Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Metodologia do ensino de História ADRIANA RALEJO 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Adriana Ralejo Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Capítulo 1 Fundamentos do ensino de História ..................................................................................................................... 7 Capítulo 2 A História no currículo escolar: trajetórias e propostas políticas ..............................................................21 Capítulo 3 Saberes e práticas docentes e discentes: entre os universos do professor e do aluno .....................36 Capítulo 4 Materiais didáticos: produção e uso no ensino de História .........................................................................51 Capítulo 5 Tempo presente no ensino de História: novos desafios ................................................................................67 Capítulo 6 Avaliação no ensino de História: fundamentos e desafios ..........................................................................81 Referências ..........................................................................................................................................................................95 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORgAnIzAçãO DO LIvRO DIDátICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Seja bem-vindo ao curso de Metodologia do Ensino de História. É com grande alegria que iniciamos esta jornada junto com você. Nosso objetivo central aqui é examinar algumas das principais propostas relativas ao ensino de História, considerando seus aspectos estruturantes e as propostas curriculares que competem a essa disciplina. Nosso propósito é oferecer uma visão geral sobre o campo do ensino de História, principalmente relacionado aos desafios contemporâneos. Para tanto, faremos um estudo destacando a visão do ensino de História a partir de três perspectivas fundamentais: das políticas públicas, do professor e do aluno. Um dos pontos básicos da discussão será a compreensão do conhecimento histórico escolar com uma produção específica e original. De certo, teremos um olhar voltado para o papel estratégico do professor na mobilização de saberes e, também, ponderando a importância de se considerar os conhecimentos dos alunos como a melhor forma de produzir os sentidos que se planeja ensinar. Objetivos » Refletir sobre fundamentos estruturantes do ensino de História. » Discutir as trajetórias e propostas políticas do ensino de História. » Reconhecer e valorizar os saberes docentes e discentes. » Permitir conhecer ferramentas possíveis que auxiliam no processo de ensino-aprendizagem, dando ênfase na produção e utilização de material didático. » Reconhecer mudanças e permanências no ensino dessa disciplina, bem como apresentar os desafios do tempo presente. » Apresentar os fundamentos e desafios do processo avaliativo. 7 Apresentação Pretendemos, neste capítulo, fundamentar o ensino de História compreendendo como ele se constitui a fim de obter bons resultados no ensino e aprendizagem. Assim sendo, este capítulo tem como objetivo compreender a lógica estruturante do conhecimento histórico escolar e suas relações com o saber acadêmico. Também se busca compreender a importância do estudar História, refletindo sobre os pilares que o estrutura. Objetivos » Reconhecer a especificidade do conhecimento histórico escolar. » Compreender marcas da diferença entre o saber acadêmico e o saber escolar. » Reconhecer a importância do ensino de História e suas finalidades. » Tomar ciência dos pilares que constituem o conhecimento histórico: conceito, tempo e lugar. 1 CAPÍTULO FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA 8 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA O que ensinar em História? O conhecimento histórico escolar Quando pensamos sobre o que e como ensinar, somos levados a diversas questões que são pautas de discussão nas pesquisas que estão relacionadas ao ensino de História. Para além das orientações curriculares (que estudaremos mais especificamente em nosso próximo capítulo), é importante fundamentar nossa prática e compreender os recursos teóricos que utilizamos a fim de obter bons resultados no ensino e aprendizagem. Para início de conversa, é preciso ficar claro o que estamos entendendo por conhecimento histórico escolar. A História concebida como uma “verdade” imutável e, consequentemente, um ensino baseado apenas na memorização de fatos e datas é um tipo de pensamento que vem sendo superado. O conhecimento histórico está associado à especificidade de seu lugar de produção socioeconômico, político e cultural. Isso nos leva a entender que o conhecimento pode ser racionalizado e validado de diversas formas permeados por relações de poder que o define temporariamente. Quando se fala em história, logo somos remetidos a pensar em representação do passado, na intenção de resgatar aquilo que realmente existiu, firmando um compromisso com a verdade (HARTOG, 1998, p. 193). É esse compromisso que marca a diferença entre a história e a ficção e não nos permite ler a obra de um historiador com o mesmo intuito que lemos um romance. A diferença é que no caso do enredo histórico há um compromisso do autor com a verdade. Mas a história escolar, que é diferente da história como ficção, também carrega um teor de diversão, diferente da história acadêmica. Podemos entender a diversão aqui como um esforço do historiador/professor em fazer com que seu público não especialista no assunto(o aluno) se interesse e se prenda à leitura. O historiador Marcos Silva (1995) trabalha com a questão do interesse pela história entendendo-a como um objeto de prazer natural para o historiador/ professor porque aquilo é o seu espaço de trabalho e de reflexão. O grande desafio é tornar a história interessante e compreensível para o outro, aquele que tem que estudar história, mas não fez essa opção, a princípio, por vontade própria. O historiador/professor, com sua paixão pelo seu objeto de estudo, busca garantir que esse prazer pela história chegue a outras pessoas. Tornar a história um objeto de prazer não significa que se está renunciando à sua carga crítica. A história é ciência e tem um compromisso com a verdade como defendemos aqui. Compreendendo a História como ciência, seguindo um modelo positivista, busca-se a existência de padrões como nas pesquisas das ciências naturais com base em perguntas, hipóteses e modelos, e não uma verdade temporária dada pelas fontes. O historiador não é um simples expositor de fatos, ele os coleta, analisa e constrói teorias, assim como o cientista o faz. Desse modo, não se pode negar que a História, ou melhor, o conhecimento histórico é uma construção feita por um 9 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 sujeito. Certamente você passou por essa discussão nas disciplinas de teoria e metodologia da História. Vamos aproveitar essa questão para pensar sobre a História na dimensão do ensino. A história ensinada também é vista como uma invenção, resultado de várias negociações e interferências e não pode ser assimilada de forma objetiva e única. A discussão da História centrada como conhecimento em construção que busca estabelecer relações entre o presente e o passado já avançou muito não só nas pesquisas, mas, também, conquistou espaço na prática docente. Já que a história é um objeto construído por alguém, não se pode deixar de colocar esse objeto em dúvida, ou seja, problematizá-lo. O historiador/professor é um sujeito, e como tal está repleto de preconceitos e imparcialidades. Seu discurso provém de um conhecimento indireto do passado, representado na forma de sua linguagem materna com anacronismos, arcaísmos, equívocos, sentimentos múltiplos, conotações, crenças e partidarismos. Assim, a história não é uma verdade única e está sempre passível da entrada de novos dados que podem transformar o que foi anteriormente construído. Passível de erros, a história demonstra muito mais interpretações do que verdades. Uma característica que devemos ficar atentos sobre essa nova concepção de História é a presença de traços de ideologias dominantes no processo de aprendizagem. Muitos de nossos atos, colocações e propostas para o ensino contêm marcas dessas posturas que se tornaram naturalizadas e difundidas na sociedade e não nos permitem olhar para a história como resultado de uma produção feita por um indivíduo ou grupos dominantes em disputa. O conhecimento escolar configura-se de forma distinta da História como ciência. Sua constituição não depende somente dos resultados de pesquisas e diretrizes elaboradas em nível acadêmico. O planejamento desse tipo de conhecimento precisa estar voltado para o aluno como centro de investigação e para métodos que visam se adaptar a esse público-alvo. Esse olhar sobre o aluno permite que o conhecimento se reconfigure constantemente e não permaneça “congelado”. Essa diferenciação entre o saber escolar e o saber acadêmico é nossa primeira pauta de discussão neste capítulo. Saber acadêmico e saber escolar A existência de diretrizes curriculares elaboradas por órgãos de instância superior (tema de nosso próximo capítulo) não significa que essas prescrições são suficientes para provocar mudanças na organização escolar. Devemos considerar a participação de sujeitos escolares (alunos, professores, diretores, coordenadores pedagógicos) e a existência de uma cultura escolar que são elementos fundamentais que interferem no funcionamento dessas propostas. Concordâncias, resistências, reinterpretações são realizados constantemente, transformando as diretrizes curriculares e estabelecendo novas características mais compatíveis com a realidade escolar. 