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0 0 ' O :J O / co , •••••••••••••••••••••••••••••••••••• / i F , , . CoordenaÇllo Geral Ir . . Elvira Milani Cooederlt1fiJo Editorial Ir. Jacinta"Throlo Garcia Coordenaf./Jo Executivn Luzia Bianchi Comitê Eilitorial Acadêmico Ir. Elvira Milani - PresidCtlte Glória Maria Palma ir. Jacinta Turolo Garcia _ José lobson de Andrade Arruda ~ . Marcos Virmond Maria Arminda ,do Nascimento Arruda . ~JiJJ ~ (6~O~ . ... , . .0, ti\ , HIITÓRIA! , I . I I " 1 I t I 1 1 , 1 I: As mulheres ou ~Os • • • • • • • • • silêncios da história : Michelle Perrot . Tradução Viviane Ribeiro OEDUSC P7à1f, I!)eb ?(2k~ • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • P461m , , eEDUSC " / ., .. , Pc:rrpt, MicheUt. . A3 mulherts o~ 0$ siltnaos da história I Michdle Pc:rrot i traduçAo Viviane Ribdro .•• Bauru, SP; EDUSC, 2005. 520 p. ; 23 'em: •• (Colrçio História) Inclui bibliografia. Traduçjo de: 1,.($ ftmrnts oula silencu de I'hisloirc:. cl998 .. ISBN' 85-7460-251-5 1. Mulheres - CondiÇ'Õnsodai. - Evoluçto hist6rka.I:1l1UIo. 1I.Série. ",1. ISBN (original) 2..Q8.08.0010-8 I Copyrighte Flrimmarion, 1998 Copyrighte ( lr3duçâo) EDUSC. 2005 - " fuduÇiO realizada a p.ulir da tdiçdo de 1998. Direitos aelusivos dI! publicação cRl,lingua portuguesa M 'O Brasil adquiridç.s pela CDO 3010412 EDITQRA DA UNlVERsIDAD6 DO SAGRADO CORAçAÓ , Rua Irmã Arminda, lO-50 CEP 17011 - 160 - Bauru - $P Fone: (I4)32l~-7) II~- Fax (14) 3235-7219 ;.m:H' ~",,:~ed~rm.b' I I :'1 . \ "', T "- '- J. , I I I ~. 9 lNTRODUçAO PARTE 1 Traços CApITULO I 33 Práticas da memóriá feminina CAPITULO 2 . " 45 . As filha s de K.r1 Marx: cartas inéditás CAPITULO. 3 89 Coroline reencontrado CAPITULO 4 SUMÃRlO* , i~/Jle/'!~ .- 93 Caroline, uma jovem do Faubourg -Saipt-Germain durante o Segundo - , Império . , A ediÇão original francesa da presente obra traz dois capltulos que não se encontram aqui traduridos - os artigos Ma filie Ma"ie e.Le.s !emme.s elleurs imagcs ou le regam des femme.s. Esta aus!ncia deve-se ao' fato de as editoras responSáveis pelos originais não terem cedido os direitos de: publicação para esta edjç40 traduz.ida. (N.E. ) , . , ,- r , ,< I PARTE 2 Mulheres no trabalho ( CAPITOL0 5 155 Greves femininas .... / CAPiTULO 6 / / 5u"itlrio . .171 O elogio!áa dona-de-casa" no discurso dos operárioS-franceses no ~cuJo 19, CAPtruLO 7 197 A mulher popular rebelde CAPiTULO 8 _ ,223 'Mulheres e m'áquinas no s,éculo 19 CAPITULO 9 , 241 Da ama-de-leite à funciOJlária 'de escritório ... Trabalhos de mullleres na . França do sétulo 19 \ CAPiTULO l O 251 O qtle é um trabalho de mulher? ' PARTE 3 Mulheresna cidade I CAPITULO li 263 ' Poq.r dos ho'mens, força das mulheres? O exemplo do século 19 Q CAPITULO J2 , , \~:/salf ' .' CAPiTULO 13 \3 A palavra piíblica das m'ulh~res ,,' 1 - -- , I ,) i I 1 I ! I I I 'j I ~, I 5umdrio CAPiTULO 14 3~7 As mulheres e a cid~dania na França: história de u;11a exclusão '.. , CAPITULO '15 343 O gênero na cidade PARTE 4, Figuras CAPITUro 16 365 Flora Tristan, pesquisadora r CAPITU,-,? 17 38 1 Sand: uma mulher na política PARTE 5 Debates CAPITULO 18 435 No front dos sexos: um combate duvidoso e CAPITULo 'I 9 _ 447 Corpos s~bjugados , n CApiTULO 20 ' ,,' ~ Público; privado e re~açõ~s entre os _sexos CApiTULO 2 1 , . 467 Jdentidade;-i~aldade;- rillerença:'o olhar da Hisr6ria CAPITULO 22 481 Uma históri or sem afrontamentos ~ CAI!ITULO 23 ' ~ Michel Fou,cault ~ a h~st6ria . das ~ulheres.'- ,-, ~ / / ./ ~ i I' , j /\ .,' , l' >. f , \ .~ -L.- INTROD{JçÃO , Silenciosas, as mulheres? - Mas-elas são as únicas que escutarnds, dirãó alguns. de nossos contempor~neQS, que; co'm certa angústia, têm a impressão de SU;t irresistível ascensão e de sua fala invaso{a. "Elas, elas, elas, elas, sempre elaS, vorazes, tagarelàs .. ::' mas não somente nos salões de chá, transbordando agora do privado para o público"do ensino Par.a o pretório, dos cbnve~tos para . a mídia e até mesmo, ó Cfcero, Sajnt-Just e Jaurês, para O Parlamento . . Evidentemehte,.~rrupção de uma presença e de uma fala f~miriinas em locais que lhes eram até então proibidos. ou pouco familiares. é uma inQya~Q 90 sé,,!lº J 9 Que muda o horiwnte.sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zo- nas mudas e, "_0 que se refere ao passàdo, um oceano de silêncio, ligado à pàr- tilha desigual dos ,traços, da memória e, ~inda mais, da História, êste relato que, por muito tempo,·"esqueceu" as mulheres, como se, por serem de~tinadas à.obscuridade da reprodução, ineriarráveJ, elas estiv:essem fora do tempo,"'ou ao menos fora do aconteámtnto. , inf . ·erá·'o Vi o mas o Verbo eus e Homem. O silêncio 'é o . comum das mu eres. e convém à sua posição s~cundária e subOrdinada. Ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não defórmados' pela imperti- nência do risQ barulhento e viril. Bocas temadas. lábios cerrados, pálpebras -baixas, as mulheres só podem chorar, deiXar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor, da qual, segundo Midlelet, elas "'detêm o sacerdócio'~ • • -I O silêncio é, um mandamento reiterado através dos séculos pelas -reli - giões, pelos sistemas poHticos e pelos manuais de com·portamento. Silêncio das SA~RAUTE, Nath,/ie. Tropismt:$. Pa'\': GalJim,rd, 119--1. p. 15. X, La PMi,de. .,' '. , ' 9 ., . .. -. Vendas3 Realce Vendas3 Realce Vendas3 Realce Vendas3 Realce Vendas3 Realce Vendas3 Realce r I I I 1_. l' IlIIrodll(<lo mulheres na igreja ou no templo; .maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas não podem nem m~smo penetrar na hora das o rações. Silêncio nas assembléias políticas povoadas de hQm~..Quu!e as tQ.mam de assalto com s'l.a ( logüênda masculina. Silêncio no espaço público onde sua intervenção cole.:. tiva é assimilada à histeria do grito e a uma atitude barulhenta demais 'Como·a da jjvida fácil'~ Silêncioj até mesmo na vida privada, quer se trate do salão do século 19 onde calo:-se a conversação mais igualitária da elite das Luzes, afas- tada pelas obrigações mundanas. q1}e o rdenam que as mulheres evitem os as- suntos maif quentes - a po~tica em primeiro lugar - suscetíveis de perturbar a convivialidade, e que se limitel}'l às conveniências da polidez. "Seja bela e cale a boca", aconselha-se às moças casad~iras, para que evitem dizer bobagens ou cometer indiscrições. , Evicle'ntemente as mulheres não respeitaratn estas injunções. Seus .sus- surros e seus murmúrios correm -na casa, insinuam-se nos vilarejos, fazedores' de boas ou más reputações, ciTculam na cidade .. misturados aos barulhos do mercado ou das loja's, inflados às vezes por suspeitos e insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinião. Teme-se sua conversa fiada e sua tagarelice, formas , no entanto, desvalo~izadas da fala. Os dom inados podem sempre,es- quivar-se, desviar as proibições, preçncher os vazios do,poder, as lacunas da História. Imagina-se, sàbe-se' que: ~s mulheres nãó deixaram de fazê-lo . Ere- qüentemente, também, e1as~fizeram de seu silêncio uma arma. ' ...... Todavia, sua postura normal é a escuta, a espera, o guardaras palavras no fundo de si mesmas. Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar- se. Pois este silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é somente o silêncio da fala, mas t~bém o_ da expressão, gestual ou escriturária. O corpo das mu- lheres, sua cab~ça, seu rosto devem às vezes ser cobertos e até mesmo velados. '''As mulheres são feitas para esconder a sua vida" na sombra do gineceu. do - çonvento ou da casa. E O ~cesso ao livro e à escrita, modo de comunicação dis- . tancia~a.e serpefltina, capaz dç enganar a s , c1ati sura~ e penetrar na intimidade........ __ mais 1)em guardada, de perturbar um imaginário se'mpre dispostoàs tentações ' do sinhô,,, foi- lhes por muito ,tempo recusado, ou parcimoniosa mente cedido, como uma porta entrea1?erta parfl o infinito do dêsejo. Pois o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mundo. das fãinUias, e dos corpos, regra políticã, social, familiar - as paredes da casa abafam os gri'- tos das mulheres e das crianças a'gredidas -, pessoal. Ul1la mulher convenien- te não se queixa, oão faz confidência$, exceto, para as ca(ólicas, a seu confes- sor, não se entrega. O pudor é su~ virtudel o silêncio, sua honra, a pOlito de se tornar uma segunda natureza"A imposs,bilidade de faJar de si mesma aca- oa por abolir o seu pr6pri~ ser,.ou ao men4s, o que se pode saber dele. Como " \O .' , ' I' I. , , f I , I I I I I -l- I I j ! lo' I --L... , -I Introdlj fdo aquelas velhas mulheres fechadas em um mutismo de além-túmulo, que não se pode discernir se ele é uma vontade de se calar, uma incapacidade em co- munkar-se ou. uma ausência de um pensamento que foi destruido de tanta impossibilidade de se e.,xpressar. As mulheres não estão sozinhas nesLe silêncio profundo. Ele envolve o continente perdido das vidas tragadas pelo esquecimento em que se aniguilà a massa da humanidade Mas ele pesa mais fortemente sobre elas. em razão da desigualdade d"s sexos, esta "valênàa diferencial" (François Héritier) que es· trutura o passado das sociedades. Esta desigualdade é o primeiro dado sobre o qual se enraízâ um segundo dado: a deficiência dos traços relativos às mulhe- res e que dificulta tanto a sua apreensão no tempo, ainda que esta deficiência seja diferente dependendo da época. Porque elas apareçem menos no espaço público, objeto maior da 'observaçãQ e da narrativa) fala-se pouco ~elas e ain- da menos caso quem.faça o relato seja um hOillem qqe se acomoda com uma costumej(a ,ausência1 serve-se de um masculino universal, de estereótipos glo- balizante, ou da ,'upost. uniàdade dé um gênero: A MULHER. A falta de in- formações concretas e s:ircunstanciadas contrasta com a abu'ndância dos dis- cursos e com a p~oliferação de imagens. A5 mulheres são m~is imaginadas do que descrit~ ou çontadas, e fazer a sua história é, antes ,de tudo, inevi tavel- mente, chocar-se contra este bloco de representações que as cobre e que é pre- ciso necessariamente analisar, sem saber como elas mesmas as viam e as vi - viam, como fizeram, nestas circunstâncias, sobretudo os historiadores daAn- tigüidade, como François Lissarague desvendando a , hi ~t6ria em quadrinl}os dos vasos gregos, ou da Idade Méclia"Veremos as perplexidades de um Gear· ges ~uby) aó perscrutar as inlagehs medievais ou de um PaUl Veyne,. ao disse- car os afrescos da Vila dos Mistérios. Ambos concluem por um caráter mascu- lino 'da~ obras e d~ ol~ar e interrogam-se quanto ao grau· de ~desão das mu- lheres a es ta figuração delas-mesmas. . . Outro exemplo de opacidade, mais contemporâneo: o das estatisticas. Elas são.na maior parte das vezes assexuadas. O recenseamento dos foros, du-'" rante o.Antigo Regime, ou o das famílias, nO"século ]9, repousa no chefe de fa- mília. As estatlstiças agrícolas enumeram os "chefes dê: exploração" sem :deta- lhar o sexo, que se supõe obrigatoriamente masculino, com-o o dos "trabalha- dores diaristas': entre os quais havia tantas serventes. As mulheres de agricul- tores ou de artesãos. cujo papel econômico era considerável, não são recensea- das, e seu trabalho, c,Onfundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torna- se assim invisivel. Em suma, as mulheres não "contam'~ E existe aí muito mais do que simples inadvertência. Ainda hoje, n~s minjstérios,'é preciso (nsistir para qu~.as estatístiQls sejam sex:uadas. ~ 11 Vendas3 Realce - '1'lIrqAuf~ Enfim, algumas fontes são, por definição, inexistentes para as mulheres:, os róis da circunscrição e dQs conselhos de revisão, tão preciosos para o conhe- cimento da descrição flsica dos jovens do século 19, ou ainda as listas eJ.eito- mis, I?~is as mulheres votaram apenas tardiamente (na França, a;n 1944). Por isso, Alain Corbin, desejanp.o fazer a história de um desconhecido, de imediá-" to descartou as mulJ1eres. em razão desta carência de traços. Traços que já eram muito poucos'para Louis-FrançoisPinagol, o'tamanqueiro da floresta de . Belleme cujo '.'mundo" de conseguiu recQnstituir, e que seriam completamen- te inexistentes para a sua mulher, Anne P6té, de quem tudo é ignorado:NQcn- tant,o, as mulheres existem naquele vilarejo do Perçhe ·do qual ele encbntrou até a memória sonoraj mas em gruros - fiandeiras; caçadoras clandestinas, ar~ ruaceiras dos tumultos frumentkios ou religiosos - e não como pessoaS, como se elas não o fossem, o que coloca o problema de seu reconhedmento:indivi~ dual. t preciso toda a indisciplina, sobretudo sexual, da . prima Angélica para chamar a atenção dos guardiães da ordem.1 Assim, a matéria· que constitui as fontes integra a desigualdade sexual e a marginalização ou desvaloriz.1ção das , atividades femininas. ~ Este defeito de registro primário é agravadô por um déficit de conser~ vação dos traços. Pouca coisa nos arquivos públicos, destinados aos atos da ad~ ministração e do poder, onde as mulheres aparecem ape.nas quando pertur- bam a ordem, o. que justamente elas fazem menos do que os homens, não' em virtude de uma" mitureza rara, mas devido à sua fraca presença, à sua hesitação também em dar queixa quando elas são as vitimas. Conseqüentemente, os ar~ . quivos de polícia e de justiça; infmitamente preciosos para o conhecimento d~ pov~, homens e muiherês/ devem ser analisados até na forma sexuada de seu abastecimento. Os arquivos privados conservados nos gran~~s depõsitos públicos: são quase exdusivamente os dos "grandes homens", políticos, empresários, escrito-_ res, criadores. Os arquivos famjliares, até recentemente, não haviam chamado - - uma /ãtenção particular. Ao longo de mudanças, destruições maciçfls foram provocadas por ;herdeiros indiferentes por 'muito tempo, ou at~ ~esmq pel<is próprias mulheres, pouCO pre.Qcupadas em deixar traços de seu~ eventuais se- 12 2 CORBIN, A1aín: Le Monde r~,rollvi de LQuis-François P;nag~t. Sur fes troces d'un incor,"u (1798-1876).. Paris: FlammôU'ion, 1998. 3 Como moStram os trabalhos de Arlett~ Frage. de tlisabeth Cla"cric c Piem~ ~mai$On ~ de Anne-Marie $ohn, ChrysalifltS. Femll1ts dans '!l vie privée XIXi -)(Xt sllcfes. ParIS: Sorbonnc, 1996, 1.\ '" " \ ' , ~-. 1- , I I I 1 -, , ,I , 'I 'I I I I 1 ~ J"trodl~ gredos. Por pudor, mas também por autodesvalorização, elas intedorizavam, de certa forma, o silêncio que as envolvia. O que Marguerite Duras evocou enr La Ma"ladie de la mort e Nathalie Sarraute, tão atenta aos murmúrio~ das rnu~ Iheresj em toda a sua obra. Entretanto, a 'consideração crescente da vida privada, familiar ou pes- soal, modi~cou o olhar negligente que se tinha sobre as correspondências ou os diários íntimos. A ação d,e Philippe .Lejeúne e a acolhida que ele recebeu são muito significativas a este respeito.~ As mulheres são, ao mesmo tempo, prota- gonistas e beneficiárias deste esforço: AI; descobertas, depÓsitos e publicações multiplicam-se, obra das mulheres sensibilizadas pela história de seus ances- trais e desejosas de reencontrá-los,' 'e até mesmo ae torná-los visíveis, como num ato de justiça e de poesia. . A literatúra., esta epopéia do coração e da famllia, é, felizmente, infini- tament~ mais rica. Ela nos fala do coti~iano e dos ~Cestados de mulher",' inclu- sive pelas muUleres que nela se introrpeteram. Pois a escuta diretd das."pala- vras de muLher"7 depende de seu acesso aos meios de expressão: o gesto, a fala, a escrita. O uso desta .última, essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetiz..,- ção e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas" na escrita" privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educ.,- ção, '.!lridade, cozinha," etiqueta ... ), elas se apropriaramprogressivamente de todos os campos da comunicação - o jornalismo por exemplo' - e da criação: poesia, romance sobtetudo. história às vezes, ciência e filosofia mais dificil- mente. Debates e combates balizam estaS travessias d~ uma fronteira que ten- de'a se reconstituir, JB~dando ,de lugar. " ) O volume e a natureza das fontes das mulheres e sobre as muJ}leres va~ r.iam conseqüentemente ao longo do tempo: Eles ~são por S! .mesmos índices de sua presença e sinal de uma tomada da palavra que se-amplia e faz recuãr o si- lêncio, às vezes tão intenso que Ghegamos a nos perguntar: " Uma história das , , mulheres seria possível?': O que implica em um outro uso das fontes que se 4 A mediateca de Am~rieu-en-Bugey (OI 500) abriga 0$ arquivos da A$soÇiação para a autobiografia criada."por Philíppe u;eune e publica La Fllute d Rousseau. • 5 A título de exemplo recente, cf. DEGOUMOIS, Valy. Ainsi furent-e1ItS. Dtstirts au fêmi"in. Saint-Gingolph, CH: Mitions Cebédita,·1998. (~U. Archives vivantes) ~ HEINICH, Nathalie. ltals de femme.. L'ide~tité jét1li"ine 'dans la flCtiotl occidentale. Paris: Gallimard. 1996. 7 Mona Owuf, Paris: Fayard, 1995. 8 VEAUVY, Christineõ PISANO, Laura. Paroles ollbliées. Paris:"'. Colin, 199'7. _I 13 I I F -, t {, \J UI' M I.I '1 ""- ~ V\ • 'I " ' \1'1 \\1>.1 l/11rodllfilo deve bUSc.1 r, ler diferente"mente, suscitar até rnesmo para os períodos recentes, como a história chamada de "oral" tentou fazer. Assim', longe de ser fruto do acaso, a constituição do Arquivo, da mes- ma forma que a consti tuição ainda mais sutil da Memória, é o resultado de uma sedimentaçãO seletiva produzida pelas relações de fo rça e pelos sistemas de valor. . .,,-, , O mesmo ocorre no que concerne à nar rativa histórica, outro nível des- tes silêncios en caixados uns nos outros, _ e o olha; que faz a l-i;st6ria. 'No coração de quàlquer relato histórico, há a vontade de saber. No que s~ refere às mulheres, es ta vontade fa i por mui- to tempo inexistente. Escrever a histó ria das mulheres supõe que elas sejam levadas a sé~io, que se dê à relação entre os sexos um peso, ainda que relativo, nos acontecimentos ou na evolução das sociedades. O que não era o caso, e "justamente por parte das próprias mulheres, inclusive "as mais ~mportantes . .- "". toda a história das mulheres foi feita pelos homens", escreve Simone de Beauvoir; fias mulh~res nunc'J disp~tararn este império com eles". Até mes~o o feminismo não é, segundo ela, "um moviinento autônomO". Para a autora d'O Segundo Sexo .(1949) a ànálise 'da condição feminina está mais ligada a uma antropologia, et:ltão estrutural e triunfante, do que a uma história, ine~ xistente, a séus o lhos. , A longa historiografia do silêncio, por si só cheia de interes.se, não é aqui o meu tema. Eu evocarei simplesmente os seus horizontes próximos. A consti- tllição da história como disciplina 'fcientifica" no século 19 reforça seu caráter viril. Em suá prática, a partir de então nas 'mãos dos universitários (o diplç'ma de magistério..em história foi criado em 1829). Em seu conteúdo, caefa ~ez mais . entregue à história p ública e política em' que as m~lheres não estão presentes. _ Jules Michelet foi uma exceção, muito atento ao papel das mulheres no passado e no presente. ''As mulheres, que poder! ", di zia' ele. E ele l.he~ declica págin~s brilhantes em seus livros, frases substanciais em suas aulas, que elas;- - auçlit6rio <Jpaixonado e silencioso, vêm escutar em massa. M.as ao assimilar as muJhere~ à natureza, cujo pólo branco e lum inoso só pode ser a maternidade, e os homens à' cultura racional e heró ica. denunciando na invetsão dos papéis a chave do's 'desregr~mentos das 'sociedades; Michelet aceita as representações de seu tempo. sobretudo as .representações d e uma sociologia balbuciante.' A barulht;:nta irrupção das mulheres, para ~cheJet, é também o desejo de seu 9 GEORGOUDI, 5"lIa. Bachoren, le 'mart,t rca: et le monde antique. Histoi" des femmes.l, Paris. p. 4n-491, 1991. 1 , .' ... 