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Guénoun, Denis - O Teatro é necessário

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Coleção Debate s
Dirigida por J. Guinsburg
Equipe de Realização - Tradução : Fdtima Saadi ; Revisão t écnica: Celina
Moreira de Mello (francês), Henriqu e Cairus (grego), Cecília Araúj o (latim);
Revisão: Saulo Alencastro c Lilian Miyoko Kurnai; Produçã o: Ricard o W. Ne-
ves c Raquel Fernandes Abranches
denis guénoun
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O TEATRO E,.
NECESSARIO?
~\l/l
~ ~ PERSPECTIVA
~I\\~
'I'íllllll. 11l origillal CIl1 francês:
I ,' tI,,:,1"'" rst -il n éccssai re?
{. ) 11177. hy 1~lilions Circé
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)
Gu éuoun, Denis, 1946· .
O teatro é necessário? 1 Denis Guénoun ; [tradução
Fálima Saadi]. - São Paulo: Perspectiva, 2004. -
(Debates; 2981dirigida por J. Guinsburg)
Título original: Le th éâtre est-il n écessaire?
Bibliografia.
ISBN 85-273-0700-6
I. AI1edramática 2. Teat ro - Filosofia I. Guinsburg, J.
11. T ítulo. 111. Série.
Para Paola
04 -5606 CDD-792 .01
índices para catálogo sistem ático:
I. Teatro : Filosofia 792 .0 I
Ilireilos reservados em língua portuguesa 11
HllI T( lRA PERSPECTIVAS.A.
Av. Brigade iro Luís Antônio, 3025
O1,10 I 000 - S;io Paulo - SI' - Brasil
'Ick-lux : (0-- 11) 3XX5-X388
www.cditornpcrxpcct iva.com.br
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SUMÁRIO
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III .~ ··'1'"... ·~· · ·E· · · · · · · ··~y ·· · ··· · 77
IV ~ ..~~~tiiiiiiI~ 95
V .,.~ ..~.$...........•...~.~~ 129
Fora do Quadro 2 153
Não haveria crise do teatro se o teatro fosse para nós,
simplesmente. "co isa do passado " I: se ele se afastasse ou
se eclipsasse irremediavelmente.
É verdade que. num certo sentido, ele encolhe e pare-
ce destinado a se extinguir. Seu público diminui . dizem as
pesquisas. Ele não fu nciona mais como centro: os poderes
dominantes n ão usam mais seu brilho para exibir-se. os-
tentar os signos de sua dom inação simbó lica e de sua he-
gemonia' , Ele ficou árfão das revoluções. Sua funç ão se
embaralho. Sobretudo, segundo a opinião corrente , os de-
safios mais arriscados da represen tação coletiva se esta-
belecem neste momento em atos narra tivos ou f igurativos
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I. Hegel. Cours d 'esthétique l, tradução de J.-P. Lefebrcc V.Von Schenck ,
Aubicr, 1995. p, 18. (Em português: Curso de Est ética , tradução de Marco
Aurél io Werlc, São Paulo. Edusp, 1999),
2. J.-M. Apostolides. Le roi-machine. Spectacle et politique au temp s de
Louis X/V. Minuit , 1981. (Em português: O Rei -Máquin a: Espet úcuto e PIlIí-
tica 110 Tempo de Luís XIV , trad ução de Cláudi o César Santoro, Rio de Janei-
ro! Brasíli a. José OlympiolEd . UnB. 1993 ).
11
que CUI /JII I TWU o teatro para as margens: cinema, televisão.
Tudo deveria nos levar a considerá-lo uni artesanato supe -
rado, uma peça de museu, vestígio de 1111/ mundo ultra-
pas sado.
Ora , o tempo desta retração é também o tempo em qu e
o teatro se amplia, prolifera, ganha espaço em toda parte.
Na Fran ça , os teatros públicos, cujo n úmero aumentou
bastante e cuja geog raf ia se ampliou a ponto de co brir
quase todo o território, es tão tomados , sitiado s, por "com-
panhias " qlle se multipl icam de fo rma explos iva: elas exis-
tem aos milhares, hoj e em dia. Participcnn destes grupos,
maiores ou me nores, legiões de aspi rant es à vida teatra l.
Nada indica, apesar dos sonhos das au torida des , qu e es ta
proliferação vá estancar. Pelo contrário : a cada an o, acres-
centam-se a es tas companhias multidões de j ovens qu e se
ins cre vem em cursos de arte dramática, aulas de teatro
ofere cidas em toda parte 1/0 âmbito do ensino secund ário
e fac uldades de teatro que tnob ilizant 11m n úmero cresce n-
te de profi ssionais. A sin gul aridade do que poderia pa ssar
po r um I /O VO ama dorismo é ev ide nte; no pólo oposto, a
aspiração in tratável destes j ovens entusiasmados à quali-
ficação "profissiona l", qu e denota simples me nte seu dese-
jo ardente de vive r o teatro, de vive r de teatro: de f azer do
teatro o centro de suas vidas e inscreve r es te entus iasmo
no princípio de sua exi stência social. Mas em volta destes
exércitos de voluntá rios é preciso ainda localizar as múlti-
plas extensões da atividade dramática nos lugares mais
diversos: prisões, hospitais, escolas , claro, e, hoje, os bair-
ros dito s "e m si tuação de risco soc ial " ou conf lag rados.
São luga res qu e, há algum an os, teriam atraído a ate nção
da militân cia pol ítica e que hoj e são tomados pela no va
moda . A eles é preciso ainda acrescenta r, last bu t not least ,
o tea tro amador, persistent e ou niutante, em suas fo rmas
tradi cionais ou modernizadas.
A crise do teatro procede, exatame nte, do encontro en-
tre estas du as din âmicas contrárias. Por si só , o enf raque-
c imento d o te atro não ex p lic a ria a c rise: o re cuo, o
abatulono 1/(/0 chegam a constituir uma crise . É preciso a
viol ênc ia da tensão entre movimentos contrários. Ora , há
12
uma crise declarada', Porqu e o teatro, em suas fo rmas es -
tab elecidas, não encontra nenhum recurso para responder
à necess idade de teat ro que a vida coletiva produz de f orma
t ão intensa. O teatro convencional bus ca heroicam ente es-
pectadores que escasseiam e, ao mesm o tempo, está atra-
vancado por hordas de candidatos que batem às suas portas.
É ev idente que estas duas tend ências praticamente não se
cruzam: o crescime nto vertiginoso do número de atores po-
tenciais não produz uma amplia ç ão conco mitante do p úbli-
co, ass im como a rarefa ção do público não acarreta a queda
na [ reqiiência aos cursos e ofi cinas. Qualquer análise da
crise do teatro que só leve em conta um destes dois elemen-
tos perde de vista seu obje to e se condena à cegueira e à
impotência: quer se busque um diagnóstico em term os sim-
plesm ente art ísticos ou culturais (disposiç ão dos espectado-
res, crítica ao repertório, crise das instituições] ou em termos
soc iológicos (ne cessidades deformação, redes edu caciona is).
A crise do teatro tem que ser compreendida a partir do elo
que estas duas sé ries de faro s heterogêneos estabelece m en-
tre si. A confusão das "instituições " nada seria sem o surgi-
mento de contra- legi timidades proliferant es qu e as cercam
e as perseguem. Enquanto este outro teatro, d ifuso e l âbil,
se ref ere, por mimetismo ou rejeição , ao modo de produção
dominante na vida teatral instituida. Sobretudo - sim, sobre-
tudo, porque é aí qlle a f erida supura - o congelamento esté-
tico e moral 110 qual o teatro está encerrado, sua impotência
f ormal, a esterilidade de seus conte údos, a letargia que o en-
torpece, pondo em risco todos os que o servem, não podem
ser pensados, nem, por conseg uinte, afa stados, sem que se
apreendam em conjunto os dois lados do prob lema, 0 .1' dois
componentes da crise e o sis tema de cr ise que os mantém
unidos.
3. Em junho de 1966. aconteceu em Saim-Eticnne c no Loire um primeiro
Fórum do Teatro Europeu, organizado por iniciativa do Centre Drnmariquc
National. Quase todas as comunicações mencionaram uma situação de crise
institucional ou est ética. Nas apresentações de J. De Decker (Bélgica), J. Gie-
dris (Lituânia), T. Kubinowski (Polônia), M. Pcrcz Coteri llo (Espanha), O. Ponte
di Pino (Inilia), T. Proskournikovu(Rússia), L. Ring (Suécia), R. Zahnd (Suíça
romanda) lorum rratudos fen ômenos relacionados aos que aqui mencionamos.