10 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA Mas o que podemos compreender por saberes? O saber constitui todo tipo de conhecimento adquirido e construído que são fundamentais para a atuação docente. Eles são universais, acumulados e produzidos pela humanidade. Os saberes correspondem a diversos campos de conhecimento dispostos na sociedade e estão integrados de diversas formas no universo escolar. Utilizando a discussão do didata francês Yves Chevallard (1991), o saber acadêmico, como o próprio nome remete, está ligado aos conhecimentos científicos produzidos no âmbito da universidade. Ele fundamenta cultura e cientificamente o saber escolar, mas não é o único tipo de conhecimento que compõe esse tipo de saber. Há outras racionalidades além do que é produzido pela Academia que participam da formação do saber escolar e caracterizam o pensamento humano como saberes de ordem social e cultural (crenças, misticismo, religiosidade, tradição, entre outros). O que queremos dizer é que a história que é ensinada nas escolas trata-se de um saber próprio de uma cultura escolar. Ela é resultado de processos com dinâmica e expressões diferenciadas, mantendo diálogos e interpretação com o conhecimento acadêmico e com os conhecimentos ditos como sociais que estão presentes no contexto de práticas e representações do cotidiano. Mesmo que esses outros saberes de referências façam parte do conhecimento escolar, é atribuída aos conhecimentos científicos uma importância fundamental na constituição do saber escolar. Isso se justifica pelas relações de poder que legitimam o conhecimento produzido, selecionado e organizado pelas universidades como o mais legítimo que deverá ser transformado em objeto de ensino na escola básica. Essa relação de dependência deve ser problematizada se pensamos que o conhecimento escolar é uma simplificação do conhecimento acadêmico e que considera a didática somente como um método de aplicação desses conhecimentos pré-estabelecidos. Esse tipo de pensamento, apesar de estar ultrapassado, ainda faz parte da opinião de muitos professores. Precisamos compreender que o saber acadêmico e o saber escolar são distintos, porém indissociáveis. Seguindo com a teoria de Chevallard, o saber que é ensinado passa por um processo chamado transposição didática, que pode ser definido como uma reelaboração do saber acadêmico ao saber ensinado, elaborada em conjunto com situações de criações didáticas de objetos que se fazem necessários pelas exigências do funcionamento didático. Os elementos científicos contribuem para a definição do saber escolar e para a reformulação curricular no cotidiano da sala de aula. Assim, a perspectiva de constituição de um saber escolar tem por base a compreensão de que a educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre o que há disponível da cultura acadêmica num dado momento histórico, mas tem por função tornar os saberes selecionados efetivamente transmissíveis e assimiláveis. Para isso, exige-se um trabalho de reorganização, reestruturação ou de transposição didática que dá origem a configurações cognitivas tipicamente escolares, 11 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 capazes de compor uma cultura escolar sui generis, com marcas que transcendem os limites da escola (MONTEIRO, 2003). Essa configuração do conhecimento escolar por meio da transposição didática é realizada por processos que acabam por permitir a naturalização do saber ensinado, ou seja, o conhecimento escolar toma uma forma própria que busca despistar signos de seu caráter híbrido a fim de ser legitimado como um conhecimento original. Chevallard (1991) define esses processos como: » Dessincretização: explicação por uma racionalidade diferente daquela que gerou os saberes,delimitando-os e aparecendo como um discurso autônomo. Exemplo: um professor quando vai ministrar uma aula sobre Revolução Francesa para uma turma do 8o ano do Ensino Fundamental não vai explicar da mesma forma que um professor universitário explica na disciplina de História Contemporânea. Essa diferença não está somente na linguagem, mas o raciocínio lógico construído para seu público é diferente. » Despersonalização: ausência de referências autorais, dissociando o pensamento das produções discursivas e distanciando o saber do seu criador, recebendo outra autoria (professor/autor de livro didático) que reproduz e desfigura. Exemplo: ao falar sobre os diversos aspectos da Revolução Industrial em uma aula, o professor, e nem o texto didático, citam referências de onde aquela informação foi obtida, parecendo ser da própria autoria do professor como detentor de conhecimentos inquestionáveis. » Programabilidade: definição racional de sequências e aquisição progressiva do conhecimento. Exemplo: os conteúdos as serem ensinados na escola estão organizados em uma sequência e lógica, normalmente cronológica, a fim de fazer sentido para o aluno. Os conteúdos também são divididos de forma seriada; assim, todas as turmas do 6o ano do País, por exemplo, estão aprendendo aproximadamente os mesmos conteúdos. » Publicidade: definição explícita, em compreensão e extensão, do saber a transmitir, e que deixa implícitos os pré-requisitos. Exemplo: nos livros didáticos estão prescritos os conhecimentos acordados serem próprios para o ensino. Dessa forma, professores buscam ensinar de acordo com o que está anunciado nesses materiais didáticos. » Controle social das aprendizagens: controle regulado de acordo com procedimentos de verificação que autorizem a certificação de conhecimentos adquiridos. Exemplo: os testes e as provas são formas de se regular e avaliar se os conhecimentos foram aprendidos de forma satisfatória para que o aluno passe para o outro nível de ensino ou, caso negativo, fique retido. 12 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA Por que estudar História? Uma das perguntas que mais incomoda e mobiliza tanto alunos quanto professores é o porquê de estudar História. A presença da História como disciplina acabou se tornando naturalizada: “Ensina-se História porque faz parte do currículo escolar” ou “Você tem que estudar História para conhecer o seu passado” são algumas das afirmações que não problematizam a importância desse conhecimento. As finalidades do ensino de História vão muito além do “compreender o presente para criar projetos do futuro e não repetir os mesmos erros do passado”. Esse conceito sobre o tempo histórico acaba diluindo-se na prática escolar, sem articulação concreta com o conteúdo transmitido, ficando o sentido de que ensinar história é quase que exclusivamente comunicar um conhecimento factual do passado. Por muito tempo, seguindo os preceitos do Positivismo desde o século XIX, a História tinha um valor no processo de escolarização de determinar valores para a preservação da ordem, obediência à hierarquia a fim de se obter o progresso da nação. Assim, a metodologia do ensino de História se limitava a decorar nomes, datas e acontecimentos, num sistema reprodutivista e sem problematização a fim de não estimular o raciocínio crítico. Tal prática foi perpetuada na tradição escolar que ainda é possível verificar práticas assim em descompasso com as tendências atuais para o ensino. Apesar dessas permanências, o ensino de História se tornou objeto de reflexão e problematização sobre o seu papel em nossa atual sociedade. Primeiramente, não necessariamente o mais importante, a função da História tem por objetivo informar, preencher lacunas de conhecimentos básicos que ainda faltam aos alunos. Informar aqui é expresso no sentido de contribuir para a formação integral do ser humano. Os conhecimentos transmitidos pela disciplina História permitem a ampliação de horizontes e fornecimento de novos conhecimentos. Esse processo permite que o aluno tenha mais segurança daquilo que sabe e possa se manifestar socialmente sem inibições. Assim, percebemos que o ato de informar não consiste somente em preencher, mas formar. Formar um sujeito capaz de controlar a si, falar em público, contribuir para a formação de sua personalidade. Obter informações não implica somente dominar conceitos de determinado período, mas obter a capacidade de interpretar textos, leitura de tabelas, gráficos e mapas. Vale destacar também que informação não é conhecimento, mas, sim, a matéria-prima com a qual o sujeito transforma em conhecimento com os sentidos que lhe atribui ao relacionar com outros conhecimentos que já possui. Um dos argumentos normalmente utilizados para justificar o ensino de História é o fim de se constituir identidades. Mas que identidade é essa? A ideia de identidade nacional que sustentava a estruturação de um cidadão patriótico tem sido questionada cada vez mais e em seu lugar tem ganhado outras perspectivas de identidade: identidade local, regional, mundial. Essas demandas 13 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 têm entrado em confronto para constituírem a História escolar. Discutiremos essa questão de formação de identitária dos alunos em nosso terceiro capítulo. Outra perspectiva que tem sido atribuída aos objetivos do ensino de História é a formação de um cidadão crítico que seja capaz de enfrentar as diversas informações simultâneas e contraditórias de nosso