parte 
estimula, não permite que nos conformemos 
com o presente ruim, que justamente não nos 
permite renunciar. Essa outra parte tem a espe-
rança em seu núcleo, e ela pode ser ensinada.7
Oswaldo Giacoia Junior
Departamento de Filosofia
IFCH – Unicamp
ogiacoia@hotmail.com
6 AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi 
Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 21.
7 BLOCH, J. Das Prinzip Hoffnung. 3. ed. Frankfurt/M: SuhrkampVerlag, 1976. 
p. 11.
1
MONTAIGNE E A MORTE
Jelson Oliveira8
O filósofo francês Michel de Montaigne 
(1533-1592) está entre os pensadores mais insti-
gantes e inovadores da história do pensamento 
ocidental. Sua obra Ensaios, publicada entre 1580 
e 1588, é seguida de várias versões póstumas. Es-
crita em uma linguagem ao mesmo tempo clara e 
elegante, a obra é uma reflexão sobre a condição 
humana. Diante da morte de seu amigo La Boétie, 
aos 32 anos, o filósofo alimentou o desejo de es-
crever e concluiu que o tema no qual era o mais 
versado e experimentado era sobre si mesmo. 
Seu livro é, por isso, uma tentativa de encontro de 
um homem singular com o seu próprio eu, uma 
espécie de auto-observação, cujo resultado é um 
retrato não apenas de um homem particular, mas 
da humanidade em geral. 
Entre os vários assuntos que ocupam a 
reflexão de Montaigne em seu castelo, fincado 
entre os vinhedos de Bordeaux, sem dúvida o 
8 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Fi-
losofia da PUCPR. E-mail: jelsono@yahoo.com.br 
22 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
tema da morte é central. A meditatio mortis mon-
taigniana encontra sua formulação mais contun-
dente no ensaio 20, do primeiro volume da obra 
Ensaios, cujo título é “De como filosofar é apren-
der a morrer”. Levando-se em conta a motivação 
de seu isolamento, aos 34 anos, após a morte de 
seu amigo, pode-se, sem exagero, afirmar que 
toda a sua obra se alinha com a tradição dos 
discursos fúnebres sobre a amizade. Palavras de 
afeto nascidas à beira do túmulo costumam ofe-
recer as mais profundas reflexões sobre a finitu-
de humana. Isso porque, como se esperaria de 
um filósofo, a reflexão sobre a morte não conduz 
à melancolia ou ao temor, mas à vida, entendida 
por Montaigne como uma espécie de preparação 
para a morte, ou para o “bem morrer”. Citando 
Cícero, para quem “filosofar não é outra coisa 
senão preparar-se para a morte” (MONTAIGNE, 
1984, p. 44), Montaigne destaca o fato de que 
toda sabedoria e inteligência, ou seja, que todo 
aprendizado fornecido pela filosofia deveria le-
var os seres humanos a perder oreceio da mor-
te. Se essa é uma verdade facilmente aceitável, 
o modo como logramos alcançá-la é motivo de 
muitas divergências. 
Embora Montaigne não ofereça nenhum sis-
tema moral para as condutas humanas, ele pode 
ser compreendido como um moralista precisa-
mente por esse fato: ele reconheceu os benefícios 
da virtude na capacidade de evitar o medo da mor-
te e, nisso, conquistar a capacidade de viver em 
“doce quietude”, fazendo com que a existência se 
23MONTAIGNE E A MORTE
desenvolva “agradavelmente e sem preocupações” 
(MONTAIGNE, 1984, p. 45). “Eis porque todos os 
sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para 
ele convergem”, afirma o pensador, esclarecendo 
a contribuição da filosofia para o enfrentamento 
da grande verdade da existência humana, o fato 
de que, cedo ou tarde, todos vamos morrer e que, 
diante desse irremediável, nada há a fazer senão vi-
ver de forma intensa e responsável a vida que nos 
cabe. Montaigne cita o poeta Horácio: “marchamos 
todos para a morte; nosso destino agita-se na urna 
funerária; um pouco mais cedo, um pouco mais 
tarde, o nome de cada um dali sairá e a barca fatal 
nos levará a todos ao eterno exílio” (MONTAIGNE, 
1984, p. 45). Temer a morte é ter motivos para tor-
mentos diários, é como viver constantemente em 
um “país inimigo”; enfrentá-la, em sua inevitabili-
dade, é ser capaz de levar a vida com quietude e 
serenidade. Eis o papel então da ética: contribuir 
para a tranquilidade da alma diante do inevitável 
destino do ser humano.
Se a morte nos apavora, pergunta Mon-
taigne, “como poderemos dar um passo à frente 
sem tremer?” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Muitas 
pessoas, para evitar essa situação, acabam fu-
gindo da morte, deixando de pensar sobre ela. 
“Mas quanta estupidez será precisa para uma 
tal cegueira?” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Ao in-
vés de fugir da morte, a proposta de Montaigne 
é filosofar sobre ela. Quem não pensa sobre a 
finitude própria e dos seus, acaba por ser toma-
do pelo temor apavorante de sua chegada, cain-
24 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
do facilmente em suas armadilhas. Essa é uma 
atitude muito comum: “As pessoas se apavoram 
simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E 
persignam-se como se ouvissem falar no diabo” 
(MONTAIGNE, 1984, p. 45). Há quem, inclusive, 
evita falar o seu nome, como se a palavra fosse 
demasiado forte demais, trazendo má sorte ou 
até mesmo chamando-a. Uma longa tradição nos 
ensina a não falar (e, portanto, não pensar) sobre 
a morte. Mas como ela está por aí e é preciso se 
referir à sua presença, então, como era prática 
entre os romanos, acabamos por “adoçá-la ou a 
empregar perífrases”: “Em vez de dizer: ‘morreu’, 
diziam: ‘parou de viver, viveu’; bastava-lhes que 
se falasse em vida. Nós lhes tomamos de em-
préstimo esses eufemismos e dizemos: ‘Mestre 
João se foi’” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Tudo isso 
são estratégias para fugir daquilo que amedron-
ta o pensamento, atitude ingênua e ociosa diante 
de sua fatalidade.
A dor produzida pela morte, contudo, é o 
principal motivo desse medo. Montaigne reco-
nhece que a sua chegada sempre será trágica. 
Para ele, “jovens e velhos se vão da vida em con-
dições idênticas” porque “partem todos como 
se acabassem de chegar” (MONTAIGNE, 1984, 
p. 45). Para o filósofo não há um homem sequer 
que, estando idoso, não deseje ainda viver mais; 
e nenhum jovem que não queira continuar ex-
perimentando as delícias oferecidas pelo fato de 
estar vivo. Mas, para isso, é preciso que ele esteja 
bem preparado diante da morte. Quanto mais ele 
25MONTAIGNE E A MORTE
refletir sobre ela, mais essa reflexão tirar-lhe-á 
o medo da morte e o levará a amar a vida com 
mais intensidade. 