13
A imperiosa obrigação de pensar conjuntamente os doi s
termos desta questão resulta, para dizer a verdade, de uma
observação muito simples. O conflito ou a discordância en-
tre eles se enraíza no âmago. do faro teatral, naquilo que ele
tem de mais elementar: o teatro não é uma atividade, mas
duas. Atividade de fa zer e atividade de Vel: Pode- se objetar
que isto é verdadeiro para todas as artes e tamb ém para
outras coisas. Claro . Mas a especificidade do teatro diz res-
peito ao fato de que , nele, as duas atividades são indissociá-
veis e "o teatro " só existe com a condição de que ambas se
dêem simultaneamente. É possível dedicar- se ao exercício
da fotografia, da escultura ou da poesiae se indagar depois
(ou , ao menos, separadamente) a respeito da "difusão ", da
apresentação daquilo quefoi realizado. O teatro impõe, num
espa ço e num tempo compartilhados, a articulação do ato
de produzir e do aro de olhar : E ele só se mantém de pé se
estas duas ações se orquestrarem. Ora , o momento que vive-
mos está marcado pelo divórcio entre ambas: aprofundo-se
a separação entre o teatro que se faz (ou que se querfazer)
e o teatro que se vê (ou que não se quer mais ver) . Atores e
espectadores caminham sobre trilhos cujo trajeto é diver-
gente: o teatro está abalado, o edifício não se sustenta mais.
É preciso rearticular em uma outra síntese as condutas
que o desejo de ver e o impulso de agir engendram. Ela s
ordenam hoje duas legitimidades teatrais separadas, sem
ligação. Urge trabalhar para sua recomposição. A tarefa
requel; no meu entendei; que seja colocada a cada um des-
tes dois teatros, da forma menos negligente possível , a ques-
tão de sua (e ventual) necessidade.
Seria preferível, claro, interrogar a necessidade do tea-
tro, mais que sua essência. A questão da essência remete à
possibilidade" de um núcleo estável do ato teatral, cujos atri-
4. "A filoso fia chama est a qüididudc de cssentio (essên cia ). Esta torna
possível o cnte naquilo que ele é. Daí ela ser designada corno possibilitas (pos-
sihilidade intr ínseca) da coisa como 1'11(realitas) [ ...]. Todo ente "possui" as-
xiiu ]...1csscntiu e existcntia , possibilidade e realidade." M. Hcidcgger, KOI/I
1' / /1' l,mIJlhl/(' de lo métupliysiquc , tradução de A. de Walhcns e W. Bicmcl,
Gullinum l, I<) .~ ~, reedição TeI, 1981, pp. 279 -280.
14
butos permanentes se ofereceriam ao olhar do especialista
em Grécia antiga tanto quanto ao especialista em Japão
medieval, Ela remete a uma espécie de invariante, "o tea-
tro" , que se transforma em personagem e, logo depois, em
herói de uma intriga de longa duração, no curso da qual ele
combate valorosamente reduções e inimigos. Assim, pode-
1110.1' vê-lo, nestes últimos tempos, investido da virtude da
"resistência ". A presente análise gostaria de se pre caver
contra esta identificação e contra seus efeitos.
Mas pode-se argumentar que a escolha da palavra "ne-
cessário " também acarreta um certo risco. O tema da ne-
cessidade se liga , efetivamente, a dois grupos de significações
distintas. É necessário, po r um lado , aquilo que não pode
deixar de acontecer. Empregado neste sentido, o termo su-
põe uma det erminação plena, uma causalidade sem fissuras
e incitaria a pensar o teatro como resultante da vigência de
UI/f(( espécie de lei natural, Ou de um fatum. Não é este o
esquema ao qual recorreremos, Porque a existência do tea-
tro não é inelutável, Ela não está submetida a nenhuma fa-
talidade do destino. Há sociedades que prescindem do teatro,
que praticam simulações, quadros vivos, jogos de papéis,
mas desconhecem o teatro, entendido no sentido que atribuí-
mos à palavra aplicada a algumas produções ocidentais,
indianas, chinesas, japonesas. Não se conhecem sociedades
sem música ou sem poesia. Mas algumas vivem sem teatro:
civilizações imponentes, que marcaram época. Nenhuma cer-
teza, nenhum direito de essência afasta , a priori, a possibili-
dade de 1lI11 .IÚlIlIV em que o teatro teria desaparecido ou só
sobreviveria COIIIO memória, dado de arquivo, como aconte-
ceu COIII certas habilidades muito antigas.
Mas "ne cessário " qualifica também aquilo que é exig i-
do por uma necessidade. E este s dois sentidos não são equi-
valentes, embora fosse possível pensar: não posso prescindir
daquilo de que verdadeiramente tenho necessidade; isto pa -
rece, portanto, ter que , necessariamente, me acontecei: Con-
tudo, esta acepção se distingue da outra como aquilo que é
vivo se distingue do que é mecânico. A necessidade mecãni-
ca é compacta : ela causa irreversiveiniente o que sucede.
Pode acontecei; em compensação, que um viv ente tenha
15
nrccssiik«!« de água e não tenha acesso a ela. Entre os dois
regimes. infiltram-se duas diferenças: primeiro , diferenças
til ' tempo - o ser vivo pode esperar um pouco, o mecânico
ignor« o adiamento, a não ser pelo encontro de uma mecâ-
nico concorrente. E, sobretudo, diferença de efeito: se a pri-
va ç ão de água persiste. a morte sobrevirá. Ora, só o ser
vivo sob e morrer: Neste sentido, necessário é aquilo que quer
um ser vivo que quer viver, e se ele o obtém, usufrui de um
novo chamado . Necessidade é, então, o nome da brutalida-
de do chamado. E a necessidade não designa nada além da
prevalência manifestada do vivente sobre a morte. É a este
seg undo valor do modelo que eu gostaria de me ater.
Esta será nossa preocupação, nossa busca: a que ne-
cess idades responde (ev entualmente) o teatro ? Necessida-
des de que e de quem ? 011 ainda, como diz Niet zsche: de que
em quem ? Abordagem mais dinâmica que a da essência,
porque remete o teatro a outras existências que não a sua,
amarra-o a instâncias fora dele e que o convocam e o pu-
xam. O teatro se pensa na condição de uma alteridade, en-
quanto qu e a questão da essência o recondu: a seu interior
mais íntimo, e o dedu z de seu conce ito. De repente, ei-lo
submetido a uma questão de tempo. Quanto tempo se pode
espe rar pelo teatro quando ele falta ? Questão imp ortante
hoje em dia : pode ser qu e se tenha necessidade de teatro e
que ele n ão esteja à disposição . Ou, pelo menos, não o tea-
tro de que se necessita . O teatro disponív el não é necess ária-
mente aqu el e que a vida pede - certas necessidades
permanecem insatisfeita s. lnquietude de vida e de morte.
Em caso de necessidade, se o teatro falta, nos falta , e se a
carência persist e, algo corre o risco de morres: " Nós " não
morreremos, claro que não. Encont ram-se subs titutos . Mas
algo em nós pode morrer: O quê?
A ex igência que sustenta a reflexão aq ui apresentada
1/(/0 é, portanto, a de preservai; conservar " 0 teatro " a qual-
quer preço: é possível conse rvar m úmias, cadá veres. Per-
g un tamo -n os se uma vida, e qu e tipo d e vida , qu er
(rvcntualnutnte) o teatro . E conto , se ele lhe fa z. falta , esta
[alta pod« ser satisfeita.
I (I
w~~ I Af21STo1E~;
'VciTi1tA
Voltem os a algumas linhas da Poética de Aristóteles. Não
na esperança de ler ali de forma direta o sentido de nossa atuali -
dade : nosso teatro pode ser mais bem compreendido ju stamente
pela distância que o separa do vener ável tratado . Mas o filóso-
fo parece colocar, de saída, uma questão próxima da nossa : o
que é que provoca a existência das tragédias, das comédias?
Aristóteles inscreve primeiro a reflexão num quadro mais
ampl o: por que existem "representações" ? Ele observou, em
prim eiro lugar, que "a epopéia e a poesia trágica, com o tam -
bém a co média, a arte do ditirambo e, em sua maior parte, a
da flaut a e a da c ítara têm em comum o fato de se rem repre-
sentações'". A interrogação inici al incide, portant o, so bre
um co nj unto de aspe cto heteróclito, que inclui os gêneros
I. li Po ética, tradução e comentários de R. Dupont-R oc e J. Lallot, Seuil,
1980. Salvo menção em contrário, utilizare i esta edição. (Em português: Poé-
tica , tradução de Eudoro de Souza, em Arist áteles, co l. Os Pensadores, São
Paulo, Abril Cultura l, 1973 , pp. 439-47 1).
17
teatrai s (tragéd ia, co mé d ia, ditirarnbo ), uma outra forma
poéti ca (a ep opéia) , ce rtas produçõ es musicais (ligadas à
ce na) . Ora , a Poética nos parece , globalmente, dedicada à
an álise do teatro . Podemos estranh ar o fato de Ari stóteles
não o des ignar mais pre cisament e co mo se u obje to .