presente. Situações de violência, preconceito, desemprego, greves, acontecimentos de conjuntura nacional e internacional são apresentadas a todo momento para os alunos. A História tem por objetivo auxiliá-los na reflexão sobre esses acontecimentos, localizá-los em um tempo conjuntural e estrutural e estabelecer relações com a política, economia e cultura (BITTENCOURT, 2005). O conhecimento crítico do passado permite a construção da cidadania por meio do estímulo ao raciocínio indutivo, a imaginação, a formulação de problemas, respostas e soluções para determinados fenômenos da sociedade. Podemos dizer que uma característica importante que o ensino de História permite construir é o sentido de agência. Estudar História para conhecer a si mesmo e aos outros permite que o sujeito combine o entendimento do passado com seus projetos futuros, mobilizados em seu presente quando ele entende melhor a sociedade em que vive. Mas é preciso tomar cuidado para não transmitir o sentido de que a agência histórica se manifesta de forma igual para todos. As relações de poder presentes em nossa sociedade faz com que alguns indivíduos tenham a capacidade de intervir de forma mais ativa sobre os acontecimentos econômicos, políticos e sociais. É importante que ele perceba que a história é mobilizada por indivíduos que podem mudar o curso do mundo. No campo das competências e habilidades, espera-se que, por meio do ensino de História, o aluno possa: apresentar o domínio de leitura e escrita, capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações, capacidade de compreender e atuar em seu entorno social, competência de receber criticamente os meios de comunicação, capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada. Dessa forma, além da dimensão política, o ensino de História também comporta uma formação educativa e cultural a fim de formar um aluno que seja capaz de descrever, observar, estabelecer relações do passado com o presente e o futuro e estabelecer semelhanças e diferenças entre esses tempos. A disciplina tem por preocupação localizar, no campo da História, questões que remetem ao tempo em que vivemos, identificação de heterogeneidade, distinção das particularidades da cidadania cultural, a politica da convivência e da tolerância em relação ao diferente. Mas para a construção do conhecimento histórico escolar é preciso que estejamos cientes de pilares que o sustentam e dos quais nós, professores, mobilizamosem nossas aulas: são os conceitos, os tempos e os lugares. 14 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA Os conceitos históricos Uma das características estruturantes do ensino de História é o uso de conceitos específicos que se tornam naturalizados para historiadores e professores, mas que para os alunos ainda é objeto desconhecido. Operacionalizar com conceitos leva o aluno a desenvolver um vocabulário histórico próprio das Ciências Humanas. L. S. Vygotsky desenvolveu um estudo sobre a aquisição social dos conceitos. De acordo com o pensador, há dois tipos de conceitos: o espontâneo (aquele que o sujeito já possui por meio do senso comum) e o científico. A passagem do conhecimento espontâneo para o científico não implica a substituição de um pelo outro, mas no acréscimo e desenvolvimento dos conhecimentos já adquiridos. Esse processo de aquisição e desenvolvimento de conceitos começa desde a infância e vai amadurecendo na adolescência. A formação conceitual é complexa na qual são mobilizadas funções intelectuais como memória, lógica, abstração, comparação e diferenciação. O desafio do professor não é somente ensinar conteúdos preestabelecidos, mas proporcionar o letramento dos alunos de expressões que são características do conhecimento historiográfico. Para isso é preciso, ao planejar sua aula, listar termos e categorias que tenham relação com os conteúdos que estão sendo trabalhados. Esse trabalho vai se tornando cada vez mais complexo devido à potencialidade do processo construtivo do conceito. Uma das maiores dificuldades dos alunos em compreender a História ensinada está relacionada com a incapacidade de domínio dos conceitos e conteúdos históricos. Algumas pesquisas, baseadas na teoria piagetiana, revelam que esse insucesso dá-se em razão da defasagem de estágios evolutivos e pela falta de maturidade intelectual dos alunos. Atenção O fato é que o conhecimento histórico escolar é produzido por intermédio de conceitos, informações e valores e, caso não haja o mínimo de entendimento desses princípios pelos alunos, sua compreensão fica comprometida. E essa dificuldade tende a aumentar quando professores passam a ficar mais preocupados em transmitir os acontecimentos e pouco problematizam sobre o que os alunos sabem e compreendem sobre determinados conceitos. Isso não significa que narrar os acontecimentos seja algo ruim, pelo contrário, mas se não vierem acompanhados de esclarecimentos e localização histórica dos conceitos que os acontecimentos ensinados mobilizam, a realização de anacronismos como lógicas explicativas pelos alunos podem se realizar e comprometer o ensino. Trabalhar com conceitos torna-se, então, um critério para estabelecer aprendizagens significativas. Anacronismo consiste em um erro de cronologia que, geralmente, consiste em atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que pertencem a outra época ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de uma época a que não pertencem. (SEFFNER, 2013) 15 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 Os conceitos ensinados no universo escolar possuem significados próprios para a formação intelectual e tornam-se fundamentais para evitar deformações ideológicas. Eles são consolidados pela comunidade de historiadores e são familiarizados na história escolar, definindo conteúdos programáticos e capítulos de livros didáticos. Por diversas vezes são utilizadas noções singulares como “Renascimento” e “República Velha”, e que só se aplicam para explicar determinados acontecimentos e períodos, não podendo ser utilizados para se referir a situações fora do contexto histórico ao qual pertencem. Por outro lado, há conceitos que estão situados em mais de um momento histórico, mas que possuem diferentes significados e geram outras possibilidades de discussão em sala de aula. Exemplos de conceitos históricos mais mobilizados no ensino de História são: burguesia, calendário, capitalismo, ciclo, cidadão, cidade-estado, classe média, classe operária, colonialismo, conjuntura, constituinte, contemporâneo, corporativismo, crise, democracia, direito, ditadura, escravidão, Estado, feminismo, feudal, homem, instituições, lei, liberalismo, luta de classes, mercado, nacional, oligarquia, população, populismo, proletariado, racismo, reforma, religião, república, revolução, tempo. Ao falar nesses conceitos pela primeira vez é preciso esclarecer o que se está querendo significar por eles para não cair no anacronismo. Por exemplo, o entendimento que se tem de Burguesia no final da Idade Média não possui o mesmo significado do conceito de Burguesia empregado do final do século XIX. Outro exemplo de conceito que possui diferentes significados com o seu tempo histórico é o de escravidão. O escravo, durante a Idade Antiga, nas histórias de Grécia e Roma, não está submetido às mesmas condições do escravo que abordamos durante a Idade Moderna, utilizado no sistema colonial de exploração que, por sua vez, também é diferente do conceito de escravidão nos dias de hoje. Tornar esse conceito com um só tipo de significado pode fazer com que o aluno não identifique que em nossa sociedade contemporânea há regimes escravistas, mas não como era realizado em outros tempos. Assim, percebemos que os conceitos são necessários para tornar o conhecimento histórico inteligível, mas é preciso tomar cuidado para não cometer erros anacrônicos atribuindo os significados de um conceito de determinado momento para explicar outro conceito histórico. É preciso sempre desconfiar da precisão dos termos e ser cauteloso com a leitura das fontes em que eles se encontram. Os tempos históricos Outra competência de grande importância para o ensino de História é ajudar os alunos a avançar no desenvolvimento do pensamento histórico pelo ordenamento temporal. A compreensão do 16 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA tempo é fundamental para a aprendizagem em História, exercendo uma função estruturante nos processos cognitivos e na elaboração de conhecimento resultante do pensamento histórico. Operar com o tempo implica mobilizar constantemente com relações de processos, contextos, ações humanas no tempo, causa-efeito, multicausalidade, mudança e permanência, semelhanças e diferenças de dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais. Para proporcionar a criação desses sentidos temporais, é preciso trabalhar com categorias como duração, sucessão, simultaneidade, reversibilidade e em códigos de medição cronológica como calendários, periodização histórica, entre outros. Apesar da diversidade de perspectivas que a categoria do tempo pode ser trabalhada, a experiência escolar demonstra que o tempo histórico está posto em torno de um tempo de progresso unificado e unificador expresso por um tempo cronológico por meio de uma contagem de tempo uniforme, regular e sucessiva (ano, década, século, milênio). Mas o ensino não precisa estar restrito a essa perspectiva. Existem várias noções sobre o tempo que destacamos a seguir (BITTENCOURT, 2005): » Tempo vivido: é o tempo da experiência