14 ~' , .) . V " I , . ' lrrrrcxlllfilo silêncio cúmplice. Pouêo ilJ1porta . O positivismo de fim de século afasta estas palàvras vãs de uma imaginação ' romântica. Q uanto aos Anllales ( 1929) de Marc Bloch e Lucien Febvre, ao substituir o político pelo econômico e o s o- cial, não realizam grande ruptura neste aspecto, a despeito das . brilhantes . aberturas de Lucien Fehvre nesta direção. 10 Mulheres. relações entre os sexos, até mesmo família que, paralelamente, a soCiologia individualista de lOmile Durkheim abandonava ao holismo conservador de Frédéric Le Piar, eram quantidades negligenciáveis. Ora, vInte e Ginco anos depois as coisas mudaram . Porque, como o silêncio foi rompido? O nascimento de uma história das mulheres inscreve-se no campo mais vasto das ciências human;ls, desigualmente visitapas pelo sexo. Ela não é pró- pria da Fran.ça. mas do conjunto do mundo ocidental. Os Estados Unidos fo- . ram 'pioneiros. utilizando às vezes elementos 'elaborados pela velha Europa e , . . por ela desprezados. A vida intelectual é feita destas idas e vindas, destas inces- santes bricolágens. . Como as coisas aconteceram na França? A p ublicação do livro de Fran- çoise Thébaud, Ecrire {,"istoire des femmes (1981 l:" a melhor i'presentação bis- toriográfica até agora, indispensável a partir de seu lançamento, dispensa-me de estender-me sobre esta genealogia abundante. Para ir mais rápido, eu d iria que três séries de fatores imbricados expl icam este surgimento: fa tores cientí- ficos, sociol6gicos, políticos.' . Fatores /cientificos, inicialmente. Eles.estão ligados à crise dos grandes pamdigmas e.xplicativos e à renovação dos contatos disciplinares nas décadas de 19.60- t"970. O estruturalismo vira, evidentemente, na "troca dos bens, troca ' das mulheres" um d.ado elementar do funcionamento do parentesê~, mas sem . ir m ais longe nas rela.çães de sexos. Françoise Héritier, que sucedeu Oaude ." Lévi-Strauss no College' de FranC"e, tevé o' grande mérito de retomar a r~f] exào a partir de onde ele a ha~ia deixado. Seu livro Masculifl/fé~Jit1;'1.' La p~nsée de la différet1cc1 é o ponto mais acabado desta volta à construção do pensamento simbólico. O mar~s.mo tam bém colocara obs,áculos à form ulação de um Ipen- la FEBVRE, Lucien. AmoÍlr sacré. Qmour profQne. Autou,r de I'Heptémaron. Paris: GaUimard, 1944. (Folio-histoire_ 1996) 11 TH~BAUD. Françoise. Ecrire I'histoire de femmes. FontenayISaint.Clou~( ENS tdi- tions, 1998. (Distribution Ophrys, la, rue de Nesle. 75006, Paris) 12 H.tRITIER, Françoise. MasculinIFbnini" . LA petuie de "a diffirence. Paris: Odile Jacob. 1996. / 15 IIl'rPd'IÇM sarnento feminista. No entanto, ele Lhe forneceu seus primeiros qu"dros e, des- te ponto de vista, a pesquisa inicial de Chrístine Delphy é. um exemplo de r transferência de conce.itos. Profundamente materialista, ela substitui a teoria da exploração pda burguesia pela da dominação pelo patriarcado, em que o proletariado se transforma em "classe de sexo':" . Os historiadore.s, por sua vez, aproximavam-se da al1trop'ologiae da et- nologia, enquanto ádemografia histórica se desenvolvia, ávida de reconstitui:- ção das . famílias, a grande realização de Louis Henry desde a década de 1960, que colocava em evidência a diferenciação sexual em matéria de casamento (taxa, idade), celibato, mortalid~de, etc. L'Histoire de la famille (A História da familia), a importância dada a partir de então às "culturas familiares" assina- lam est;) vol.ta à familia esquecida. 14 A família, no entanto, não fala aut~mati camente das mulheres. Desta forma, para os períodos antigos, é dificil saber qoal deve ter sido o seu papel num controle da natalidade, ~u1to precoce na . França. Mas os trabalhos dos etnólogos, como Martine Segale)l e Yvonne Ver- dier, tomavam-nas por inteiro. A última, em Fdçons de dire, façons de faire, U su- blinháva seu lugar no centro do vilarejo(Minot, na Borgonha) e seu poder cul- tural , um poder inscrito no corpo, o 'que provocou discussões com as historia- dOras, desafiadoras diante de qualquer retorno sub-reptício à naturez..1. Mas esta ~ uma outra questão, a questão dos debates dos anos 80. Estes reencontros com a antropologia, a família, o casamento ... parecem rter marcado fortemente a obra de Georges Duby 'que, a pa~tir da metade dos anos 70, dá cada veZ mais atenção·ao silêncio das mulheres, que se transforma- rá em {)bsessão. na última parte de sua carreira. _ Por outro J~do, a explosão da História - chegou -se a faJar em "história em migalhas" - fa~orecia o surgimento de novos objetos: a criaI)ça .. a louCUra,- ;... a sexualidade, a vida priv"da ... Por que não "s mulheres?" A "nova história'~ nome geralmente dado à segunda ger~ç;io dos AlIna- les, mpstrava-se assim, ",o mesmo tempo, muito favorável à inovação, à cria-·- -ção de -novás temáticas, mas reticente diante de qualquer esforço de teoriza- ção, em que ela farei.,ava os vestlgios de um marxismo requentado. Deste pon- 16 · .'. \ 13 DELPHY, Christine. L'Etmemi prinçipal_ Pa,ris: Syllepse. 1998. I: L'é(:onomie poli- tique du patriarcat. 14 BllRGUlêRE. Andr~; KLAPISH-ZuSER, Christiane. Hisroire de la famille. Paris: Colin, 1986.2 t.; BURGUrtRE,Andrt; REj ' L.:Jacques (Dir.). Hi~rojrede la Frnnce. Les formes de la. clt/turc. Paris: ~uil, 1994. . I 15 Yvonne Verdier, Paris: Gallimard, 1979. 1 - -.: , " ... ,- .... - -; 7 . r c IntrPdllflJo , to de vis ta , a ambição - a pretensão? ~ do feminismo em realizar uma "rup- tura epistemológica" suscitàva ceticismo e- reserva. lncluir as ,mulheres, ainda vá. Mas o gênero e- suas intenções de "desconstrução"? Na verdade, nos anos 70, a questão era muito pouco colocada, e ainda menos em história do que em outras áreas . No lado da sociologia, a feminização da universidade, inicialmente no JJível do público, e depois, mais·tardiamente, dos professores, favoreceu o nas--' cimento de novas expectativas, de questionamentos diferentes, e conseqüente- mente o desenvolvimento de cursos e eesquisas, sobre as mulheres. As paixões e os interesses se çonj,ugam, da maneira mais clássica, na constituição de um novo "campo". A demanda social (grande expressão dos anos 80), entretanto, não agiu sozinha. Fatores pol1ticos concorreram para esta ec.Iosão: o movimento de li- beração das mulheres - o MLF - surgido nos anos 70 dos silêncios (olais um deles) de Maio de 1968 sobre as mulheres. Evidentemente, aquele movim~nto não tinha como preocupa~ão primeira fazer história, mas conquistar o direi to à contracepção. ao aborto e, mais amplamente, à dignidade do corpo dasmu- Iheres, enfim reconhecidas como indivíduos livres para Escolher (Choisir), se- gundo b belo nome da associação fundada .por Gisêle Halimi. Mas ele desen- volvê~ em sua caminhilda uma dupla necessidade: wn desejo de memória, de reencontrar os traços - as figuras, os acontecimentos, os textos ... _, de um mo- . virnento particularmente 'amnésico; uma vontade de fazér a critica do saber- constituído, pelo questionamento dos diversos parâmetros que o fundarn: o universal , a idéia de natureza, a diferença dos sexos, aS ,relações do público e do 'privado, o problema do valor, o da neutralidade da linguagem, etc .. Grupos fo- rrup constituídos, semi~ários~ cursos, colóquios (âesde -1975 em Aix sob~e "as ~ulheres e as ciências humanas") foram ~rgani~ados. O refluxo do movimen- to, satisfeito com seus objetivos legislativos maiores, provocou um desvio das. energias para'il pesquisa. A· chegada da esquerda ao poder (1981) criou uma conjuntura propkia a uma relativa institucionaHzação_ O colóquio de.Toulou: se (dezembro de 1982) sobre "mulheres, feminismo e pesquisa" indica c<imo a '- . década de 1970-1980 fora fecunda. " Treze anos mais tarde, em 1995, 0 ~oló quio de Paris permite que se faça ~ segundo balanço. Encontraremos seus ecos nos artigos que se seguem. ~ A História obtivera um lugar dinâmicç. Seu desenvolvimento foi uma ' a-ventura coletiva na qual centenas, ou até '?lesmo milhares de pessoas, toma- 16 PICQ, Françoist. Libératiotl dcs!emmes. Les an.nées-mouvemen.t. P3ris: Seuil. 1993. 17 .' ~. I' l < 't I!: L_ , , Jlurodl<rilo ram parte. Seu relato ultrapassa meu prop~sito. Eu gostaria simplesmente de dizer, sem fazer minha "ego-história", como participei dela e como a vivi. Conheci, dé maneira quase caricatural, o silêncio imposto às JnUUlere~· por minha educação em um colégio religioso ·de moças, cujo peso da contri- ção '~e a exigência de sacr.ifído foram aumentados p~l a guerra;'7 e a liberação pela palavra sobe[~Jla de um pai que me tratava como o filho que ele sem dú- vida teria desejado. Na França ,do pós-guerra, tão conservadora em matéria de papéis sexuais, era uma sorte e um apoio decisivo. Esportes, leituras e alimen- tos fortes, estudos, viagens ... , tudo me era proposto, e eu devo apenas à minha timidez embaraçosa o fato de.não ter aproveitado mais audaciosamente, En- . tretanto,"eu aderia plenamente ao modelo que me era oferecido: o de uma mu- lher indep~ndente que ganha a suâ vida e só se casa, even.tualmente, bem mais tarde e por amor. " Minha mãe, que sofrera por não poder seguir, devido às exigências do- mésticas de um pai viúvo, uma ça'rreira artística para a qual era dotada (ela conservou até a sua morte recente e tardia, em 1995, com noventa e oito anos, , . belos desenhos; pesar nostálgico de seu talento cOI)trariado) apoiava ' estas ( perspectivas. Todavia, mantin~a-sé um po-uco reservada sóbre seus riscos po~ siveis quanto a uma feminilidade cuja elegâ9cia era,~a ' seus olhos,. o primeiro dos mandamentos. O ensino, uma eventual carreira universitária (que, de fãto • . eu nem mesmo pretendia, ignorando tudo o'que se referia a ela), apavoravam- .. na como uma irremediável descida aos infernos de uma sombria austeridade, cujo exemplõ .lhe havia sido dado pelos professores de seu bem-amado liceu Fénelon, no início do século 20. Ela temia para mim a desgraça de um cellba- · to de necessidade e sem elegância. O que havia de femin ino. rio universo ma- terno - o apego- ~.uma casa, a um jardim: ao Cenário da vida, à doçura das coi:.. '. sas - eu considerava enfadonho. Eu preferia Géline: que meu pai admirava, a . Colette, venerada por minh~ mãe, a quem eu também tantas vezes impus si- lêncio. Eu não lhe ' fiz justiça senão bem mai$ tarde,· Fazer i;l hi~tória das mulhe:- res per~itiu-me compreender a sua e eDcon~á-la enfim. ' O mundo dos homens me atra'ia e o das mulheres me parecia tão tedio- so quanto derrisório. Simone de Beauvoir, que aliás pensava então quase des- ta mesma forma, (oi o meu inaces.sivel modelo, talvez menos por suas obras - levei tempo' para assimilar e l~eSm({para l~r O Segundo Sexo, que me aborre:-' " cera de início - do que por sua vida cuja_~udácia eu admirava sem ousar imi- tar. Eu compartilhava da misoginia habitu'al das mulheres em vias de emanci- I" I. 1 . '17 ·MUEL·DREYFUS. Francine. Vichy tI l'é~melfé",ini". Paris: Seuil, 1996. . .. , . , '\" 18 i· , , " ., J .