Isto deve ser relacionado a um a co nstatação tão só lida
qu e parece escapar a muita ge nte: os gregos, para nossa sur-
presa, não tinh am nome, nem , se m dúvida, co nce ito, para o
que nós chamam os "teatro'" . A palavra teatro nos vem dos
gregos, claro, mas ele s não a aplic avam como nós à atividade
teatr al : el a desi gnava um a parte do ed ifíc io provisóri o da s
represent ações, aqu ela em que ficava o públ ico . E, para nosso
" tea tro", nenhum term o apro priado: nem Platã03 nem Aris-
t óteles' d ispõem de uma noção co mum para a tragédia e a
co méd ia, co mpree ndidas com o gê neros de esc rita ou mani-
festações públi cas. O tratado de Ar istóteles se intitula Poética ,
ma s pouc o se interessa pela poesia lírica e só pensa a epo péi a
co mo antecessora ou origem (até, de forma es pantosa, como
esp écie") da trag édi a. Precisamos nos con form ar : os antigos
gregos não tinham um a palavra para o teatro. O que nos dei -
xaria indiferen tes se eles tivessem ignorado a co isa . Mas nós
atribuímos a eles o fato de terem praticamente inventado e
tran smitido a nós o teatr o. Isto é que é intrigante .
Aristóteles pergunta: por que existem " repres entaçõ es"?
E respond e: " Desde a infância os homens têm , inscrita em
sua natureza, ao mesm o tempo, um a tendência a representar
[00 .] e um a tendênci a a se ntir prazer co m as represe nta ções' " .
"Re presentar" traduz aqui o verbo mimeisthai , muitas vezes
2 . Com o outros povos, ao que parece : por exemplo, os japoneses da época
áurea do Nô.
3. Por exemp lo, República, 111 . 394 c, 394d. Por dcfaul t: I V, 475d, 476a .
(Em portugu ês: fi República, tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro ,
Edições de Ouro. s .d.)
4 . Por exe mp lo, Poét ica .Yv, 1449 a 2- 14. O que é freq üenteme nte tradu-
zido por "no teatro" é a ex pressão prostatheutru; diante das assembléias, das
arquiba nca das .
5 . C f. ()coment ári o de Dupont-Roc c l.allon , p. 182 : "uma tese ca pita l da
I 'II/ :Ii('(/ é a da inclusão da epo péia na tragédia" .
6 . I44 11h 4-9.
18
também traduzido por " im itar" . As representações respon-
dem a uma necessidade, na med ida em que su a ocorrê ncia
est á inscrita na natureza do s homens. Mas esta necessidade,
de sa ída, se di vide: em uma tendência a produzir representa-
ções e um a tend ência a se co mprazer co m isto. Ora, es te pra-
zer é um prazer da visão : Aris tóteles o re pe te à exaus tão".
Assim , a necessid ade das representações se divide, de sde a
orige m, e m du as necessid ades sepa radas : a que lev a a repre-
senta r ("o hom em se diferenci a dos outros animais porque é
espe cialmente propenso a representar?"), e a que lev a a se
comprazer com a visão das representações (" temos prazer
em olhar as imagen s mais apurada s das co isas cuja visão nos
é pen osa na real idade?"). Esta du alidade recort a, no ge ra l,
nossa di stin ção entre " faze r teat ro" c " ir ao teatro" , entre o
teatro qu e se pratica e aque le que se vê. Examinemos mais
de pert o cada um a dest as du as tend ências e se us efeitos .
A tendência a rep resentar é, em pr ime iro lug ar, ativa .
Isto porque o elo entre a representação e a ação é, ao mesm o
tempo, múltiplo, íntim o e essenci al. "Aque les que represen -
tam representam agentes (mimoúme no i pr áttontas'[ 'í", É a
tes e central da Poética. A representação diz respeito a atos e
es se elo se rve para carac te rizar (co mo representação) e para
definir a tragédi a (mimêsis praxe õsi I I , o que confirma que o
"tea tro" não é aq ui um gê nero represent ati vo entre outros".
Mas a relação se co mplica c se es treita ainda mais pe lo fato de
a representação se r também produzida por "age ntes " ip r át-
tontas) , " na medida e m qu e eles efetivamente agem" (ka i
energoiuuasy" . O elo não é mais ent ão simplesmente figura-
tivo : a representação não elege apenas a ação comoseu obje-
7. 1448 b9- 19.
li . 1448 b 6-7.
9. 1448 b 10- 11.
10 . 144 11 a I. Tradução mod ificada.
11. 1449 b 24.
12. C f. a an álise dos tradut ores Dupont-Roc e Lall ot , pp, 17-18 relati va 11
"orige m teatral do co nce ito de miniêsis".
13. 1448 a 24 .
19
<"
/ to pri vilegiado - a niimêsis é ao mesmo temp o represent ação
L.de ação e aç ão de representar.
Isto choca de form a brutal nosso sentimento moderno.
Colocam os co mo evide nte a diferença , claramente estabele-
c ida entre o que é represe ntado (co isa, ação, se r natural ou
imagi nário) e o ato de representar (fig uração pintada, jogo
do ator ou música ao vivo) . Com o imaginar que seja possível
unir num a noção comum o figurante e o figurado, a co isa e
seu signo? Como admitir que no teatro se possa suspender a
diferença tão nítida a nossos olh os, entre a ação mostrada e
a ação de mostrar?
É bem poss íve l que, nesta reti cência, sejamos vítima s
da trad ução tradi c ional de tuiniêsis por imitação, É bem
possível que a mintêsis, cujo co nce ito Aris tóte les e labo ra,
não sej a es tritame nte imitativa, no sentido que nós atribuí-
mos a este term o:
o siruagma mimcisthai + acusativo pode co mpreende r duas relações be m
difercmes seg undo a natureza do obje to: o co mple me nto pode designar o obje-
to-modelo; o objeto natural que é imuado!' [...], mas ele designa com mais
freqüên cia , na Poética, o objeto-cop ia, o artefato q ue é criado: [...0 que] nos
levou a traduzi r mimeisthui por um ter mo fran cês igualmente pol iva lente : re-
present ar " .
Há , portanto , no texto, ambigüidade entre representar
(algo de exterior) e representar (mos trar uma figur a, dá-Ia a
ver: aprese ntá-Ia, de algum modo)". Não se acred ita que es ta
14 . Os trad uto res indicam que a constr ução é ates tada no capítulo q uinze,
1454 b 9.
15. Oncit., comentário dos tradutores, p. 156 .
16 . Si nto -me propenso a seg uir os tradutores e m sua análise do termo grego
(mi meisthai): não por competência. mas por interesse pel as co nseq üênc ias teó-
ricas dc seu purti-pris. Preciso , no entan to, observar, honestamente. q ue a pa la-
vra francesa que escolheram (representar) não me parece tão " polivalente" como
eles afirmam. Se compreendi bem, e les querem dizer que, por exemplo, a ex-
pressão "desenhar um círculo" pode remeter a dois sent idos d istintos . Isto é:
rep rodu zir , neste papel , aquele cír culo q ue se pode ver lá (acepção imitativa).
0 11 ainda: desenh ar es te círculo aqui, sem refere nte particulur, Ha ver ia ass im
ambivalência do lerm o. Mas, no tocan te 11 palavra " re presentar", a ques tão é
bem menos clara: a palav ra não se desl iga Iac ilmcn te de uma conotação imi ta-
tiva , no mí nimo por causa de seu prefixo "re" . Para acentuar o va lor "presente-
20
ambigüida de seja um a flutuação fortuita: co m certeza o autor
da Po ética teve a pre ocupação de co ns truir um conceito
coere n t~, orga nizado, uní voco, da mintêsis - ainda ma is que
ele baseia so bre es te ponto a tentati va de inv alid ar a doutri-
na de se u mestre Platão. É preciso , port anto, co nside rar a
ambigü idade co mo estrutural e admitir que a ntimêsis aris-
totélica é relativamente indiferente à oposição entre a fi -
gura e seu refe rente, e até mesm o que e la é cons truída,
precisam ent e, so bre a co locação desta ind iferença . "No ca-
pítul o um , nas poucas oco rrê nc ias de mimeisthai com um
acu sati vo neutro plural , o valor se mântico do ac usa tivo é
indec idível ; e [o] co meço do ca pítulo dois parece sustenta r
a indecisão" 17 . Mimeist ltai sig ni fica, po rt anto , ta lvez:
(re) prese nta r, no se ntido de dar a ve r, aprese ntar di ant e do
01har, most rar, fab ric a r, ex ibi r para os 01hos. A mimêsis
não deve ria ent ão ser compreend ida co mo "mirnética", se-
gundo a acepção co rrente: imitativa , figurativa de um refe-
rente colocado fora de su a operação. Nã o que a existênc ia
de um re fere nte es teja ex cl uída : mas é possí vel qu e , em
vista do procedi me nto (re)prese ntativo co mo tal , sua exis-
tência ou s ua não-existên cia não tenha um valor definit ivo.
Esta determin ação da ntimêsis opõe-se fronta lme nte à
que Platã o articu la, em es pec ial nos livros 111 e X de A Repú-
blica , aos qu ais a Poética parece com freqü ência responder.
