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As mulheres ou os silêncios na História 462 até o final

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Parte 5
Debates
mais eles são. masculinos, corno observou Jacqueline Lalouette: os cafés bretões
.... .".
I são. mais mistos do. queos botequins da Flandres o.nde, no. fim do. século. 19,
uma mulher "honesta" penetra sem hesitação. b cultura do café popular, bem
como a do. clube ou do. círculo. burguês" é nitidamente masculina. Nestes lu-
gares, às vezes fe~hado.s, mas de conteúdo público. - fala-se ali de política, da
atualidade ... - as mulheres não. têm lugar.
As mulheres têm seus próprios lugares: os mercados, os Iavadouros.as
.lo.jas, mais tarde, as lojas de departamentos; mas, em suma, muito. po.uco.s lu-
gares de sociabilidade própria, além das igreja-s que tentam, ao. contrário, aco-
lhê-Ias. Associações devotas ou caritativasdeliberadamente recrutaram moças -c,
e mulheres um tanto abandonadas pelas instâncias públicas. Certamente nem
todo o.público. é masculino. no. espaço. da cidade onde circulam as mulheres, e. . .
cada vez mais. Numerosos locais são. mistos ÔU neutros; existem zonas de in-
terferências; locais de encontros organizados também, corno os bailes.Mas a
diferenciação. sexual dos espaços e o. caráter não. misto. continuam a ser o. mo-
delo de organização principal, em ação. na escola, bem corno nas saídas das .
fábricas ou dos escritórios.
A casa é, co.m certeza, o. lugar das mulheres" mas também o.da família e
fronteiras complexas regulamentam a sua circulação. e a .distribuição de suas
peças. Patr~es)- empregados, pais e filhos, marido. e mulher cruzam-se ali. A
relação. público/privado insinua-se nela: a sala de visitas, que Habermas vê
corno o. epicentro da "publicidade" burgues~,64 diferencia-se da sala' de jantar
das refeições famifiares e mais ainda dos.quartos o.nde desenvolvem-se a con-
jugalidade e a intimidade. No. final das contas, a casa burguesa no. decorrer do.
século. 19 concede cada vez mais aos homens, escritório, bilhar, sala para fu-
mar, marcam seu território. como se fosse n~cessário. escapar da onipresença
das mulheres. Elas, entretanto, têm po.uco ,espaço. próprio, notadamente para
o. trabalho. e a escrita. Donde a reivindicação. de Virgina Woolf para ter "um
quarto. para si': condição para a atividade intelectual. Os trabalhos de Moni-
que Eleb mostram que a moradia doméstica 'e singularmente a casa burguesa
63 AGULHON, M. Le cetde dans IaFrance bourgeoise, 1810-1848. Paris: A. Colin, Cahiers
desAnnales, 1977; PERROT, M. Le geme de Ia ville. Communications, 65,1997.
64 HABERMAS, J. L'Espacepublic, 1962. Paris: Payot, 1978.
462
. Capitulo 20
Público, privado e relações entre os sexos
são. locais de cruzamentos de influências, .máquinas complicadas cujos de- '- '.
mi~rgo.s são. os arquitetos e que expressam as relações variáveis do. público. e
do. privado, dos homens e das mulheres,"
A organização do. público. e do. privado passa por dispositivos espaciais
, /
cuja importância nas tecnologias do. poder foi sublinhada po.r Michel Fou-
cault." Seu exame é, conseqüentemente, de imediato reveladore sugestivo.
Mas poderíamos tornar outros exem~lo.s mais complexos po.r serem, à primei-
ra vista ao. menos, mais imateriais. Corno é o.caso. da pala,vra das mulheres." A
voz das mulheres é um modo de expressão. e de regulação das sociedades tra-
dicionais, em que predomina a oralidade, O incessante murmúrio. das mulhe-
res acompanha, em surdina, a vida cotidiana. Ele exerce múltiplas funções: de
transmissão. e de controle, de troca e de boato, mas ele pertence à vertente pri-
v~da das coisas, da ordem do. coletivo e doinformal, mais uma tagarelice da
qual se teme o.barulho. e os excessos: "Estas tagarelices de mulheres que se es-
cuta cacarejar através das portas, não. acabarão. po.r se calar?" (George Sand).
Pois a inutilidade da tagarelice provoca o. desejo. do. silêncio: forma dissimula-
da de negação.vDaí o. esforço das précie~ses* e das proprietárias dos salões da
Europa das Luzes - de Paris a Berlim, de Madame de Deffand a Rahel Varnha-
~en - para dorninara arte da conversação, esta forma de possessão do. mundo.
pela' palavra 'igualitária." Madame de Staêl terá, provavelmente, saudade dela
, ,
po.r toda a sua vida.
65 ELEB, M.; DEBARRE, A. Archi'ctures de Ia vie privée. Maisons et mentalités, XVII"-
XIXe siecles. Bruxelles: AAM, 1989; EInvention de l'habitation moderne, Paris, 1880-
1914. Paris: Hazan, 1995.
66 FOUCAULT, M. Espace, savoir et pouvoir, In: o Dits et Écrits. Paris:
Gallimard, 1994.IN, 1980-1988, p. 270-285.
67 PERROT, M. La parole publique dês femmes. In: Nationalismes, Péminismes,
Exclusions - Mélanges en l'honn'eur de Rita Thalmann. Sous Ia direction de I. Crips
, et aI. Paris: Peter Lang, 1994. 'p. 461-468. (
68 FRAISSE, G. Les bavardes. Féminisrne 'et moralisme (1979). In: Ia Raison des
femmes. Paris: Plon, ~992. p. 114-136.
- . \
,. Mulheres que, no século 17, adotaram uma atitude nova e refinada com relação aos
senti~entos eyma linguagem elaborada. (N.T.)
69 FUMAROLI, M. La conversation. In: Les Lieux de mémoire. Sous Ia direction de
Pierre Nora. Paris: Gallimard, 1992.1. lII: Les France, v. 2: Traditions, p. 679-743.
\..
463
Parte 5
Debates
o queé recusad~ às mulheres é a palavra pública, Sobre ela pesa uma
dupla proibição, cidadã e religiosa, Pitágoras e São Paulo dizem quase a mes-
ma coisa: "Que as mulheres se calem nas assembléias"'(Epístola aos Coríntios).'
Elas podiam profetizar, não pregar, ser mediadoras de Deus, não seu ministro.
São necessárias as falhas, heresias ou despertar protestante, ocasiões de prega-
ções femininas que marcaram igualmente o saint-simonisrno. Mas se trata
sempre de um palavra não convidada, jorrada das fraturas e das margens. Pois
. .
o poder, mesmo herético, teme a palavra das mulheres. Ele fechou-Ihes a boca
rapidamente. 'Restaurar a ordem é impor silêncio às mulheres. O que faz a Re-
volução ao expulsar as cidadãs das tribunas da Convenção, ao fechar seus clu-
bes e ao instaurar uma arte oratória inspirada na República Romana e marca-
da com o selo da virilidade triunfante. O órgão das mulheres estava ali, neces-
sariamente deslocado.,
O século 19 redobra as precauções. Até mesmo a conversa é esvaziada
do que fizera a sua força e seu charme. Fim dos salões da Luzes onde as donas-
da-casa abordavam, sem discriminação, com seus hóspedes, os assuntos mais
I _
graves. Doravante, a política tornou-se um assunto sério demais para ser tra-
tado no salão: é Guizot quem o diz." As mulheres "adequadas" não falam de .-,
política; é inconveniente e mal-educado. Também, ,se restam ainda alguns .
grandes salões literários, os salões políticos são, porém, muito mais raros e, en-
tão, excluem as mulheres, como o fez a condessa Arconati -Visconti, a conselho
de Gambetta.
A despeito de algumas aberturas, socialismo e movimento operano
mostraram-se pouco preocupados de fazer as mulheres subirem à tribuna.
Adélaíde Popp, em La ]eunesse d'une ouvriêre (1909)/1 contou sua lenta e difí-
cil penetração no seio de um partido socialista austríaco especialmente misó-
gino.Ela acaba por se impor como oradora nos comícios operários, não sem
intrigar muito seus interlocutores. Os mineiros de Styrie a viam como uma ar-
qiiiduquesa e os tecelães diziam que ela era provavelmente um homem disfar-
çado .de mulher: "Pois somente os homens sabem falar assim". Isso comprova
que os estereótipos têm vida longa.
70 ROSANVALLON, P Le Moment Guizot. Paris: Gallimard, 1983,
71 POPP, A. La ]eunesse d'une ouvriêre (1909). Paris: Maspero, 1979. Tr. fr.
464
~apítul020
Público, privado e relações entre os sexos
'--
As brechas se produziram em outros lugares: .por um lado, através das
profissões da palavra. O acesso de [eanne Chauvin à profissão de advogada e
ao exercício da advocacia (foi necessário uma lei: 30 de junho de 1899) abre
uma nova era. Por outro lado, o feminismo foi, sob a Terceira República, uma
verdadeira tribuna, sobretudo pelos congressos,que desempenharam um pa-
pel eficaz de própedêutica da palavra pública das mulheres.
Outras modificações afetaram ainda a posição dos sexos em suas rela-
ções com o público e com o privado. De maneira geral, o privado foi revalori-
zado e, com ele, a força dos costumes e a das mulheres. Ainda mais que, por te-
rem sido solicitadas para intervir no campo da filantropia, elas desenvolveram
ali uma "maternidade social" que fazia parecer mais absurda a sua exclusão do _
político. Duas guerras e quase meio século seriam necessários para sua con-
quista do direito de sufrágio. E, provavelmente, diversas décadas para a reali-
I
zaç~o de uma igualdade efetiva.
A articulação do público e do privado é um dos problemas maiores das
." sociedades democráticas. Ela está no centro da teoria política bem como da
vida cotidiana. O cruzamento com a diferença entre os sexosé uma maneira
de penetrar em seu funcionamento e compreender seus deslocamentos.,
,
(
A/''-
J
,~
"
)
I
Capítulo 21
..
IDENTIDADE, 'IGUALDADE, DIFERENÇA:
.O OLHAR DA HISTÓRIA *
...,.
Estes três termos que são o objeto de nosso colóquio não constituem al-
ternativas. Ainda que, para a comodidade da exposição, nós possamos distin-
gui-los, esta distinção é um tanto artificial, Eles devem ser tomados juntos: ''A
identidade dos sexos e sua diferença foram pensadas em função uma da outra.