Para o filósofo de Bordeaux, portanto, a 
morte é irrevogável na mesma medida de sua 
imprevisibilidade: “não sabemos onde a mor-
te nos aguarda, esperemo-la em toda parte” 
(MONTAIGNE, 1984, p. 47), adverte. É preciso 
estar preparado para ela. E o melhor meio de 
fazê-lo é justamente pensando sobre ela a fim 
de adquirir liberdade diante da vida. A principal 
meditação humana deveria ser, portanto, sobre 
a finitude; pela morte, assim, alcançamos a es-
sência de nossa condição: “meditar sobre a mor-
te é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu 
a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal 
atingirá quem na existência compreendeu que 
a privação da vida não é um mal; saber morrer 
nos exime de toda sujeição e constrangimento” 
(MONTAIGNE, 1984, p. 47). Assim, não se trata 
de parar de viver para esperar a morte. A pro-
posta de Montaigne é precisamente o contrário: 
“vamos agir e prolonguemos os trabalhos da 
existência o quanto pudermos” (MONTAIGNE, 
1984, p. 48). É preciso viver com naturalidade, 
praticando nossas virtudes, deixando as coisas 
em seus devidos lugares, sem afobamentos e 
nervosismos. Eis como a filosofia de Montaigne 
se transforma em uma ética: a morte deve ins-
pirar uma vida sã e alegre, de tal forma que o 
súbito de sua chegada não leve a desespero e 
comoção exacerbada. É o que inspira Montaigne 
26 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
a escrever uma das frases mais bonitas, sim-
ples e significativas da reflexão filosófica sobre 
a morte: “que a morte nos encontre a plantar as 
nossas couves, mas indiferentes à sua chegada 
e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas” 
(MONTAIGNE, 1984, p. 48). Estaremos, assim, le-
vando a vida de forma tranquila, sem grandes 
episódios, envolvidos em nossos afazeres coti-
dianos, prontos para ela porque estamos, antes, 
sempre prontos para a vida, plantando couves, 
cuidando de nossos cães, voltando do trabalho, 
comendo um pedaço de bolo no final de tarde, 
entre uma xícara de café e uma conversa afetuo-
sa com quem amamos. E, sobretudo, sabendo 
que sempre haverá uma “horta inacabada”, sem-
pre deixaremos uma vida por viver, uma obra 
por terminar, uma palavra para dizer... 
Montaigne oferece ainda uma advertên-
cia: deveríamos evitar as pompas e circunstân-
cias que cercam com aparatos lúgubres o ato 
de morrer. Ele pensa na calma com que solda-
dos enfrentam a morte nos campos de batalha 
ou na forma pacífica com que os camponeses a 
acolhem: não há, nesses casos, grandes apara-
tos que adornam o ato de morrer trazendo mais 
ansiedade. A morte simples, no meio das couves 
do dia a dia, parece amedrontar menos, porque 
vem sem “semblantes de circunstâncias” (MON-
TAIGNE, 1984, p. 48), sem o grito e os lamentos 
das mulheres e crianças, sem as visitas, as pala-
vras pesadas, a consternação geral, sem a pali-
dez dos familiares, a obscuridade dos quartos 
27MONTAIGNE E A MORTE
frios, as coroas, caixões de alça dourada, velas, 
padres e médicos... aquilo tudo, em suma, que 
se dispõe em volta da morte “como para inspirar 
horror”. Por isso, apela o filósofo, 
[...] arranquemos as máscaras das coisas como 
das pessoas e, por baixo, veremos muito sim-
plesmente a morte. A mesma com a qual par-
tiu ontem, sem maior pavor, tal ou qual criado 
ou camareira. Feliz é a morte que nos surpreen-
de sem que haja tempo para semelhantes pre-
parativos!” (MONTAIGNE, 1984, p. 51).
Nas palavras de Montaigne, assim, encon-
tramos tanto consolo quanto lucidez. Há em sua 
obra uma tentativa de enfrentar com o pensa-
mento esse que é um dos maiores medos da 
existência. Nisso ele sofre evidente influência de 
Epicuro, para quem a filosofia era uma espécie 
de medicina da alma, tratando os medos huma-
nos, entre os quais está a morte. Seguindo as éti-
cas helenísticas, Montaigne interpreta a morte a 
partir do dístico: “siga a própria natureza”. Nesse 
caso, o ensaio sobre a morte se caracteriza tam-
bém como uma espécie de recusa da interpreta-
ção metafísica da morte. Seu conselho é simples, 
portanto: acostumar-se com a morte, a fim de 
vencer o que nela há de desassossego, inespe-
rado, desconhecido, assustador. Habituando-se 
a pensar sobre ela, é como se aprendêssemos 
também a enfrentá-la. Nesse caso, Montaigne 
não está preocupado em evitar a morte e nem 
mesmo em vencê-la por meio da crença na eter-
nidade. A proposta,aqui, é simplesmente levar a 
28 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
termo a ideia segundo a qual ensinar o homem a 
morrer é, no fundo, ensiná-lo a viver. 
Referências
MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: 
Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).
2
SCHOPENHAUER E A 
COMPAIXÃO
Diana Chao Decock9
Transpor em palavras a compaixão é emol-
durar uma das mais belas motivações humanas. 
A abstração tem dessas sutilezas, a capacidade 
de criar uma moldura para o esboço insólito. 
Iguala o inigualável, como já diria Nietzsche ao 
ecoar os pensamentos de Schopenhauer, este 
que encontra na compaixão o acesso ao outro e 
a nós mesmos. Um acesso que escapa qualquer 
apelo racional e jamais poderia ser conduzido 
por intermédio das palavras. Se as utilizamos é 
para tentar sobrevoar um campo infinito que só 
conhecemos intuitivamente. Uma tentativa de 
trazê-la à aridez racional, à solidez própria do 
toque de Apolo à Dafne. É aproximar-se do in-
dizível e esculpir, assim como Bernini, o desvela-
mento do nosso ser.
Se, para o filósofo alemão, viver é sofrer, só 
teria como ser pelo sofrimento uma sutil reden-
9 Doutoranda em Filosofia pela USP. Professora do curso de Filosofia da 
PUCPR. E-mail: decock.diana@gmail.com
32 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
ção. Uma redenção inviabilizada pela abstração 
e conduzida unicamente pela compaixão, a dor 
do outro que penetra em nós e nos faz reco-
nhecer a unidade diante da multiplicidade. Com 
intuições similares à sabedoria indiana, Schope-
nhauer concebe os inúmeros seres, projetados 
ao nosso redor, como enganos do Véu de Maya, 
que configura pelas lentes do tempo e do espaço 
aquilo que não somos, fragmentos separados de 
nós mesmos10. Somos todos um, o mesmo im-
pulso cego e insaciável, a mesma vontade. Esta, 
presente em tudo e em todos, ofusca-se por esse 
Véu, que nos impede o conhecimento da identi-
dade metafísica de todos os seres. E o encontro 
com o sofrimento do outro teria como romper 
esse Véu, dissolvendo as amarras que nos isolam 
e nos fazem crer que somos partículas distintas 
que de nada se assemelham. 
Uma natureza essencialmente egoísta é 
sintoma de tal isolamento, essa nos faz gritar por 
todos os cantos “tudo para mim e nada para o 
outro”. O engano do Véu de Maya nos faz acre-
ditar, que “só no meu próprio si-mesmo tenho 
meu verdadeiro ser; todas as outras coisas, em 
contrapartida, são o não-eu e alheias a mim”. E 
tal conhecimento, “cuja verdade carne e ossos 
dão testemunho”, fundamenta todo o egoísmo e 
sua expressão “é toda a ação sem amor, injusta 
ou maldosa” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 218). 
10 Sobre o encontro de Schopenhauer com a sabedoria indiana, conferir 
o artigo de Decock (2016). 
33SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO
Observar ao redor é recolher manifesta-
ções constantes do egoísmo enraizado em nós, 
compreendido, por Schopenhauer, como o ímpe-
to para a sobrevivência e o bem-estar. Queremos 
viver, mas, sobretudo, viver bem. A felicidade, 
como já diria Aristóteles, é o que mais almeja-
mos. Afinal, é absoluta e carente de nada. Difícil, 
no entanto, é reconhecer, assim como o filósofo 
grego, que a felicidade não estaria atrelada ao 
prazer, mas a uma disposição de caráter relacio-
nada a uma mediania. Esforços racionais para o 
alcance do meio termo são alheios à maior parte 
de nossas ações, preferimos os prazeres mun-
danos, por serem certeiros e imediatos. E, para 
Schopenhauer, não teria como ser diferente, 
pois nossa essência é a vontade e a razão está a 
seu serviço. O aroma dos prazeres corpóreos é 
tão atraente, que torná-lo irresistível não é algo 
que a abstração seja capaz.