Para Platão , a ntintêsis sepa ra e opõe a imitação e o que e la
most ra (ou pretend e mostrar), o ícone e o eidos, a " imagem"
e a idé ia IX. Para e le, a imitação é heterogênea àquilo a que
e la incessan temente rem ete e sua ment ira se es tabelece na
pretensão de ignorar esta separação !". É Platão , sem dúvida,
quem co nst rói e organizaa es trutura do rnirnético tal com o a
manipulam os hoje em dia. E podem os pensar que a operação
aristotélica na Poética est á ligada à vontade de juntar o que
ti vo" , ma is do que " rep resen tativo" do ges to, - e apesar do peso do procedi -
mcnto - utili zarei, 11s vezes, a form a " (rcjprescntar", para fazer esquece r um
pouc o a imitação e aco mpa nhar os tradut ores de Arist ótelese m suas hipóteses.
17. Ibid. G rifo meu .
IS. Por exemplo, Rep , X, 596 d-59 7a.
19. Ibid., 598e-599a.
21
Plat ão desmembr á e de co locar lado a lado, ind istintamente,
o qu e Platão se empe nha em separar.
É provave lmente para este desacordo qu e apo nta a defi-
nição aris toté lica, tão insistent e, da mimêsis co mo represen-
tação da ação, ou melh or dizendo, representação (ativa) da
ação, ação de representação de ação, miniêsis práxeõs : se,
co mo d isse brilhant em ente J. Taminiau x, a ação é aq uilo
mesm o qu e não pode ser co mpree ndido no (e pelo) dispos iti-
vo platôn ico, se a práxis é exatame nte o que o dispositivo
platônico quer inva lidar, des leg itimar?". A Poética não cessa
de repetir qu e a tragéd ia não aprese nta funda mentalme nte
est ados, mas atos. Ela nã o pod e prescind ir da ação, mas
pode d ispensar um a série de outras co isas , em es pec ia l, os
caracteres". t por isto qu e "a história" é co locada como
"alma?" da tragédi a: part e da tragédia (s is tema , co m-posi -
ção das ações) cuja de fin ição reduplica exata me nte a da
tragé d ia e m se u co njunto - mintêsis práxeõs n . Tal vez es te
sej a o traço q ue dá forma e esp eci ficid ade à mimêsis com o
tal , e m sua co ns tituição aristo té lica : es te mo vim ento de re-
versão de uma fina lidade "m im ética" para um a práxis re-
prese ntativa". A miniêsis (e, portanto, o tea tro , o teat ro qu e
se faz) se torn a então esta aç ão de (re) pres enta r a ação, na
qu a l fig ura e objeto se co nfunde m e para a qu al a qu estão
de sua adeq uação não se co loca .
Esta hipótese de uma ntimêsis de algum mod o não imita-
tiva, relativam ente ind iferente , no regime da aç ão, ao elo de
co nve niência ou de adequação entre o imitante e o imitado,
ajuda a co mpreender por que a Poética não co nté m nenhuma
teoria do ator. S ilêncio que nos parece ev ide nte, de tal modo
estam os acostumados a es te livro e a seu conteúdo . Mas afi-
20. Em Le th éâtre de" philosophes, J. Millon, 1995. pp. 17-33.
2 1. 1450 a 22-26.
22. 1450 a 38 (cf. todo o trecho 1450 a 15-38).
23. 1450 a 3 e o comentário dos tradutores, OI'. cit, p, 197.
24 . Cf. P. Ricoeur, Temps et réci t l , Seuil . 1983. pp. 59-60 . (Em português :
Tempo e Narrativa, v. I. tradução de Constança Marcondes Césa r. Cam pinas.
Papirus, J994) .
22
t~al : havia atores em Atena s. Por que o texto que estuda pra-
ticam ente todos os aspec tos da tragédi a não aprese nta nenhu-
ma análise de sua atividade? Por que ela não es tá especificada
co mo instância singular no modelo ge ral do tr ágico? Até Pla-
tã~ , ~ue ao long o da República fala t~o pouco disto, parece
referJ!'-se a ela, sob um certo viés , no /on25.
E que não se pode co nceber idéias sob re o ator (pensar o
ator, tratá-l o co mo objeto de pensam ent o) se não se es tabele-
cer uma diferença entre a ação represent ada e a ação de repre-
sentar. O ator se instala neste afas tame nto : ele é aquele que
assu me a ação de representar, na med ida em que ela se distin-
gue. da ação represent ada. Ora, a mimêsis práxens. acred ito,
designa as duas ações no espaço de uma posição com um , co mo
q.ue indiferenciada. Por isto se torna impossível qualqu er te0 -
r~a do ator: o dis pos itivo não deixa hiato algum onde esta ação
singular possa ope rar. Se u lugar de exe rcício só pode ser o da
diferença representativa. no sentido cláss ico, imitati vo, do ter-
mo. Para usar nosso vocabulário co rrente, uma teori a do ator
exige que se possa di stingui-lo do qu e cha ma mos de "pe r-
so nagem". Ora, "o grego , e m époc a rem ot a, não possu ind o
termo para de sign ar o qu e nós cha ma mos person agem , con -
tenta-se co m o part icípio do verbo agir , delegando ao co n-
texto a tarefa de prec isar a natu reza do o bje to mim ético em
suas d iversas modalidades?" . O qu e s ign ifica di zer qu e ,
para um a aç ão produ zida e m ce na, a antiga língu a grega _
e, P~I: co nse qüê nc ia, a Poética, - não es tabe lece neste pon -
to di fe ren ça pe rtine nte, pen sável , e nt re a ação fict ícia e a
ação de fig urar. Es ta ação não pod e , portanto, ser d istin-
guida co mo fic tícia - pelo men os não em nosso se ntido co r-
ren te. A ação trágica não é imaginária. O qu e não s ignif ica
qu e e la sej a rea l, mas simp les me nte qu e a opos ição , tal co mo
funciona para nós, entre real idad e e figu ração imagin ária é
ex ter ior ao ca mpo em que a execução da tragéd ia aco ntece.
O imaginário é mais tardio: ele pert e nce ao mundo da irna-
25 . Cf. por exemplo, 532d e a nota de M. Canto em /ol/. Gf-Flammarion
1989. p. 143. (Em português : Íon, trad ução de Victor Jabou illc, Lisboa, Inquéri-
to. 1988).
26. Poétic a, 0I'. cit., comcnt ãrio dos tradutores, p. 156.
23
r
gern , que é posteri or. Ficção, imagem são termos roman os ,
que não têm eq uiva lente estrito na lín gua da Poética: su a
fortuna se rá pós- imperi al, " ro mâ ntica" segundo a co ns tru-
ção hegeli an a do conce ito". E, além di sto , a civi lização ro-
mana co ncede rá um es tatuto muito mais visível ao ato r, tant o
nos fatos qu ant o no pensamento" . Os práttontes são os agen-
tes , simplesm ente: ao mesm o tempo atores e "actantes" da
narrati va . Come nta ndo , a resp e ito del es , um segmento da
frase for m ulado na tradu ção audac iosame nte como " todos
pod em , na medida em qu e, efetiva me nte, age m, ser os auto-
res da repre senta ção'?", os tradutores esc revem : "O ve rbo
prátt ein é aqui dupli cado por energeln, "ag ir efetivamente" .
Azor a se trata da colocação em ato do texto, da ação dram á-
o _ .
tica . Di to de outro mod o: os personagem em açao, aos qUaIS
o autor delega a palavra , e qu e dizem eu sã o os mesmos que,
em cena, efetuarão a representação": atores ou autores-ato-
res na orige m, a distinção não é pertinente neste caso, o es-
se ncial é qu e e les são vários para repartir o eu, para ass um ir
o co nju nto do disc urso , para co locá-lo em ato"" . E ainda:
"Aque les qu e nós chama mos ' personagens ', isto é, os seres
de ficção qu e sã o os actantes de um drama ou de uma nar-
rat iva , não recebem de s ignação específica na Poética : o par-
ticípi o práttontes ( lite ra lme nte : ' seres em ação ' ) pode
re fe r ir-se, às vezes indi st intamen te , tanto ao s 'ac ta ntes'
qu anto aos ' ato res ' " :". A diferen ça entre atores e person a-
ge ns não é pertinente na Poética . Os age ntes sã o tanto aque-
les qu e rep rcscntarrr ' ? qu anto aqueles que são repres entados ,
se cundo o va lor mod ern o destes term os: qualquer dissoci a-o
27 . Quer dizer, moderna , em alguma medida . Ten tei desenvo lve r es ta aná-
lise e m T rans fens d 'un C0I1WS enlevé. Hyp oth éses sur l 'Europ e , tese de dou -
toramen to em filoso fia, Strasbo urg , 1994, pp. 37-40 e 342-352.
28 . C f. FI. Dupont. L'acteur-roi, le thé ãtre duns I{/ Rosne antique , Les
Bel les Lett res, 1985.
29 . 1 448 ~ 24.
30 . Gri fo meu para os dois últim os me mbros da frase .
31. 0I'. cit.. p. 16 1.
32 . lbid.. p. 179. As referências indic adas para co rroborar es ta observação
são : 1448 a 23 c tam bém 27, 1449 b 3 1 e também 37.
33 . Aq uele q ue representa, qua ndo se tra ta de especi ficá -lo, é antes pensa-
do como poet a. O ala r não desf ruta de nenhum espaço próprio.