Esta mútua dependência poderia ser o ponto de partida de um trabalho filosó-
'fico" escreve Genevieve Fraisse (1991, p. 21), A história poderia retomar- este
programa por sua conta. E o vínculo entre estes três termos é, em suma/a no-
.ção de Gender, definido como "construção social e cultural da diferença entre
, .
os sexos". Esta noção, nascida nos EstadosUnidos, e atualmente às vezes ques-
tionada, penetrou as pesquisas históricas francesas sobre as mulheres, apesar,
I' .
ou talvez por causa, das dificuldades de tradução que autorizam uma certa fle-
xibilidade. Para nós, isto significa que a história dita das mulheres apenas en-
contra todo o seu sentido na análise, n~ desconstrução da diferença entre os se-
xos, na relação com o outro sexo. Somos muitas - e muitos - a pensar que o gê-
nero, categoria.do pensamento e da cultura, precede o sexo e o modula (HUR-
TIG, KAIL e ROUÇH, 1991), que o corpo não é o primeiro dado. O corpo tem
uma história: ele é representas:ão e lugar de poder, como mostraram Michel
Foucault (1976, 1984) e, recentemente, Thomas Laqueur (1992), E a identida-
,.. Identité, égalité, différence. Le regard de I'Histoire. ln: Mission de coordination de
Ia quatrierne conférence mondiale sur Jes femmes (Hélene Gisserot, Annie
Labourie-Racapé edit.) Ia Place des femmes. Les enjeux de l'identité et de l'égalité au
regard des sciences sociales. Paris: Ephesia: La Découverte, 1995. p. 39-56.
467
'-
Parte 5
Debates
de também 'não. é estabelecida definitivamente; ela não. é causa, mas "efeito.ins-
tável e jamais garantido, de uma vez por todas, de um processo. de enunciação
de uma diferença cultural" (SCOTT, 1994, p. 29). Até mesmo a psicanálise, que
se considera freqüenternente ou às vezes como. a ú~tima explicação da diferen-
ça das identidades sexuais, é um saber produzido. por esta própria diferença."
As noções de "partilhas, fronteiras, conflitos, composição / decomposição / re-
composição'; etc., nos parecem, nesta análise, fundamentais; mais do. que a 10.-
I
calização dos traços considerados corno formadores da identidade.
Dois outros pontos me parecérn essenciais.' I,
1°) A confrontação das teorias e das práticas, po.r exemplo, no. que se re-
fere à igualdade. Deste ponto de vista, eu persisto. em distinguir ao. meno.s'do.is
níveis da representação, ou da realidade, cpmo. \se queira.
2°) A questão. do. poder dificilmente pode ser evitada a partir do. mo-
mento em que se trata de relações de sexo, ainda que estas relações não. se re-
duzam unicamente ao. poder, A questão. da dominação masculina.corno prin-
cípio. organizador do pensamento, da sociedade e da história é seguramente o.
que causa problema, por diversas razões. Inicialmente, o risco. de transferência
de uma categoria de análise: o. sexo. no. lugar da classe, com to.das as simplifi-
cações que isto. comporta, Em seguida, o. risco de recorrer auma invariante, ao.
passo. que nós recusamos qualquer fixismo e fazemos da diferença ,entre os se-,
Xo.S- do. gênero - uma perpétuaconstrução. "Tão. 100'lgequanto. se po.ssa olhar
no. ho.rizo.nte da história, v_~se apen~ a do.minação. masculina",-navíamo.s es-
érito. na introduç~~ ~:'Histoi~.[!mmes en Occiderít (História das mulheres
.no Ocidente) (HDFO, 1990-1992). Rejeitamos, po.r exemplo, a teoria do. ma-
t-;iarcad~-;;o.-;tram~~o.~~ cla havia sido. elaborada gela ideologia do. sécu-
lo. 19 (GEORGOUDI, 1990, p. 477-493). Continuarei fiel a: esta formulação.
Vendo. melhor, talvez, as objeções opostas a nós. A saber:
• Se o. pensamento. é radicalmente dominado pelos homens, então. as
mulheres não. podem nem mesmo. pensar sua própria opressão e escre-
ver a sua história (Bourdieu, em DUBY; PERROT, 1993, p. 66), ponto
L
72 "A questão da diferença entre os sexos não é nem a da identidade nem a de suas
diferenças r,..] mas a do encontro sexual e de seu conflito, logo a das relações
sexuadas" (FRAISSE, 1991, p, 9),
468
"
éapítulo 21
Identidade, igualdade, diferença: o olhar da História
de vista refutado. recentemente por Mona Ozouf, que afirma qu~ se'
pode - se deve -ler as palavras de mulheres para compreender sua ex-
pressão autônoma (OZOUF, 19~5) ..
Não. há somente o. poder, A cultura não. é somente o. produto. de uma
relação. de poder, corno afirmávamos em um artigo. coletivo publicado.
nos Annales (DAU:PHIN, março.-abrilI986), afirmação. que suscitara as
vivas reações de alguns de no.sso.s colegas etnólogos." Tudo. Isto. merece,
de fato, discussão.
~
Estes paradigmas gerais condicionam, ao. que me parece, toda à reflexão.
,e toda a pesquisa sobre os três termos que no.s, são. propostos. Convém dizer
ainda o. quanto, em' tal busca, os historiadores (e historiadoras) são. tributários
das outras disciplinas. Eles são. devedores da antropologia, cujo. pão. cotidiano
, . . \
é a diferença entre os sexos. Devem também à sociologia, que, muito. cedo, evi-
dencio.u' o.vínculo. "trabalho-família", indissociável quando se trata das mulhe-, ,r ,
res, etc. O objeto "mulheres" é necessariamente plural, multifo.rmed2luridisci-
plinar; cledestr6i as divi~ões tradici~~ais-do. saber, tão. fortes entre nós, em
,u-'-m-a-o.-r-g-a-nT'iz-a-ç-'::ã-o.-a-c-a-anê:-m-I"-c-a-~-u-~""-e7Ia""';tctaniza~c~~o.;m ~~ maior ao.-----' -- ----- ---, -- .
desenvo.lvim~d-ª_~J2$li9.PE~s no. setor que nos interessa. Sob este ângulo. ins-~ . ~._ ........•..•... .- .
titucional, não. avançamos muito. nos últimos dez anos (colóquio de Toulôuse,
dezembro. de 1982; ATP "Femmes" no. CNRS, 1983rI989). Daí o. interesse des-
te encontro. que no.s permité ter uma 'medida das coisas e afirmar nossa exis-
tência. O, que nos une neste campo, quaisquer q~e sejam as nossas divergên-
cias, normais e, produtivas, de interpretação, parece-me mais forte do. que
_ r
, aquilo. que nos divide.
Tentemos, então, responderao programa que no.s é proposto e cujos te-
mas, ainda uma vez, respondem uns ao.Soutros e se entrelaçam, como os mo-
tivos de uma arte da fuga. Eu usarei principalmente referências da história mo- '
derna e contempórânea. I
,'!>
"'"
J
73 - Como à reação de Agnês Fine (1984, p. 155-189); ver em particular sua conclusão
em que ela distingue dois níveis de análise: o tempo social e o tempo da simbólica -
sexual.
.~
469
Parte 5
Debates
"
DA IDENTIDADE
"\
É talvez o tema da identidade que foi mais freqüentemente abordado e '
que se revela o mais rico. Pois a definição do "masculin<?/femininó" é geral-
mente - riem sempre - central no pensamentofilosófico, religioso, moral,' as-
Jim como. no discurso médico que, em certas épocas, pretende ser o olhar da
ciência. Estes aspectos deram lug~r a muitos trabalhos e estão muito presentes,
por exemplo, nos diversos volumes de HDFO. Uma das obras mais inovadoras
a este respeito é a do americano Thomas Laqueur, Making Sex (La Fabrique du
Sexe) (LAQUEUR, 1990): Situado no caminho de Michel Foucault e de sua
História da Sexualidade, este livro mostra como se efetuou, a partir do século
18, com o florescimento da biologia e da medicina, uma "sexualização" do gê-
nero que era pensado, até então, em termos de identidade ontológica e cultu-
ral muito mais do que física, a despeito da tradição de Galiano. Doravante, o
gênero se faz sexo, como o Verbo se faz carne. Homens e mulheres são identi-. --
ficados por seu sexo; em particular as mulhere~ondYE..ad.e.La._Yl.e~aJ}cora-
das em' seús coiposlleiffiírfierêSéhégâ?dC;-'~té a ~ér prisioneiras deles. Assiste-
se, então, à biologização e à sexualização do gênero e da diferenç~_entre os se-
xos. As implicações teóricas"7 polítICas desta mutação são consideráveis. Por---- .~
um lado, ela tem, de forma latente, novas maneiras de percepção de si e sobre-
tudo a psicanálise (a oposição falo/útero, a definição da feminilidàde em ter- ,
mos de falta, de yazio, a "pequena diferença" que é a base do grande diferen-
do). Por outro lado, ela traz uma base, um fundamento naturalista par~ a teo-
ria das esferas'- o público e o privado - identificadas com os dois sexos, t~oria
pela qual pensadores e políticos tentam organizar racionalmente a sociedade
do século 19. Esta naturalização das mulheres, presas a seus corpos, à sua fun-'
ção reprodutora materna e doméstica, e excluídas da cidadania política em
nome desta mesma id~ntidade, traz uma base biológica ao discurso paralelo e
simultâneo da utilidade social. ',
Este revestimento do gênero pelo sexo instaura 'uma biopolítica das re-
lações entre os sexos" que está no centro da modernidade. Toda reorganização
política é acompanhada de uma redefinição das identidades sexuais. A este res-
peito, a constituição dos nacionalismos e dos Estados-Nações é rica em expe-
riências. Mencionar~mos 'alguns exemplos, Eleni Varikas (1991) mostrou como
a nação grega, no século 19, apóia-se na diferenciação sexual e na reclusão das
"
470
'\
Capítulo 21
Identidade, igualdade, diferença: o olhar da Histôria
/' C.
mulheres, "forma privilegiada de resistência à ocidentalização brutal e à invasão
dos costumes estrangeiros" Rita Thalmann (1982) e Claudia Koonz (1989) de-
, ram uma demonstração análoga para o nacional-socialismo. Sob 'uma forma
mais benigna e não menos insidiosa, Vichy aposta na feminilidade: a Revolução
Nacional desenvolve uma política sistemática em direção das mÜlheres-mães,
chegando até a preconizar que Ihes seja concedidoo Oirêifo ae voto, em nome
daTaillília (ECK-;1992). O Islã lrltegrista e nacionalista de hoje, no mundo fodõ:
faz da reclusão das mülheres um princípio fundamental. O véu, o antigo véu
imposto às religiosas no século 4'" pelos Doutores da Igreja tomados pela an- '\
gústia das tentações da carne, é o substituto do impossível enclausurameríto,
No espaço público, ele sublinha a necessária vedação das mulheres, terra dos .
homens. A violência do conflito hoje, no Irã, na Argélia ou no Afeganistão su-
gere a força das questões em jogo. Por isso, quaisquer que sejam os limites da
. laicidade, pronta também a fazer da diferença entre os sexos uma questão de 'or-
dem moral, ela oferece infinitamente mais liberdade." Mas, não se pode, por
isso, absolvê-Ia completamente. A República foi, na França, muito ligada à iden-
tidade, sobretudo na esfera política, em que a figura da Mariarine era a subli-
mação simbólica de uma exclusão de fato (AGULHON, 1979, 1989).