---->......:..- . Inrrodufdo , pação que identificam sumariamente as mulheres e O femi'nino com o arcais- mo, ainda por cima "b~guês", '. . 'Pois eu dete~tava a ·"burguesia", insuportável pecado original, Como . Mauriac, cuja obra eu degustava no negrume de' uma execrável província ca- tólica, eu 'deplorava ter "nascido no campo dos injustos", que, na sua maioria, h~viam traido. A classe operária, flamejante, das greves de 1936, mais resisten- te do que outras dura~1te a guerra, aureolada por uma fraternidade zombetei- 1'a que Gabin parecia incamar, era ao mesmo tempo a figura da injustiça e a da salvação. Em suma: o social .primava sobre o sexual, que nem mesmo era reco- nhecido; a virilidade dos camaradas sobre a vir tude queixosa das mulheres. A Sorbonne dos anos 1947-195 l preenchia-me, apesar de seu academi- cismo abafado.O curso de Ernest ~1brousse' e sua ação para ;"ili introduzir a história operária seduziram-me como a tantos outros de mÍJll1a geração. Inci- tada por ele (e a despeito de ul}la tentação veleidosa de trabalhar sobre as mu- lheres, apesar de tudo), comecei o estudo,das greves, que foi mais tarde o ob: jeto de mi~h. tese, escrita' entre ' 1967 e 197ó' e defendida em 1971. As mulhe- res eram ali minoritárias. A greve, ligada aos assalariado.s em seu ~onjunto, é um ato Viril . ·ao passo que os problemas de 'subsistência são uma questão 4as . mulheres. lodavih,· fiquei 'tocada po~ sua subordinação. . Os te;"pos rt;'Iudavarn,"i'mperceptivelrnente. Brigiúe Bardot, cuja imper · tinente liberdade eu aplaudia, Fran~oise Sagan, t liane Victor e suas "Mulhe'res .télmbém" na televisão, muitas outras introduziam notas discordantes. As so- ciólogas começavam a se mexer. AndTée Michel, .tvelyne Sulle.rot, Madeleine -Guilbert publicavam seus primeiros livros. A partir de '1964, o Planejam~nto Fam iliar (fundado em 1956) mobilizava cada vez mais muUIeres. Ele foi o ban - co de ensaio do feminismo, " : Seguiu~se Maio de' 1968. Professora·assistente na Sorbonne, eu partici- pei intensamente das manifestações e 'dos inumeráveis comIcios e reuniões da Sorbonne ocupada sobretudo para ª reforma uníversüária, aquela "universida- de crítica" com a qual muitos de 'nós sonhávamos. Donde iLminha adesão deterplinada à formação de uma das novas uni- versidades, criadas'para descongestiona.r a velha Sorbonne, pletórica. PGrigosa . e já sem fôlego. Paris-VII ," a UJ1iversidade criada, absorveu minhas energias. Foi uma escolha de que não me arrependi. De 1970' a 1973, fiz ali toda a ininha 18 Sylvie 'Chaperon. Le Creux de la vagJ-le, a ser' publicado: sobre o feminismo dos anos I ~45-, 1 970. com um estudo sobre a publicação do Dellxieme Sexe. de sua recepção e de seus efeitos. These, Institut Européen de Florence, 199~. 19 "lff(ld"f~ carreira, em condições às vetes difíceis, mas com gran.de liberdade e reais pos- sibilidades de inovação. . Pois, a I?artir dai, o ritmo se a~elera . O movimento das mulheres, de cuja base eu participei, ocasionou a minba "conversãd feminista" e meu engaja- mento na história das muJheres, transformada então em um dos eixos maio- res de meu trabaLho.' t pe"sia crõnica, erocarei apenas algumas datas e episódios significativos ou agrãdáveis. 1973: primeiro curso sobre as mulheres em Jussieu, com Fabienne Bock e Pauline Schmitt, intituJado: "As mulheres têm uma hist6ria?'~ Haviamos-es- colhido este título interrogativo'propositadam,entç, pois apesar de tudo não es- távamos certas da resposta. "As mulheres são apenas O n6 quase" imóvel das es- truturas de parentesco? Sua história· se confunde com a história da família? Em suas relações com o outro sexo, com a sociedade global, quais são os fatores de mudança? Os cortes fund~mentais?", escrevíamos em uma apresentação limi- nar que mostr~ a..que ponto ér_amC?s também influenciadas peJa antropologia estruturalista e_a ·visão de mulheres enraizadas na família, mas também nossa insati"sfação quanto a isto, A ponta da dúvida, a suspeita da mudança tocam . este texto, Desprovidas de problemática, tanto quanto de materiais, havfamos deciclido proced~r por conferências e apelar a nossos colegas sociólogos para um primei.co ~emestre II tempo presente': e historh\dores para um segundo se- mestre batizado de "referências hist6ricas'~ - . , Em 7 de novembro, numa sála repleta, superaquecida, diante "da presen- ça de estudantes esquerdistas hostis ao curso por considerarem que ocupar-se das mulheres era desviar-se da revolução, Andrée Michel abriu fogo com uma conferência .... sobre U,A mulher e a família nas sociedades d~senvolvidas·: opon- do dois umodelos·~. tradicjoaal e moderno. Ela foi cortês mas vigorosamente _ atacada por rapazes dentre os quais um a criticava por referir-se a "modelos fa- . miliares", ao passo que "não queremos mais saber da famUian• diziã ele; um ou- tro a aCusava de não evocar o orgasmo, acariciando os longos cabelos de uma-- -bela loir~ $entada no chão, ao ·seu lado (não havia mais cadeiras disponiyeis devido à grandé afluência), O que:fez as· moças da platéia caírept na gargalha- da, solidárias com a sua· c.ompanheira: "Seria preciso talvez perguntar a sua ' opinjão". Andrée Michel explicava cOPl serenidade que "modelos" não tinham para os sociólogos nenhum sentido no~ma~vo e que orgasmo não era O se~ 20 19 "Vinte e cinco ~nos de est1;ldos fe~inistaI-ém · P3ris.V1I", an .. is de um colóquio (novembro de 1997) a sereJ1l publicados nbs Cal,iers du CEDREF, organizado por. Liliane Kandel e Claude Zaidman, I /. " r j / , , lrlll"lHlllf40 tema. Depois desta entrada ,tr·iunfal, os cursos· seguintes foram mais calrpos. Pude,mos escutar tranqüilamente falar sobre o comportamento dos babufnos .e da mulher . pré-histórica,' da situação respectiva das mulheres americanas e africanas; a doutora Retel abriu-nos novos horizontes ao nos apresentar suas r pesquisas sobre a esterilidade das mulJ:teres Nzacants,-víti,mas de ~oenças ve- néreas, tão sós em sua vergonha, assim como .o são as mulheres africanas doen- tes de AlDS. FreqUentemente se faz silêncio sobre as doenças das mulheres. Penso, por exemplo, no câncer de seio, tão pouco falado, mas grande causa de mortalidade. apesar d.e seu recuo, Sinal dos tempos (dos anos 70): dedicamos duas sessões às ·m.ulheres chinesas. Claude Broyelle. acabaya d.e publicar La Moitié du cieI, em que cele- brava os méritos do maoismo que integrava as mulheres na produção livr:an- do-as do doméstico com equipamentos .coletivós, Na nova cultura, a sexuali- dade, considerada Como uma "in~enção burguesa': não era uma prioridade. Jean Chesne~ux, eminente especialista e conferencista, preocupou-se em subli- nhar que "contradições" continuavam a existir. No segundo semestre, Pierre Viaal-Naquet, Jacq"ues Le G.off. Jean-Louis Flandrin. Emmanuel Le Roy Ladurie, Mona Ozouf, .. nos falaram da condição das mulheres em seus períodos respectivos, Eles o qzeram voluntariamente, considerando que se tratava de uma questão legitima, de fato pouco abordada; e louvaram o título interrogativo do curso. Em sUma, foi uma abertura "à fran- cesa': muito distante das'controvérsias americanas de que tomávamós conhe- cim,ento então, Nos an~s seguiotes, tdmamos nosso destino em nossas mãos, ··com cursos mais aflfmativos sobre "Mulher e familia", "Mulher e trabal~o", "História dos feminismos", etc, Houve ainda momentos surpreendentes como á. vinda de PierTe Samuel, que, ao ler o titu lo de um curso, propôs ,s~us servi- ços:Srilhánte matemático, ele vinha de uma família de helenistas e .pediu per- missão para escrever no quadro em grego, ficanqo muit~ espantado e entriste- cido ao .... ver que os ~studantes presentes - historiadores! - não conseguiam acompanhá-lo, Ele publicara u·m livro, AmazO!le5, guerrieres et gaillardes. em que demonstrava que na 'G~écia Arcaica as mulheres usavam a lança e as a}mas com maestria e tinham tão bons resultados nas co~ridas quanto os homeAs. A pretensa fraqueza das mulheres não estava i.nscrita em seus corpos, mas o re-· , . - sultado pernicioso de sua imobilização pela civilização, Este ardente defensor do vigor feminin~ era acompanhado por Françoise Q-'Eaubonne', que compar- tiUlílva de seu feminismo radical e cujo chapéu preto de abas largas causou sensação, A época era efervescente e tínhamos a sensação d( descobrir um novo mundo, 21 \ " , " \ L l/lt""dl/fi!o Nós O fazíamos também por meio de seminários de maior ou menor forma lidade, em que aprofundávamos a reflexão, No GEF (GruPQ de estudos , feministas), por exemplo. fundado em 1974 por Françoise Basch e por 'mim mesma. Ali n55 nos encontrávamos entre mulheres (era uma decisão delibera- da), para discutir, asperamente às vezes, problemas mais canden tes': o estatuto da psicanálise, do qual o;grupo "Psicanálise e politica" (Psyche Po) de Antoi- nette Fouque fazia s~u principal instrumento, a invisjbi,lidade do ttabalho do- méstico (seria necessário reivindicar a sua remuneração? A resposta foi nega- tiva), o alcance, libertador ou não do assa1ariamen~o para as mulheres, a ques-). tão do erotismo e da pornogra6a, a homossexuaüdade. etc. Graças a Françoi- se Basch e a suas colegas - Marie-Claire Pasquier, Françoise Barret-Ducrocq ... - do departamento de línguas e civilização anglo-americanas (Charles V) nós tivemos contato com as pesquisadoras americanas e os Women's Stud.ies, so- bretudo durante os encontros do MouJin d'Andé (1979), quando conhecemos Catherine Stimpson, a fundadora de Sig11S, CaroU Smith-Rosenberg, cujo arti- go sobre "The femaJe world of lo've and rit~al n causara sensação,· Claudi~ Koonz, cuja tese ~obre Les Meres-patrie du Troisieme Reich renovava, não sem controvérsias, a abordagem das relações mulheres e nazismo,ll que Rita Thal- m?nn havia desbravado amplamente. Na EHESS (.