A busca pelo prazer incessante, cuja satisfa-
ção jamais é plena, leva-nos a ultrapassar cons-
tantemente a nossa esfera, produzindo inume-
ráveis violações, muitas vezes despercebidas ou 
até mesmo desconsideradas. O egoísmo, criado 
pelo abismo entre cada um de nós, torna o outro 
um instrumento para suprir nossas necessidades. 
Faz dele objeto de prazer, mas, principalmente de 
dor, pois não há como amortizar todos os desejos. 
Se estamos famintos, não teríamos como saciar a 
fome de ninguém a não ser para o nosso próprio 
deleite. Queremos sugar a todo custo e ao perce-
ber que não resta qualquer gota a ser extraída a 
34 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
rejeição vem à tona. E aquele que até então era 
objeto de prazer passa a ser só mais uma coisa, 
dentre tantas outras, a ser descartada. 
Em nome da felicidade ou da sobrevivência, 
estamos dispostos a invadir, violar e até mesmo 
aniquilar o outro. Schopenhauer jamais se espan-
taria ao saber que a mulher mais reverenciada 
no Dia Das Mães deste ano, aqui em nosso país, 
foi a policial militar que, na frente de seus filhos, 
assassinou um jovem negro. A autodefesa é um 
grande mérito digno de louvor, enquanto um cor-
po ensanguentado nem sequer foi considerado. 
Torna-nos difícil reconhecer que os valores mais 
admirados possam ser expressões do próprio 
egoísmo, pois encontramos diferentes formas 
de mascará-lo, vesti-lo com uma roupagem nem 
sempre elegante, mas incrivelmente sedutora.
A afirmação da nossa vontade implica, ne-
cessariamente, a negação da vontade alheia. 
Isso porque, a vontade, é “enganada pelo conhe-
cimento atado ao seu serviço, desconhece a si, 
procurando em um de seus fenômenos o bem-
-estar, porém em outro produzindo grande sofri-
mento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 452). Fazemos 
o outro sofrer por estarmos envoltos pelo Véu de 
Maya, que nos impede o conhecimento de que 
somos todos um, a mesma vontade. 
Mas se crimes cruéis e atrozes são sinto-
mas desse engano, o rompimento desse Véu 
desvela um território de pureza, do qual as mais 
belas ações são irrompidas. 
35SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO
Minha essência interna verdadeira existe tão 
imediatamente em cada ser vivo quanto ela 
só se anuncia para mim, na minha autocons-
ciência. Este conhecimento, para o qual, em 
sânscrito, a expressão corrente é “tat twam 
asi”, quer dizer, “isto é tu”, é aquilo que irrompe 
como compaixão, sobre a qual repousa toda a 
virtude genuína, quer dizer, altruísta, e cuja 
expressão real é toda ação boa. (SCHOPE-
NHAUER, 2001, p. 219, trad. modificada). 
A única motivação genuinamente dotada 
de valor moral, aos olhos de Schopenhauer, é a 
compaixão, “a participação totalmente imediata, 
independentemente de qualquer outra conside-
ração, no sofrimento de um outro e, portanto, 
no impedimento ou supressão deste sofrimen-
to, como sendo aquilo em que consiste todo o 
contentamento e todo o bem-estar e felicidade” 
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 136). Ao se deparar 
com a dor do outro, a individualidade pode ele-
var-se completamente. O abismo se desfaz e a 
vontade tem plena consciência de si: Tat twam 
asi, como diriam os antigos sábios da Índia, “isso 
és tu”, eu sou o outro, somos todos um11.
Sofrer com o outro é reconhecer a própria 
essência, é reencontrar-se a si mesmo e ser im-
pedido de praticar qualquer forma de violência. 
Motivados pela compaixão o egoísmo é suprimi-
do e nada almejamos a não ser que o outro “per-
maneça são e salvo ou receba ajuda, assistência 
ou alívio” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 135). O co-
11 Sobre o uso da fórmula sânscrita Tat twam asi nas reflexões éticas de 
Schopenhauer, conferir Decock (2018). 
36 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
nhecimento da identidade metafísica de todos 
os seres desperta ações singulares, sem quais-
quer máscaras ou interesses ardilosos e secretos. 
Como o surpreendente ato heroico da professora 
da creche de Janaúba que se jogou em um corpo 
em chamas para salvar dezenas de crianças. Sua 
própria vida se desfez, pois se desfez o abismo 
que a separava de todos os outros. 
Se aquele Véu de Maya, o principium individua-
tionis, é de tal maneira retirado aos olhos de um 
ser humano que este não faz mais diferença 
egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no 
entanto compartilha em tal intensidade dos 
sofrimentos alheios como se fossem os seus 
próprios e assim é não apenas benevolenteno 
mais elevado grau mas está até mesmo pronto 
a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos 
outros precisam ser salvos; então, daí, segue-
-se automaticamente que esse ser humano re-
conhece em todos os seres o próprio íntimo, o 
seu verdadeiro si mesmo, e desse modo tem de 
considerar também os sofrimentos infindos de 
todos os viventes como se fossem seus: assim, 
toma para si mesmo as dores de todo o mundo; 
nenhum sofrimento lhe é estranho (SCHOPE-
NHAUER, 2005, p. 481, trad. modificada, grifo 
em negrito).
Raras, no entanto, são as ações motivadas 
pela compaixão. Encontrá-las é surpreender-se 
com uma renúncia que nem saberíamos como 
desejar. Envolver-se completamente com o ou-
tro, acrescentar à própria dor as dores alheias, 
requer tamanha abnegação que é preferível 
acreditar neste abismo que de todos nos aparta. 
E permanecer, assim, flutuando sobre a doce ilu-
37SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO
são de que não estaríamos, nas palavras de Car-
rascoza, “comendo os próprios lábios, mastigan-
do com a gengiva os nossos dentes e engolindo a 
nossa própria garganta” (2014, p. 23). 
Referências
CARRASCOZA, J. Caderno de um ausente. São Paulo: Cosac Naify, 
2014.
DECOCK, D. O conhecimento imediato e intuitivo da identi-
dade metafísica de todos os seres. In: DEBONA, V.; DECOCK, 
D. (Orgs.). Schopenhauer: a filosofia e o filosofar. Porto Alegre: 
Editora Fi, 2018. 
DECOCK, D. O encontro de Schopenhauer com o pensamento 
indiano: influência e legitimidade. Revista Voluntas: Estudos so-
bre Schopenhauer, v. 7, n. 2, p. 27-37, 2016. 
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representa-
ção. Tomo I. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.
SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Tradução de 
Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 
2001.
3
NIETZSCHE E A SOLIDÃO
Jelson Oliveira12
A solidão é tema central da filosofia. Está 
ligada à atitude de encantamento e de susto 
diante do mundo e se tornou característica da-
queles que são capazes de fugir para o silêncio 
de si mesmos a fim de provar o que é essencial 
na vida. Perto do alarido da multidão, ouvindo os 
apelos e as pressões do cotidiano, muitas vezes 
ficamos alheios de nós mesmos. A solidão é a 
hora mais particular, aquilo que, na tradição re-
ligiosa, foi associado à hora da oração, ou seja, 
o momento em que o ser humano se coloca so-
zinho diante do transcende; e que na tradição 
filosófico-existencial abre caminho para o ser hu-
mano encontrar a si mesmo. 