24
çã o atributiva é incerta do ponto de vist a da unidade intrín-
se ca, homogênea e primordial da ação. A ação, tal como Ari s-
tótel es a es trutura, não é mais imita nte do qu e im itada . El a é
ope ração de agi r, ato que só resp on de a outros atos e não à
partitura " mi rn ética" no se ntido platôn ico . A mimêsis é de
início a fim práxis , ação, práxis agente. Deste lado de seu
te r-lu gar, o teat ro é exc lus ivame nte pr ãtico'",
Passemos à segunda tendênc ia, que orig ina as represen-
taçõcs, e que os tradut ores ca racter izam co mo "receptiva?".
E la é uma questão de olha r. Ari stóteles ins iste nisto:
Temos uma pro va nos falos: temos prazer em o lhar (tileõrotifl te.\·) as
imagens ma is apuradas das coisas cuja visão nos é penosa na realidade , por
exemplo, as formas de animais perfeitamente ignóbe is ou de cadáveres : a
razão é que apre nder é um prazer [...1:efeti vamente, se gostamos de ver ima -
ge ns (t ileõrOlil//{/s), é porque o lhan do-as aprende-se a conhecer?",
Na orige m da atividade dos espectadores , es tá, portanto, esta
es péc ie de co ntemplação, es ta atitude de observação que inci-
de so bre o qu e os tradutores, med iante um anacronismo mu ito
ban al , cha ma m de im agens (o texto di z: eikãnas), as qu ais
34 . Farem os aqui uma aproximaçã o ines pera da. Na outra ex tremidade de
nossa história, no âmbito da teoria mais imitativa do ator (apa rentemente), Sta-
nislávski, ao envelhecer, parece procurar alguma coisa estranha men te próxi ma
dis to. com seu chamado método das ações físicas . Gror óvski, qu e prolon ga e
radical iza. se m dúv ida, a teoria stanis lavskiana , usa o lermo "atuan tes" para
design ar o qu e podemos co mpreender co mo uma instância indi ferenciada do
ponto de vista da di ferença rep resentativa, pesqui sa que não deixa de evocar o
que tent amos analisar acim a. É verda de que Grotóvski elab ora, aparenteme nte,
um teatro que só é representado para aqueles que o praticam, qu ase se m espec-
tado res . Cf. Thornas Riehards, Travuillcr {/I'ec Grotowski SUl' les ac tions phy-
siques, e o en saio de Grot óvski no mesmo volume : "De la co rnpag nie théâtrale
à l' art eom me v éhicule", Ac res-S ud, 1995 . Grot óvski escreve, por exe mplo
(p. 185): " No es petác ulo [forma da qual e le se afasta , D. Gu énoun ] o lugar da
montagem é a percepção do es pectado r: na arte como veíc ulo, o lugar da mon-
ragem es tá 110S atuantes, nos artistas que age m" . Num outro co ntex to, ele tam -
bém afirma: "Não se está , en tão, nem 110 personagem nem no não -perso nagem"
(citado por Thomas Richards, op. cit., p. 130) .
35. 0I'. cit., p. 164.
36. 1448 b 9- 12(tradução ligeiramente modificada: assim como M. Magnicn,
em Po ética, Lc livre de Pochc, 1990, p. 105, cu prefi ro "os fatos" a "a cxperiên-
cia prárica" para 1"1/ ér~õl/, co m o obje tivo de evitar uma co nfusão co m a
que stã o da práxis aqui abordada) .
25
lhes permitem que conh eçam algo a respeito do que é olhado.
Ati vidade intuiti va ou especulativa, que se pode des ignar, para
manter a ressonância grega, como teórica: o olha r dos espec-
tadores é, por três vezes, designad o por theõria 37, e o adjetiv o
apresenta a vantagem de uma proximidade co m o teatro, visto
que teatro e teoria partilham esta referência ao ver - o teatro é
o lugar de onde se vê. Lembremos que a indenização paga aos
espectad ores despossuíd os para que fossem assistir ao teatro
era chamada theõtik án . Aristóteles diz co m precisão: esta vi-
são faz co nhecer. Vamos olhá-la de mais perto.
O o lhar traz a aprend izagem. Mas lem os , além di sto,
que a re ferida aprendizagem prop orcion a prazer. E, neste
ponto, uma diferença parece se instaurar em relação à outra
aprend izagem, a que se d á na própri a ação de representar" .
O pra zer (hedolle] é evocado em mu itas ocas iões na Poética ,
mas sempre no tocante aos espectadores. Trata-se de propor-
cionar pra zer a eles , o pra zer mais vivo e mais apropriado
possível. Não estáexcluído, mas não é mencionado, que tam-
bém se sinta prazer em proporcionar prazer aos esp ectado-
res . Pod e-se também obse rva r que, na frase que citamos no
co meço, o pra zer é a marca dist intiva que per mit e propor a
exi stê nc ia da seg unda " tendê ncia", na med ida em que a pri-
meira é a que leva os hom ens, desde a infância, a represen-
tar, enquanto que a segunda é definida, em prim eiro lugar,
apenas do seg uinte modo: é e la que leva a "sentir prazer nas
representações " . O prazer não parece , portanto, ao men os
numa primeira leitura , ser um corol ário obrigatório da apren-
dizagem. É um atributo do ver. "Temos uma prova nos fatos:
temos pra zer em olhar as imagens ".
O que é, então, que, na visão, causa prazer ? É a represe n-
taçã o co mo tal. Não as características obje tivas do que é visto
porqu e, neste caso, dever íamos sentir prazer so mente em ver
coisas be las, no entanto sentimos prazer em olhar "as imagens
37. 1450 b 38 - 145 1 a 2, onde os próprios espectadores são designados
por theôroü sin, Cf. o coment ário dos tradutores, op. cit.• pp. 214-21 5.
38. Lemb remos que a tendência ativa ocasiona uma aprendizagem: "o ho-
mem se diferencia dos outros anim ais porque é particularment e propenso a re-
presentar (lII i llle l ikfÍ l ll lfla) e porque recorre 11 representação tmim éseõs) em
suas prime iras aprendizage ns (nuithêsis';" 1448 b 6-8 .
26
mais apuradas das coisas cuja visão nos é penosa na realidade".
Há, port ant o , um prazer da visão que es tá ligado à especi-
ficid ade do mim ético: um prazer visual tirado da representação
como represent ação. Qual é a natureza deste prazer ? Aqui
Aristóteles fornece uma indicação notável. Recordem os: "se gos-
tamos de ver imagens, é porque olhando-as aprende-se a conhe-
cer" . O prazer é, portanto, proporcionado pelo conhecimento,
pela representação COI I IO conhecimento. Prazer trazido pela au-
tonomia do conhecer: não pela coisa que se daria a ver, mas precisa-
ment e pelo fato de se (re) presentar e de es ta representação
produzir co nhecimento. A que se deve então esta gratificação
do conhece r, proporcionada pela representação? Aristóteles res-
ponde: "se gostamos de ver imagens, é porque, olhando-as , apren-
de-se a co nhecer e se conclui a respeito do que cada coisa é,
como quando se diz: este aqui é ele'?'. Observação espantosa.
O que é que ela nos faz pensar? Em primeiro lugar, que
estamos num dispositivo claramente antiplatônico: não so-
mente a mimêsis é produtora de conhecimento (virtude que
Platão lhe nega com todas as forças), mas também (o que dá
no mesm o, ce rtame nte, mas a í está dito de um mod o extre-
mament e abrupto), a represent açã o permite a quem olha co n-
cluir a respeito do ser daquil o que ele vê. Ela dá acesso ao se r
do que é visto, e não apenas à aparência enganosa. A mintêsis
inform a a respeito da essê ncia. Sua visada, cognitiva, causa pra-
zer. Ora, este conhecimento é quase deduti vo: concluir é syllo-
gir esthai , é quase articular um s ilog ismo. Aquele que vê
raciocina. Como dizíamos: teoriza. E seu prazer provém disto .
Mas o alcance desta observação talvez seja mais profun-
do . Efetivamente , uma tent ação (interp retati va) se aprese nta
aqui. Se ria poss ível , realm ente , ao ler es tas linhas na tradu-
ção que es tamos ci tando", ca ir na tentação de pensar que
39. 1448 b 15-17 . Grifo meu .
40 . Mas tamb ém em outras. Cf. jradução de J. Hardy, Les Belles Lcttres,
1990 , p. 33, reedição Gallimard-Tel, 1996 , p. 82 ("es ta figura é fulano" ) ou a
tradução de M. Magnien , flJI. cit, p. 106 ("es te reIrato é fulano" ). (Na tradu ção
de Eudoro de Souza. flJI. cit., p, 445, o trecho é tradu zido do seg uinte modo:
"Efeti vamente, tal é o motivo por que se deleit am perante as imagens: olhan-
do-as. aprendem c discorrem sobre o quc seja cada uma delas. [e dirã o] , por
exe mplo, 'este é tal ..•. N. da T.).