individual. Corresponde também ao tempo biológico que manifesta as etapas da vida (infância, adolescência, idade adulta e velhice). » Tempo concebido: é o tempo organizado e sistematizado pelas diferentes sociedades e tem por finalidade controlar o tempo vivido. Ele pode variar de acordo com as culturas e gera diferentes relações com o tempo vivido. Nele são instituídos os tempos cronológico, astronômico, geológico. » Tempo intuitivo: é o tempo limitado às relações de sucessão (antes e depois) e duração fornecidas pela percepção imediata. » Tempo operatório: é o tempo desenvolvido por relações de sucessão e duração, mas por intermédio de operações lógicas. É nele que está baseado o tempo histórico que propõe reconstruir tempos distantes do nosso presente e torná-los familiares. Nele consiste o tempo métrico (cronologias, periodizações) e o tempo qualitativo (duração, sucessão,simultaneidade). A influência da Escola de Annales, com a instituição de uma Nova História, liderados por Fernand Braudel permitiu a ampliação do conceito de tempo em curta, média e longa duração. Essa diversidade nos ajuda a constituir épocas de transição de um sistema para outro. Por exemplo, a transição do feudalismo para o capitalismo não se estabelece de forma repentina, contando com períodos de mudança em que o velho e o novo se encontram em coexistência até o total desaparecimento da velha ordem. Podemos compreender a divisão temporal por divisão da seguinte forma: » Acontecimento: corresponde ao fato de breve duração que chega imediatamente ao conhecimento das pessoas (nascimento, morte, greve). 17 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 » Conjuntura: corresponde ao fato de média duração que não é percebido de imediato, mas pode ser reconhecido por seus contemporâneos (Revolução Industrial, Ditadura Militar, Revolução Francesa). » Estrutura: corresponde ao fato de longa duração que só pode ser percebido por meio de estudos históricos (Escravidão, Cristianismo, Grécia Antiga). No campo educacional, o avanço dos estudos sobre o conceito de tempo permitiu um salto qualitativo à história escolar. Utilizando as palavras de Elza Nadai (1993, p. 160), as novas perspectivas sobre o tempo permitiram: [...] o reconhecimento de que ensinar História é também ensinar seu método e, portanto, aceitar a ideia de que o conteúdo não pode ser tratado de forma isolada. Deve-se menos ensinar quantidades e mais ensinar a pensar historicamente. [...] Compreensão de que alunos e professores são sujeitos da história [...] assim, as propostas têm procurado viabilizar a compreensão da História, enquanto movimento social e enquanto memória, enquanto discurso construído sobre o passado e o presente. [...] assim como, viabilizar o uso de fontes variadas e múltiplas [...] incorporando também outros documentos, não na condição de recursos, mas na dupla condição de sujeito e de objeto do conhecimento histórico. Mesmo com tantos recursos e possibilidades para se trabalhar com o tempo, o uso do tempo cronológico ainda demonstra ser um recurso eficiente para a localização dos acontecimentos históricos. As linhas de tempo permitem concretizar e visualizar os longos períodos numa representação temporal da História, facilitando a realização de sínteses com relação à localização temporal. Hoje tem ocorrido uma rejeição por parte dos professores porque esse tipo de visão pode gerar uma perspectiva linear e evolutiva da história. A historiadora Sônia Miranda (2012) faz uma análise positiva do uso da linha do tempo com um dos recursos possíveis de serem usados. A linha do tempo é definida como uma demarcação gráfica representativa das relações que podem ser constituídas entre as principais categorias imbricadas na construção da consciência temporal transmitindo um sentido de ordenação, dado pela sequência dos acontecimentos selecionados e, em alguns casos, trazendo a representação da simultaneidade. Mas há problemas possíveis ao se trabalhar com esse tipo de recurso sobre os quais devemos estar atentos. A representação da linha somente como uma seta, sem movimentos ou descontinuidades dá a impressão de um tempo congelado, imutável, único e unificador, desprovido de temporalidades múltiplas e em convívio (simultaneidade). Esse passado que apresenta circunstâncias significativas precisa ter conexões com o tempo presente para gerar sentidos para os alunos. É preciso estar atento e esclarecer aos alunos que se trata de uma forma possível de visualizar o tempo, dentre outras possibilidades. Hoje, há vários recursos on-line que trabalham com a linha 18 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA de tempo de forma criativa, mostrando a simultaneidade da História. Basta procurar nos sites de busca e você encontrará várias opções criativas. São várias as possibilidades de se construir referenciais temporais além do cronológico para a compreensão do tempo. Citemos três deles baseado em Caimi (2013): » Reversibilidade: consiste no domínio das dimensões temporais passado, presente e futuro, mas que não segue necessariamente a lógica do mais antigo para o mais recente. Implica leituras de idas e vindas do passado para o presente e do presente para o passado. Tal domínio permite aos alunos reconhecer que as coisas sucederam de uma maneira, mas poderiam ter sucedido de outra, condições que estimulam o pensamento divergente e a criatividade. » Simultaneidade: exige o reconhecimento; duas ou mais ações podem transcorrer num mesmo tempo cronológico, em diferentes lugares. O domínio dessa noção permite ao aluno compreender desenvolvimentos desiguais, estabelecer distinções entre desenvolvimento cultural e desenvolvimento tecnológico, reconhecendo que uma unidade de tempo cronológico não corresponde necessariamente a uma unidade de tempo histórico. » Continuidade e mudança: permite a identificação de ritmos de tempo (fato, conjuntura e estrutura) e a inferência de que há ações ou fenômenos que mudam lentamente, ao passo que outros se transformam numa maior velocidade ou intensidade. Geralmente, alunos consideram a mudança sempre como um fator positivo e a continuidade como algo negativo. Esse tipo de pensamento é fruto da perspectiva linear tradicional da história escolar que deve ser desconstruída. Os estudos do cotidiano e a demonstração de diferentes ritmos de contagem de tempo de diferentes culturas também são formas alternativas a se trabalhar com os alunos. Trabalhar com o tempo dá essa possibilidade de se estabelecer diversas e complexas dimensões culturais, permitindo a socialização com o mundo. Mas não basta dizer que há outras formas de se contar o tempo, outros calendários. Todas essas formas temporais explicitadas aqui são constituintes do tempo histórico escolar e necessárias para a formação de uma consciência histórica. É preciso fazer com que os alunos sejam capazes de se localizar em seu tempo e espaço, criando condições de reflexão sobre a criação histórica desse mesmo tempo e espaço. Os lugares históricos O terceiro pilar constituinte do ensino de História é a relação do sujeito com o espaço histórico. Como já comentamos anteriormente, a dimensão da construção de uma identidade faz parte 19 FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA • CAPÍTULO 1 de um dos objetivos do ensino desta disciplina. Muitas vezes, a formação dessa identidade está ligada a valores do nacional no sentido de fortalecer a imagem de um Estado unificado e preservar os interesses de grupos dominantes. A abordagem por meio de uma história nacional remete ao passado de uma nação representado por personagens e eventos históricos memoráveis. Dessa forma, heróis foram consagrados, mas isolados do seu contexto histórico. D. Pedro I, por exemplo, era exaltado como o defensor da pátria, mas o contexto de disputa entre portugueses e brasileiros e os interesses da Corte Portuguesa em manter o poderio sobre a colônia não se fazia presente nas abordagens tradicionais. Bittencourt (2005) destaca esse aspecto como um caráter “atemporal” em que são revestidas as explicações históricas. A transmissão de um passado separado do contexto social articula-se com o sentido de um tempo imutável porque impossibilita questionamentos sobre o sentido heroico da ação. Mas em tempos de globalização, a perspectiva de história nacional tem sido criticada por apresentar conteúdos conservadores e limitadores da modernização. Isso permitiu o surgimento de outras abordagens como de espaços supranacionais, para que todos possam se sentir “cidadãos do mundo”. Aos poucos, a divisão do ensino entre História Geral e História do Brasil passou a ganhar uma concepção de história integrada que apresenta uma proposta de tempo sincrônico, permitindo novas posturas em relação ao tempo e espaço e entre a história nacional e mundial. Mesmo nesse caso em que é possível compreender a simultaneidadedos acontecimentos nacionais e internacionais e a influência entre eles, os conteúdos de História do Brasil ainda são diminuídos mediante a valorização da história global. O enfoque sobre a história nacional se limita à influência do capitalismo comercial que surge a partir das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI (a História do Brasil só passa a ser abordada a partir da relação com a colonização portuguesa). Precisamos trabalhar a História do Brasil de forma integrada à história mundial, estabelecendo articulações para além das relações econômicas. A perspectiva de história mundial também tem que ser repensada para não cairmos em perspectivas eurocêntricas. Não estamos negando a importância da História da Europa, mas não podemos omitir as histórias de nossas heranças americanas e africanas. Outra perspectiva que tem ganhado destaque é a história regional ou local. Essa abordagem ainda tem sido um desafio teórico porque pode ganhar diferentes dimensões. Enquanto a história nacional dá destaque para as semelhanças (às vezes inexistentes) em um território, a história regional surge como demanda pela abordagem da diferença e da multiplicidade da sociedade, apresentando situações históricas diversas. 