École de~ hautes études en sciences sociales,- Escola de Al~ . tos Estudos em Ciências Sociais), a partir de 1978-79, (otOlara-se, em torno de Christiane KJapisch, Arlette Farge, Cécile Dauphin ... Pierrette Pézerat, às quais juntara.~n-se Geneviêve Fraise,: Pauline.Schmitt e depoi; Yànnkk Ripa, Dan.ie- le Voldman, Véronique Nahoum-Grappe, Rose-Marie Lagrave, Nancy Green, etc. , um grupo que devia ao seu caráter informal e autogerido; uma parte de sua iniciativa e de .sua influência. A idéia inicial era de nos encontrarmos à _ margem de nossas obrigações profissionais. em total liberdade, para ler, refle- tir, debater, apropriarmo:nos da reflexão feminis ta, sobretudo norte-amer'ica- na, n,as 'também epropéia (italiana em parti<:=ular), bem como das obras Ae- - Maorice.GÓdelie,r ou de George? Duby. Seminário de leitura e de nivelamen- to, e,$te grupo revelou-se eficaz, 'Ele foi, com o ÇEF, o principal supo,r te de Pe- lIélope, primeiros C.hiers poll~ l'hisloire des femmes (1979-1985, 13 edições), ~ 20 SMlTH·ROSENBERG, Carroll. The. femaJe world of love and ritual: relations between women' in XIXth ccntu ry Ameriêa. Signs, I, I, 1975. 1-20 (trAr. em Les Tet'~pjJllodernts. 19n- 1978). i .-'. , 21 KOONZ, Claudia. Les Meres-patrie du nofsilme Reích. Paris: Licu .commun; 01 989 (ed-, americana 1986). \ '- .' ...... 22 I.c'-- lo { . , , ~ -, . Inr'rod'lçiIo do colóquio de Saint-Maximin (Ulle "istoire des femmes eSI-eUé possible?, 1983) e enfim, ele forne~u o núcleo responsável por Histoire des femmes en OccidcHt, pri~l1eira tentativa de sintese de pesquisas que, por outro lado, desenvolviam- se intensamente . ..... Havia, de. fato, uma forte demanda estudantil (majoritaríamenté femj- nina) por mestrados, em seguida por teses, que eu me esforçava em orientar e acolher em meu seminário. Seminário que eu tentei transformar em um lugar 'estável e aberto ónde, às segundas ~ noite, podia-se sempre "dar uma passada': Meu objetivo era favorecer a fala e as trocas, fazer circular a informação, per- mitir qu'e cada um estabelecesse contatos, em uma perspectiva de rede, -nacio- nal e in ternacional (houve anos.com domínio grego, ou brasileiro, sempre com a presença das japonesas), suscetrvel de servir de paliativo à fraqueza institu- cional ligada à rigidez acadêmica francesa. Este movimento de pesquisas sobre as mulheres efa geral Ele atravessa- va as discipünas. O objeto "mulheres" era plural e não pertencia 'a ninguém em particular. Filósofas, historiadoras, sociólogas, literatas trabalhavam juntas, com talvez um pouco mais de ,distância em relação às ciências "psi': justamen- te na medida em que o questionamento da psicanálise era vigoroso. Entre as paladinas do feminino, portador de cultura e, porque não?, de alternati.va po- lítica, e as partidárias da diferença igualitária, desconstruída, libertadora de es- 'colhas individuais em que ã variante s~ual seria apenas uma .entre outras, as divergências continuavam fortes. Elas atenuaram-se nos dias de hoje e sobre- tudo deslocaram-se' e recompuseram-se corls ideravelm~nte, M.as, e daí? Nascid-o de interrogações múltiplas, este movimento ultrapassava am- plamente as universidadés, ainda que, pela força e pela inércia das coisas, elas tivessem tendência a absor,Vê-lo. Era preciso ainda que houvesse professores em relativa posição de poder, capazes de introduzir esta perspectiva ... Este foi o caso especialment e. de Toulouse) com Rolande Trem pé, Mar.ie-France Brive e Agnes Fine e .em Aix, onde, graças à Y.vOnne Knibiehler, aconteceu o primeiro colóquio sobr~ "As n'-tulheres, e as ciências humanas", em j.urlho de 1975, e~ que tive a oportunidade de apresentar um primeiro balanço (aind~ muito modes- to) e de esboçar uma problemática de pesquisa resolutamente relacional e sus- cetível de transforfl'!ar a vi.são global da História. , Esta também era a i;ntenção de Histoire des femnles en Occidentque nos mobilizou (e-me monopolizou) entre 1987 e 1 ~92, Eu já contei tantas vezes como nasceu e o que foi inicialmente a Storia que hesito a repetir. Mas, como aquele livro representou um ponto de cristalização maior e provocou, ao me- nos na França, uma mudança de esta tuto.da história das mulheres, é difícil n-3.o I evocá-lo neste ·panorama de uma paisagem recomposta .. 23 • • • • • • • • • • • • • '. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • \ 1,lIroJIIÇ,}Q Deve-se a primeira iniciativa a Vito e Guiseppe !.atena, editora fami~jar, conhecida por sua resistência ao fascismo, suas ligações com a esquerda italia- na e sua abertura para as ciências humanas, principalmente francesas. Laterza traduzira com sucesso na Itália L'Histoire de la v;e privée, que Philippe Aries e Georges Duby coordenavam e cujo tomo 4 (século 19) eu havia organizado. Por que não, diziam des, um Storia della Do;ma? Georges Duby, ao ser cõnsul:- lado, aquiesceu imecÚatamente'e juntou-se a mim·. Era a primavera de 1987; eu a'cabava de sair da Vie privée, tinha outros. projetos e tinha gr~mde vontade de recusar este trabalho. Mas meus interlqcutores insistiam. Georges -Duby, em particular, estava convencido da atualidade da empreitada. Atento aos aconte- cimentos contemporâneos, e ao movimento das mulheres que ele tambéIl}. percebia 'pO! aquelas que o cercava;'l - sua esposa, suas filhas -, ele lhes dedi- cava, desde ~ metade da década de 1970, um lugar crescente em sua reflexão, seus cursos e seus escritos. "A mulher, O amQr, O cavaleiro" é publicado em L'Histoire em 1978, O Cavaleiro, a mulher e o 'padre em 1981. Ele mostra no po- der de obstrução das mulheres: em suas maiores exigências, um agente de transformação do casamento em que o consentimento torna-se cada vez mais central. Da' mesma forma que o amor cortês era uma nova tatica de sedução tornada necessária pela r~sistência das mutheres. Âs relações amorosas era!fl também relações d. poder em .que as mulheres jogavam o seu jogo. Dai a ade- são a uma história que faria das relações entre os sexos um motor da mudan- ça. Ponto de vista bastante excêpcional entre 'os historiadores de sua geração e que explica a junção operada com as historiadoras.21 Colocada diante de minhas responsabilidades, consultei minhas amigas do grupo da !>scola de Altos Estudos. Após .discussões em que começamos, na realidade, a elaborar O conteúdo, decidiJIlOS aceitar a proposta. Era uma opor: -'" tunidade que corríam6s ~ risco de não encontrar novamente ~ quç, aliás, ne- . nhum édj tor francês nos havia proposto, o meio d~ sair ae uma semiclandes-- - tihidaC1e, d~ fazer a sí.J;ltese (provisória) dt quinze anQ.s de trabalhos qu~, con- seqüentemente, g~ariam em vi~ibilidade. Chance de contri~uir, para a legi- ~mid~de de u.ma rustórill ainda marginal, além de tudo em !lr:na perspectiva 24 . .', 22 DALARUN, Jacques. L'abime d I'archittcte.lntroduction à Georges Duby. Féodalité. Paris: Gallimard. 19% (reunião de um ~no número de obras): um próxin:ao número de C/10, a ser publicado sob a organização deChristiane Klapisc.h-Zuber, terá dedicado. a Gtorges D.u~y e à- história dps mulheres. tema que esta..rá tambtm na ?rdem d9 " dia do colóquio organi7..i\do er Mãcon OCIJ - L998) pelo Institut de - recherche du Vai de Sa6ne-M:\conl13is. , - , , '- , r t -' j , ~ . 'm,wupJo européia, que só poderia nos agradar. A aventur~ valia 'a pena ser tentada, pois, ainda por cima, ela nos era oferecida. " Era o outono de 1987. Em junho de 1988, um colóquio reuniu no hotei. Talleyrand-Gallifet da rua de Varenne, sede do Cen~o Cultural Italiano, a maiqria das setenta colaboradoras (e colaboradores) da obra, cujos cinco vo- lumes foram publica.dos paralelàmente na Itália e na França,u entre 1990 e 1992.-Trabalho conduzido com facilidade; graças à competência e à atividade das diretoras ·de volumes: Pauline Schmit (1), Christiane Klapish-Zuber (ll), Arlette Farge e Nathalie Davis (II!), Genevieve Fraise e eu (TV), Françoise Thé- baud (V) que desejara reunir-se aOZlúcleo inici~L Foi um trabaJho intenso, nl~s no qual tivemos grande prazer. Eu, em todo caso, que fui talvez a princi- pal beneficiária desta situação, Penso tamJ>ém, aqui e acolá, nas estudantes e doutorandas de Jussieu, muitas das quais integraram a universidade. Graças. a. ~las, a história das \Dulheres continua. Então, muito obrigada. ."P. raro poder conciliar um projeto que seja simultaneamente individual, . intelectual e polftico (no sentido mais forte e cidadão do termo). A história das mulheres o permitia. De minJ:a párte. foi assim que a vivi e particu1arment~ durante este último. trabalho. Tive o sentimento de encontrar as mulheres que por muito tempo eu evitara. Encontrar a súa amizade, sua alegria, suas angús- ti;lS, sua procura de um sentido; o sentimento de melhor compreender aque- las linhagens de mulheres que me h~viam precedido, entre as quais minha mãe, e com isso, encontrar a mim mesma ... Mas o lucro não era somen.te existencial. Era intelectual. A história d~s mulheres, ao colocar a questão das relações entre os sexos, revisitava o conjun- to dos problemas do tempo: o trabalho; o val~r, o sofrimento, a violência, o .amor, a sedução, o poder, as representações,:as'imagens e o -real, o soCial e o po- i'-. lítico, a 'Criação, o pensamento sifl:tbdlico. A diferença dos sexos revelava-se de um. grande fecundidade.i'te fio de Ariadne percorria O labirinto do tempo. Pois do gineceu à casa rural ou bUIguesa, .da: polis grega à democracia conte~ porânêa, havia comunicaçõ,es dos corredores que não existem ·talvez em mes- mo grau nos outros capitulos da agenda histórica. Estes "lugares para a histó- ria" (A. Farge) das mulheres podem ser percor;idos sem que nos sintamos , completamente deslocadas. A história das m~eres e das relações entre o~ se- xos coloca de maneira muito feliz a 'questão da permanência e da mudança, da modernidade e da ação, das rupturas e das continuidades. do invariante e da 23 A edição francesa foi publicâ.da pela Plon, graças a Lau~dler e depois, aos cuida. dos diligentes de Anne le<:lerc. Agradeço a ambas. \. 