De maneira geral, guerras, sobretudo nacionais (mas as guerras con-
temporâneas sempre o são)-;-são a oportunid~de de uma mobilização identitá-
ria, parte recebedora desta "~{iltura de guerra" sobre a qual multiplicaram-se
os estudos reCentemerlte. Bem longe 'de con tribuir para a igualdade entre os se- -
io;'-:como se afirmou freqüentem ente para a Primeira Guerra Mundial, elas
. reforçam uma definição estrita .de seu papel, cuja confusão é identificada à de-
cadência. Também a efeminação dos homens foi freqüentem ente invocada
como uma das causas do fracasso da guerra de 1870, e a virilização das muIhe-
res como um fator. da guerra de 1914. Guerra que, ao colocar os homens no
front e as mulheres na retaguarda substituindo-os, mas apenas na função de
substitutas e auxiliares, restabelece a ordem do mundo.
O colóquio de Harvard (HIGONNET, 1987), os trabalhos de Fr:ançoi~e
Thébaud (1986, 1992) sobre a Primeira Guerra Mundial mostrar~m que não
podemos nos deixar cair na armadilha das aparências que projetam a irrupção
r
74 A este respeito, Mona Ozouf (1995, p. 365-374), sobre o republicanismo e a
redução da diferença entre os sexos na educação das meninas.
471
1-
/
Parte 5
Debates
,
das mulheres em locais (grandes fábricas metalúrgicas, por exemplo) ou em
profissões (condutoras de bondes ... ) onde, até então, elas não entravam.
. , -
Com o fim da guerra, estas suplentes são solicitadas a voltar para seus
lares. A questão .dos efeitos que esta interferência provisória das identidades
r
introduz, apesar de tudo; é de outra ordem.
O registro dos usos sociais das identidades sexuais também é fornecido.
Os trabalhos de Anne Martin-Fugier (1983) e de Bonnie Smith (1981) para a
França, de Ute Frevert (1986) para a Alemanha, deLeonor Dav~doff e de Ca-
therineHalI (1987) para a Inglaterra Vitoriana, de Nancy Cott (1977) e de Ca-
roll Smith-Rosenberg (1986) para os Estados Unidos, de Michela de Giorgio
para a Itália, de Eleni Varikas (1988) para a Grécia, etc., mostraram como as
burguesias haviam construído a identidade feminina, insistindo na utilidade
social: A dona-de-casa, "anjo do lar", reina sobre a identidade da casa, do home.~. --- ,_.... - ~ ,_..... ,- -----.<_. - ._ --,- --
Estas mulheres da "classe do lazer", portadoras de distÜ!.çãgaristocrática, cujas
ftmçõês dê represenfaçãoVêblê'ii' di-;é~a d~-;de ~inicio do -sé-;uk" obedecem
) ; ~
a regras de civ.!!clade e de mun.danidade tão rigorosas quanto uma etiqueta de
c~te, d'il qual elas derivam (SMiTi'I, 198n-:-t:Jslli'k1ãiS"'da' ;;;a;comandam sua
apar~ncia, uma'apàrência cada vez mais interiorizada, indo da roupa às form~s
do corpo e à textura da pele. A exigência de beleza, a obrigação contemporâ-,
nea da magreza, geradora de anorexia e atualmente condensada no culto das
top models, foram decodificadas por Denise Bernuzzi de Sant'Anna o,u pelo es-
tudo muito foucaultiano de Sandra Bartky sobre o cultivo: do corpo feminino
(BERNUZZI DE SANT'ANNA, 1994; PERROT PH., 1981; BARTKY, 1990).
,No que se refere à classe operária, a const~uçãO de sua identidade Jpe-
rou-se sobre 9 modo da virilidade, a saber: valorização da produção material
e ocultação: do trabalho doméstico de reprodução, desvalorizado na teoria'
marxista do valor: exaltação das grandes profissões viris: o mineiro, O metalúr-
gico, o cavador; entusiasmo pelos esportes mais físicos - futebol, rugby, boxe -. .
dos quais as mulheres são apenas espectadoras eventuais, e celebração dos
deuses do estádio; exaltação do militante como soldado másculo do exército
do proletariado, visão da revolução como luta armada, metáforas militares
aplicadas à luta de classes, etc. O ferro, o-fogo, o metal da ordem, o sangue do
sacrifício, são os emblemas da classe operária que incensa, por outro lado, as
virtudes da indispensável dona-de-casa. Éric Hobsbawm mostrQ!1 como •...no
último terço do século 19, efetuou-se, a ~~nizaçãQ da sim~bologia 2,Eerá--- '
472
Capítulo 21
Identidade, igualdade, diferença: o olhar daHistôria
I,
ria que cuhpinará em.O__Momem-de-·Márm()Te--d(')--film€-~Wajda
(HOBSBAWM, 1978;PERROT, 1976). De maneira mais geral, as categoriasso-
cialmente dominadas têm tendência a reafirmar sua identidade pelo viés da vi-
rilidade e da submissão das mulheie~. É um traço constante do populismo,
ainda mais insidioso por apresentar-se justamente como popular.
Marcar a diferença sexual é uma formá de poder, e o medo da indiferen-_ _ _ ..-J1
ciação sexual (FRAISSE, 1989) está no cerne das crises identitárias masculinas
que quase sempre respondem às tentativas das mulheres para sair de sua pró-'
pria condenação. A crise do inicio deste século, ligada ao tlorescimento consi- .
derável do feminismo ocidental, foi especialmente viva. Annelise Maugue mos-. "
trou seus aspectos franceses; Iacques Le Rider, as dimensões germânicas, em
torno de Karl Krauss e de Otto Weininger (MAUGUE, 1987; LE RIDER, 1982,
1990). Em Sexe et Caractêre (1903), publicado como um testamento, pouco an-
te~ de s~~icídio, Wei=K.er te~t~ reatar com a definição clássica do gênero se':--- -- ' .•. - " ,- --'-'-
parado do sexo e formatado pela ~,llltur;l, reafirmando a força da hierarquia do
masc®noed9 feminirÍ(;ê~~o fundamento irredutível do pensamento e da or-
ganizaçãodo mundo. Enquanto isso, o Manifesto Futurista de Marinetti'(1909)
__ .,.;, _ r ")to........ " ..,L ••, - ---.;'
convida a~<?-.mbater o~mor:ali-&moj>-,o.,feJlljr.Ü.spo:.(observemos a ,cl,ássica asso-'
ciação dos dois) e "a glorificar a guerra, única higiene do mundo" .•
~""'~r-" " .••.. iIIo . J
Último aspecto, e hão menos importante, desta busca identitária: como
as próprias mulheres, e as feministas, situaram-se com relação à definição que
lhes era imposta? As pioneiras, estas,E!,.ulh~res"exceI?cionai( q~e deslocavam as
front~iras, deviam s$.mp-.r~~enfre.nta[Jn.Qhridualm..s!lte a s.~geita q1JehP~àva so-
6:r~a ~~l.n_ilidade~_seiia~~las ~~alment~ mt;l~ere~:~elas ~~ do'
domínio de influência de seu sexo? Os casos das mulheres autoras do século 19- ----- --é exemplar, a este respeito (PLANTÉ, 1989) e sobretudo o caso de George Sand,
até em suas hesitações. Aquela que Flaubert dizia ser "o único grande homem
do século", fazendo a hipótese de que ela poderia ser do "terceiro sexo", tergiver-:
\ sava. Às vezes, ela reivindicava sua feminilidade e a sua maternidade, da qual ela
fazia a sua felicidad~ e sua glória, vendo nelas a ancoragem, e até mesmo <? des-
tino de todas as mulheres ... Outras vezes, ela a recusava energicamente, denun-
ciando a escravidão das mulheres, selada pelo casamento, màrca de um patriar-
cado que, a seusolhos, tornava presentemente impossível o acesso à cidadania
política: donde sua severa.recusa da ~andidattira que as mulheres lhe ofereciam
em 1848. Sand aceitava o sexo, cuja diferença ela chegava às vezes a negar: "Exis-
473
Parte 5
Debates
te apenas um sexo: Um homem e uma mulher, são tanto a mesma coisa, que
não se pode compreender as inúmeras distinções e raciocínios sutis de que se
alimentaram as sociedades sobre este capítulo". Mas recusava o gênero tal qual
o seu tempo o definia. Éla reivindicava a liberdade da escolha individual, mas /
ficava surda à consciência de gênero pois também,o contestava."
'',Çonsciência de gênero": esta.no~ão foi §lJlup~jª,k,'i9hJ;ctlJ.d,Q,.p,Q.rEleni
Va..!ika!,a re~eito das mulheres gregas do século 19 Ili;lIA..de&ignaro...§entÍmen-
te de uma similaridade de condi~ão ede destino expresso por.um "nós, as mu-
J ••••••• ..,..,., _ d (.. "
eres" que pode tanto ser-o. prelúdio oe um feminismo ardentemente iguali-
tá,tio, >quanto ancorar as ~u eres na acel aç'!2,. e SJlfJ jrcedmí,«,l .diferençil
(VARlKAS, 1988). De fato, 'esta "consciênciade gênero" se articula freqüente-
m~e::n-;:te:>;à;i::ne:':':la~m,I""i'~m~a:"':':':su:7p::::er~i~oridãde'"das~lli~-:;;mogerentes da"'fumília,
.- .••• ;IoOoo'~_~''''--_ """'''_ ~ "'.••••~~. ~ " J 1 •.••••
férmento d~.~~~~::..~.e~~~~p~l!.2~.ma!es ~~.~t~!2..sv.Ç.~",,~QJ11entf ,"Y!ll
grande lar': t\:omo diziam 9,u••a§e..nos.JB~&m@s"t0Fm0s-Jeaa...I2.eJ;Qju.~..I:!!JPertine
Àudert par~ apoiar sua reivindicação ao direito de sufrágio, e até mesmo como'
SalVação do mundo. As saint-simonisras usavam às vezes esta linguagem, como
as mulheres cristãs, descritas por Bonnie Smith ou ainda uma Louise Kopp,
arauto dâJnaternidade redentora." Sobre esta questão, os feminismos estão di-
vididos. Eles oscilam da extrema virilidade - Madeleine Pelletier deplora esta
catástrofe de se~ uma mulher e se torna apóstola da "virilização das mulhe-
res?" - à extrema feminilidade. Esta feminilidade podendo ,ser a maternidade
(cf. Louise Kopp; nos dias de hoje, Antoinette Fouque), o celibato e até mesmo>
a virgindade, última muralha contra a dominação masculina (cf. Arria Lyys
e/ou o homossexualismo. Compreende-se bem como o homossexualismo,
tanto masculino quanto feminino, encontra sua primeira fo;ça em uma vigo-
rosa afirmação identitária. "Enquanto o tema da emancipação heterossexual
\ . /
"
75 Sobre Sand e a questão da identidade de sexo, cf. Mozet (1994, p. 219-269); MireiUe
J3ossis,a'presentação de Le Dernier Amour (1866) (1991); a autora fala de uma "he-
sitação sexual que sempre existiu para Sand". Em último lugar, Ozouf (1995).