20 CAPÍTULO 1 • FUnDAMEntOS DO EnSInO DE HIStÓRIA Essa regionalização pode ser estabelecida pelo aprofundamento sobre a história nacional (identificação com a identidade nordestina, carioca, paulista) ou pode ganhar uma proporção para além das fronteiras (região platina, Mercosul, colônias de imigrantes). A história regional também pode representar uma resistência aos discursos dominantes do imperialismo americano ou resistindo ao movimento de globalização. Preocupados com a formação crítica do aluno, abordagens sobre a história do cotidiano têm buscado recuperar as relações mais complexas entre os diversos grupos sociais. Sob esse enfoque, pode-se explorar a capacidade de perceber que transformações são possíveis de serem realizadas por homens comuns. O aluno passa a compreender que a História não é feita por heróis, mas que, inclusive, ele é sujeito atuante do processo histórico, questão que já discutimos neste capítulo. No fim, cabe ao professor escolher qual sentido de tempo e espaço será trabalhado em sala de aula à medida que a história é encarregada de situar o aluno diante das permanências e das rupturas das sociedades e de sua atuação enquanto agente histórico. Sintetizando Vimos até agora que: » O conhecimento histórico escolar é uma construção que difere de uma história ficção por seu comprometimento com a verdade. Mas isso não exclui o fato de esse tipo de conhecimento ser algo subjetivo permeado com relações de poder. » O conhecimento histórico escolar é uma produção feita por sujeitos; logo, passível de erros e ideologias. » O conhecimento histórico escolar difere do conhecimento acadêmico, mas são indissociáveis. O saber científico fundamenta cultura e cientificamente o saber escolar, mas não é o único tipo de conhecimento que compõe esse tipo de saber. » A transposição didática é um processo pelo qual se origina o conhecimento escolar, tornando-o algo naturalizado e original. » O ensino de História possui diversas funcionalidades, tais como informar para formar sujeitos; construir identidades; formar um cidadão; construir o sentido de agência; conhecer a si mesmo e aos outros. » Há três pilares estruturantes do ensino de História e que precisam ser mobilizados pelos professores em sala de aula: os conceitos, os tempos e os lugares. » Operacionalizar com conceitos leva o aluno a desenvolver um vocabulário histórico próprio das Ciências Humanas. » A compreensão do tempo é fundamental para a aprendizagem em História, exercendo uma função estruturante nos processos cognitivos e na elaboração de conhecimento resultante do pensamento histórico. » O entendimento de lugar histórico permite a formação de identidades em níveis nacional, global e regional. 21 Apresentação Pretendemos, neste capítulo, configurar a História como disciplina escolar influenciada e definida por propostas curriculares elaboradas por diversos níveis de poder governamental. Assim sendo, este capítulo tem como objetivo fazer compreender os desafios, mudanças e permanências pelo qual essa disciplina escolar mobiliza. Objetivos » Compreender o que é e como se constitui um currículo escolar. » Perceber a existência de tradicionalidades e mudanças no currículo de História. » Conhecer formas alternativas de propostas curriculares. » Compreender o que define e como se constitui uma disciplina escolar. » Conhecer o percurso da disciplina História no Brasil por meio das mudanças curriculares oficiais. » Apresentar as principais propostas curriculares para diversos níveis de ensino. 2 CAPÍTULO A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS 22 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS A história nos currículos escolares: um breve panorama A primeira pergunta que podemos levantar para iniciar nossa discussão é: o que é currículo? Certamente este tema é muito complexo e delicado para ser desenvolvido em poucas linhas, mas podemos partir da conceituação inicial de que currículo pode ser considerado como uma política de governo que propõe uma forma de regulação para o ensino. Assim, o currículo de História trata de diretrizes oficiais sobre os objetivos dessa disciplina e sobre o que ensinar expressos em documentos escritos, prescritos e na prática em sala de aula. É importante salientar que o currículo não é um agrupamento de conhecimento neutro. Ele é uma construção que passa por lutas, negociações e processos de seleção de alguém ou um grupo. As decisões tomadas sobre o que se deve ensinar são provisórias e podem passar por transformações de acordo com seu tempo e lugar. É preciso ficar claro que o que está prescrito nos documentos curriculares não significa que são as melhores opções ou um consenso sobre o que a sociedade pensa sobre o que é válido ou não ensinar. O currículo é um artefato de múltiplas demandas, pressões, interesses e saberes internos e externos à instituição escolar. Como um produto de relações de sujeitos que estão no poder do contexto de produção, o currículo detém determinadas matrizes historiográficas, deixando apagadas ou silenciadas outras versões que estão em disputa. Nesse cenário de luta pela hegemonia da produção curricular são realizadas diversas mudanças, já que o lugar de poder que produz as políticas curriculares não é permanente e centralizado. Podemos compreender que as relações de produção de um currículo de História são mobilizadas para responder às demandas dessa área de formação. Tendo configurado brevemente esse universo da educação, chegamos ao momento de relacionar esses dois elementos: o currículo e o ensino de História. Como a História tem sido abordada no currículo escolar? De acordo com Ana Maria Monteiro (2007, 2011), a relação entre a área de Educação e a área de História é estabelecida por embates e negociações que a pesquisadora chama de lugar de fronteira. O ensino de História trata-se de um espaço de encontro e troca na qual se produzem sentidos e saberes. Pesquisar o ensino de História considerado como “lugar de fronteira” é uma perspectiva de abordagem que, a nosso ver, abre perspectivas instigantes e inovadoras para a análise dos processos envolvidos. De modo geral, as pesquisas que têm como objeto o ensino de História e utilizam os referenciais oriundos da História ou da Educação, deixam de fora reflexões teóricas importantes, seja sobre a especificidade da prática pedagógica, seja sobre a especificidade da disciplina ensinada – a História. Por isso, defendemos que a pesquisa sobre o ensino de História 23 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 constitui-se em lugar de fronteira no qual se busca articular, prioritariamente, as contribuições dessesdois campos, essenciais para se problematizar o objeto em questão. (MONTEIRO; PENNA, 2011). Nesse lugar de fronteira é produzido o conhecimento histórico escolar, um conhecimento comunicável, ou seja, produzido para ser difundido. Pensar a história para a educação é refletir sobre a relação desse tipo de conhecimento com a vida humana, buscando responder a uma carência humana de orientação no tempo. História: entre tradições e inovações A História escolar como conhecimento produzido, assim como as demais disciplinas que fazem parte do sistema educacional, é constantemente redefinida, ao mesmo tempo em que especificidades do processo de constituição de saberes são mantidas. Podemos conduzir essa discussão partindo das contribuições do historiador Eric Hobsbawm (1984) sobre a “tradição inventada”. O termo remete à desnaturalização da tradição como algo que sempre existiu. O que nos é comum nos dia de hoje é algo inventado, construído e institucionalizado que surgiu como algo estranho em algum momento e se estabeleceu ao longo do tempo. Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam fixar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1984, p. 9) Essas tradições são denominadas como inventadas porque são produzidas para legitimar o poder das elites nacionais e defender seus interesses. Nesse sentido, a “tradição inventada” possui objetivos ideológicos para que haja a manutenção das relações de status nas sociedades de classes. Essas práticas simbólicas têm por objetivo incorporar comportamentos e valores por meio da repetição em um processo de continuidade em relação ao passado. Um exemplo dessa perspectiva teórica que podemos relacionar, no caso brasileiro, é a construção de símbolos nacionais institucionalizados pela República, logo após a proclamação, para gerar no novo regime o sentimento patriótico de pertencimento a uma nação e, assim, inibir quaisquer tipos de manifestações contrárias que pudessem vir a surgir. Nessa ocasião, a bandeira e o hino nacional foram símbolos fortemente utilizados em diversos espaços sociais e que se enraizaram em nossa cultura. Até há pouco tempo, cantava-se o hino nacional antes das aulas começarem nas escolas e as Forças Armadas, até o dia de hoje, hasteiam a bandeira nacional no início do dia. 24 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS A “invenção das tradições” é uma expressão que não se restringe ao campo da História. Esse conceito remete a uma questão interdisciplinar e leva as contribuições da historiografia para outras áreas das Ciências Humanas, como a antropologia e sociologia. Influenciado pelo contexto inglês, Hobsbawm (1984) relaciona três tipos de tradições inventadas, descritas a seguir: » As tradições que estabelecem formas de coesão social. » As tradições que legitimam as instituições e o status nas relações de classe. » As tradições que socializam ideias de um sistema de valores e padrões de comportamento. No campo dos estudos curriculares, a “tradição” também é um termo questionado pelos pesquisadores. Ivor Goodson (2005), por exemplo, considera o currículo como campo de lutas: na matéria a se ensinar e na prática em sala de aula. Esses embates são frutos de prioridades políticas e sociais pela predominância pelo que diz respeito à educação. Para Goodson, a elaboração de um currículo é considerada um processo pelo qual se inventa a tradição. Essa tradição não é algo pronto que irá durar pela eternidade. Com o tempo, essas mistificações tendem a se construir e reconstruir. Precisamos questionar a História e a construção social do currículo para não cair nas armadilhas de naturalizações e reproduções de “verdades” inquestionáveis. Essa “tradição” está fortemente enraizada nos programas escolares e ganha continuidade na prática docente. Um exemplo disso é a resistência da abordagem da História pautada na divisão mecanicista, linear, evolutiva e causal do tempo dividido em História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea, que torna o passado distante e irreconhecível no nosso presente (TURINI, 2004). Apesar dos movimentos de renovação historiográfica que ganharam força a partir da década de 1980, nos quais se buscava a superação da visão da História como um tempo único, contínuo, progressista e eurocêntrico, ainda observamos nas salas de aula, nos esquemas de quadro, nos livros didáticos e até nas propostas expressas nas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação a permanência do sentido da História “tradicional”. Nos guias do Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), por exemplo, ainda são poucas obras que apresentam uma proposta de História temática, prevalecendo o modelo de História linear. Continuando com o exemplo dos livros didáticos, é possível perceber indícios de que há a tentativa de autores e editoras de incorporarem as inovações historiográficas em seus materiais. Os títulos e objetivos das obras apresentam cada vez mais a utilização de adjetivos como “nova história”, “história-problema” ou “história crítica” para desvincular-se da perspectiva de “história 25 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 tradicional” cada vez mais criticada. Mas, na prática, o que ainda encontramos é a permanência do teor tradicionalista de ensino pautado na memorização de datas e acontecimentos. Podemos ver, também, o esforço para a inovação do ensino na inclusão de documentos de natureza diversa como notícias de jornal, gráficos, mapas, trechos de obras literárias, letras de música, ilustrações, dados estatísticos e outras fontes que remetem à ampliação do conceito de produção historiográfica. O uso desses tipos de documentos se justifica pelo uso didático que se faz deles, por corresponderem a fontes de análise que contribuem para o desenvolvimento da explicação historiográfica, além de serem materiais atrativos e estimulantes que permitem sair do método de ensino pautado somente em textos explicativos. Desde a publicação dos PCNs, temas como ética e pluralidade cultural passaram a fazer parte dos objetivos do ensino de História. Se antes o objetivo era fomentar a ideia de identidade nacional romantizada, hoje o intuito é explorar as diferentes identidades que existem dentro de uma nação, tornando os alunos sabedores da diversidade cultural de sua época. Mesmo com todas essas problematizações, devemos valorizar os movimentos de inovação curricular. Somente com essas tentativas de mudanças e a reflexão sobre as críticas sobre elas geradas é que poderemos caminhar para o aperfeiçoamento das políticas curriculares. A resistência existe não somente por que os professores se negam a trabalhar sobre novas perspectivas e, sim, porque existem dificuldades reais para a concretização dessas abordagens inovadoras (problemas na formação de professores e na infraestrutura escolar). Esses investimentos do uso da historiografia trazem potencialidades para o ensino, permitindo a desconstrução ou, pelo menos, o questionamento de mitos do campo pedagógico e historiográfico. Propostas curriculares alternativas Tendo construído até aqui essa crítica sobre a tradicionalidade no currículo, é interessante neste momento pensar em formas alternativas de propostas curriculares que foram desenvolvidas para combater o discurso hegemônico. Essas propostas alternativas podem contribuir para o avanço no campo do currículo e estimular outras realizações. As alternativas são possíveis, desejáveis e merecedoras de estudo e divulgação. O pesquisador em currículo Antônio Flávio Barbosa Moreira discutiu em seus trabalhos a importância da valorizaçãodas lutas progressistas no currículo, analisando os avanços e dificuldades enfrentados. Moreira (2000) analisa os movimentos que surgiram na década de 1980, com o enfraquecimento e desmonte da ditadura militar no Brasil, que se preocupavam com a democratização do espaço escolar. Propostas como a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a educação popular foram tendências pedagógicas que pautaram muitos projetos nessa época 26 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS que divergiam sobre o conteúdo ensinado nas escolas. O foco repousava principalmente em oferecer aos alunos de camadas populares um ensino de qualidade. Outras propostas curriculares também foram e ainda continuam sendo desenvolvidas, revelando um razoável grau de autonomia das esferas locais de poder. Foram realizadas reformas em São Paulo (1989-1992), Rio de Janeiro (1993-1996 e 1997-2000), Belo Horizonte (1993-1996) e Porto Alegre (1994 em diante). Seguindo os relatos de Moreira, as redes públicas municipais organizaram currículos com princípios mais integradores que visassem à incorporação dos grupos subalternizados ao sistema de ensino, a fim de obter uma aprendizagem mais significativa e bem-sucedida. Mesmo assim, não houve a desvinculação dessas novas propostas da estrutura disciplinar como forma de ensino na escola. Sobre a formulação dessas novas propostas, o pesquisador diz que: Nas quatro capitais, os princípios para a ordenação ou integração do currículo diferiram. Em São Paulo e Porto Alegre escolheu-se a interdisciplinaridade; em Belo Horizonte, preferiram-se eixos transversais e norteadores; no Rio de Janeiro, os princípios educativos e núcleos conceituais. Escapou-se, assim, da ideia de que uma proposta curricular corresponde a uma lista detalhada de conteúdos, procedimentos e avaliação para todas as escolas. Entendeu-se que essa definição deve ocorrer no âmbito do projeto pedagógico de cada escola, cabendo aos órgãos centrais o estabelecimento dos objetivos gerais norteadores dos projetos. Como se vê, o foco foi mais na integração de conhecimentos localmente escolhidos que no saber sistematizado universal, defendido pela pedagogia dos conteúdos. Não surpreende, então, a significativa influência de Freire em quase todas as reformulações. (MOREIRA, 2000, p. 119) Utilizando como exemplo a implementação dessas propostas no Rio de Janeiro, tiveram maior influência os pressupostos da educação popular inspirados em Paulo Freire (SILVA et al., 2010). Os currículos pautados sob essa perspectiva propõem como eixo as necessidades e as exigências da vida social que não são contempladas nas disciplinas tradicionais. Nesse caso, há uma preferência por currículos definidos em nível local ao invés de currículos centralizados para todo o sistema escolar. O ensino de História nesse período estava pautado em desenvolver uma identidade nacional por meio da educação. Mas construir mecanismos de identificação que contemple todas as especificidades regionais de nosso país torna-se uma tarefa difícil de ser concretizada. A expansão do ensino levou a uma diversificação do público escolar, causando demandas de novos conceitos e métodos pedagógicos que tornassem o aluno participante e ativo na construção do conhecimento escolar. 