25 " t h , I' L III,nulllfiJo historicidade ... Objeto de pesquisas precisas e· necessárias, terreno sonhado para a microhistória, ela é também um terreno de reflexão maior, "teórico" como o chamariam os americanos. epistemológico. como~teríamos dito nas_ décadas de 1970 e 1980. para a pesquisa. diremos mais modestamente nos dias de hoje. Ela interroga a lingu,agem e as estruturas do relato. as relações 'do su- jeito I! do objeto. da cultura e da natureu, do público e do privado. Ela coloca ... em questão as divisÕes disciplinares e as maneiras de pensar. Experiência insubstituível para aquelas e aqueles que- a fizeram, a histó- ria das mulheres. por outro lado, não mudou nem a atitude histórica , ainda ce"-.. serva da, nem as instituições universitárias, que opõem-se a lhe dar um lugar" ~ , ainda que modesto. Os inevitáveis confli tos de território conduzem às vezes a tensi?es, internas e externas áumentadas, e cuja conta pode vir a ser paga pelas, 'pesquisadoras mais jovens, E a França, sob este ângulo, parece mais arcaica do que a maioria de seus vizinhos. ' '" A históda das mulheres também não mudou muito o lugar ou a "con- dição" destas mulheres. No entanto, permite compreendê-los melhor. Ela con ~ tribui para sua consciência de si mesmas, da qual é certam ente ainda apenas um sinal: Nos p'aíses em vias de desénvolvi~ento, ond,e as mulheres começam a ter acesso ao 'reconhecimento indi\jdual, é'o acompanhamento freqüente de- um proj':esso iaenti tário, às vezes cOntrariado: de que somos as espectadoras cúmplices. ansiosas e soLidirias. - Este livro. reunião de artigos diversos qu'e devo à amigável pe'r.severan- . ça de Perrine Simon-Nahum, é portador deste fragmento de história ao qual ' n~eu último itinerário está estreitamente ligado. Ele dá o test.emunho de algu- mas. destas e,tapas. de suas descobertas e de seus erros, de seus debates e Suas tensões, de s~as dificuldades e seus' prazeres, de suas interrogações primeiras que não perderam' nada de sua acuidade: "Mulheres, quem somos nós? De - onde viemos? Para onde yamos~" Qual foi o nosso caminho neste mundo? , Vocês nos ouvem? -" / "i " / 26 Parte 1 i ' TRAÇOS " r I' " • , • ~ • • • • • --~ • • • • • • • • • • • • • • --• • • • • ., • . ," I ·1 \ , I • " • :.\ . . .," -- ',~ , • ., , • • " ,'- . ) i 7 -' " " . ~ , " A clificuldade da história das mulheres deve-se inicialmente ao apaga- mento de seus traços, tanto publicas q~nto privados. .t dos traços privados qu~ trataremos nos textos que se seguem: corres- pondênci3.\ d3.\ três frlh.s de Marx, fragmento de um diário intimo de uma de, ", vota moça do subúrbio Samt-Germain, livro de notas da casa que, ao tornar- se mãe, ela continuou a fazet sobre sua pc?pria filha. Século de fammas, de armários e de escrita pessoal, o século 19 é um imenso reser'(atório. Correspondências, diirias, autobiografias foram e..'TI11lla-, ' das e analisadas como modo de comunicação e expressão. Roger Chartier e sua 'equipe perScrutaram os usos da carta. I Philippc:: Lejeune localizou uma cente- . na de diários de moças~ que mostram person,alidades muito mais rebeldes do que a 90ce.Caroline Braune que os acasos da pesquisa havia,m ~olocado no ca- minho de George~ RibeiU. Juntos. nós editáram os os res tos.encontrados de seu diário. Esta publicação, recenseada pelo L'Express, permjtira~nos encontrar sua neta. Ela nos confiou então o diário que Caroline, que passara a se chama'r Or- -- ville, dedicara à sua filha Marie, tão desejada. Um outro tipo de diário nos era •. • I CHARTIER. Roger (Dir. ):ül Coruspondence, les u,sages de la [ettre au X!)(! sitde. Páris: Fayard, 1991; DAUPH1N1 Cédle; P~REZAT. Pierrelte; POUBLAN, Daniele. Ces oonnes lettres, une ccrreJpondance familiale au)(,f)(( silcle. Paris: AJbin Michel, 1995 . 2 LE}EUNE, Philippe. Le Moi des DemoiselJes. Enqllitt sI/r le jour:nal de jeu,IIl! filie. Paris: Stu il. 1993. . 29 -, " Palie J """, entao fornecido) ilustrando a assunção do "bebê" na constelação familiar da-, , quele ftm de século, contriouição à história do sentimento matern.al tanto · quanto à da primeira infância. Muito preciosos para o conhecimento da vida e do coração dás mulhe-, res, estes documentos.p.o privado têm limites sociais estreitos, desenhados por · UI:n acesso emin~ntemente variável à escrita. O silêncio é quebrádo apenas pe- las privilegiadas da cultura. Ao corttrário, ele pesa ainda mais para as operárias 'e camponesas cuja individualidade nos escapa. Nós' as perceben;H?s em grupo, nos canlpos, na feira, nas bodas ou nas peregrinações, através de imagens, fo- tografias ou descrições etnográficas que apagam necessariamente particulari- _ dades e conflitosj mantend.o a ilusão de um comunit<1:rismo rural um tanto : imobilizado. Dos conflitos, ouvimos ap_enas o eco ... quando eles perturbaram.suficiente!Uente a ordem pública para tornarem-se caso de polÍcia e de justiça. Delinqüentes e mais freqüentemente vítimcts. as mulheres aparecem então li~ · gadas à contravençã<? s I' A opacidade é um pouco menos forte no que se refere às mulheres das , - , classes populares urbanas, mais observadas (assim as monografias de fa.mília \ da' Escola de Le Play têm grande interesse pelas donas-de-casa, pilares da famí- lia), mais presentes110 espaço público, mais alfabetizadas também. As raras au- tobiografias de mulheres do povo, diretas ou apresentadas.na forma de ficção, · provêm de operárias que têm acesso à' individualidade peja escrita (Margueri. te Audoux, Lise ~anderwielen) ou pela ação militante (Lúcie Baud, Jeanne Bouvier,'Victoire Tinayre). Mas, trata-se aí de' traços impressos, públiços. Da situação familiar a~terior, pouco emerge e foi cºnservado. 4 ,_ 30 3 Dois exemplos: CLAVERIE.1:li~beth; LAMAlSON, Pierre. L'lmpossible: mariage:. Viole:nce. et pareflté til Gévauda~.·XVue. XVIlIt et)(J)(! siêcle:. Paris: Hachette, 1982; SOHN. Anne-Marie: Ch'ysalides, Fe:tllmes dans la vie privée (X1Xc_Xxe siêcle) . Paris: Publications de la Sorbonn~~J99~.2 v. .' - . .' . ' , 4 Marguerite Audoux, Mafie~Claire. 191 0, L'Atelier de Marie:-Claire, 1920; VANDERWIElEN. Li~. Lise du piar pays «ol?an autobiographique). [ilIe: p~ss.es Universitaires, 1983; BOUVIER, ]e<ínne'":" -Ai!es Mémoires ou cinqu(If,u-lIeu! (umées d'activité iJ.duslrielle, sociaIe tt imellectuclle .... d·une ollvriêre (1876-1935). (1936). Paris: Maspe~o. 1983. Rééd.; SGHKOLNYI{, Claude. Viaoire Tinayre (i831-1895). Du SOcifl/is11Ie utopique: au positivisme pl"Olé{aj,·e. Paris: L'Harmattan.·1997. . . ..... , ! " '. " , " I ,. t I 'I i I [ \ 7 . \' '; l I . Par/e I TI'I~s As fontes privadas reforçam, conseqüent~mente, a desigualdade pela as- . simetria d'aquil0 que Uuminà.in. Elas têm um outro. inconvenieIÚe: o de subli- nhar um pouco.maisos laço.s das mullieres c~m a esfera privada, pois eman~m desta esfera. Elas inscrevem.o tempo das mulheres na repetição do mesmo e a relativa inércia do cotidiano, acentuam a própria feminilidade, que Colette descreve de form~ muito feliz. Entre fugacidade dos traços e ~)Ceano d~ esqueCimento, os caminhos da . memória das ~ulheres são estreitos. ' -. , , ' • " ~ , I 31 ... r • ~ "./'/ I , . , I , .... .~ ., r' I l. I I , . , , I , , r \ , , ~ ~ Capitulo 1 PRATICAS DA MEMORIAl FEMININA* \ No tea-tro da memória, as muJheres são uma leve sombra. A narrativa histórica tradicional lhes dá pouco espaço, justamente n.a medida em que privilegia a cena pública - a'política, a guerra - onde elas apa- recem' pouco. A iconografia comemo:ativa lhes é mais ,aberta. A ~statuaria) mania cara à 111- República, se(Jleou' silhuetas femininas pela cidade. Mas ale- gorias ou simbolos, .~as coro~ os grandes homens ou se prostram a seus pés, - relegando um paucó mais no esquecimento as mulheres reais que os ~poiaram ou amaram e as mulheres triadoras cuja efigie lhes fazia sombra.) Mas ~á algo mais grave. Esta ausência.no "nível da narrativa é acomp"a- Ilhada po{ uma car~ncia de traços no domínio das "fontes" nas quais o histo- riador se alimenta, devido ao déficit de registro primário, No século 19. por exe~lplo~ os escrivães da história - administradores, policiais, juizes ou pa-' dres, contadores' da ordem pública - to~am nota de muito pouco do q'ue tem o traço das mulheres. categoria indistinta, destinàda ao silêncio. Se o fazem, quando observam a presença feminina em ..... uma manifestação ou. reunião, re- .. correm 'aos 4 estereótipos mais conhecidos: , ~u1heres vociierarites. meg~as a partir do momento em que 'abrem a boca, histéricas, assim que começam a gesticular. A visão, das mulheres age como Um' pisca:pisca: elas são ra~am'ênte li' Pratiques de la mémoire f~minine. Travenes, 40. p, 19-29. rv/l987. N1.imero espe- cial ''Th~;\t~ de la m~moire~ , '5 Allne-Mar;e Fraise Falire estudou as figurtU femininas em uma Use. La Stahmire cOlllnfémofative tl Paris sous La llJt Republique. U. P. d' Arcllitecrure de la Vi/lette. '. ~ 33 , , I, I' I , . I' " Parte 1 n.", ,.