Nietzsche é um dos autores que mais deu 
destaque ao tema da solidão. Como um dos pri-
meiros críticos da sociedade moderna, ele criticou 
a massificação cultural e a eleição da abnegação de 
12 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em 
Filosofia da PUCPR. Autor dos livros: A solidão como virtude moral em Niet-
zsche (Champagnat, 2012) e Para uma ética da amizade em F. Nietzsche (7 
Letras, 2010). E-mail: jelsono@yahoo.com.br
40 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
si como valor moral por excelência, o que levou ao 
advento de uma moral de rebanho, ou seja, uma 
moral em que os indivíduos devem negar a si mes-
mos para seguir opiniões, ideias e modismos dos 
outros. Para Nietzsche essa é a grande “deficiência” 
do nosso tempo, que afetou inclusive os processos 
educacionais: “Paulatinamente esclareceu-se para 
mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de 
formação e educação: ninguém aprende, ninguém 
aspira, ninguém ensina - a suportar a solidão” 
(NIETZSCHE, 2004a, p. 230). A solidão deve ser su-
portada porque ela purifica e fortalece o espírito 
humano, ela promove a alegria vital e o júbilo de 
ser si mesmo, ou seja, a solidão é o caminho que 
conduz cada um a si mesmo e, nesse sentido, ela 
aparece tanto como uma espécie de [1] higiene 
pessoal (por ela nós nos limpamos de tudo o que 
não é nosso) e, também, de [2] virtude. 
No primeiro sentido, a solidão é um toale-
te espiritual e asseio, na medida em que ela nos 
limpa de tudo aquilo que não é nosso, daquilo 
que adquirimos na convivência com as outras 
pessoas: “Por isso vou para a solidão - a fim de 
não beber das cisternas de todos. Estando entre 
muitos, vivo como muitos e não penso como eu; 
após algum tempo, é como se me quisessem ba-
nir de mim mesmo e roubar-me a alma. Aborre-
ço-me com todos e receio a todos. Então o deser-
to me é necessário, para ficar novamente bom” 
(NIETZSCHE, 2004a, p. 248). O deserto, como nas 
grandes tradições religiosas, desde Moisés, Je-
sus, Zaratustra ou Buda, é o lugar do vazio, da 
41NIETZSCHE E A SOLIDÃO
falta, da ausência e, por isso, do esvaziamento, 
da caminhada em direção à grande meta da exis-
tência que é o encontro consigo mesmo. 
 A cisterna da multidão é, ao contrário do 
deserto, o lugar da água suja. A metáfora usada 
por Nietzsche para expressar essa ideia é, por 
isso, a de uma poça de água que, na beira da 
estrada, recebe todo tipo de sujeiras e entra no 
fundo da terra para se purificar e sair de outro 
lado limpa novamente, para dar de beber a ou-
tros andarilhos: “Mas nós faremos como sem-
pre fizemos: levamos o que nos lançam para a 
nossa profundidade - pois nós somos profun-
dos, nós não esquecemos - e tornamo-nos no-
vamente límpidos” (NIETZSCHE, 2001, p. 282). A 
solidão purifica porque ela funciona como uma 
espécie de higiene ou mesmo de digestão (outra 
metáfora cara a Nietzsche, que pensa o espírito 
como uma espécie de estômago que digere as 
vivências negativas por meio do esquecimento). 
A segunda característica da solidão é o fato 
de que Nietzsche a considera uma virtude: 
Permanecer senhor de nossas quatro vir-
tudes, da coragem, do discernimento, da 
simpatia, da solidão. Pois a solidão é uma 
virtude, como uma sublime inclinação e ím-
peto de asseio, que adivinha que no contato 
com os homens – “em sociedade” – as coisas 
têm que ocorrer de maneira inevitavelmente 
suja. Toda comunidade – de alguma maneira, 
em algum lugar, alguma vez – torna comum. 
(NIETZSCHE, 2002, p. 191). 
 
42 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Isso está ligado a um dos elementos centrais 
de sua (possível) proposta de moral do futuro: 
cada um de nós, em solidão, deve se tornar legis-
lador para si mesmo e, para isso, deve cultivar a 
solidão como uma virtude, ou seja, como um ca-
minho de autoafirmação. A solidão, assim, é uma 
espécie de fio condutor da filosofia de Nietzsche 
e todo o seu projeto de crítica à cultura ocidental 
pode ser explicada por esse esforço filosófico de 
cultivar a solidão como virtude afirmativa, em be-
nefício não apenas da massa, mas do indivíduo. 
Isso porque, para o filósofo alemão, houve um 
exagerado ódio ao eu, uma condenação do egoís-
mo em nome do altruísmo e da compaixão. Para 
Nietzsche, esses dois valores morais só seriam 
plenamente praticáveis por indivíduos que, antes, 
estivessem de posse de si mesmo. Eis o conselho 
que aparece em um fragmento póstumo escrito 
entre os anos de 1876-1877: “busca a solidão para 
poder servir do melhor modo a muitos ou a todos 
(à multidão): se a buscas por outra razão, te debili-
tará, adoecerá e fará de ti um membro atrofiado” 
(NIETZSCHE, 1988, v. 8, p. 427). É a solidão, enfim, 
que faz a convivência com os outros algo agradá-
vel e sadio: “Se alguém se mantém, com sentido 
de renúncia, na solidão, ele pode fazer do trato 
com as pessoas, rara vez saboreado, um delicioso 
manjar” (NIETZSCHE, 2008, p. 140). 
Não se trata, assim, simplesmente de con-
denar nem o egoísmo, nem o altruísmo, mas de 
pensá-los em suas vantagens, como complemen-
tares: “Você deve tornar-se senhor de si mesmo, 
43NIETZSCHE E A SOLIDÃO
senhor também de suas próprias virtudes. Antes, 
eram elas os senhores; mas não podem ser mais 
que seus instrumentos, ao lado de outros instru-
mentos” (NIETZSCHE, 2004a, p. 112). 
Se a regra moral por excelência tem sido 
sempre a anulação de si em nome do amor ao 
próximo, Nietzsche destaca a solidão como princí-
pio que possibilita e conduz à prática das demais 
virtudes: “Como? Nunca mais poderestar a sós 
consigo? Nunca mais estar inobservado, despro-
tegido, irrefreado, não-obsequiado? Sempre que 
há um outro ao nosso redor, o melhor da bonda-
de e da coragem torna-se impossível” (NIETZSCHE, 
2004a, p. 238). Ou seja, a solidão é uma ocasião 
para que, estando de posse de nós mesmos, seja-
mos mais tranquilos, mais maduros, mais plenos 
de si e, portanto, mais capacitados para o amor, 
mais plenos para as amizades e as demais rela-
ções sociais. Porque ninguém quer beber em cis-
terna de água suja, precisamos nos limpar (ir para 
a nossa solidão) a fim de conquistar o poder de 
amar de verdade os outros primeiro amando a 
nós mesmos, não no sentido meramente egoís-
ta e individualista, mas no sentido de exercitar, 
primeiro conosco, a capacidade do amor e sua 
sensibilidade. Quem não se ama, espalha rancor, 
guarda mágoa, faz murchar tudo ao redor. Quem 
se ama, está feliz e derrama, como luxo e exube-
rância, essa alegria sobre os outros. A solidão, as-
sim, é virtude, porque é um critério para todas as 
demais relações sociais, para que sejam verdadei-
ras e saudáveis. O resto é água poluída.
44 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Nietzsche, contudo, não é um romântico. 
Ele sabe que esse caminho solitário não é fácil de 
ser seguido. Há muitas dificuldades quando de-
cidimos seguir o nosso próprio destino; muitas 
vezes é preciso deixar de lado as indicações já 
estabelecidas pelos outros, meter-se em atalhos 
novos, arriscar-se e até mesmo perder-se:
[...] quem anda por caminhos próprios não 
encontra ninguém: isso os “caminhos pró-
prios” trazem consigo. Ninguém há de vir aí 
“em socorro” e, com tudo aquilo que acontece 
com ele em termos de perigo, acaso, malda-
de e mau tempo, ele próprio tem de chegar a 
termos. Ele tem, afinal, o seu caminho para si, 
e também o seu ocasional dissabor com esse 
duro e irrevogável “para si”, a que pertence, 
p. ex., que mesmo os melhores amigos nem 
sempre vejam e saibam para onde ele real-
mente vai, para onde ele realmente quer ir – 
ficando eles a se perguntar: como? será que 
ele realmente avança? será que ele tem um 
caminho? (NIETZSCHE, 2004a, p. 10).