76 Sobre Ieanne Deroin, cf Riot-Sarcey (1994); sobre Hubertine AucIert e Louise
Kopp, cf. Klejman e Rochefort (1989) e Ozouf (1995).
77 Sobre a "crise identitária" das feministas do entregiierras, cf. Bard (1995), sobre
Madeleine Pelletier; cf. Bard (1992), Maignien e Sowerwine (1992).
78 Sobre Arria Ly, cf Klejman-Rochefort (1989) e Bard (1995).
474
Capítulo 21
Identidade, igualdade, dif~rença: o olhar da História
está freqüentemente ligado à indiferenciaçãô dos papéis masculinos e femini-
nos, a emancipação homossexual passa atualmente por uma fase de definição
muito estrita da identidade masculina", escrevia Michaêl Pollak (POLLAK,
1982). Ele poderia ter dÚ~ "femiÍúna" se a homossexualidade não tivesse sido
pensada mais geralmente como androcêntrica:
. Estas 'estratégias identitárias mostram-se às vezes muito limitantes e
, tornam difícil a afirmação de uma subjetividade. Como dizer "eu:' !!9juterior
do "h?(? Como reivindicar uma diferença na identidadej Este é o .rroble~a
de Sand, de Virginia WQolf ou de Simone de-Beauvoir,
, Mas esta "consciência de gênero"'põde també~ desembocar - e efetiva-,
mente desembocou - na análise da desigualdade. Ela funda a reivindicação an-
glo-saxã da cidadania que se apóia no direito das mulheres a serem represen-
tadas enquanto tais, em nome de sua especificidade, argumento usado por
Iohn Stuart Mill, Hellen Taylor e Mrs Fawcett (ROSANVALLON, 1992).
É então que a questão da identidade cruza as questões - muito ligadas -
da desigualdade e·da diferença que, por falta de tempo, eu .tratarei ainda mais
"sucintamente.
-/
DA IGUALDADE E DA DIFE~ENÇA
ENTRE OS SEXOS
A diferença entre os sexos aparece, ao olhar dos antropólogos, como o
princípio organizador das sociedades. As obras respectivas de Claude Lévy-
Strauss e de Françoise Héritier-são fundamentais sobre esta questão. A última
concluía a apresentação que fizera no Beaubourg, no contexto do ciclo orga-
'nizado, há três anos, sobre "a diferença entre ps sexos", com esta simples afir-
maçã~: "Uma sociedade sem diferença entre 'os sexos é inconcebível". Para
Claudé Lévy-Strauss, esta diferença é inerente ao próprio pensamento: éuma
,.- estrutura cognitiva que gere os sistemas simbólicos e ~s categorias de língua-
gemo O que permite compreender o interesse dedicado, nos dias de hoje, por.
certas feministas americanas à desconstrução da, linguagem, O famoso lingais-
tic turn de uma Ioan W. Scott por exemplo.
\ Esta diferença implica necessariamente em desigualdade? Em princípio
não. Mas na prática, antropólogos e historiadores concluem pela afirmativa.
475
'\ Parte 5
Debates
....
\
Suas explorações espaciais ou temporais, i,ndígenas ou exóticas, mostram-lhes
apenas dominação masculina: dominaçãodos sistemas de valor e de represen-
tações, dominação mais complexa das práticas e de sua classificação: do ideal
e do real. As historiadoras, por sua vez, esqueceram das teses do.matriarcado
original e desconstruíram as antigas 'mitologias das mulheres no poder (como "
as amazonas).
Quatro campos poderiam ser historicamente analisados e o, foram, em
grande parte. Prifueiram~IJ.!.e, a ...a€á11sê~dojt~~eo~: di.ar8ll.;;Fioi~~1ii re-
~tações da desigualda.:2e..;r=vezes ela é franca e maciça, afirrnaçãotran-
~üila de uma evidência desejada por Deus, ditada pela Natureza e, ainda por
cima, necessária à vida familiar e social. Deus, a Natureza e a Sociedade, eis a
Trindade da diferença entre os sexos. Por outras vezes, ela se enuncia de forma
velada. Na época moderna, ela se apóia sobre o duplo argumento da biologia
-,
e da utilidade social, como vimos. Ou ainda ela se enrola no discurso consen-
sual mais "soft" dos tempos contemporâneos, .ritmado pela doçura um tanto
idílica da complementaridade, ou do leitmotiv da "igualdade na diferença': "
cara 'a<;>sdemocratas do século 19,-de Paris a Atenas: de Michelet a Grigorias
Papadopoulos, arauto dest,!, completude feliz em seu livro intitulado Ia Fem-
me grecque (1866), em que se torna apóstolo de uma nova educação, capaz de
produzir cidadãs esclarecidas e "companheiras inteligentes': como desejavam
igualmente os relatores da lei Camille Sée que, em 1880, funda na França o en-
;
sino secundário das moças. Esta preocupação com uma nova forma de troca
conjugal, em que, a palavra e o diálogo encontrariam um lugar, culmina no
. I ,
"amor fusional" que freqüentemente se reduz à absorção da esposa pelo mari-
c-. do, transformado, segundo o desejo de Michelet, em seu 'único confidente,
substituto do confessor, A modernidade do casal repousa sobre a representa-
ção de uma cornplementaridade sexual fortemente identitária.
Segundo conjuntode pesquisas: a análise das práticas orgariizadoras da
desigualdade. Sublinharemos aqui a extrema importância do Direito. Yan Tho-
mas mostrou minuciosamente como operara, a este respeito, o Direito Roma-
no, em um estudo que constitui um modelo metodológico (HDFO, I, p. 103-
159) . .Oscostumes do Antigo Regime haviam sido revisitados por Iosyane
Moutet, em um trabalho que continuou inédito. O Código Civil, est~ bíblia da
desigualdade sexual contemporânea, foi q obje,to de numerosos estudos (AR-
NAUD-DUC, HDFO, IV, p. 87-120; THÉRY; BIET, 1989).
476 477
'\
Capitulo 21
Identidade, igualdade; diferença: o olhar da Hist6ria,
"
Isto explica a sensibilidade jurídica das mulheres e das feministas e a
freqüência do recurso individual aos tribunais (CLAVERIE; LAMAISON,
1982) e do recurso coletivo à lei ou da luta por ou contra a lei. Se acreditarmos
nos resultados de uma pesquisa de opinião, efetuada pelo Ministério dos Ne-
gócios Sociais por ocasião de um dia 8 de março, esta sensibilidade parece um
tanto enfraquecida pois, contra 6% das mulheres interrogadas que viam na vo-
tação de novas leis a chav'e de uma melhor organizaçãó"homens/rriulheres",
'perto de 80% invocam "a evolução das mentalidades". Indício, talvez, de um
certo desencorajamento diante da falta de efetividade das leis e da persistência
da diaância entre Direit~e situação de fato. ,',
Estas situações devem também ser cuidadosamente decodificadas e os
estudos de setores ou de casos revelam-se, aqui, muito eficazes. Citarei como
particularmente significativos e' relativap1ente bem visitados, tanto .pelos his-
toriadores quanto pelos sociólogos, a divisão sexual do-trabalho, a educação, a
prostituição.
Sobre a divisão sexual do trabalho, dispõe-se de uni grande número de
estudos, quantitativos (críticas dos -recenseamentos, pôr exemplo, como pro-
dutores da diferença entre os sexos) e qualitativos, globais e setoriais, sobre a
indústria sobretudo, mas também sobre os serviços. Domésticas, enfermeiras,
professoras foram objeto de numerosas monografias. Em uma tese recente,
<Delphine Gardey (1995;) estudou o "mundo dos empregados de escritório .no
século 20" sob o Crivo do gender, -cornparandó sistematicamente as posições,
carreiras e compqrtamentos profissionais dos homens e das mulheres ocupa-
dos em um mesmo local de empregos. Estes estudos permiti~am compreender
melhor os mecanismos de constituição das profissões chamadas de "femini-
nas", quase sempre desvalorizadas tanto em prestígio quanto no salário: a insi-
, ,
diosa questão das qualidades "inatas" que disfarça as qualificações adquiridas,
I mas, conseqü~ntemente menos remuneradas por não serem aprendidas; a
concentração das mulheres em um pequeno número de empregos apesar da
abertura de todos, a princípio: a distância persis~ente entre o nível de forma-
ção e de realização profissional, as moças antecipando geralmente as dificulda-.
des que as esperavam e, conseqüentemente; limitando suas ambições (DURU-
BELLAT, 1989).~ como hoje, parece impossív!L~.sr.~rar trabalho
e família no que se refere às m~~:-ãirulg..q~~ntrada1.por inteiro, no
assaíãriaID"e;ito seja at~almerite ~~ fato consumado. Por outro lado, somos le-
1"""-- .• "" ••-- .....•••.•......._~
'.
Parte 5
Debates
1·
, vadosa considerar mais os elementos simbóli,c?s E.~~.!SU:~,s. deJ~E.~ígio,
-dé-ãparência, de diStinção, ae representação de si são extremamente importan-
_. t GoQt.. I
tes em nossas socIedades da imagem e da comunic~ç~illm...Q",~ pode
"ruzer é que, sob este ângulo, as relações do masculino e dq..f~.m.inino conti-
nuaill' a seraisêríminatQiias.· • •• ._- - ~ I
- terceiro eixo çlucflt:~Ji9.:..q,.Qgis fOl;Ç-UD~tu..de!h= jndixid.uais...e..coleti-
~ va§..;;:...qas_lllu.1bsre.ÚedosJl.<wLm$•..t2.I.!!&W!...di'!..Qt~~desig.uüd~que elas
tjyeram que enfrentar e que teciam sua vida c<?lid~an..a?A abordagem biográfi-
ca, tanto das mulheres "excepcionais" quanto das mulheres comuns, na totali-
\ ,
. dade de seus percursos, ou em outro segmento de existência, e até mesmo na
fugacidade de uma circunstância ou de um instante.permíre apreender a for-
" .
. ça da resistência ou do desejo pelo qual uma mulher se afirma como sujeito e
reivindica o direito de escolher seu destino. Narrativas das autobiografias ou
da pesquisa oral, fragmentos de vida entregues pelos arquivos judiciários, tais
como os coletados por Anne-Marie Sohn, abrem aqui as portas do quarto fe-
chado, do íntimoedo foro íntimo, refúgio das mulheres.