27 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 Atenção Uma perspectiva histórica que é qualificada como tradição disciplinar moderna é a permanência da história linear e progressiva. O modelo tradicional ainda carrega marcas do regime moderno de historicidade, característico do contexto da invenção dessa tradição disciplinar, cujo processo se desenvolveu no âmbito do movimento de construção da nação e uma identidade nacional, também entendida como tradições inventadas. Segundo François Hartog (1996), o regime de historicidade pode ser entendido como uma expressão da experiência temporal, formas de significar e organizar essa experiência no tempo. É preciso buscar alternativas para superar essa tradição disciplinar moderna a fim de promover as ausências de outras experiências que ficam de fora da lógica temporal linear. Isso não quer dizer que devemos acabar com as tradições colocando-as como vilãs da História Moderna, mas lutar contra a perspectiva de uma história única. Uma proposta inovadora no currículo de História que vem a combater o sistema de ensino simplificado é a implantação de abordagem pautada em eixos temáticos. Essa proposta, que se originou na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em 1986, tem como objetivo oferecer uma educação aberta para explicações sem ponto de partida e chegada, construída a partir de reflexões e diálogos entre professores e alunos. Com isso, combate-se a visão eurocêntrica e a lógica de progresso que permeia a nossa historiografia. Novas representações do tempo histórico buscam a compreensão da existência de tempos múltiplos que possuem diferentes ritmos. Combatendo o modelo político francês quadripartista que organiza a História nos quatro tempos determinados (Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), prefere-se um modelo de tempo contínuo que estabelece relações entre o passado e o presente. No lugar de trabalhar com uma abordagem historiográfica baseada em temporalidades históricas fechadas e longínquas do cotidiano de vida dos alunos, o eixo temático da história local permite construir a educação como política cultural e revela a existência de culturas populares e subordinadas pelo sistema dominante (GIROUX, 1997). Os PCNs para terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental (antigas 5ª a 8ª séries) apresentam um movimento de avanço em relação a essas ideias ao sugerir aos professores trabalharem com conceitos como fato histórico, sujeito histórico e tempo histórico. A desconstrução das estruturas históricas permite aos alunos ampliar sua compreensão sobre o mundo e a diversidade de relações que o constrói por meio de processos sociais, econômicos, políticos, culturais e artísticos. Essa diretriz curricular também recomenda que o docente valorize os saberes que o aluno possui fora do universo escolar e os transforme em produto cultural, resignificando seus conhecimentos e experiências a partir da relação com o conhecimento escolar. Essa transformação pode ganhar 28 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS a forma de livros, exposição em murais, desenhos, peças de teatro, trabalho com mapas e elaboração de quadros cronológicos. Outra alternativa que podemos buscar para enriquecer o ensino de História e romper com as tradicionalidades é destacar as múltiplas narrativas e os múltiplos significados que diferentes versões historiográficas podem promover, possibilitando a ação de diferentes sujeitos como narradores de uma história. Trata-se de um reconhecimento e valorização de outras narrativas que antes ficavam apagadas. trajetórias da disciplina escolar A História, como tantas outras áreas disciplinares, faz parte do cotidiano de professores e alunos. Mas nem sempre a configuração da História escolar foi realizada dessa maneira. As disciplinas escolares não nasceram juntamente com a emergência da escola. As disciplinas, o tempo escolar, o ano letivo entre outros, são construções que fazem parte de uma cultura escolar, ou seja, estamos partindo da concepção de que a escola não é um lugar preenchido de culturas e influências externas, mas é produtora de sua própria cultura, uma configuração própria que não existe fora dela. André Chervel (1990) revela que esse tipo de pensamento pedagógico se iniciou no século XIX, justamente quando se começa a reavaliar as finalidades do ensino secundário e primário. Para o autor, a disciplina é aquilo que se ensina, mas esse conceito vai além do “conteúdo de ensino”. Sobre a mudança acerca do sentido de disciplina, Chervel (1990, pp. 179-180) diz que: Logo após a I Guerra Mundial, enfim, o termo “disciplina” vai perdera força que o caracterizava até então. Toma-se uma pura e simples rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer referência às exigências da formação do espírito. Com ele [o termo], os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer à sua própria história. (...) Uma “disciplina”, é igualmente, para nós, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte. A concepção de disciplina como uma teia de conhecimentos que possui complexas diferenças entre o saber acadêmico e o saber escolar demonstra como é necessária uma compreensão do papel da escola na divisão de classes e na manutenção de privilégios de determinados setores da 29 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 sociedade. Essa forma de organização curricular estabelece finalidades de cada área específica, conteúdos a serem “ensináveis”, métodos que garantam a apreensão dos conteúdos e uma avaliação sobre a aprendizagem. Mas essa é uma das diversas definições possíveis de disciplina abordadas pelas pesquisas em ensino de História. Podemos citar brevemente, para demonstrar a complexidade desse conceito, outra definição de disciplina que é a defendida pelo pesquisador francês Yves Chevallard (1991) que utiliza o conceito de “transposição didática” que consiste na recontextualização os saberes acadêmicos e outros tipos de saberes em uma forma e lógica própria para o contexto escolar. O sentido de “transposição didática” nos remete a um processo dinâmico de produção que obedece a uma finalidade e definição de métodos que garantam a sua eficácia como “disciplina”. Ou seja, toda disciplina é composta por finalidades, conteúdos e métodos estabelecidos de acordo com interesses específicos dos grupos dominantes a fim de proporcionar uma formação intelectual e cultural que possa desenvolver o espírito crítico e capacidades cognitivas diversas. A trajetória da história escolar A História como disciplina escolar passou por mudanças significativas quanto aos métodos, aos conteúdos e às finalidades até chegar à atual configuração nas propostas curriculares. O conteúdo programático tem se apresentado como um problema para a maioria dos professores que sentem dificuldades de contemplar todos os itens prescritos pelas políticas públicas, e acabam por deixar de lado os fatos contemporâneos, deixando-se de se estabelecer ligações entre o presente e o passado. Nesse momento faremos um panorama sobre o processo de definição do currículo de História na trajetória brasileira. A História se emancipa como disciplina no início do século XIX, permeada de conflitos e controvérsias, no contexto de estruturação da educação no Brasil. A escola secundária, criada para atender à formação dos setores da elite, inclui a História como disciplina nos planos de estudos do Colégio Pedro II formado por membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, e adepto de uma visão político-romantizada do processo de construção do Brasil. Essa História tinha uma perspectiva nacionalista e política de maneira ufanista a fim de exaltar a colonização portuguesa, a ação da Igreja Católica e a exaltação da Monarquia. A partir daí, o percurso da História variou bastante, mas sempre esteve associada à constituição de identidades nacionais, prática presente até os dias de hoje. Nesse contexto, o currículo de História integrava o denominado Humanismo Clássico, baseado no estudo de línguas e de textos da Literatura Clássica da Antiguidade. Os conteúdos da História serviam para a formação moral, baseada em uma civilização ideal. 30 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS Os programas curriculares criados foram inspirados no modelo do ensino secundário francês, com predominância da História das Civilizações, dividido nos tradicionais marcos temporais: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Além disso, era contemplado o conteúdo de História Sagrada durante os anos do Império. A História do Brasil só surgiu nos anos de 1850 com o intuito de complementar o estudo oficial. Juntas, se destinavam a formar a cidadania e a moral cívica. No final do século XIX, a História, junto com outras disciplinas, passou a constituir os saberes escolares que definem uma formação intelectual para a configuração de um novo tipo de elite. A disciplina passou a ter uma conotação mais pedagógica a fim da formação política dessa elite. Houve uma tentativa inicial, no campo da legislação, de se descaracterizar as disciplinas de História e Geografia e uni-las pelo nome de Estudos Sociais, levantando uma questão sobre quais seriam os conteúdos da disciplina História. Com a institucionalização da República, os objetivos do ensino de História passam a integrar setores da sociedade que antes eram marginalizados no processo educacional. Para esses sujeitos, o ensino era voltado para a disseminação de valores de preservação da ordem e da obediência à hierarquia. Ainda não havia um campo de conhecimento histórico. Os estudos históricos consistiam em biografias, batalhas e na constituição da identidade nacional. As elites buscavam, dessa forma, garantir a existência de um Estado-nação, escolhendo para ser ensinados aos alunos conteúdos que exaltavam grandes “heróis” nacionais e feitos políticos gloriosos. Nos anos 1920, ganha força o movimento da Escola Nova, representado por Rui Barbosa, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira. Esse movimento demonstrou uma preocupação com os métodos do ensino e a instrução de programas de história inexistentes até então. O escolanovismo dá maior centralidade ao aluno na construção do conhecimento e influenciará nas reformas na década de 1930. Os anos 1930 foram marcados por uma série de reformas durante o governo de Getúlio Vargas, conhecidas como Reforma Francisco Campos; que tinha como objetivo a expansão da escola pública e a unificação da