Sendo mais perigosa e arriscada, a solidão 
é mais rica em aprendizado e mais benéfica em 
criatividade e resistência. Sozinhos, aprendemos 
a nos defender, a falar por nós mesmos, a nos 
responsabilizar por nossas escolhas. O caminho 
da solidão é o mesmo da autonomia e da res-
ponsabilidade. Às vezes, no meio do deserto, 
precisamos de um ombro amigo, de um copo de 
água, de unção para as feridas que latejam sob 
as nossas sandálias andarilhas. Mas ao mesmo 
tempo, quem conta sempre com a tutela alheia, 
45NIETZSCHE E A SOLIDÃO
não fortalece as forças vitais e segue sempre de-
pendente, carente e submisso. Todo o projeto 
filosófico de Nietzsche, por isso, é uma espécie 
de celebração da alegria vital, de celebração da 
vida em tudo o que ela oferece, tanto as horas 
sombrias quanto os dias iluminados. Tal pers-
pectiva, por isso, orientou a própria filosofia de 
Nietzsche, cujo símbolo maior é o alto da monta-
nha, o lugar onde a solidão é sentida como eleva-
ção acima das fragilidades humanas, como lugar 
onde o ar é puro e a o ser humano de sente mais 
próximo de si mesmo - e, quiçá, experimenta a 
transcendência. A própria filosofia nietzschiana é 
uma filosofia das alturas, um pensamento solitá-
rio de montanhas geladas e ar forte: 
Quem sabe respirar o ar dos meus escritos 
sabe que é um ar da altitude, um ar forte. É 
preciso ser feito para ele, senão o perigo de 
se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, 
a solidão é descomunal – mas com que tran-
quilidade estão todas as coisas à luz! com que 
liberdade se respira! quanto se sente abaixo de 
si! – filosofia, tal como até agora a entendi e 
vivi, é a vida voluntária em gelo e altas mon-
tanhas. (NIETZSCHE, 2004b, p. 18). 
Nietzsche descreve a solidão como um “país 
dos antropófagos” (NIETZSCHE, 2000, p. 208), ou 
seja, o lugar onde “o solitário se devora a si mes-
mo” enquanto, ao contrário, na multidão ele é 
devorado por ela. Sarcasticamente Nietzsche en-
cerra esse curto fragmento de O andarilho e sua 
sombra exortando: “agora escolhe!”. 
46 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Referências
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Um livro para espíritos livres. Tra-
dução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. 
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do 
futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Le-
tras, 2002. 
NIETZSCHE, F. Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. 
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 
2004a. 
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. Tradu-
ção, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 2. ed. 3. reimpres-
são. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b. 
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano II. Opiniões e sen-
tenças diversas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: 
Cia. das Letras, 2008. 
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espí-
ritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. 
das Letras, 2000. 
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe 
(KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Monti-
nari. München/Berlin/New York: dtv/Walter de Gruyter & Co., 
1988. (15 Einzelbänden). 
OLIVEIRA, J. A solidão como virtude moral em Nietzsche. Curitiba: 
Champagnat, 2012.
4
GABRIEL MARCEL E A 
ESPERANÇA
José André de Azevedo13
Gabriel Marcel (1889-1973), partindo de um 
contexto de crítica ao racionalismo e ao cientifi-
cismo - profundamente arraigado no pensa-
mento ocidental a partir do século XIX -, propõe 
uma Filosofia do Concreto, ou seja, um pensar fi-
losófico quanto às estruturas que vislumbram o 
humano como ser encarnado. Trata-se, aqui, de 
aprofundar a experiência do homem concreto, 
passível de convivências reais e, acima de tudo, 
estruturador de relações entre mundanidade e 
humanidade, na qual a própria “encarnação” seja 
percebida como dado central da metafísica. Mar-
cel concebe o humano como homo viator, isto é, 
como um ser viandante, inacabado, ainda por se 
fazer, itinerante, peregrino em busca de si mes-
mo. Também compreende a realidade por meio 
da ótica “mistério” e “problema”; ora, “problemáti-
13 Doutor em Teologia pela PUCPR. Gerente da Diretoria de Identidade 
Institucional da PUCPR. 
50 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
co” é tudo aquilo que está para ser resolvido, que 
pode ser objetivado, passível de ser decomposto 
em conceitos (conforme a investigação científica). 
Por outro lado, o aspecto “misterioso” (que aqui 
não se pode confundir com fatos esotéricos, su-
persticiosos ou relacionados ao campo religioso) 
é a análise própria metafísica, quer dizer, é o cam-
po do ser, o qual não pode ser mediatizado, nem 
comunicado por registros lógicos, mas ontológi-
cos.14 A tarefa da metafísica, assim, pode ser defi-
nida como uma reflexão dirigida ao mistério. Para 
Marcel, o ser não é um objeto perante nós; nós 
mesmos somos ser, participamos no ser, de sorte 
que nos incluímos na pergunta que colocamos. É 
impossível separar a pergunta “O que é o ser?” da 
questão “Quem sou eu?”. A questão do ser com-
porta, pois, um envolvimento existencial. E é sob 
esse horizonte que a experiência da esperança - 
analisada aqui ontologicamente - se apresenta a 
nós de maneira contundente.
Em sua obra Homo Viator: Prolegômenos 
a uma metafísica da esperança (obra que reúne 
algumas de suas conferências e palestras), Mar-
cel dedica um capítulo ao estudo da esperança 
intitulado “Esboço de uma fenomenologia e de 
uma metafísica da esperança”. Falar de uma fe-
nomenologia e de uma metafísica da esperança, 
14 “Distinção entre o misterioso e o problemático. O problema é algo que 
se encontra, que obstaculiza o caminho. Acha-se inteiramente diante de 
mim. Ao contrário, o mistério é algo em que me encontro comprometi-
do, cuja essência consiste, por conseguinte, em não estar inteiramente 
diante de mim. É como se nesta zona a distinçãoentre o em mim e o 
ante mim perdesse sua significação”. (MARCEL, 1947, p. 144).
51GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA
mesmo em forma de esboço, é apelar a certa ex-
periência ontológica que se faz presente naquele 
que vivencia tal situação. Dessa forma, o ponto 
de partida, a arché da esperança, não pode ser 
uma definição conceitual (cujo conteúdo de nada 
adiantaria para a profundidade dessa experiên-
cia). Por isso, descrever as estruturas mesmas 
da esperança não é, em certo sentido, descrever 
“a esperança”, mas a experiência do “eu espe-
ro”.15 Marcel, assim, inicia sua obra consciente 
de que, por si só, a natureza da esperança é de 
difícil definição. Eis, portanto, a razão pela qual 
o filósofo parte, então, de análises fenomenoló-
gicas e metafísicas das experiências existenciais 
do “eu espero” enquanto caminho para rechaçar 
qualquer tentativa de confundi-la com questões 
psicológicas de otimismo, desejo e crença. O iní-
cio da análise marceliana será a comprovação de 
que a esperança se situa no quadro da provação, 
visto que a provação/sofrimento não somente 
corresponde à atitude de esperança, como cons-
titui para ela uma verdadeira resposta do ser.16 
15 “Sem dúvida, teremos que recordar aqui a distinção [...] entre “esperar” e 
“esperar que”. Quanto mais tende a esperança a reduzir-se ao fato de fixar 
o olhar ou de hipnotizar-se com uma determinada imagem, tanto mais 
irrecusável deve ser considerada a objeção que se tem formulado. Ao con-
trário, quanto mais a esperança transcende a imaginação, de modo que 
eu me proíba tratar de imaginar o que espero, tanto mais possível parece 
refeita efetivamente essa objeção”. (MARCEL, 1944, p. 60).