No nível coletivo, o feminismo, em sua pluralidade, foi um agente mui-
to ativo das lutas pela igualdade. É,um dos capítulos mais recheados da histó-
ria recentemente escrita por jovens historiadoras: Michêle Riot-Sarcey, Lau-
rence Klejman e Florence Rochefort, Christine Bard, Françoise Picq e logo
Sylvie Chaperon." Elas exploraram arquivos e bibliotecas, examinaram corres-
pondências e órgãos de uma imprensa sincopada mas densa, e assim, deram
novamente um lugar a este ator esquecido, freqüentemente pelas próprias mu-
lheres, sempre ameaça das pela amnésia, forma insidiosa da negação. Não é
mais-possível, a partir da contribuição'destes trabalhos, falar em "fraqueza do
feminismo francês': sem negar, com isso, a sua especifi~idade. É importante,
em contrapartida, que se questione a modulação do tema "igualdade/diferen-
ça" na argumentação feminina e feminista. Do lado das mulheres, os dez retra-
tos firmemente desenhados por Mona Ozouf (1995) mostram a diversidade
das percepções e das posições, Do lado dos' feminismos, o mesmo ocorre. As-
---------------------,
79 Eu citei a maioria destes trabalhos, Além deles, Picq (1993), Sylvie Chaperon
defendeu sua tese sobre a história do feminismo na França, 1945-1968, Dispomos,
assim, de uma história inteiramente renovada do feminismo das origens ,\OS nos-
sos dias. É o Segundo Império que deveríamos revisitar agora.
478
Capítulo 2/
Identidade, igualdade, diferença: O olhar da Histôria
sim, tratando-se do direito'de voto,o feminismo anglo-saxão, que instrumen-
\ '
taliza a diferença para obter ~ repre~entação da mulheres enquanto sexo, foi
oposto ao feminismo francês, que se demarcava ~ouco da lógica individualis-
ta em ação em nossa democracia (ROSANVALLON, 1992). Tese geralmente'
contestada, mas reforçada pelo recente "ensaio" d~ Mona Ozouf sobre a singu-
laridade francesa, e que, em todo o c~so, merece reflexão, nupt momento em
que a paridade se impõe corno uma reivindicação de ponta. Paridade, em
nome de quê? Da equidade individual? Ou da diferença entre os sexos?
Último campo.venfirn, que requer uma atenção particular: os desloca-
mento fronteiriços da desigualdade, as incessantes decomposições e recompo-r .
sições das partilhas entre os dois sexos em todos-os setores do emprego, da
criação, bem como do cotidiano; os bastiões da resistência masculina ou as
águas estagnadas da indiferença feminina. Do d~méstico (KAUFMAN, 1992)
ao político, do amoroso ao religioso, existem zonas opacas, cristais duros que
correspondem a crispações de poder. O político, na França, ainda mais do que
em outros lugares - e eis mais uma "singularidade francesa" - constitui um
destes nós em que perdura uma desigualdade que pretende s'ejustificar pela di-. .
ferença entre os sexos - uma diferença freqüentemente consentida: mas, o quê
vale esta aquiescência? (MATHIEU, 1985). É uma questão que seguramente se:
coloca para todos, mas particularmente para as mulheres, em razão da própria
desi~aldade entre os sexos. '
Para acabar, eu direi algumas palavras somente sobre este tema da "di-
ferença entre os sexos" que nos reteve durante todo um ano no Beaubourg,
Quais foram. os momentos, os lugares, os meios ... de consciência da diferença
na dialética do Gênero? Dos tempos históricos, eu já falei: há conjunturas de
diferenciação acentuada - as crises e ainda mais as guerras - e outra~ propícias
à indiferenciação identitária, Do mesmo. modo como localizamos momentos
existenciais fortes - como a adolescência - da tomada de consciência identitá-
ria cujas formas são em geral estreitamente culturais.
O feminismo não pode escapar destes ritmos e ele oscila constante-
. . )
mente entre os pólos da diferenciação e da indiferenciação. Foi assim no pas-
sado. Continua a ser da mesma forma hoje. Forte afirmação da diferença?
Esta foi a arma do feminismo radical da década de 1970, o feminismo do gru-
po Psych et Po (da psicologia e da política) e de Antoinette Fouque 'que, na
verdade, recusava entãoaprópria palavra "feminismo" corno produto perver-
\ .
\.
479
\
Parte 5
Debates
so da dominação masculina. Foi - provavelmente ainda seja - o momento do
feminismo lésbico, bem como das homossexualidades em geral, ao menos em
seu período de afirmação e de reconhecimento público (HDFO, V, p. 24~-
275). O feminismo culturalista dos anos 80, na Itália sobretudo, inspirava-se
amplamente nesta posição, brilhantemente representada na França, ainda que
de maneira bastante marginal, pela criação literária (Hélene Cixous; Monica
Wittig) e pela pesquisa analítica e psicanalítica de Luce Irigaray. Se esta cor-
rente está, entre nós, talvez provisoriamente enfraquecida, observa-se atual-
mente uma volta para ela nos Estados Unidos, através das posições de uma. ,
Catherine MacKinon, ou das publicações como Difference. A Journal of Femi-
nist/Cultural Studies (CO LLIN, 1992).
Indiferencia~ã,o? É a análise e a prospectivà - e talvez o desejo - de uma
ÊlizabethBadinter, notadamente em sua última obra ,(BADINTER, 1990) e,
mais amplamente, daquelas e daqueles que temem as armadilhas atribuídas
, . /
tanto ~uanto os constrangimentos dos comunitarismos, quaisquer que sejam;
e que preferem o livre percurso dos indivíduos através dos jogos infinitos do
sexo e das combinações sutis do gênero. Indiferenciação pode' ser mais difícil
, 'I
de viver em sua própria indecisão, temida, de qualquer forma, pelo poder e so-,
br~tudo pela parte masculina do poder, que é importunada pelo temor .da in-
\ ~,
diferenciação, mais difícil de, delimitar e de classificar, e então, de governar.
A afirmação' da diferença e logo, da identidade é, para os indivíduos,
uma arma geralmente necessária. Seria ela, por esta razão, um objetivo? Eis o
(
que resta a demonstrar.
Temos do que alimentar, conseqüentemente, nossa reflexão e nosso
debate. J
480 /
481
"
\
Capítulo 22
UMA HISTÓRIA SEM AFRONTAMENTOS*
"
o livro de Mona Ozouf é, de certa forma, um acontecimento. Que 'uma
historiadora com sua notoriedade e seu talento tenha levado a sério as "pala-
vras dás mulheres", tão freqüentem ente minoradas, que ela tenha comunicado
\ a um vasto público experiências e' figuras pouco conhecidas, e que.rem segui-
da, Le Débat abra a discussão sobre a "singularidade francesa" em matéria de
relações entre os sexos, eis vários motivos, existenciais e historiográficos, para
nos regozijarmos. ' _
Adiscussão para a qual ele nos convida nem por isso é mais fácil. Inicial-
mente, em função da própria estrutura do livro, que justapõe, em vez de mis-
turá-Ios, dois pedaços muito diferentes, em seu conteúdo e em sua, fabricação.
Por um lado, uma guirlanda de retratos sabiamente traçada, que se tem vonta- .
de de degustar como se faz com um buquê colorido e perfumado. Por outro
(
lado, um texto mais polêmico, cujas referências escolhidas de maneira um tan-
. to arbitrária em um oceano de publicações na verdade desencorajador, apóiam
a íntima convicção da autora mais do que a sua demonstração. As~damas" apa-
recem apenas como comparsas,citadas para comparecer a julgamento. Podería-
mos, de resto, tirar de suas vicissitudes um comentário inverso, insistir em suas
dificuldades tanto públicas quanto privadas e pergUntarmo-nos se sua manei-
ra "oblíqua" (uma palavra de que a autora gosta muito) de abordar o outro sexo
não vem mais da altura dos obstáculos encontrados do que da plasticidade da, , '"
,. Une histoire sans affrontements.ln: Femmes: une singularité française? Le Débat,
. 87, p. i30-134, nov.!déc. 1995. Uma história sem afrontamentos.
r
Parte 5
Debates
, (
sociedade francesa. Em suma: a coerência das duas partes não é evidente e con-
tribui para a impressão de colagem de camadas que nos dáa segunda parte. Po-
demos aliás nos perguntar porque Mona Ozouf escolheu este procedimento e
)
este estilo. Esta passagem tão perigosa do.muito particular ao muito gerali Este
. uso agradável e perturbador da graça, como se, além 40 princípio do prazer es-
tivesse a aparência obrigatória da.feminilidade ou, ao menos do que chamamos
/
de feminilidade? Neste livro flutua uma espéci~ de perfume de mulher, feito de
fragrâncias misturadas do pintor e de seus modelos. /
Mas o que é, então, esta "singularidade francesa", objeto central do li-
.vro, ao menos de sua segunda parte? Após as campanhas pelà "paridade" (pa-
lavra e noção que a autora rejeita) que acompanha~am as recentes campanhas
eleitorais, poderíamos pensar espontaneamente no contraste muito francês
que opõe ,o universalismo ~roclama~o dos direitos do homem e sua concep-
ção muito masculina, sobretudo em matéria de política. Não teria sido neces-
sário esperar 1945 - há cinqüenta anos - para que as mulheres votassem pela
primeira vez? E sua representação não continuaria a ser, nos dias de hoje, urna
-das mais fracas da Europa tanto no nível legislativó quanto no executivo (à
despeito dos esforços recentes)? A França, a "lanterninha" da cidadania este-
ve no centro da reflexão feminista mais constante." E não foram somente as~ . .
feministas ra?icais a terem mostrado o lado mistfficador do universal (p.
386). Este_é, ao contrário, um ponto que fez a quase unanimidade das diver-
sas correntes.
Mas Mona Ozouf não o considera assim. Ela vê, ao contrário, nesta ex-
clusão, uma prova suplementar da "mestiçagem" própria às relações entre os -
sexos em nossa sociedade. "É o radicalismodas concepções francesas e não a
sua timidez que explica o atraso em matéria de sufrágio feminino" (p. 377). A
"singularidade francesa" reside na natureza eno estilo das relações mantidas
por homens e mulheres: relações sem agressividade, que' se baseiam mais na L
80 MOSSUZ-LAVAU, [anine; SINEAU, Mariette. Enquête sur lesfemmes et Ia politique
en France. Paris: PUF, 1983; FRAlSSE, Genevieve. Muse de Ia Raison. La démocratie
exclusive ou Ia différence des sexes. Aix-en-Provence: Alinéa, 1989; e sobretudo:
Quand gouverner n'est pas représenter. Esprit, p. 103-104, mars/avrilI994, retoma-
do em Muse de Ia raison, Paris, Gallimard, nova edição, 1995. Cf também o livro
fundamental de ROSANVALLON, P. Le Sacre du citoyen. Histoire du suffrage uni-
versei en France. Paris: Gallimard, 1992.
482
483
)
Capitulo 22
Uma história sem afrontamentos
troca do que no afrontamento e em um cará~er misto persistente e equilibra-
do ..Entre nós, não há conflitos frontais, mas encontros corteses, lutas "oblí-
quas", partilhas alegremente assumidas. Nada (ou pouco) de feminismo iden-
titário e piferencialista; na verdade, apenas um feminismo. As mulheres reivin-
dicam pouco: elas se acomodam. Por um lado, porque elas são relativamente
. I
iguais, pois o público e o privado continuam menos separados que em-outros
lugares (na Grã-Bretanha, por exemplo) e mais permeáveis. Por -outro lado,
porque elas se satisfazem com o que têm (se não têm o podêr, têm ao menos a
I r ~
"força", como diria Michelet) e consentem nos papéis que lhe são atribuídos.