- consideradas por si mesmas, mas bem mais freqüentemente com ,sintomas de febre ou de abatimento: o SILf.NCIO DOS ÁRQUIVOS /' Os procedimentos de registro dos quais a história é t~ibutária são fruto de uma seleção que privilegia o público, único domínio direto de intervenção do poder e campo dos valores'verdadeiros'. O século 19 distinguiu claramente ' as esferas, pública e privada. cujo a~enciamentl? condiêiona o t;.quilíbrio ge~ral. ' 'Provavelmente suas esferas não engloJ>am exatamente a repartição dos sexos. 'Mas, grosso modo, o mundo público, sopretudo econômico e político, é desti- nado'aos homens e é o mundó que conta. Esta definição· dos papéis, clara ,e. vo- luntarista, traduziu-se por uma retirada das mulheres de certos locais: a Bolsa, o Banco, os grandes mercados de negócios, o Parlamento, os clubes, círculos e . cafés, grandes loc~is de sociab~dade masculina, e até mestno as bibliotecas ' públicas, Mai$ t~rde, Simçme de Be~uvoir, na Biblioteca Nàcional, é uma fig~- , ra de transgressão intelectual. A cidade' do século 19 'é um espaço sexy.a~o.As mulheres inscrevem-se nele como ornamentos, estritamente disciplinadas pela moda, que codifica S43S aparências, roupas e cuidados, principalmente para as mulheres b':lrguesas cujo lazer o,stentatório tem como função significar a for- tuna e a posiÇãO de seu marido, Protagonistas; no verdadeiro sentido da pala- vra, elas desIDam nos salÕes, no teatro 0l,! no passeio, e é por suas roup~ que os cronistas s~ interessam (vej,amos as Lettrcs parisie,mes, do visconde de Lau- nay, aliás, Delphine de Girardin'), " I Quanto às mulhe'res do p~vo, fala-se dela's somerte quando seus mu~ múrios inquietam em caso de pão caro, quando fazem algazarra contra os co- me(cia~t~s QU os se~horios, quaJ~do ameaçam subverter com sua violência, I uma passeata de grevistas. . , , Em sum~, a observação ,das mulheres de outrora obedece critérios de ordem e de papel. Ela concerne os di~cursos mais do que as práticas. lnteres- . sa-se pouco pelas mulheres singulares, des~rovidas de existência e mais à"mu- 34 . r' '- ' 6 Madame de Girardin" ~ttres pa:jsjeIl1~ du ,Vicomte de Launay (1837.1848 ) Présent~ et anotés par Ahne·Martm FU~ler. P~IS: Mercure de' France, ~86. 2 v. "- -' ' \ Q lptllllo J Prdlkas rl~ mc.m6ria fcmülina lher'~ entidade coletiva e abstrata à qual atribuem-se caracteres dê convenção. -Sobre elas, não há nenhuma verdadeira pesquisa, ma~ somente a constatação de seu eventual deslocamento para fora de suas zonas reservadas. . Um último exemplo dará uma idéia deste déficit documental e de sua significação complexa, Os arquivos do cri~e, tão ricos para o conheàmento da vida pri\'ada. dizem pouco sobre as mulheres, na medida em que seu peso na criminalidade é fraco e,decrescente (de aproximadamente um terço, no iní- cio do século 19, ele cai para menos de 200/0 no seu Cma!), não em virtude de uma natureza doce, pacifica e maternal, como ,pretende Lo~brosso/ mas de- vido a um,a ~érie de práticas que as excluem do campo da vingança ou do afrontamento. A honra viril ultrajada é vingada com o assassinato. O roubo nas estradas ou os furtos, os .assaltos ou o atenta'do eram, até uma data recen- ·te, coisas de homem, 1 Assim, olhar de homens sobre homens, os arquivos públicos calam as m~heres. ".E, preciso, todavia, não esquecer as muJheres. entre todos estes ho· mens que sós, vociferavam, clamavam <? que haviam f~ito ou que sonhavam fa~ zero Fala-se muito deles. O que se sabe delas?" escreve GeOJ;ges Duby como conclusão ,do livro que dedica ao casamento na França feudal, 'Le ClJevaJier, la ,Femme et le Prêtre (O Cavaleiro, a Mlllher e o Padre), Eis ai toda a questão,OS SEGREDOS DOS S'ÓTÃOS Os arquivos privados, outro sótão da história, dizem mais? Sim, de-ou- tra maneira, na medida em que as mulhéres s~ exPressaram muito mais abun- d'antemente n';les, e até mesmo devido ao raio que';"'como secretárias da famí-- . lia, elas foram produtoras destes arquivos. Livros de anôtações da casa em que . , mantêm os anais da família. Correspondências familiares de que elas são as es- cribas habituais, diários íntimos cuja 'prática é recomendada para as moças por seus confessor~s, e mais tarde por Seus pedagogos, como um meio de controle de si mesmas constituem um abrigo para os escritos das mulheres, cuja imen- sidão é atestada por todos os' fatores. Mas quantas destruiçôes forum reallza-- - , 7 l:.OMBROSO. C.: FERRERO, G. La Femme criminel1e el la prostituée, Paris: A1c~m, 1896, Trad, fr. 35 Ptlrtc J ."""" das nestes arquivos cujos restos, conservados até hoje. nos sugerem a sua ri· queza tanto como o ,seu interesse enfim recQnheddo! Estas destruições vêm dos a,casos das sucessões e das mudanças de casa, dnun go?to pelo secreto que cimenta a intriga familia:r, mas também da indi- ferença de descenden~es embaraçados p~los legados de seus predecessores que /. causam tanto estorvo: indiferença agravada pelo caráter subalterno dado a es- tes escritos clãs mulheres. A5 cartas das filhas de Karl Marx foram imperfeita- mente conservadas! e publicada,s tardiamente; ao desven4ar as manias ou' as fra- quezas do pai ou-do homem privado, elas chegam a constituir; para 'alguns, uma certa in'conveniência,· Outro exemplo: a correspondência que Tocqueville man- teve con~ seu amigo Gustavo de Beaumont foi preciosamente guardada como ' um testemunho único sobre suas empreitadas intelectuais e políticas; paraJela- mente, a correspondência mantida.por.suas esposas desapareceu por completo. De resto, muitas mulheres, presseqtindo a indiferença, adiantaram-se a ela ao "colocar ordem em seus negócios", isto é, ao destruir seus cadernos inti-, mos, temendo a incompreensão ou a ironia de seus herdeiros. Deixa"r para trás de shcartas d~ amor não seria introduzir um terceiro personag~ln em um ca ~ sal cuja bela image'm o tempo já havia alterado? O mes.mo acontece pa"r; a a~i zade. Eis duas amigas. Hélene e Berth~ que durante quarenta anos trocar~m uma intensa correspondência. De Hélene, resta"", 625 cartas; de Berthe. nada: ' ela pediu a Héiene para destruir tudo, pois não desejava nenhum testemunho '> de sua amiztde. Hélene resistiu, mas finalmente, dilacerada, queimou as ama- I . das missivas.' . Como a leitura,lIl,a escrita é freqüentemente. para as mulh~res,\,um fru- ' to pro'ibido. Para retomar o mesmo exemplo, o pai de Hélene irrita-se ao vê-Ia... pass~r tantas- horas em sua correspondên'cia. Ela deve se defender e esconder- se ~ara 'c~ntmuar ó que, aos olhos do Paj, é uma criancice e um desperçlício. Uma certa culpa acompanha esta transgressão de um domfnio .sagrado. Não se dJ ixará vestígio,s desta párte ~ecreta de si mesma, deste pecad~ que foi goz..1.do. 8 Lenres des filies de Karl Marx. PrHace de r. Perrot. Paris: Albin Michel, 1979. ' 9 Anne-Martin Fugier, uLes Jettres célibatalres", arligoo3 ser publicado. 10 ~TH[ESsE, Anne·Marie. ~ Roman du qll~tidjen. Lecteurs et ledures populmres à la Bdle Epoque. Paris: Le Cbemin Verto 1981. ..... / ' .. , ., 36 ~ O' \ .\ , ClpltulÕ I Prd/iau th! mqll6ri<l ftmininQ Assim as mulheres freqUentemente apagam de si me~mas as marcas tênues de . seus passos neste mundo, como s'e' sua apaTição fosse uma ofensa à ordem. Este ato de autodestruição é também uPla forma de adesão ao silêncio que a sociedade impõe às mulheres, feitas, como escreve Jules Simon, "para es- conder sua vida"; um consentimento à negação de si que está, no centro da edu- . cação feminina, religiosa ou laica, e que a escrita - assm} como a leitura - con- tradiziam. Queimar se,us papéis é uma purificaç~\! pelo fogo desta atenção a si ipesma que confina ao sacrilégi~. Este gigantesco auto-de-fé ~nceu a maior par- te do~( escritos privados das muLher~s, ao mesmo,tempo que os arquivos familia- , res de que a sua longevidade as tinha transformado em guardiãs. A morte súbi. ta, os armários esquecidos 9as grandes casas provinciais ~ão os únicos guarda- fogos deSte incêndio. A imagem das mulheres ateando fogo em seus cadernos in- timas ou em suas cartas de amor na noite de sua vida sugere a dificu14ade femi- nina de existir de outra forma.ru.ém do fugaz instante da palavra e, conseqüen- ' " temente, à dificuldade .de reencontrar uma memória desprovida de traços. A PAIXÃO DAS COISAS Mais do que ao escrito proibido, é ao mundo calado e permitido das coisas que as' mulheres confiam sua meaiória. Não aos prestigiosos objetos de coleção, coisa de homens preocupados em conquistar, pelo acúmuJo de qua- dros o u de livros, a legitimidade do gosto. Nd século 19, a coleção, e airida mais 'a' biblioftlia, são ;tti~idades tnascuJinas. As mulheres' se retraem ein matéçia .m~is humilde: a roupa bl'anca e os objetos~ Ninharia, pr~sentes recebidos em up1 'anivel'sário ou uma fest~, bibeIOs trazidos de uma viagem ou de .uma ex- cursão, "mil nàdas" preenchem vitrines, pequenos museus da leinbrança femi- nina. As mulheres têm a paixão pelos estojos, pelas caixinhas e'med~hões em - .. que elas guardam seus tesouros: mechas de tabelo, flores secas, jóias de farol- lia, miniaturas que, antes das fotografias,.permitiarrl-que se conservasse ~ ros- to amado. Mais tarde, -fotografias individuais ou de famil!a, emolduradas ou reunidas em álbuns, estes herbários da lembrança) alimentam uma nostalgia indefin.idamente enfraquecida. ColetâQeas de croquis e de cartõ~s postai.s me- TQorizam as viagens. Além do mais, as mUlheres são.lev.adas·~a fazer .tais cole- -ções pela engenhosidade de uma papelaria em pleno desenvolvimento. Agen- 37 ~. I I I , I· i, I . I j , ·r' \ , ., Parte J Th>,M I " d;.ts keepsakes yindas da Inglalerr,! incitam ao registro dos