16 “Na verdade, pode ocorrer que, arrancando-me de mim mesmo, esse 
sofrimento dê lugar ao fato de que eu alcance uma consciência bastante 
aguda, que sem ele esta integridade aguda que agora aspiro a recon-
quistar não se apresente. É assim, por exemplo, para o enfermo em 
quem a palavra “saúde” despertará uma riqueza de harmônicas geral-
mente insuspeitas pelo homem são”. (MARCEL, 1944, p. 48).
52 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Partindo do anelo esperançoso por libertação, 
percebe-se que o desespero é a grande tentação 
que o ser humano possui diante da prova. Ora, 
o desespero não se detém nos sintomas e nem 
nas manifestações, mas num processo de rendi-
ção ante certo factum, isto é, o aceitar ou não a 
situação e conferir-lhe um sentido. Diante do fac-
tum, ou do ocorrido, posso render-me ou não; a 
esperança, então, é o ato pelo qual a tentação do 
desesperar é ativa ou vitoriosamente superada. 
Dessa maneira, pode-se questionar: é o 
humano responsável pelo ato de desesperar? A 
resposta a essa questão, segundo o pensador 
francês, poderia ser traduzida nos seguintes ter-
mos: Não sou eu quem produz a desesperança; 
ela se apresenta a mim como prova; minha ta-
refa consiste exatamente em não ceder a essa 
tentação de desespero e, em sentido metafísico 
- e aqui entra a missão do filósofo - devo espe-
rar. Essa não aceitação pode ser entendida em 
duas vertentes: demonstração de resistência ao 
desespero (aspecto positivo da não aceitação) 
ou resistência à própria esperança (aspecto ne-
gativo da não aceitação, isto é, não aceitação de 
que no seio da prova se estabeleça a geração 
da esperança). Marcel, então, dirá que a segun-
da não aceitação (de caráter negativo) somente 
se estabelece na relação porque é advinda do 
“medo”; tal reação - o medo -, quando concen-
trada sobre si mesma, gera certa “impaciência”. E 
aqui entra um elemento filosófico profundamen-
53GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA
te inovador em Marcel: a espera pacienciosa17; a 
partir da ideia de que a esperança está imbricada 
na trama de uma experiência, supõe-se, na pró-
pria esperança, uma relação original entre cons-
ciência e tempo. No ato de desesperar, o tempo 
é fechado, é uma prisão, um kronos devorador, 
que provoca, nas relações, um processo de ei-
dolização (idolatria); na esperança, ao contrário, 
possibilita-se uma nova relação com o tempo: 
não mais kronos, porém, kairós (o tempo da gra-
ça), a abertura das relações, na quais o tempo 
deixa passar algo por meio de si. No tempo fe-
chado (kronos), o humano tem a tentação - por 
puro desespero - de reivindicar as coisas para si; 
no tempo aberto (kairós), possui a capacidade de 
doar-se. E aqui encontramos outra estrutura do 
ato de esperar: a inversão do “reivindicar” pelo 
“doar-se”. Assim, esperança é sempre postura 
ativa de saída de si mesmo, de doação e busca; é 
sempre uma ação de fluidificação da existência, 
contra a postura de petrificação do ser e de auto-
fagia espiritual.18
17 “A paciência, em aparência e se somente se se consulta a etimologia, 
é simplesmente um deixar fazer ou um deixar estar, porém, por pouco 
que se leve adiante a análise, descobre-se que este deixar fazer ou esse 
deixar estar, porque se situa além da indiferença e porque implica um 
sutil respeito de duração ou da cadência vital própria do outro, tende a 
exercer sobre este último uma ação transformadora análoga à que, às 
vezes, recompensa a caridade”. (MARCEL, 1944, p. 54).
18 “A esperança, com toda evidência, tem alcance não somente sobre o que 
está em mim, sobre o que pertence ao domínio de minha vida interior, 
senão especialmente sobre o que se apresenta como independente de 
minha ação possível e singularmente de minha ação sobre mim mesmo; 
eu espero – o retorno do ausente, a derrota do inimigo, a paz que devolve-
rá ao meu país as liberdades das quais foi despojado. Se for lícito dizê-lo, 
54 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Não sendo passiva, a esperança está, por-
tanto, profundamente arraigada ao ato do amor. 
Amar a um ser é, segundo Marcel, esperar dele 
algo indefinível, imprevisível; é, de certo modo, 
o meio pelo qual poderá responder a essa espe-
ra.19 Assim, esperar é, paradoxalmente falando, 
dar e receber; e somente se pode falar de e expe-
rienciar a esperança onde existe interação entre 
o que dá e o que recebe. Na análise fenomeno-
lógica e metafísica da esperança, bem como na 
análise das causas e da essência do desespero, 
Marcel frisa que a raiz de muitas situações trá-
gicas é a ausência de um modo de ser tecido na 
comunhão amorosa com o outro. Identificando 
desespero com solidão, o filósofo francês susten-
ta que a única saída para a construção de uma 
civilização nova e esperançosa somente se torna 
como se deu a entender acima, a esperança é um poder de fluidificação”. 
(MARCEL, 1944, p. 56). “Sobre esta chama, que é a vida, exerce-se propria-
mente a ação maléfica do desespero. Poder-se-ia dizer também que o 
ardor solubiliza o que sem ele chegaria a ser sempre impossibilidade de 
existir. Está volto até certa “matéria” do devir pessoal e tem por função 
consumi-la; ali, ao contrário, onde intervém o “malefício”, essa chama se 
desvia da matéria que é seu alimento natural para atacar-se a si mesmo. 
É o que se expressa admiravelmente quando se diz que um ser se “conso-
me”. Desde este ponto de vista, o desespero pode ser assimilado a uma 
verdadeira autodevoração espiritual”. (MARCEL, 1944, p. 59).
19 “Amar a um ser é esperar dele algo indefinível, imprevisível; é, por sua 
vez, dar-lhe, de certo modo, o meio pelo qual poderá responder a esta 
espera. Por paradoxal que possa parecer, esperar é, em certo modo, dar; 
porém, o inverso não é menos verdadeiro: não esperar mais é contribuir 
a ferir de esterilidade ao ser de quem já não se espera nada; é, pois, de 
alguma maneira, privá-lo, retirar-lhe por antecipação – o que é, exata-
mente, senão uma possibilidade de inventar ou de criar? Tudo permite 
pensar que não se pode falar de esperança senão onde existe interação 
entre o que dá e o que recebe, esta comutação que é o selo de toda vida 
espiritual”. (MARCEL, 1944, p. 66).
55GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA
possível no horizonte da comunhão, da fidelida-
de e do amor.
Por fim, como Marcel, acredita-se que a es-
perança é essencialmente a disponibilidade de 
uma pessoa comprometidaem uma experiência 
de comunhão; daí que “eu espero em ti para nós” 
é a expressão mais adequada do ato que o verbo 
esperar traduz de uma maneira confusa e vela-
da.20 Esperar é, então, o lugar onde o desespero 
não é a última palavra.21
Referências
MARCEL, G. Homo viator: prolégomènes a une métaphysique de 
l’espérance. Paris: Aubier, 1944.
MARCEL, G. Être et avoir. Paris: Aubier, 1947.
20 “’Espero em ti para nós’: tal é, talvez, a expressão mais adequada e 
mais elaborada do ato que o verbo “esperar” traduz de maneira, todavia, 
confusa e obscura. Em ti – para nós: entre esse tu e esse nós, que somen-
te a reflexão mais insistente chega a descobrir no ato de esperança, qual 
é, pois, o laço vivo? Não há que responder que Tu és, em certo modo, o 
fiador da unidade que me liga a mim mesmo, ou melhor, um ao outro, 
ou ainda: uns aos outros? Mais que um fiador que assegura ou confirma 
desde fora uma unidade já constituída: o cimento mesmo que a funda-
menta”. (MARCEL, 1944, p. 81).
21 “Poder-se-ia dizer que a esperança é essencialmente a disponibilidade 
de uma alma bastante e intimamente comprometida em uma expe-
riência de comunhão para cumprir o ato transcendente à oposição da 
vontade e do conhecimento pelo qual ela afirma a perenidade vivente, 
da qual essa experiência oferece, por sua vez, a roupa e as primícias”. 