, . .\ "
Assim" não desejam ardentemente a coisa pública e não lutaram realmente
pelo direito ao sufrágio. Hubertine Auclert é um~ exceção descoberta quase
com surpresa por-Mona Ozouf, que faz dela um excelente retrato ainda que
isolado das correntes que a sustentam. A'Smulheres gostam de uma feminili-
dade1complementar e sentem-se bem com ela, e fazem do privado o verdadei-
\
ro lugar da felicidade. A felicidade, "minha única questão", dizia Simone de
Beauvoir em um coro onde havia poucas exceções: Sand, nas intermitências de
sua inquietação social- "Eu me preocupo em ser feliz", diz ela então, exemplo
, desta consciência da miséria do mundo que fundará tantos engajamentos; Si-
mone Weil, quase sempre, salvo nos raros momentos furtados de gozo estéti-
co. Em matéria de igualdade, as mulheres preferem o status de indivíduos à'
aparência de gênero. A heterossexualidade - a norma - modela-as mais do que
I ,I J
uma homossexualidade quase.invisível,"
~'Arazão desta estranha rnestiçagem deve ser procurada junto ao regi-
me político", escreve Mona Ozouf, que lhe atribui assim um papel sobredeter-
minante. Inicialmente, há o legado de uma.sociedade de Corte e sobretudo
desta requintada civilidade dos salões das Luzes' onde, nos jogos de conversa-
ção," esboçava-se uni diálogo quase igualitário. Ora, apesar do desapareci-
mento dos salões, deplorado por Madame de Staél, esta forma de sociabilida-
. . ~ -
81 A este respeito, cf. a reedição do livro pioneiro de BONNET, Marie-]o. Les Rélations '
amoureuses entre les femme5'. Paris: Odile Íacob, 199;;, retomada e acrescentada em
Un choix sans équivoque. Paris: Denoél, 1981. Ela observa, com toda a razão, que a
_ invisibilidade está ligada ao silêncio; um silêncio que a história das mulheres, tal
como se desenvolveu nos vinte últimos anos, não soube dissipar,
82 FUMAROLI, Marc. La conversation. ln: Les Lieux de méinoire. Sous Ia direction de
Pierre Nora. Paris: Gallimard, 1992. t. III: Les France, v. 2: Traditions, p. 678-744.
Parte 5
Debates
" .
de do Antigo Regime persistiu mais do que se Imagina e, com ela, esta influên-
cia das mulheres condenada pelos revolucionários e, mais tarde, por Guizot e
pelos republicanos. A Revolução, a despeito desua virilidade explícita, intro-
duz as potencialidades da igualdade, em uma universalidade cujo caráter de
inclusão é sublinhado por Mona Ozouf: "Em matería de igualdade dos. sexos,-,
. ou simplesmente de relação entre os sexos, sim a Revolução mudou tudo" (p.
351). Sem dúvida, ela começa por excluir as mulheres, mas com a idéia de que
é provisório - "as mulheres, no seu estado atual", dizia prudentemente Sieyes
"ao colocá-Ias global~ente entre os cidadaos passivos - e que "um dia virá".
Neste dia, foram a República e o advento da escola laica que trabalharam, len-
tamente mas. com segurança, pela igualdade dos sexos. Pouco importa 'que os
meninos e as meninas estejam materialmente separados; o que conta é o ca-
ráter profundamente misto dos p~ogramas (o ensino doméstico, do qual
zomba alegremente A Ingênua Libertina de Colette, tem pouca consistência),
\
a fi&ura pioneira da professora primária, identidade profissional sonhada pe~ '
Ias moças do poyo, e a figura do casal de professores, vanguarda do casal ideal
do assalariamento mod~rno. Desta forma, a monarquia republicana à moda,'
francesa, que multiplica as oportunidades para as mulheres 'e, de maneira ge-
. ral o Estado e.o individu~lismo que acentuam 'a indiferenciação em marcha
em todos os movimentos de democratização, foram os principais fatores de
. nossa "singularidade", condensado harmonioso de civilidade do Antigo Regi-
me e de' modernidade republicana, reforçado pela aceitação das mulheres,
convencidas da eficácia do seu caminhar igualitário. Este processo se opõe (ao
menos a autora o opõe) quase termo a termo, ao modeloamericano, gerador
de uma guerra dos sexos. Mona Ozouf teme que seu radicalismo devastador
se tenha introduzido entre nós em favor de um feminismo diferencialista, até
agora marginal. .
DOIS MODELOS ANTAGONISTAS
A demonstração de Mona Ozouf não é desprovida de uma p~netrante
sedução e, para resumir, poderíamos ser convencidos de que ela é bem funda-
da. A historicidade das relações entre os sexos, a influência sobre elas da polí-
tica, a influência do individualismo como fator explicativo da fraqueza das
484
Capítulo 22
Uma história sem afrontamentos "
identidades coletiv~s em geral'e do feminismo em particular," são elementos
cornprobatórios no diagrama de forças que eles constituem.Entretanto, ela'faz
objeções quase a cada passo. Os dois modelos antagonistas são apresentados de
maneiracaricatural, própria para reforçar os velhos clichês, e a boa consciên-, . .
. cia francesa que lhes serve de base: a doce Françà da galantaria oposta à Amé-
rica violenta e viril dos caub6is e das implacáveis Bostonian~~ que' os enfren-
tarn. Não há entre eles, nem igualdade nem concordância cronológica. De Ma-
dame du Def~and a Simone de Beauvoir, a distância já é considerável, e não fal-
ta ousadia em colocá-Ias do mesmo lado do espelho.da marquesa a Marilyn
French ou a Susan Faludi, a distância é vertiginosa e a confrontação só pode
. ser sumária e polêmica. O feminismo americano contemporâneo (trata-se so-
bretudodele) é infinitamente complexó e diverso (a autora.concorda com isso,
numa nota de rodapé) e não poderia ser reduzido a algumas citações esparsas,
.' • ,r \
mesmo que fossem de Gilligan, Paterman ou Catherine Mackinnon. Ele tem
sua lógica. Sua agressividade, real ou suposta, ~umentada a seu bel-prazer por
,um conservadorisrno profundamente misógino que fez do politically correct
um espantalho, é uma autodefesa tanto quanto uma tomada de consciência da
-, \
violência, inerente às rela~ões entre os ~exos e c~jo alvo é tão fré~üentemente o
corpo das mulheres. No que se refere as pesqUIsas sobre as mulheres, ele reve-
r lou-se de grande fecundidade, quantitativa (sobre quase todos os pontos ábor-
dados por Mona Ozouf, existem prateleiras i~teiras nas bibliotecas!) e concei-
tua!. Servindo-se, sobretudo, das ferrame~tas de Iacques Derrida e de Michel
Foucault, ele desenvolveu um pensamento crítico da diferença entre os sexos..
(cfo famoso gender) , às vezes repetitivo e certamente discutível, mas produti-. ~. . ( -'
vo e irreverente. Comouma outramaneira de colocar, as questoes., - .
PARTILHAS DO PÚBLICO E DO PRIVADO
\ t)
Esta análise, colocada em termos de poder, engloba e excede a política, tal
como-ela é comumente percebida. Ela analisa as partilhas, discursivas e práticas,
83- No mesmo sentido, cf. RÉBÉRIOUX, Madeleine.La culture au pluriel. In: Histoire
de Ia France. Les formes de Ia culture. Sous Ia direction de J. Revel et A. Burguiere.
Paris: Seuil, 1993. p. 455-516. (
485
Parte 5
Debates
487
Capitulo 22
Uma história sem afrontamentos
do público e do privado, articula repressão e produção das atitudes e dos atos,
iitterroga-se sobre as formas, individuais e coletivas, freqüentemente microscó-
picas, das resistências e sobre os mecanismos do consentimento, indispensável,. .
quando um dos protagonistas desperta ou se rebela. Georges Duby mostrou
, I
como o amor cortês .correspondia menos a uma mutação do sentimento amo-
roso do que uma tática para seduzir mulheres mais distantes. O' advento da de-
mocracia supõe ainda mais refinamento. No século 19, um duplo argumento
justifica a vocação das mulheres para o privado: o argumento danatureza bio-
I - •
lógica," mas também? da utilidade social. Por um lado a galantaria: ''A mulher
é uma escrava que se precisa saber colocar sobre o trono", diz Balzac, testemu-
nha cáustica; de outro lado, a celebração da urgência de sua missão fortalecia as
mulheres no sentimento de sua importância. Nenhum maquiavelismo em tudo
isso, mas os jogos sutis de uma interação social rica em concessões e conflitos.
Ora, a doce e agradável história que Mona Ozouf nos conta é uma his-
tória semafrontamentos, quase sem agentes. Ela tem heroínas, mas não tem
atrizes e ainda menos atores. Pois os homens estão singularmente ausentes de .
um teatro do qual, no entanto, eles detêm muitas chaves. Não conseguiríamos
terminar - e seria de pouco interesse - de declinar as formas da dependência
feminina e de sua exclusão. A exclusão política mereceria uma atenção especial
em razão de sua longevidade e de sua tenacidade excepcional, Porque os ho-
mens se agarram a este apanágio com tal energia? A tal ponto que ás mulheres
freqüenternente bateram em retirada e se desinteressaram dele. Tocqueville,
em uma carta a Madam.e 'de Swetchine, qeplorava este fato." Em suma, as es-
"feras não eram menos separadas na França do que nos Estados Unidos; mas '
elas o eram de mãneira diferente. O público era igualmente masculino, e o pri-
vado menos feminino. Assim, na casa, onde eles decidiam a organização e até
mesmo o mobiliário, os homens tinham, no século 19, muito mais lugares
próprios do que as mulheres." Por outro lado, como a sociedade era pouco
monossexual, as mulheres dispunham apenas de espaços d~ amizade ou de en-
I ,
contro. Esta carência da vida de grupo contrariava a formação de feminismos
que supõem sociabilidades prévias. No entanto, as mulheres souberam tirar
partido dos espaços que lhes eram confiados ou deixados, para dar, a si mes-
mas, prazeres próprios e cOlltrapoderes eficazes, usando suas armas para fazer
o seu lugar. É toda a história da emancipação contemporânea das mulheres.