acontecimentos pri- vados. "Durante a Monarquia de Julho, toda m'oça de boá farnHia tem seu ál- bwn q~e ela apresenta aos amig~s da casa. É Lamartine quem abre o álbum de Uopoldine Hugo", escre~e Al.ain Corbin . No fim do século 1Q, o edit'c>r,Paul OUendorf lança o Recl/ei/·victor HI/go, transposição dos birtllday books britâ,' nicos; a -página da esquerda é ocupada por trechos da obra do MestrJ, a da di- . ceita menci?na apenas a data do dia; ele pode ser usado como uma col~tânea de poemás, de pensamentos, uma agenda ou um diário, pouco íntimo por ser -aberto aos famÚiares. Estas práticas,implicam na ~déia de uma capitalização do tempo, cujos instantes privilegiados podem ser revividos pela rememoração, reinterpreta- , dos, como u~a peça de teatro representada .sem 'cessar. Elas inscreyem-se em um s~cillo 19 que faz do pri~ado o lugar da felicidaçle imóvel, cujo palco é a • casa, os atores, os membros da família, e as mullieres as testemunhas e as cro- nistas . Mas esta missão de memoriaLista deve respeitar' limites implícitos. O pessoal, o muito íntimo são ba'nidos deste registro como indecenteS". Se a móç,a sol.teir~ ,che~a. a atrever-se timidamente a se apropriar ,de seu diário, a mulhei casada, no entanto, renunc,ia a ele. Não há espaço para' tal forn13 de es.crita é-de pensamento na câmar~ CO;ljugai. Como a escrita, 'f'\' memória feminina ~ fami- liar, semi-oficia.l. A roupa branca, as' roupas, constituem uma o~tra forma de acumula- ção. O enxoval, éuidadosamente p~eparado nos meios populares, rurai$ sobre- tud~l é "lJ-mà longa história ent~e mãe e filha':11 A conf~cção do enxoval é um legado de conhecimento e de' segre;dos, do corpo e do coração, longan:tente-' destil~dos. O armário d~ roupa branca é ao mesmo tempo um cofre-forte e um '~ relic4fio. A espessura dos lenç6is. a finut:a das toalhas de mesa, as dobras d.os_ guaraan~pos, a qualidade dos panos de pó têm sentido em u~acadeia de ges-.. tosiep~tidos e enfeitados. ! ' "\ - I A roupa br3.l1 c~ pe~tenc~ à esfera do íntimo, as roupas, à esfera do pú- .. blico. Elas estãQ ligadas às apàrências cujo cuidado é um grande dever das mu- ; Ihere's, sobretu'do das burguesas. A moda, nova fOFma de civilidade, é UI)l có- digo ao qual convém submeter'-se sob peóa de cair em ,desgraça, uma tir~nia ../ ~ .. 11 I:JNE. Agnes .. Le trousseau. in: Une lJisfoirc des femmes est-elJe possible? Sous ,Ia direction de M. Perrot. Marseille: Riv3ge~, 1984. · " .' .,. 38 '. t· '. / ',; , J ... I Cup{lI/lo I Práticas dll memória fcmi",'"a que se exerce sobre o co;po das mulheres a toda 110ra do ~a, a cada mês de uma estação. Devéria mostrou-o ao detalhar os trajes que uma mullier elegan- te deve usar, hora após hora. Mas este dever, no ,qual algumas mulheres encontram prazer e outras um tédio profundo, dá forma à memó~ia, Uma mulher inscreve as circ~nst~n cias de sua vida através dos vestidos que ela usa, seus am9res na c_or de uma echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço. são para ela relíquias de que só ela conhece o vÁlor. A monotonia dos ano~ se diferencia pela roupa que fixa também a representação dos acontecimentos que fazem se~ coração bater: "Eu usava, naquele dia .. . " ela dirá . A memória dás mulheres é vestida. A roupa é sua se,gunda pele. a única de que se ousa falar ou ao menos sonhar. A importância d~as "parências faz que as mulheres sejam 'mais ,atentas ao léxico des..tas mesmas aparências. O rosto do outro é tudo o que elas podem permi- tir-se. Pelos alhos. ela's pensam atingir a alma . .E: por isso que elas se lembram de sua cor, à qual "()~ homens são geralmeht~ indiferentes. UMA MEMORIA DO PRIVADO · -. . Assim, os .rll0dos de registro das mulh:res estao ligados à sua condição. ao seu lugar na famüi~ e ~a soçiedade, O mesmo acontece com seu modo 'de. Jememoração, da encenação propriamente dita do teatro da memória. Por for- ça das coisas. ao menos para as m~eres de ~utrora e para '0 que resta do pas- sado, nas mulheres de hoje (e que não é pouco). é uma memória do ,privado, voltada para a família e para o intimo. aos quais elas estão de certa forma re- l~gadas por coJyenção e posição. ~~be às ml;llheres co'nservar os traços das i'n- fândas em que elas são governantas. ~abe' a das a transmissão das ~jstórias de família) feit,a geralmente de mãe para filha, ao folhear álbuns de fotografias aos quais, juntas, e1aS"'acrescentam um nom~ , uma data , destinados a fixar identi- dad~s já em vias de apagamento, Cabe às mulheres o cuito dofmortos e o cui· dado com as tumbas, o que as in~uinb~- de velar pela manutenção da! sepultu- ras. Ir colocar flores nos túmulos dos seus, no 9ia dos mortos, costume instau- rado na meta,de do séc~o 19, ton~a-s'e mn mandamento das filha s ou das yiú- . vaso A proximidade do cemitério fixa às vezes a sua última moradia, como se .ele fosse uma dependência da casa. Esta situação é ainda ace.ntuada pelas guer- 39 Parte,J TnffOl ras, sobretudo a Primeira Guerra Mundial, pevoradora de homens, cujos no-:-. mes são tragicamente enumerados sobre os monumentos aos mo.rtos das pr'a- ças. dos vilarejos. Mas delas, trágicas carpideiras, não nos lembraremos. A memória das mulheres é verbo, Ela está ligada à oralidade das socie- dades tradicionais que lhe confiavam a missão' de contadora da comunidade " da aldeia, No vilarejo de Martin Nada~d, na Creuse, a velha Fouéssoune des- fia, nas vigílias, a canção de gesta do lugar. Mas quando se insta:.uram as. migra- ções que, no meio do inverno trazem de volta da cidade os operários da cons:- trução, carregados de pres~ntes e de bo~tos da ~apital: ela se ' encolhe em seu canto e, pouco a pouco, cala-se. D':1rante a vigf.lia, a partir de então, '''~ palavra está serl]pre com O pedreiro, é ele que faz girar a cabeça das moças, é a ele que . os pais cedem geral~ente a mão de suas ftlha s". n Cena significativa: provavelmep.te houve, no século L9. uma certa recu- sa da fala feminina, desqualificada'pelos meids de comunicação modernos, pe- los sucessos saltit~'ntes do ç,scrito: cOrrespondência, cartões postais, diários. E ao m~smo tempo, perda insidiosa de uma funçã9 tradicional e ruptura de an- tigas formas de memória. AS RECITANTES , É por isso qu'e os desenvolvimentos recentes' da história chamada de "oral" são d~ cer ta maneira uma revanche das mulheres. Sabe-se tudo o ,que ' " esta n~ova forma de co~eta de m .. teria.is para a história deve às experiências nor,:-. te-americanas (Quebec"sobretudo) e polonesas" e, adma de tudo à obra pio- neira de Oscar Lewis, Les Enfants de Sar~che;. Dar a palavra aos deserdadós, às- pe~o!s,sem história, aplica,r às populações urbanas contemporâneas os ~éto dos emp'regados pelos etnólogo.$' para os pseudo-"primi~vos": tais foram , no iniCio, os pressupostos oeste p·(ocedimento. Na França, ela se desenvolveu em' í1i~ersas direções desde a déc:.da de 19~0: da pllblic Iristory dos grandes atores I sociais, indi~duais ou coletivos, ao. humilde \'relato de vida'" a~rancaqo <.\as "pessoâs comuns", Um certo populismo..herda,do de 1968, mas também o de- , ' I - " . " j' . 12 CORBIN, Alain. Arcltarsm~ et moduniti tn Umóus;n. Paris: Rivihe, 1975, I, p. 22( ' . 1 i , .' 40 , , Clp/f"Iol PnJticlU tÜI mallôria ftminina sejo de conservar a memór~ia de mundos que se desmoronam - corno a Lore. na metalúrgica e sinistrada - levaram nesta direção.1J Por seu caráter não dire- tivo (ou semi-diretivo). sua exigência de p.articipação por parte do observador necessariamente !Jlais implicado do que em um banal questionário, o relato de vida deve mais à' etnologia do que à sociologia, As mulheres foram amplamente uma parte integrante 'desta aventura, entre as pesquisadoras bem como entre as pesquisadas, e ~ isto o que nos in- teressa aqui. E pQ.r diversas razões. Inicialmente, a lóngevidade nitidamente mais elevada das mulheres (na França, atualmente, a' diferenç.a entre a expec- tativa de vida dos Jtomens e das mulheres é ge oito pontos) l~ que lhes confere um status efetivo d'e testemunh'as. sobrevi~entes de épocas ;emotas. Trata-se de reconstituir a história factual ou cotidiana, de uma (am1Jia ou de um bair- ro, captar a "vivência" dê um grande acontc;cimento público? Para o entreguer- ras, ainda mais evidentemente para o início do século 20, foram as mulheres" que restaram. A maioria dos pesquisadores trabalhando com este método teve es.ta experiência. Necessariamente eles trabalham com uma amostra sexual- mente desigual _ ' '. Segunda razão: o mutismo dos h<?mens, em um casal, a p'ardr do mo- mento em que se tratl de lembranças de infância ou da vida privada, contrasta com a loquacidade muito maior das mulheres, quer seja porque o trabalho e as . , empreitadas do exterior tenham atrofiado a memória masculina, quer seja ain- da porque falar de si mesmo é contrário à honra viril que con'sidera e,stas coisas' ~egligenciáveis) ab~ndonando às espos~s o laldo.dos berços e as questões do lar. Esta concepção de urna indecência do 'privado é particularmente forte na e1as- ~. ,se op~ária, to~a voltada para a realização do homem de mármore da consciên- cia de classe. Falar de Sua vida é àpor-se, entregar~se ~o olhar de seus inimigos. , desta burguesia sempre pronta para o desprezo. Esta era a opinião de Prourlhon que sempre se recu~ou a escrever a sua autobiografia, por medo de parec~r um saltimbanco de feira. "Os fatos de minha vida sã.o menos do que nada", dizia ele. "Não é bom para a liberdade e para a honra de um povo que os cidadãos colo-. " 13 Por uma análise sugestiva destes fe:n6~e:nos. cf. JEUDY, Pierre:. Mimoires du Social. Paris: PUF; 1986, . 14 Levy, M. L M'ooe:mit~, Mortali(~. PoplIlations et Socittb, n, 192,ju~ 1985. -. , 41 , Ir I ': ., " I , ;\ ' Parte 1 TroÇ(lf quem em cena a intimidade de suas vidas, tratando-se. uns aos outros como va- letes de
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