(MARCEL, 1944, p. 91).
5
MERLEAU-PONTY: CORPO, 
DESEJO E SENTIMENTO DE SI
Ericson Falabretti22
Dizem que para conhecer, verdadeiramen-
te, uma determinada pessoa é preciso vê-la por 
dentro, alcançar a sua alma, saber dos seus pen-
samentos mais íntimos, acessar os seus medos e 
desejos, inclusive aqueles inconfessáveis à luz do 
dia que só se deixariam ver indiretamente, por 
sonhos e chistes, como bem estabeleceu Freud. 
Todavia uma pessoa é também aquilo que diz e 
o que faz, o seu projeto, as suas escolhas e ações 
concretas, como escreveu Sartre ao defender o 
seu humanismo existencialista. Já para saber de 
onde um homem ou mulher vieram, como po-
demos ler em Rousseau, no Ensaio Sobre as Ori-
gem das Línguas, bastaria ouvir as suas vozes e 
saber identificar os acentos e sotaques que de-
ram o tom das primeiras frases e, mesmo com 
o passar dos anos, continuam denunciando as 
22 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em 
Filosofia da PUCPR. Decano da Escola de Educação e Humanidades. 
E-mail: efalabretti@gmail.com
58 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
origens. Desse modo, a voz e a ação seriam - de 
Rousseau a Sartre - a exteriorização do nosso 
interior, os índices confessos – ainda que incom-
pletos - do nosso ser, a forma exterior da nossa 
alma. Desse modo, seríamos, insuperavelmente, 
interior-exterior, pensamento-linguagem, inten-
ção-ação, como uma figura sobre um fundo sem 
fronteiras claramente demarcadas seríamos o 
encontro entre duas substâncias radicalmente 
diferentes: corpo e alma. 
Descartes, ainda no século XVII, nas Medita-
ções Metafísicas e no Tratado das Paixões da Alma, 
enfrentou, ambiguamente, essa tese dualista. 
Nas primeiras Meditações Metafísicas sustentou 
a separação essencial entre corpo e alma para, 
na sexta e última Meditação, afirmar a união e a 
relação causal entre ambas. Como óleo e água, 
corpo e alma, apesar de substancialmente di-
ferentes - de um lado, pura matéria extensa e 
finita e, do outro, puro pensamento inextenso e 
imortal - estariam conjugados como os sons e a 
harmonia que compõem uma música. Acompa-
nhemos o texto de Descartes:
Ora, nada há que esta natureza me ensine 
mais expressamente, nem mais sensivelmen-
te do que o fato de que tenho um corpo de 
que está mal disposto quando sinto dor, que 
tem necessidade de comer ou de beber, quan-
do nutro os sentimentos de fome ou de sede 
etc. E, portanto, não devo, de modo algum, 
duvidar que haja nisso alguma verdade. A 
natureza me ensina, também, por esses sen-
timentos de dor, fome, sede etc., que não so-
mente estou alojado em meu corpo, como um 
59MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI
piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe 
estou conjugado muito estreitamente e de tal 
modo confundido e misturado, que compo-
nho com ele um único todo. (1991c, p. 218).
Merleau-Ponty, leitor e crítico de Descartes, 
Husserl e Sartre, talvez como nenhum outro filó-
sofo, sustentou a experiência corporal - os ensi-
namentos da natureza como professava Descar-
tes - como fonte originária de todas as nossas 
certezas. No prefácio da Fenomenologia da Per-
cepção, Merleau-Ponty retomou a distinção hus-
serliana entre duas formas de intencionalidade 
- operante e de ato - expediente determinante 
para a compreensão dos temas centrais da sua 
obra, por exemplo, percepção, corpo próprio, 
desejo, liberdade e outros. A intencionalidade de 
ato, vivida na dimensão reflexiva da nossa vida, é 
aquela dos nossos juízos e tomadas de posições 
voluntárias, consciência tética de um objeto que 
converte uma percepção em uma ideia e uma 
experiência sensível em um conceito abstrato. 
É, de modo geral, a nossa potência intelectiva de 
nos representar mundos e formular teses. Já a 
intencionalidade operante estaria assentada na 
estrutura natural e “antipredicativa” do mundo 
e da nossa vida. Não estaria no domínio da re-
presentação, mas da presença como, também, 
seria da ordem do desejo e não do pensamento: 
“aparece em nossos desejos, nossas avaliações, 
na nossa paisagem, mais claramente do que 
no conhecimento objetivo” (MERLEAU-PONTY, 
1998, p. 16). 
60 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
Desse modo, para Merleau-Ponty o sen-
tido do ser do sujeito remonta a um paradoxo 
vivido nessa dimensão originária da nossa vida 
pré-reflexiva. A experiência da intencionalidade 
operante nos mostraria que o mundo e o outro, 
enquanto polos de vivência intencional, não exis-
tem e não são percebidos como o próprio cogito 
se autopercebe. Como podemos ler na Fenome-
nologia da Percepção, o corpo fenomenal é fiador 
do sentimento de si, da própria existência, pois 
se distingue dos objetos por reunir à consciência 
temporal de si à experiência da encarnação. Por 
outro lado, essa mesma experiência, nos revela-
ria que temos um parentesco ontológico com o 
mundo, pois o sujeito também pertence ao mun-
do, as coisas e ao outro. A tese merleau-pontyana 
da carne do mundo, sustentada pela experiência 
do entrelaçamento, do quiasma, radicalizada em 
O Visível e o Invisível, reconheceria nesse paren-
tesco ontológico o sentido da condição ambígua 
do ser: como sujeito encarnado e como transcen-
dente. A experiência da reversibilidade, alonga-
da do corpo para a carne do mundo nos coloca 
diante da tese inegável de copertencimento e co-
presença no mundo.
Nós nos colocamos tal como o homem na-
tural, em nós e nas coisas, em nós e no outro, 
no ponto onde, por uma espécie de quiasma, 
tornamo-nos os outros e tornamo-nos mun-
do. A filosofia só será ela própria se recusar 
as facilidades de um mundo com entrada 
única, tanto como as facilidades de um mun-
do de entradas múltiplas, todas acessíveis ao 
61MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI
filósofo. A filosofia ergue-se como o homem 
natural no ponto em que se passa de si para 
o mundo e para o outro, no cruzamento das 
avenidas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 157, gri-
fo do autor).
Todavia o que significa colocar no ponto do 
homem natural? Como se passa de si mesmo - 
do Eu - para o outro? Como podemos pensar a 
partir da experiência da reversibilidade em uma 
significação, ao mesmo tempo e inseparável, de 
si e do outro? Nos capítulos sobre o corpo da 
Fenomenologia da Percepção, podemos ler a tese 
mais radical sobre esse saber pré-reflexivo que 
esboça uma abertura para uma teoria acerca 
do sentimento de si fundada no corpo próprio. 
O desejo enquanto uma paixão do corpo - uma 
das paixões primitivas de Descartes - é a chave 
para entender como o outro, as coisas, o mundo 
e a significação da própria existência são, conjun-
tamente, apreendidas afetivamente. 
Para pensar a tese fenomenológica sobre a 
subjetividadefundada no desejo, Merleau-Ponty 
recorreu à Psicanálise. Freud interpreta Merleau-
Ponty, ressignificou a sexualidade pela desco-
berta de um movimento que reintegrou dialeti-
camente o biológico e o psicológico, o físico e o 
mental. Desde Freud a descrição da frigidez, por 
exemplo, não se explicaria por um problema ana-
tômico, mas traduziria uma situação existencial 
mais profunda, como a recusa do orgasmo e da 
condição feminina, ou, ainda, a rejeição do par-
ceiro sexual ou, ainda, uma apatia por si mesmo 
62 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
e pelo outro. O sexual não é uma representação, 
como também não se resume ao extrato o geni-
tal, e a libido como o desejo, por sua vez, seriam 
reveladores do poder do sujeito psicofísico de 
aderir a diferentes ambientes, de adquirir estru-
turas de conduta e ressignificar corporalmente a 
sua relação com o mundo e com o outro. 