27
este raciocínio do olhar conduz a um resultado comparável
ao que nos faz dizer, ao ver alguém: este aqui é ele . O efeito da
representação seria análogo ao que acontece quando atribuí-
mos a um dado indivíduo sua identidade, quando nós o reco-
nhecemos. Em matéria de representação, o conhecimento
seria lUU reconhecimento", E este reconhecimento procede-
ria por identificação: como diante de um cadáver ou de uma
silhueta. A representação, assim compreendida, nos permitiria
atribuir à coisa vista, ou melhor, re-atribuir-lhepor re-co-
nhecimento, o que nós conhecíamos (de um outro modo) como
sendo sua identidade.
Estaremos então muito próximos daquilo que Louis AI-
thusser considerava como uma das funções específicas da
ideologia. Descrevendo a "função de reconhecimento ideoló-
gico", ele escrevia:
Paracitar umexemplo bem "concreto": todos nós ternos amigos que, ao ba-
terem ünossapOJ1a C, aindacomesta fechada,ao perguntarmos"quemé?", respon-
dcm (porque"é evidente"):"sou eu!". Defato,nós reconhecemos que "é ela" ou "é
ele", Abrimos a pOJ1a c "é verdadeque é mesmoela quem estava batendo".
Ele acreditava caracterizar assim um dos "rituais de reco-
nhecimento ideol ógico"? e considerava, no fundo , o reco-
nhecimento como uma das operações instituidoras da
ideologia. Se cedêssemos à nossa tentação interpretativa, o
olhar (que chamamos "teórico") lançado sobre a representa-
ção se veria investido de uma natureza "ideológica", no sen-
tido althusseriano do termo. Certamente, é sempre uma
questão de visão: a idéa, também ela, remete à visão. Ainda
assim : esta assim ilação não pode deixar de nos pôr em alerta.
Em Althusser, como sabemos, ideologia e teoria se opõem por
múltiplos Iitígios e rixas. E a questão que se coloca então é
saber se nosso modelo "teórico" aceita a inclusão do esque-
41. Tentação part ilhada pelos tradutores: "O prazer que a representação
enquanto tal proporciona é um prazer de reconhecimento", op, cit., p, 165.
42 . " ld éologie et apparcils idéologiques d'Etat", retomado em SUl' /0 re-
production, PUF, 1995, p. 304. Sobre esta questão, cf. todo o desenvolvimento ,
pp. 302- 307 . (Em português: Sobre o Reprodução, Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 285).
28
ma do reconhecimento . Devemos admitir que o reconheci-
mento seja mesmo o indutor do conhecimento produzido pela
representação, como parece à primeira leitura? A operação
própria a este ato de ver é uma identificação? A resposta tem
importância. Porque, supondo-a positiva, é nesta identifica-
ção que se localizará a fonte do prazer: A identificação dis-
tinguirá desde então entre a representação e a visão direta:
nesta última não tenho que identificar o que se oferece a
mim em sua identidade manifesta. A representação mostra-
ria ao mesmo tempo este afastamento entre a coisa e a ima-
gem (porque a imagem não é a coisa) e o preenchimento
deste afastamento ("este aqui é ele"). A identificação realiza-
ria este duplo movimento de colocação e redução da dife-
rença representativa. E este movimento seria o fornecedor
de prazer. Ao menos nesta hipótese .
Ora , se tentamos fazer funcionar este esquema sobre o
que chamamos " teatro" , as coisas se complicam muito. O
que, na verdade, os espectadores teriam para reconhecer? A
que tipo de identificação eles se entregariam? Se se fala de
pintura, não há mistério algum . Vejo uma fruta pintada (ou
um animal , ou um rosto) , e o reconheço: estabeleço, por as-
sim dizer, um elo de identificação entre esta figura feita de
linhas e de cores e um ser real , existente fora da tela . Mas e
no palco? Para os espectadores dos quais Aristóteles fala ,
que reconhecimento poderia ser produzido? Que elos eles
seriam convidados a estabelecer entre o que acontece diante
de seus olhos e - justamente, o quê?
Pode-se responder que os espectadores reconhecem deu-
ses, heróis, seqüências de história ouvidas em outros lugares
(ao menos no caso da tragédia, sobre a qual os argumentos
da Poética estão disponíveis, faltando as partes relativas à
comédia) . Lembramos que Ar istóteles refuta vigorosamente
esta hipótese: "não se deve querer a qualquer preço ater-se às
histórias tradicionais que formam o tema de nossas tragédias;
é uma exigência até ridícula porque mesmo o que é conhecido
só o é por uma minoria, o que não impede que isto agrade a
todo mundo?": Não é, portanto, necessário que haja conhe-
43. 145 1 b 25-26. Grifo meu.
29
c ime nto prévio nem , neste p onto, reconh ecim ento para que
a represen tação produza seu efeito. Que outro obje to, pree-
xistente à narrativa, os es pec tadores podem ser convidados a
reconh ecer? A Poética não pára de martelar que a tragédia é
feita de ações. O que é o "reconhec imento" de uma ação?
Não somos levados a conside rar que se identifique um ato -
em geral é uma coisa ou alguém. O texto de Aristóteles suge-
re, entret anto, uma sa ída. O que pode funcionar com o reco-
nhec iment o para uma ação é sua insc rição no ca mpo de uma
verossimi lhança . Ou , seg undo a fórmula mais freqü en te: de
uma veross imi lhança ou de uma necessidade. O ra, verossi -
milh ança e necessidade não são cr itérios ex teriores ao poe-
ma. Não são operações de ligação entre a ação represent ada
e o que ela representa. Verossimilhança e nece ssidade de-
pend em de rel ações de co nstrução intern a, de cios que se
estabelecem entre as ações most radas e outras que lhes são
anteri ores (o u post eri ores). Vero ssim ilhança e necessidade
result am do que se poder ia chamar uma lógica das ações,
que permite aos es pec tado res raciocinar, co ncluir - e se ntir
praze r nest a dedu ção!' . E esta lógica pode ag ir co ntra o se n-
timento estabe lecido da verossi mi lhança" . Ela pode até le-
va r a mostrar o impossíve l: " É melhor pre fe rir o qu e é
impossível mas veross ímil ao que é possível mas não persua-
sivo":". Os espectadores têm ass im que "reco nhece r" o elo,
intern o à tragédi a, entre as ações apre sentadas em ce na. O
desvclamenro é um poderoso detonador de prazer. Mas es te
modelo a fasta qualquer hipótese de reconhe cimento entre uma
cois a imit ada e uma outra, real , que valeria co mo sua refe-
rência . E le torn a inopera nte o esquema que se tinh a aprese n-
tado a nós co mo hipótese interpretativa para ler o texto da
Poética. Ao fim, e is-nos levados a nos pergunt ar se é real-
mente de reconhecimento que se trata .
Voltemos, efetivamente, ao lrecho que tinha despert ado
nossa tent ação identi ficadora. Ali ficamos sa bendo que o pra-
44 . 1451 a 1:1 , 145 I b :1 5, 1452 a 20, 1454 a :14-:16.
45 . "É verossí mil que muitas co isas oco rram tam bém co ntra o verossími l" ,
1456 a 24.Etam bém1461 b 15.
46 . 1460 a 26 .
30
zer é O que dis tingue a tend ência ao olhar da tend ência ao
fazer ("os homens têm , inscritas em sua natureza , simulta-
neamente, uma tend ência a represent ar [...] e uma tend ência
a enco ntrar praze r nas representa ções"). À nossa interroga-
ção so bre a natureza desse prazer, Aristóteles respond ia: "a
razã o disto é que aprende r é um prazer" - o conteúdo do
prazer (de ver) está, portanto. 1/0 próprio aprendizado . E ele
acrescentava : "E fetiva mente. se gos tamos de ver imagens é
porqu e, olhando-as, aprendemos a co nhecer". Um elo muito
es trei to associa, portanto, o prazer de conhecimento e o apren-
dizado - o prazer é prazer da aquisição de um co nheci mento
que nós não poss uímos . É o prazer proporcionado pe lo ad-
vento de um conhec ime nto, sua vinda, sua form ação. É pre-
c iso tal vez então afirma r, co ntra a opi nião dos próprios
tradut ores'" , que o reconhecimento não co nvé m a es te mode-
lo, porque não é advento ou produ ção de co nhecimento, mas
reencont ro de um conhecimento anter ior, já ali. Som os aqui
conv idados a nos afastar do model o platônico de co nhec i-
ment o por rememoração, recogni ção, anamnese, para fazer
j ustiç a à possibilidade de uma novidade do conhecimento ,
de uma inovação cog nitiva . E co nceber, port anto, com AI-
thusser, uma dife rença marcante entre conhece r e reco nhecer:
conhece r sendo a operação propr iamente teórica, e reco nhece r
a atividade distintiva do que ele chama ideologia" . Haveria
portanto algum a co isa de propri amente teóric o na atividade
do olhar teatral lançado sobre as represent ações : vinda, for-
mação, constituição de um conhecimento novo. E é esta ativi-
dade teór ica que se produ ziria com o seqüência conclusiva,
47 . Q ue, corno disse mos. recorrem em seu co mentário ao ter mo "reco nheci-
mento" . O". ri t., p. 165. Eles nãosão os únicos: Cf., a respe ito desta mesma
passage m. H. G. Gada mcr, Vérit«et tuéthode , Seui l, 1976, p. 40 . (E m português:
Verdade e M étodo . Tra duçã o de Flávi o Paulo Meurer, Petrópo lis: Vozes, 1997).