Ninguém contestara que a' república e a democracia tenham contribuído para
isto. Mas foi preciso o imenso esforço das mulheres para-que, no jogo das in-
terações ins.taurado( esta emancipação fosse efetivàmente possível. ,
Exercendo uma pressão determinada sobre a Assembléia de Alger, em
abril de 1944, para que ela tornasse o sufrágio enfim "universal" ao concedê-lo
às mulheres, o General De Gaulle pensava (ao menos ele o diz em suas Memó-
rias) nos tumultos "sufragistas" do entreguerras, que ele consideravaincompa-
tíveis coma inodernidade.Ao mesmo tempo, ele os remetia ao esquecimento e
o feminismo francês, à sua "fraqueza" legendária. As mulheres devem tudo a seur
libertador: imagem clássica que é apenas uma forma da negação. O feminismo. ,.
não era, com certeza, o objeto deste livro. Lamentaremos, entretanto, encontrar
em seu lugar os habituais clichês. Eles não deveriam resistir, porém, aos desen-
volvimentos da historiografia recente, devidos às jovens historiadoras," Pesqui-J \
84 A este respeito, cf. a esclarecedora demonstração de LAQUEUR, Thomas. La
Fabrique du sexe. Essai sur le corps et le genre en Occident. Parisr-Gallimard, 1992
(tradução do inglês americano; 1990). ' ,
85 TOCQUEVILLE. tEuvres completes. Paris: Gallimard, 1983, t. XV, p. 292 (carta de 10
de novembro de 1$56): "Vejo um grande número, de mulheres que têm mil virtudes
privadas.nas.quais a ação direta e benfazeja da religião se faz perceber. Que, graças
a elas, são esposas-muito fiéis, excelentes mães, que se mostram justas e indulgentes
com seus empregados, caridosas para com os pobres ... Mas, quanto a esta parte dos
deveres que se relaciona com "a vida pública, elas me parecem não ter nenhuma
idéia. -Não somente elas não as praticam para si mesmas, o que é bastante natural,
mas elas não parecem nem mesmo ter o pensamento de inculcá-Ias naqueles sobre'
os quais elas têm influência. É uma face da, educação que lhes parece inevitável':
86 O que mostra precisamente ELEB, Monique. L'Invention de f'habitation moderne.
Paris, 1880-1914. Paris: .Hazan, 1995.
87 Graças a estes trabalhos, dispomos doravante de 'uma história quase contínua
destes diversos feminismos nos séculos 19 e 20: KLEJMAN, Laurence;
ROCHEFORT, F1orence. L'Égalité en marche. Le féminisme sous Ia Troisiême
Répubfique. Paris: Fondation Nationale des Sciences Politiques/Éditions des
Femmes, 1989; RlOT-SARCEY, Michele. La Démocratie à l'épreuve des femmes.
Trais figures ~ritiques du pouvoir (Eugénie Niboyet, Désirée Gu<"[ednne Derain).
Paris: Albin Michel, 1994; BARD, Christine. Les Filles de Marianne. Histoire des
féminismes, 1914-1940. Paris: Fayard, 1995; PICQ, Françoise. Histoire du M. L. F.Les
années Mouvemen,t. Paris: Senil, 1993; enquanto esperamos a publicação da tese de '
Sylvie Chaperon sobre a história dos movimentos femininos e feministas de 1945
a 1970.
486
Parte 5
Debates
MICHEL FOUCAULT E A HISTÓRIA
c
\
CaP~tulo23,
1
sando arquivos esquecidos, analisando uma impre~sa abundante, elas mostra-
ram a precocidade, a amplitude, a recorrêricia dos psotestos das feministas, a
variedade de seus modos de expressão e a extensão de suas reivindicações; suas
dificuldades também para se fazerem ouvir em um país que suporta com difi-. . \. )
culdade a palavra pública das mulheres ~ o espetáculo, de sua organização cole-
, tiva, tão contrária à sua graça. A "gentileza" das mullieres é, na França, assim
como em outros lugares - mais do que nos outros lugares? É bem possível -,
sua principal virtude, elevada-à condição de traço cult~ral nacional, / '
Daí, por um lado, talvez, o sucesso desse livro. Além de suas qualidades
intrínsecas, da beleza dos retratos cativantes, soberbamente desenhados e es-
" 'critos, ele fortalece a imagem de uma França sexualmente pacificada, onde os
homens e as mulheres, além de seus desacordos, sabem falar de amor.
/ À primeira vista, a questão das mulheres e até mesmo a da diferença en-
tre os sexos não é um preocupação inicial de Michel Foucault. História da lou-
cura ou Nascimento' da clínica não comportam quase nenhuma menção a este
respeito. Em suma, de se preocupa pouco com a sorte da mãe de Pierre Riviê-
re. No comentário sobre a confissão do parricida de olhos ruivos, fala-se sin-, ,
gularmente.pouco sobre esta mãe que ele matou e a quem René Allio atribui,
áo contrário, um lugar central no filme baseado neste caso. Interrogado a este'
réspeito por François Châtelet, Michel Foucault declara que ela é o "persona-
gem absolutamente enigmático", pois foi em torno dela que tudo se criou e não
se sabe nada dela." A I?ãe de' Pierre Riviêre representaria o enigma feminino?
Em todo caso, é interessante que esta presença/ausência represente a-primeira
aparição das mulheres na obra deMichel Foucault.
No entanto, um grande númer6 de pesquisas sobre as mulheres e a di-
, ferença entre os sexos reivindicam atualmente Michel Foucault, principalmen-
te nos Estados Unidos, onde o filósofo é lido e discutido nos Women's studies e
nos Gender studies. As feministas americanas consagraram nu~erosos estudos
ao pensamento de MichelPoucault, interrogando-se sobre o uso que elas po-
dem fazer dele. Trata-se, aliás, menos de estudos históricos do que teóricos, e~-
488
489
I
DAS MULHERES*
\
,. Micge1 Foucault et l'histoire des femrnes. In: Centre Georges Pompidou et Centre
Michel Foucault édit, Au risque de Foucault. Paris: Êditions du Centre Pompidou,
1997. p. 95-107.
88 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits.~aris: GaUimard; 1994. v. III, p. 107 (1976).
490
491
"'
Parte 5
Debates Capitulo 23
Michel Foucault e a históri~ das mulheres
-,
critos por filósofos, sociólogos ou especialistas de ciências políticas que discu- '
tem sobre a validade operatória dos conceitos 'foucaultianos. Sem pretender, de
maneira alguma, realizar um balanço destes textos, que preenchem agora di-
versas prateleiras-de bibliote~as, eu citarei Rosi Braidotti, que foi uma das pri-
meiras a'defender na França, uma tese sobre os filósofos contemporâneos -
Deleuze, Guattari, Foúcault - e a; mulheres." Sandr~ Barkty, Suzan Bordo, Ire-
ne Diamond, Nancy Hartsock, Lois Mac Này (Foucault and Feminism, 1992),
Caroline Ramazonaglu (f-!p against Foucault, 1993) e sçbretudo Iana Sawicki
(Disciplining Foucault. Feminism, Power and the Body, 1991,).
Esta última apresentou, para o colóquio Foucault dez anos depois, Orna
síntese muito clara dos principais pontos de vista, à qual eu me permito reme-
ter," A maioria das feministas critica Michel Foucault por seu andrócentrismo,
que o torna cego eo.gender. Algumas pensam que é redibitório e contamina
J
todo o seu pensamento. Elas vêem ali a marca do pensamento pós-estrutura-
lista que não se preocupa com os protagonistas e rejeita a subjetivação no pró-
prio momento em que as mulheres têm acesso aela. As outras, provavelmen-
te a maioria, consideram que este posicionam'ento não impede que, Michel
\Fo~cault tenha dado armas úteis à crítica feminista: assim, sobre o poder, o
, corpo sexual como alvo e veículo do biopoder, as estratégias de resistência ou
as tecnologias de si. Todas aderem à sua crítica ao universalismo, e, a maior
parte delas, à crítica ao essencialismo. Entretanto, a maioria hesita em segui-lo
em sua crítica às identidades sexuais. Sabe-se ,que Michel Foucault rejeitava
qualquer definição desta ordem, redutora, a seus olhos. "Não devemos excluir
a identidade se é por meio desta idenlidadUlll,e..as.-pes.soasencontram s~~
zer, mas ~ão devemos considerar esta identidade..com,O-UllJaregra ética ~ni~r-
sal" (àhrilI984')'Yi"NÓS-;omos seres únicos", diz, quase na véspera de sua mor-
t~ individualista convicto. É provável que as discussões com ele teriam se
desenvolvido em torno destas noções, e a AIOS, surgida inicialmente como um
"câncer gay" de cuja exclusividade Michel Foucault duvidava," poderia desem-
penhar, nesta dinâmica, um papel não n~gligenciável..Hipótese que não pode-'. , .
rá nunca mais ser verificada. '_
.Trata-se aí de questões t~óricas e políticas, mais do que propriamente
históricas. Mas se pode imaginar sem dificuldade, o estimulante que elas po-
dern constituir no campo da pesquisa. Numerosos estudos americanos se ins-
crevem no caminho da problemática foucaúltiana. A título de exemplo, eu ci-
tarei o belo livro de Thomas Laqueur, Making Sexo Body and Gender from the
Greeks to Freud (1990).93Conhecemos a tese do livro: a representação da dife-
, \
rença sexual deve pouco à ciência e quase tudo à política e à cultura. Ela mu-
do~ com a modernidade. Fomos de uma concepção monista (séculos 16;18)
- há apenas um gênero com dUãsmodalidades diferentes=- a uma concepção
dualista - há dois sexos, ma;culino e feminino, dotados de !ldia forte identida-
_.- •.••.-._----;--'""'------ •••• --~-------- -_.-- ..<;
de...fisica e moral. A biolqgia fornece argumentos para um discurso resoll,!!,a-
mente naturalista que pretende fundar uma estrita divisão sexual da socieda-,
de e do m~que:-emnome dautilidade sõClãI,permite delimitar as'~
feras" p~ :grivada e ancorar as Ínulh~~.m ~CQE~ dõen~'
tioS,histéricos que sedeve prõiegereê$cónder.94 .
-(- TIlp~as-La(iüeÜr, que-subIiirhã,com-razâo, a autonomia desua própria
pesquisa, cita freqüentemente Foucault, quase sempre para justificá-Io, às ve-
zes para criticá-Io.Como ele, Laqueur tem uma visão histórica do corpo, rrio-
delado pela cultura. Mais do que ele, talvez, ele insiste no impacto medido das
descobertas em matéria de fisiqlogia da reprodução que o discurso médico
agencia para 'fins além da ciência: "No fundo, a substância do discurso da di-
ferença sexual i nora o entr~ve dos fatos e continua a ser tão livre quanrotirii
jogo dointeIecto': _,
.A maneira, ao mesmo tempo simpática e distanciada,-como Thomas La-
queur fala de Michel Foucault, é um bom exemplo do tipo de influência exer-
89 Rosi Braidotti defendeu sua tese em 1978 na Universidade Paris I, diante de uma
banca composta por François Châtelet, Hélene Védrine e Michelle Perrot. Ela é
atualmente' professora na Universidade de Utrecht. Sua obra, Patterns of
Dissonance, foi publicada em Cambridge em 199L
, ,
90 Iana Sawicki, Ferninisrn and Foucau/t in North Arnerica: Convergence, Critique,
, , Possibility.
91 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. IV, p. 739, juin 1982.
92 "Um câncer gay? Seria bom demais .~,",teria ~ito Michel Foucault a Hervé Guibert.