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-
-Ponty examina uma patologia que se instala 
como interdição do desejo: “Uma moça a quem 
sua mãe proibiu de rever o rapaz a quem ama 
perde o sono, o apetite e finalmente o uso da 
fala.” (MERLEAU-PONTY, 1998, p. 221). O exame 
desse caso de histeria revela como a interdição 
do desejo conduz ao falecimento da intenciona-
lidade operante do corpo voltada para a vida. A 
afonia, sem relação qualquer com uma lesão fí-
sica e enquanto uma morbidade decorrente da 
proibição do amor, revela o rompimento com o 
mundo comum. O desejo pelo outro, a iniciação 
ao mundo da vida, foi substituída pelo desejo 
de morte. A afonia representa a não existência 
do outro como interlocutor desejado, remete ao 
enfraquecimento das paixões como desejo de 
viver. É o corpo que se cala contra a interdição 
do desejo. O silêncio do corpo, nesse caso, é a di-
mensão carnal da supressão do desejo. O desejo, 
portanto, revela a situação ambígua da existên-
cia corporal, ao mesmo tempo, física e psíquica, 
anônima e simbólica: “ele é a possibilidade para 
minha existência de demitir-se de si mesma” 
(MERLEAU-PONTY, 1998, p. 227). Fechar-se e 
63MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI
abrir-se ao mundo também faz parte da estru-
tura afetiva e desejante do corpo. A sexualidade, 
como o desejo, é a intencionalidade que encon-
tramos no corpo não como resultado de um pen-
samento, mas de uma existência passional. 
O desejo não transcende a vida humana, 
não está alojado na alma, como também não fi-
gura como manifestações inconscientes. Na Filo-
sofia de Merleau-Ponty, o desejo não é cego, não 
é reação motora a um estímulo, mas exprime a di-
mensão simbólica do corpo próprio. O desejo é ir-
radiado, antes de tudo, do nosso corpo e por meio 
dele manifestamos toda a nossa vida pessoal, nos 
abrimos ou nos fechamos para o mundo. 
Para Merleau-Ponty, o desejo, enquanto 
expressão da relação entre o corpo próprio e 
o mundo, não é mosaico de estados subjetivos 
associado pelos sentimentos de dor e prazer. 
Como uma experiência original, alojado no corpo, 
o desejo não apenas revela o poder do sujeito em 
representar o mudo para si, mas expressa a ma-
neira mais profunda da nossa ligação com o mun-
do. O desejo é o signo da nossa presença corporal 
no mundo, é o ato de doação mais origina pelo 
qual investimos as coisas, o outro de afetividade 
e, sobretudo, nós mesmos de afetividade.
O desejo como manifestação primordial 
da intencionalidade operante é sempre desejo 
de algo, de alguém, de um outro corpo. Assim, o 
desejo é vivido antes que representado, sentido 
antes que pensado é o querer em estado bruto 
porque, retomando os termos de Descartes, ele 
64 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
“agita o coração violentamente... torna todos os 
sentidos mais agudos e todas as partes do corpo 
mais móveis” (DESCARTES, 1991, p. 115). Nesse 
caso, a intencionalidade compreendida como 
desejo, não se revelaria apenas como um saber 
antepredicativo do corpo, mas expressaria a di-
mensão afetiva do pertencimento ontológico do 
corpo próprio ao mundo e ao outro. Com Mer-
leau-Ponty, viver (leben), no sentido biológico, 
assim como desejar, é uma operação primor-
dial que torna possível viver (erleben) um deter-
minado mundo. Se é preciso respirar antes de 
perceber, é preciso permanecer desejando para 
experimentar condição ambígua de se sentir li-
gado ao mundo e, ao mesmo tempo, sentir-se só 
e inteiramente em si mesmo. Assim o desejo não 
é apenas um sentimento de falta, mas o ponto 
de ligação que anima aquela existência, dada e 
anônima, em direção ao mundo e ao outro. As-
sim, na obra de Merleau-Ponty, certo saber na-
tural secretado pelo corpo seria o fundamento 
- concreto - de uma teoria da percepção, de um 
novo cogito sem distinção entre espírito e maté-
ria e, finalmente, de uma ontologia radical sem 
separação substancial entre o eu-outro-coisa, 
como podemos ler na sua última obra inacabada 
o Visível e o Invisível a experiência encarnada do 
desejo reforça a tese fenomenológica do corpo 
próprio como emblema de uma nova subjetivi-
dade que não é, absolutamente, consciência e, 
também, não é coisa. 
65MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI
Portanto, em uma perspectiva fenomenoló-
gica o desejo garantiria, ao mesmo tempo, a con-
dição ambígua do ser - a univocidade e o per-
tencimento ontológico - e permitiria ao homem 
natural se colocar no “cruzamento das avenidas”, 
no ponto que se passa “si para o outro”, na “con-
dição do homem natural”.
Referências
DESCARTES, R. Discurso do método; As paixões da alma; Meditações 
metafísicas; Objeções e respostas. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 
1991. (Coleção Os Pensadores).
MERLEAU-PONTY, M. Oeuvres. Paris: Éditions Gallimard, 2010.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: 
Martins Fontes, 1998. 
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspec-
tiva, 1999.
6
FOUCAULT, CUIDADO DE SI 
E INQUIETUDE
Cesar Candiotto23
A expressão cuidado de si, sempre que é 
invocada, remete aos últimos estudos de Michel 
Foucault (1926-1984) nos anos 1980, seja em 
seus cursos no Colégio da França (Subjetividade e 
verdade, de 1981; A Hermenêutica do sujeito, 1982; 
O governo de si e dos outros, 1983; A coragem da 
verdade, 1984), seja em parte de sua História da 
sexualidade publicada em 1984, vol. II: O uso dos 
prazeres; e vol. III: O cuidado de si. Além disso vá-
rias passagens dos Ditos e escritos (vol. II da edi-
ção Quarto/Gallimard, de 2001) e conferências 
nos Estados Unidos e no Canadá (publicados 
pela Editora Vrin) tratam dela. 
Depois de ter estudado longamente os mo-
dos de constituição do sujeito nas práticas sociais 
do Ocidente, entre os séculos XVI e XIX, o pensador 
francês redireciona seu campo de pesquisa para 
as práticas de si cristãs dos séculos III a V, tanto 
23 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Fi-
losofia da PUCPR. Pesquisador do CNPq. E-mail: ccandiotto@gmail.com
68 FILOSOFIA E INTERIORIDADE
no curso de 1980, O governo dos vivos, quanto no 
vol. IV de História da sexualidade: As confissões da 
carne, publicado postumamente em 2017. Nessas 
práticas de si cristãs, principalmente na direção de 
consciência, ele identifica o nascimento da herme-
nêutica do sujeito no Ocidente. Trata-se da inau-
guração de uma modalidade de conhecimento de 
si baseada na decifração contínua e permanente 
dos movimentos do pensamento, assim como o 
nascimento de uma interpretação dos desejos no 
seu sentido de concupiscência. Verbalizar tudo o 
que se pensa assiduamente a um outro, o diretor 
de consciência, é um meio eficaz para discriminar 
entre o bom e o mau pensamento, entre a boa 
vontade (derivada do cumprimento da vontade 
de Deus) e o desejo concupiscente (resíduo onto-
logicamente constitutivo do indivíduo, oriundo do 
pecado original). 
A ênfase no conhecimento de si pela ver-
balização dos pensamentos e dos desejos, tam-
bém se encontra presente - pelo menos em 
sua forma - nas práticas de enunciação sobre 
si mesmo exercidas pelas chamadas Ciências 
Humanas modernas, especialmente

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