4H. "Com efe ito, o caráter próprio da ideo logia é impor (sem que se dê por
isso, uma vez que se trata de 'evidências ' ) as evi dência s co mo ev idências, que
não pode mos de ixa r de reconhecere dian te das quai s tem os a inevitável e na-
tural reação de excla ma r (em voz alta, ou no ' silêncio da co nsc iênc ia '): 'é
e vide nte! é isto mesmo' é mesm o verdade!'. Nessa reação, se exerce a função
de recnnheci tnento ideológico que é um a das duas funções da ideol ogia co mo
ral (o re verso é a função de itrcco nhecinicnto)", OJ!. cit., pp. :103-:104. (E m
português : 0/'. cit., p. 284) .
31
raci ocinante, syl logizestlta i. Poderíamos dizer então que o
que distingue es ta aprendizagem (visual) da outra (prática ) é
o prazer de aprender. E este prazer é um prazer de conhecer.
Um prazer de acesso ao ser do que é visto. Ou: um prazer de
aprendizagem teóri ca . .
Os tradutores ass inalam, efetivame nte , ainda a respeito
deste trecho:
A perspe cti va de Aristóteles não é es t ética (no sentido moderno do ter -
mo). mas antes intelectual, cog nitiva. Qualquer obra num érica [00 .) é uma trans -
posição qu e des prende uma forma (lIIor,,!uís) [ ...) diss.oeiand o-a ~a ~Ilatéri a à
qu al ela es tá associada na natureza. O artista, que põe assun em eVlde~c~a a caus~
formal do objeto , ofe rece à inteligênci a a oport unidade de uma atividade SUl
generis, de um raciocínio sobre a causa lidade que é aco mpa nhado pelo prazer" .
O prazer deve, portanto, ser aqui claramente compreend ido
com o prazer teórico, pra zer da form ação, da gênese (ativida-
de sui generis) de um co nhecimento não anteriormente cons-
tituído. Este co nhec ime nto procede pelo de sprendimento de
um a form a. Isto porque e la é irredutível à visão simples : a
visão apree nde o conjunto co nstituído pela forma e por sua
matéria, a form a não pode ser ali imediatamente isolada. Cabe
ao co nhecimento extraí-Ia. O prazer do conhecimento é o pra-
zer desta abstração. Os comentadores observam logo adiante:
"o qu adro, que abstrai do modelo «forma própria, solicita as
faculdades de raciocínio (syllogízesthai) e proporcion a [00 '] o
prazer da de scoberta, que é simultanea mente prazer de es-
pant o (thaumázein) e prazer de aprende r (man thánein): ' vej a,
é ele ' e 'é es ta, então, sua forma par ticular" '511. O prazer teó-
rico ass im ativo no olha r sobre a representação é o prazer da
descoberta, isto é, um prazer ligado à produ ção da novida-
de, que se determ ina então com o gênese do conhecimen~o ~a
forma. Conh ecimento qu e a coisa não dá quando ela propria
se apresenta, e que resid e na revelação, na abstração de um a
mo rph é. Assi m co ns ide rados , os espectado res de teatro não
49. O". cit., p. 164 .
50. O". cit., p. 165. Co rte i, na citação ac ima, a re ferência, conservada p~­
los autores , ao term o "reco nheci mento", com o obje tivo de torn ar elara a hipó-
tese que le vantei e que se apóia sobre a leitura deles , mas ultr apassa os termos
da interpretação que e les fazem .
32
reconh ecem o que eles já co nhecem, não operam sua identi-
ficação (" ideo lóg ica", co mo diz Althusser), mas fruem da
descoberta, inovadora para eles, da forma daquilo que eles
vêe m. É esta abstração da forma qu e é conclusiva quanto ao
se r. Co ncl uir qu ant o ao se r não é reco nhecer o qu e se vê. É
pro duzi r o desprendimento de uma forma que é a ún ica qu e
detém o recu rso cognitivo . Esta atividade é uma intelec ção.
O prazer que c1a faz nascer é exatame nte de natureza teórica.
Isto signifi ca que não há nenhum lugar, no " teatro" do
qual fala Aristóteles, para o reconhecimento co mo identifica-
ção? Este teatro ignoraria o procedimento recognitiv o ou ideo-
lógico? Não, claro que não. Es te reconh ecim ento figura co mo
tal na Poética so b o nome de anagn árisisê', Mas ainda aqui
trata-se de um reconhecimento interno ao poema: a anagnârisis
é o alo pelo qual um dos age ntes da narrativa desvela, e atribui
uma identidade já conhecida mas até então oculta. É o qu e
aco ntece qu and o Ifigênia reconhece Orest es, se u irmã o, no
recém- chegado. Este reconh eciment o não co nce rne ao elo en-
tre a " platé ia" e o " palco" . Ele se insc reve na histór ia, no sis-
tem a de fatos , na co mpos ição das ações. Ele co ncerne à vertente
ativa do teat ro e não à sua vertente " receptiva" . "De todos os
reconhecim ent os, o melh or é o que resulta dos próprios fatos
Ipragmátml.l"52. O reconhecimento é uma categoria da ação,
não do co nhec ime nto. Ela afeta a prática, não a teoria.
Isto co ncc rnc, de todo modo, claramente, ao reco nhec i-
me nto do outro, ao fato, para um dado age nte, de reatribuir a
um daqu eles qu e o ce rca m uma identidade antes obsc ura,
procedimento que compreendemos bastante bem qu e perm a-
neça co nfinado no interi or da narrat iva . Ari stóteles ev oca,
no entanto , uma segunda espécie de anagn árisis. É o reco-
nhecimento de si, que sobrevé m, por exemplo, (mas o exe mplo
é importante" ) quando Éd ipo se recon hece co mo o culpado que
51. 1459 a 19 s .
51 . 1455 a 16 . C f. também 145 0 a 34 , 145 2 a 16-1 1, 1451 a 31 -38,
1455 b 34 .
53 . Sabe-se que a anagn árisis edipiana é referi da por Aristóte les co mo "a
mais bela" (1451 a 33) . Este privilégio não está relacionado ao rcco nhcc imc n-
33
procu ra. Louis Althusser - novamente - considerava este últi-
mo proced imen to constituti vo da interpelaç ão como sujeito:
Então, sugerimos que a ideologia "atua" ou "funciona" de tal modo que
"recruta" sujeitos entre os indivíduos (recruta-os a todos) , ou "transforma" os
indivíduos em sujeitos (transforma-os a todos) por essa ope ração muito precisa
que designamos por interpelação, que pode ser representada a partir do próprio
tipoda mais banal interpelação policial (ou não) de todos os dias: "psiu, você aí!"
Sup ondo que a cena teórica imagi nada se passa na rua, o indivíduo inte r-
pelad o vo lta-se. Por esse simples movime nto físico de 180 graus , torna-se um
sujeito. Por que motivo? Porque reconheceu que a interpe lação se dirigia "rea l-
mente" a ele e que "e ra realmente ele q ue es lava sendo interpelado" (e não
outra pessoa):" .
E Althusser pro ssegue :
Natura lmente, para maior comodidade e clareza da exp osição de I IO .UO
I'eque/lo teatro te árico, so mos levados a apresentar as coisas sob a forma de
uma seq üência, com um antes e um depois [...l - Mas, na realid ade, as coisas
passam -se sem qua lquer sucessão . A exis tência da ideologia e a interpelação
dos indivídu os co mo sujeitos são uma só e mesma coisa'" .
Por qu e recorrer aqu i a es ta descri ção , que pa rece mui-
to a fas tada de nossas preocupações aris to té licas - e mai s
ge ra lme nte teatra is? É para encontrar nel a, por default , um a
interpre tação possível rel ati va à ausênc ia, em Ari stót e les ,
de qu alquer reconh ecimento de si por par te do espectador.
1,1 foi d ito qu e Aris tóteles co ns idera ins ig nifica nte o reco-
nhec imen to imi tativo dos herói s ou dos " pe rso nagens" , ao
qual pode ria m proced er os es pec tado res em re ferênci a a um a
histó ria j á co nhec ida . Além d isto, e le es tr utura a mimêsi s
co mo ativa representação de ação, e não co mo imitação de
es tado ou de ca r áte r. Neste se ntido , co mpree nde -se qu e e le
não possa aplica r aos qu e olha m o esq ue ma do reconhec i-
to de si, mas 11associa ção do reconhecimento ao "golpe de teatro", ou peripécia
_ ainda q ue a hip ótese de um elo entre estes dois aspec tos não seja indefcns ávcl.
A este respe ito, cf. Philippe Lacouc-Labarthc, L'imitution des nioderues, Gali-
lée , 1986, pp. 48-49. (Em português: ;\ {II/;I a('l;o dos M odemos: E/lSl/;OS So-
bre Artee Filosofia,organização de Virginiad e Araujo Figueiredo e João Cnmillo
Penna, S ão Paulo, Paz e Terr a, 2(00).