educação. Como parte dessas mudanças estava a criação do Ministério da Educação, e a organização de um sistema escolar centralizada e com conteúdos que obedeciam a normas rígidas e gerais. A introdução da História no currículo científico não afetou significativamente nos métodos de ensino e as aulas eram ministradas ancoradas nos livros didáticos que guiavam a maneira “mais correta”. Continuou sendo considerado como importante o domínio do conteúdo do tipo enciclopédico, predominando o estudo da história da civilização cristã ocidental, herança do século XIX. As Histórias da América e do Brasil ficaram em segundo plano. Em 1942, no auge do período getulista, foi implementada a Reforma Capanema pela Lei no 4.244. Por meio dela, a História do Brasil ganhou maior ênfase fazendo parte do currículo oficial, com 31 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 carga horária ampliada. O objetivo da História passou a servir para a formação de uma “cultura geral e erudita”, destacando também o desenvolvimento econômico, a defesa do território, o progresso nacional e outros recortes que exaltam o nacionalismo como noções como pátria, tradição, família e nação, os grandes empreendimentos e a política interna. A História recebe autonomia enquanto em área de saber, mas não decide sobre os conteúdos a serem abordados. Em 1951, mais uma reforma educacional é realizada diante do contexto pós-Segunda Guerra Mundial. As Histórias do Brasil e América são realocadas para os primeiros anos (1ª e 2ª séries) e os anos finais (5ª a 8ª séries, hoje, anos finais do Ensino Fundamental) dão ênfase paraHistórias Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Esse modelo foi seguido até os anos 1980. Durante as décadas de 1950 e 1960, com a formação dos primeiros especialistas oriundos dos cursos de História fundados em 1934, surgiram críticas e novas propostas sobre o ensino dessa disciplina. A maior das críticas dirigia-se contra a formação de História Erudita. Em seu lugar, propunham uma educação que formasse um cidadão político, autônomo, aliando o conhecimento da história política à história econômica para entender o desenvolvimento capitalista no projeto de modernização do País, crítica à História Eurocêntrica e o conceito de civilização difundido como uma sociedade branca e cristã. Os debates almejavam repensar sobre a função social e a política das disciplinas escolares, porém, qualquer movimento de renovação foi contido pelo regime militar, limitando as mudanças ao caráter técnico. Na década de 1970 foi promulgada a Lei no 5.692/1971, a Reforma Jarbas Passarinho, que dividiu o ensino secundário em dois níveis: o ensino ginasial tornou-se continuidade do ensino primário, formando o primeiro grau com período de oito anos; e o ensino colegial, denominado segundo grau. Essa divisão permitiu maior controle da educação escolar que se expandia nesses tempos. A partir dessa legislação, a História e a Geografia transformaram-se em Estudos Sociais em todo o primeiro grau, diluindo a função específica de cada disciplina e diminuindo o número de docentes. No segundo grau, apesar de a História subsistir, teve sua carga horária reduzida, impedindo qualquer mudança significativa que a disciplina poderia surtir no aluno. Estudos Sociais constituiu-se como uma área composta por “diferentes matérias” que provinham da Geografia humana, da Sociologia, da Economia, da História e da Antropologia Cultural. Essa área tinha por princípio a formação de valores morais, visando à integração dos alunos da forma mais adequada possível em sua comunidade. Eram introduzidos temas da sociedade, de acordo com a faixa etária, valorizando as datas comemorativas, personagens históricos (Tiradentes, D. Pedro I, Princesa Isabel, Marechal Deodoro da Fonseca etc.) e a rememoração de acontecimentos como a “descoberta do Brasil”, a “independência do Brasil”, a “abolição dos escravos” e a “proclamação da República”. Essa mudança ocorreu devido ao medo de que o potencial político e crítico que o conhecimento mais profundo daquelas áreas pudesse gerar reações revolucionárias. Essa fusão acabou por empobrecer os conteúdos de ambas as disciplinas, pois a ênfase agora estava no civismo. As disciplinas de História e Geografia só voltam a aparecer separadamente em 1997 32 CAPÍTULO 2 • A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS fazendo com que especialistas comecem a pensar novamente sobre as atuais especificidades de cada uma das disciplinas. A partir dos anos 1980, são elaboradas várias propostas curriculares pelos estados e municípios e pelos PCNs, produzidos na segunda metade da década de 1990, que visam a uma renovação e mudanças no currículo. Essas novas propostas seguem tendências nacionais de democratização, principalmente pela diversificação do público escolar, e tendências internacionais de lógica mercadológica. Mas apesar desses movimentos por mudanças, ainda permanecem antigos conteúdos e métodos escolares. Nossos currículos escolares, desde a oficialização do ensino, foram construídos pautados em modelos externos. Em novos tempos pós-Guerra Fria, as reformas curriculares nos anos 1990 seguem a lógica do mercado que cria novas formas de dominação e de exclusão. E a educação passa a se formar sob essa nova lógica que exige habilidades intelectuais mais complexas, capacidade de interpretar diversas informações provenientes dos meios de comunicação e organizar o indivíduo de forma autônoma e competitiva nas relações de trabalho. O processo de democratização no Brasil e a massificação escolar levam a novas demandas curriculares de maior participação dos setores sociais e uma formação voltada para o enfoque político. Nesse contexto, sob influência da psicologia piagetiana sobre o processo de construtivismo, os PCNs são elaborados valorizando a formação crítica e ativa do aluno, representando e legitimando decisões políticas para os sistemas de ensino. Nesse contexto, a educação básica ganha maior relevância com foco na cidadania, no exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais. Sobre os novos desafios da reformulação curricular, Bittencourt (2005, p. 102) diz que: O público escolar é heterogêneo e, para ser atendido em um nível aceitável de escolarização, além de investimentos consideráveis por parte do setor governamental, necessita de currículos no mínimo flexíveis, que possam se adequar às circunstâncias e situações diversas. As contradições nas reformulações curriculares tornaram-se assim inevitáveis, apesar da tendência de homogeneização idealizada pelos defensores da sociedade “globalizada”. As novas propostas curriculares têm procurado ampliar a dimensão educativa para além de uma abordagem exclusivamente no ensino, incorporando, também, a aprendizagem. É nesse contexto que as concepções sobre os conteúdos escolares ganham foco nas discussões para a integração dos alunos das camadas populares. Os educadores passam a se preocupar com a relevância social dos conteúdos associados a comportamentos, valores e ideários políticos, mas a seleção desses ainda é uma questão que gera divergências. 33 A HIStÓRIA nO CURRÍCULO ESCOLAR: tRAJEtÓRIAS E PROPOStAS POLÍtICAS • CAPÍTULO 2 Não vamos aqui abordar a especificidade de cada proposta que surgiu na última década do século XX. Mas podemos destacar como principais pontos comuns que eles: » apresentam fundamentações sobre o conhecimento histórico com maior detalhamento sobre seus pressupostos teóricos e metodológicos; » buscam a legitimidade de implementação dos currículos junto aos professores; » redefinem o papel do professor, dando-lhe maior autonomia no trabalho pedagógico; » consideram o conhecimento prévio do aluno sobre os estudos históricos e destacam seu papel como sujeito ativo na aprendizagem. Quanto à especificidade das propostas curriculares nos diferentes níveis de escolaridade, podemos destacar como preocupação para o primeiro segmento do ensino fundamental os objetivos de: » introduzir noções e conceitos básicos de cultura, organização social e do trabalho; » fundamentar a noção de tempo histórico do antes e depois, o conceito de geração e o conceito de duração; » estabelecer articulações entre o local, o nacional, o geral e o cotidiano; » fundamentar conceitos de cultura que inclui semelhanças e diferenças. » Para o segundo segmento do ensino fundamental, destacam-se as propostas de: » introduzir conceitos que são base do conhecimento histórico; » conduzir a abordagem por meio da história sociocultural, destacando conceitos de cultura, trabalho, organização social, relações de poder e representações; » introduzir conceitos-chave que permitam a sistematização dos conteúdos; » desenvolver a concepção de totalidade, combatendo a abordagem da História de forma fragmentada; » trabalhar com temas transversais como ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural, trabalho e consumo. Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (Lei no 9.394/1996), o Ensino Médio passou a ser considerado como parte integrante da educação escolar a fim de contribuir para o processo educacional como base para o exercício da cidadania, acesso às atividades produtivas e o prosseguimento dos estudos nos demais níveis de escolarização. Desde então, o ensino médio tem sido regularizado por diversas legislações como as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1998), Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000), Orientações Educacionais Complementares dos PCNs (2002); Orientações 34
Compartilhar