93 LAQUEUR, Thornas, Ia Fabrique du sexe. Essai sur /e sexe et /e genre en.Occident;
Paris: Gallimard, 1992, para a edição 'francesa. "
94 Cf. Michelle Perrot, "Public, privé et rapports de sexes', a ser publicado nos anais
do colóquio, Les Rapports du public et du prive; Université de Picardie,
Parte 5
Debates Capítulo 23
Michel Foucault e a história das mulheres
cida por ele sobre a pesquisa histórica americana, fortemente atravessada pelas
problemáticas identitárias cujo vigor foi mostrado por Élizabeth Badinter," '
Mas para o próprio Michel Foucault, o que se passava? Qual foi o seu
.caminho no campo da tomada' de consciência da diferença entre os sexos ,e
eventualmente das mulheres? Tanto quanto um olhar sobre a obra, um percur-
so de Dits et éerits permite compreender as mudanças de perspectiva. Como
sempre, para este historiador do atual, duas séries de fatores se conjugam para
'favorecer o surgimento de uma nova "problematiz.açãd': fatores ligados ao
presente, essenciais para aquele que se reivindica como jornalista (a filosofia é
uma espécie de jornalismo radical)." A força de um projeto inicial já ampla-
mente contido em História da Loucura, o mais programático dos livros de Mi-
chel Foucault, é solicitada ou curvada pelos acontecimentos. Assim nasceu Vi-
\
giar e Punir, 40 encontro entre uma antiga reflexão sobre a penalidade e o apri- .r
sionamento e as, revoltas carcerárias da década de 1970.97 A Vontade de saber
(1976) se situa em uma conjuntura de/''sexo rei': contra a qual, aliás, Michel ,
~ Foucault se insurge. Mas os movimentos de liberação - das mulheres, dos gays
- parecem ter tido um impacto sobre ele, sensível em Dits et écrits. Após 1975,
o tomé m~ito mais livre. Isto está ligado, em parte, à natureza das entrevistas,
muito mais diretas. Michel Foucault é, a partir de então, freqüentemente ques-
tionado sobre a homossexualidade e não hesita em ássumir tranqüilamente a
sua, em tais circunstâncias. -,'
Não é impossível que a amplitude do questionamento sexual tenha le-
vado Michel Foucault a modificar seu projeto de história da sexualida?e que,
em 1976, parecia programado para dez anos; a quebrá-Io para extraí-lo de um
século 19 muito estreito e dar a esta reflexão uma base temporal infihitamen-te mais ampla, englobando a longa duração do espaço ocidental, em uma pers-
pectiva quase braudeliana, que rompe com a tentação microhistórica dos anos
anteriores. Tendo identificado a virada dç século 19 - a 'constituição da scien-
tia sexualis, que modifica o status da sexualidade e.o lugar do corpo na Cida-
de -, Michel Foucault procura delimitar o momento de construção e de impo-
)'
,
sição da norma conjugal heterossexual, talvez hoje em vias de desmoronamlm_
to, que ele suspeita ser' anterior ao cristianismo.
I Mas voltemos à genealogia do sexo e das mulheres na obra. É por meio
da família que as mulheres tomam pé na obra de Michel Poucault. É pela se-
xualidade que elas tomam corpo. Desde a História da loucura, Michel Foucault
, sublinha a importância crescente da família como instância de regulação da
moral e da razão. Desde o século 17, "assiste-se à grande confiscação da ética
sexual pela ~oral da família". "O amor é dessacralizado pelo contrato." As ve-
lhas formas do amor ocidental são substituídas por uma nova sensibilidade: a
sensibilidade que nasce da família e na família; ela exclui, como 'sendo da or-
dem do não razoável, tudo o que não está de acordo com a sua ordem ou com
seu interesse." Por meio de ordens reais de prisão, a família usa a polícia do rei
para fazer cessar a "desordem" que a ameaça," como mais tarde ela' se servirá
da lei de 1838 para fazer internar no asilo seus desviados e 0S que a incomo-
damo "Há, doravante, uma influência pública e instiÍucional da consciência
privada sobre a loucura.v"? A Revolução Francesa não atenua este poder fami-
liar, bem ao contrário. Ela aposta 'na família, como mostra a instauração de tri-
bunais de família. O fato de que eles tenham funcionado pouco não diminui a
força do sintoma. A família é igualmente central na reorganização das relações
entre a loucura e a razão empreendidas na Inglaterra por Tuke e por Pinel na
França, e sua libertação é um "giganteso, aprisionamento moral". No enqua-
drarnento discipli'nar descrito por Vigiar e Punir, a família é um ponto nodal
de articulação do público e do privado, dos pais e dos filhos, dos indivíduos e
do Estado.
,
Ora, as mulheres, dentro e através da família, exercem um poder disci-~--'";--- ~~
plinar maIor, e é como agentes de polí~!a_~elas surg~m, d~deõsecül0T7.
, "Já':pOãemos ouvir, escreve Foucault, as' ameaças de Madame Jouraãin: 'Vós
sois louco, meu marido, com todas as vossas fantasias [... ]. São os meus direi-
tos que eu defendo, -e eu terei comigo todas asmulheres: Esta afirmação não é
vã; a promessa será mantida; um dia a marquesa d'Espart poderá pedir a in-
95 BADINTER, Élisabeth. XY,De l'identité mdsculine. Paris: Odile Iacob, 1994.
\ ' .
96, FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. n, p. 424, 1973.
97 PERROT, Michelle. La Ieçon des ténebres. Communication au colloque de Milan,
Effeti Foucault, mai 1985, Actes n. 54, été 1986.
\
98 FOÚCAULT, Michel. Histoire de Ia folie à I'âge classique. Paris: Plon, 196L ,
99 FOUCAULT, Michel; FARGE, Arlette. Le Désordre des [arnilles, Lettres de cachet des
Archives de Ia Bastille. Paris: GaUimard: Iulliard, 1991. (Coll, Archives).
100 FOUCAULT,.Michel. Histoire de Ia folie à l'âge classique. Paris: Plon, 1961. p. 538-539.
-,
493
- 492
Parte 5
Debates Capitulo 23
Michel Foucault e a história das mulheres
terdição de seu marido somente baseada nas aparências de uma Iigaçãocon-
trária aos interesses de seu patrimônio: aos olhos da justiça, ele não teria per- l
dido a razão?":" "
Contra este poder das mães, Pierre Riviere levantou-se. Sua história é ti-
picamente uma questão de família, cuja mola essencial é c.onfli!.o entre os s~-
xos. "São a mulheres que comandam agora, diz ele para explicar seu crime. A
) força foi aviltada." Ele se apresenta como justiceiro. A.o tomar o lugar de um
, pai fraco demais a seu.~ olhos, ele quis vingar sua 'honra. Uma parte inteira de
sua confissão se intitula "As penas de meu pai". Ele descreve ali "as penas e afli-
ções que meu pai sofreu por parte de minha mãe", a própria figura da má es-
posa: perdulária, recusando o "comércio carnal" e o leito comum, controlando
as despesas de seu marido, que nã.o pode mais, "sem sua permissão, nem .rnes-
m.o beber uma quarta no domingo com seus amigos"; e além de tudo, tinha
suas próprias economias e dispunha de seus próprios bens segundo o direito
que o Código Civil lhe dava a partir de então e que leva o juiz a tomar seu par-
tido. O novo Código revogou, de fato, o costume n.orkand.o profundamente
desigual, pois as mulheres, rigorosamente subordinadas a seus irmãos e mari-
dos, só podiam herdar e gerir seus bens se fossem filhas únicas e solteiras. Si-
. tuação que a Revolução Francesa aboliu. Por isso ela é, aos olhos de Pierre, o '
mal absoluto, e seu gesto tem uma dimensão pública tanto quanto privada. Ele
'revela a centralidade da família corno instância política e a violência doconfli-
to entre .os sexos. Ele traz uma confirmação ruidosa para as teses de Michel
Foucault sobre o aumento d~ poder da família na modernidade. No entanto,
os comentários que acompanham a publicação 4.0 texto insistem relativamen-
te p.ouC.onestes aspectos.!"
O próprio Michel Foucault se interessava mais pela narrativa do crime,
cujo conteúdo etnojurídico e sexu~ ele 'sublinhará ulteriormente. .
Michel Foucault vê inicialmente as mulheres come esp.osa e mãe. Ele se .
interessa pela função materna na organização disciplinar e no" controle dos
costumes, dos espíritos e dos corpos. A,mulher é, de início, par.a ele, a enfado-
. . _J ,
101 FOUCAULT, Michel. Histoire de lafolie à [,âge classique. Paris: Plon, 1961. p. 112.
/. \
102 Moi, Pierre Riviere, ayant égorgé ma mêre, ma soeur et mon frere .... Gallimard:
) Iuíliard, 1973. (CoIL Archives).'J.-P. Peter e [eanne Favret falam da "mãe, o tirano"
e B. Barret-Kriegel analisa as relações de "regicídio-parricídio",
/
nha Madame Iourdain e a enigmática mãe de Pierre Riviere: um poder bastan-
'te temível, em suma. Em um debate dedicado ao Anti-Édipo, Michel F.oucaúlt
adere às teses de Deleuze e de Guattari: o desejo da mãe não é universal. "Por-
)que .desejaria ele a sua mãe? exclama Foucault com humor, já não é tão diver-
tido ter uma mãe?"103
Ê pela sexualidade que as mulheres vão tornar mais consistência '>econs-
-- ',-.Jtituir um .objet.o dign.o de "pr.oblématizasã.o". Em A Vontade de saber (1976),
Michel Foucault retorna ao papel central da família em um dispositivo de se-\ , .
xualidade, mas detalhando as forças que a compõem: ''A célula familiar, tal
c.om.o foi valorizada ao long9 do século 18~permitiu que'sobre as suas duas di-
mensões printipais - O eixo marid.o-mulher e O eixo pais-filhos _ se desenvol-
vam os elementos principais do dispositivo de sexualidade, o corpo feminino, ,
a precocidade infantil, a regulação d.os nascimentos, e, em menor medida, pro-
vavelmente, a especificaçã.o dos pervertidos [... ]':
A família é o cruzamento da sexualidade e da aliança. 104Neste dispositi-
vo, o corpo feminino é uma questão de poder, um lugar estratégico da esfera
privada e pública, um p.orrt(; de apoio da biõp.olítica.,A "histerizaçã.o do corpo
da mulher" é um dos quatro conjuntos estratégicos que Michel Foucault se
propõe a estudar, ''A mãe, com sua imagem em negativo, que é a mulher ner-
vosa, constitui a f.orma mais vi~ívide~tahist~r~açi.o.» Um dos primeiros per-
sonagens a ter sido "sexualizad~';--(ist.o é, sub~etid.o' ao escalpelo dà observa-
çã5-de uma ciência em f~rmaçã.o), "foi a mulher ociosa, n.o~ limites da vida
mundana, onde ela deveria sempre figurar. corno vai.o;; e dã família,-ónde lhe '.
é atribuíd.o ôm nOvO lote de .obriga~ões c.o~jugais e~ater;ais [ ... J. Ali, a hist~
rizaçfuda m~T&;r ~;c.ontra-seu ponto de áncóraie~;.los Est~ histerizaçã.o das--' --- ---.,
mUiheres "exigiu uma medicalizaçãb minuci.osa de seu c.orp.o'e de seu

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