54. OI'. cit.. p. 305. (Em português:01'. cit., p. 286).
55. lde nt, p. 306 . Gri fo meu. (E m português: 01'. cit., p. 286).
34
mento d o outro , reservando a anagn árisis aos qu e agem , no
âmbito da própri a narrativa. Mas e le ign ora também qu al -
qu er possibilidade de reconhecimento de s i por parte do
espec tador, co m um a ind iferença so berana , que nos dei xa
tranqüilos, nós que nos ag ita mos tão ru idosam ente em tor-
no dest a questão' ", Em nenhum caso o a uto r da Poética
parece ave ntar a hip ótese de qu e um es pec tado r, di ante dos
infortún ios de Éd ipo , possa d ize r a s i mesmo : aq ue le ali
so u eu" . É aqui qu e A lthusse r nos pod e se r útil. Porque , na
seq üê nc ia qu e acabamos de ler, el e co loca o reconhec ime n-
to de s i sob interpela ç ão como a própria ope ração qu e ins-
titui o indi víduo co mo sujeito. Seguindo es te raci ocínio ,
poderíamos formul ar a hip ótese de um a espécie de so lida-
riedade fund am ental e ntre a subjeti vid ad e ou a subjetiva-
ção e a presunção de culpa, que a seqüência cdipi ana nã o
poderi a desm entir. O reconhecimento de s i, a identificação
(termo co m cujas resson âncias polici ais Althusser joga de
prop ósi to) pod eria , port anto , ser entendida co mo formad o-
ra da co ns tituição (ed ip iana , portant o, c ulpada) do sujeito,
da identidade (pres umive lme nte culpada) do suje ito ed ipia-
no . A cons tituição (cdi piana) de s i co mo suje ito es ta ria nes-
ta inculpaçã o idc ntificado ra: ou nos pro tes tos de inocên ci a
qu e se inscre vem ce rtame nte na mesm a es trutura . Éd ipo se
reconhece - CO/ II 0 culpado: é esta culpa q ue fund a sua auto-
ide ntif icação e a config uração qu e une es tas duas c itações
(so u eu , sou c ulpado) é a mesm a que o co ns titui como sujei-
to . Pod em os então propor urna interpretação rel at iva à au-
sência ra dica l de qu alquer re conhecimento de si pel o
"espectador" no es pe tácu lo da tragéd ia . O es pectado r não
pod e ass im se reconhecer (co mo Édipo, co mo aq ue le qu e é
56 . Platâo aborda uma questão muito próxima (por que nós nos permiti -
mos chora r pela infelicidade de um outro?) mas sem a coloca r. ele tampouco,
em term os de reconhecimento, vendo nela antes algo co mo uma transferência
de prazer. um conuígio do prazer das lágrimas, o que é bem dife rente. ReI'.. X,
606b. Cf. em especial a tradução de P. Pachet, Gallim ard-Folio, 1993, p. 512.
57 . Cf. J. Sturobinski, "H amlet et Freud" , em E. Jones, Hamlet et Oedipe ,
Gallimard, 1967, re edição Tel 1994, p. IX. (Em português: ef'. E. Jones, Hamlet
e o Complexo de É'd;{J/I , tradução de Álvaro Cab ral, Rio de Jane iro, Zahar,
1970).
35
culpa do) po rque não há nenhum lugar, no te at ro do qu al
A ris tóteles dá tes tem unho , para o espectador identifi cado
como sujeito. Nada, na tragédi a qu e o dis posi ti vo ar istoté-
lico nos descreve, in ter pe la o es pectador co mo sujeito, nada
lhe at ribu i a posição pres untiva, j uríd ica , da subje tividade .
O suje ito será apanhado, posteriorme nte, numa outra his-
tó ria - nu m outro Direi to . A Poética co nhece agentes, que
agem , e aq ue les que olham , que con s ider am. M as não há
sujei to- espect ador.
Res umi ndo: o tea tro a respe ito do qua l a Poética dá tes-
temu nho aproxi ma dois campos het erogên eos. O campo da
miniêsis ativa : prod ução, desenho, (re)presen tação de ações .
Es te ca mpo se ap resen ta, diante de nosso olhar mode rno,
co mo curiosamente uni tário: estranho à divi são im itati va e ,
no fundo , não pa recendo co nhecer nosso afas tame nto en tre a
imagem e o rea l. Os agentes pa recem mover-se aí tan to no
plano que nós consideraríamos fic tício, co mo personagens,
quanto naq ue le qu e chamaríamos de cê nico, como atores.
Campo que permanece estranho ao regime do reconheci me nto
ident ificad or , visto que a ide nt ificação tra ba lha pa ra reduz ir
a d iferença representativa, q ue deve , portanto, se r previa-
men te estabe lec ida .
E , diante da mintêsis, o campo de uma visão qu e se pode
cham ar de teórica: cam po on de opera um olha r cognitivo,
qu e abstra i for mas e se co rnpraz com sua e me rgência . Pode-
ríamos objetar que es ta co ncepção teórica do o lha r dos es -
pecta dor es desconhece tudo o que a Poética diz da emergência
das pa ixões , do te rror e da piedade, e , por tanto, da k âtharsis.
N ão podemos ter ce rleza.É poss ível pe nsa r que mesmo o
passion al ou o emociona l só entram neste ca mpo de purados ,
purificados por sua insc rição no reg ist ro de um a atividade de
con hecime nto . E que isto seja o que ca rac teriza a operação
catá rtica .
Da simples visão (llIíml/) das coisas mesmas [...1pas sa- se, diante do pro -
duto da mimêsis, a um olhar ( /ilelireil/ ) qu e se faz acompanhar de intel ecção
(man th áncin ) e, po rtanto, de prazer. A kátharsis trágica é o resu ltado de um
processo .uuilogo : pos to em presença de uma história (11I)'/ /10.1') na qual ele re-
36
conhece as formas , sabiamente elaboradas pelo poeta, que defi nem a essência
do l.uncnuivcl e do aterrorizant e , o espectador experimenta a compaixão e o
terror, mas sob uma forma quintessencial e a emoção depurada que o assal ta
I... ] é acompanhada ele prazer" .
Assi m interpretada, a k átharsis, longe de desper tar nos espec-
tad ores aqu elas emoções em sua pato logia imediata, sub mete
os transportes emotivos a uma purificação que é a da própria
abs tração. A k âtharsis opera como efeito da cognição. Piedade
e terror não escapam à teorização que marca a mimêsis. Ao
menos enquanto são considerados co mo fatos de tea tro, e não
como puras ope rações de assalto ao espectado r pelos terrores do
visívcl' ". Porque Aristóte les estabelece sobre este fundamento
uma distinção, mui to rigo rosa , en tre o espetác ulo e o teatro .
Aqueles qu e, pelos me ios do espetácul o [ÔpSe!IS], prod uzem não o
aterrorizan te mas apenas o mon st ruo so , nada têm a ver com a trag éd ia, po is
não se deve pedir il tra gédia qua lquer tipo de pra zer, mas apenas aque le q ue
lhe é próprio . Ora , como o prazer que o poet a deve produzir ve m da piedade
e do te rro r desp ertados />e/II atividade represe uuuiva Idiá lIIillléselis], é
e vide nte qu e é nosfatos Ip r lÍ gl/ lII si l/"o] 'lI/e e/e deve inscrever isto 1/0 COIII-
por lelll/}() ieréo/l!ÚI.
Assim o espetácu lo é aqui c laramente relac ionado a um regi -
me da visão di re ta, imed iatamente provedora de a fetos . E n-
qua nto que o teatro é pensado a partir da prod ução da históri a ,
oferec ida a um o lha r cognoscente . Teatro teórico, por tanto -
pelo mérito de sua visão dedut iva, lógica - e nq uanto o espe-
tác ulo se ateria à mo stração de mo nstros , à eficác ia patogê-
nica , d ireta do vis ível. Aqueles qu e hoj e se empen ha m em
reabil itar o espetáculo, descobrindo nele as vi rtudes da me -
d iação e da distância (e anexando a e le o teatro, como se este
fosse um a de suas subes pécies) , poderiam ta lvez med itar co m
provei to so bre esta oposição'".
5X. Duponr -Roc e Lallot , op, cit. , p. 190.
59 . 1 45 ~ b 1-6 .
60. Quer dize r, nas açõ es rea lizadas.
6 1. 145~ b 8- 14 . Gri fo meu.
62 . Cf. R. Deb ray: "L 'hommc a beso in d u spcctacle pour acc éder i\ la v éri-
ré", Le MOI/de des Livres, 19-07-96 , p. VIII. E também: "P ourquoi lc specra-
ele?" em Les Cahiers de mcdiologic, I , "La Qucrcllc du spcctacle", pp. 5-1~.
37
A necessidade do teatro , pensado seg undo o modo ar is-
totélico, se revela então como fundament alm ente dupl a: ne-
cess idade d e um a pr ática (cê nica) e de uma te ori a
(es pec tado ra) . Agarradas às duas vertentes da niintêsis, es tas
duas operações parecem respond er a dua s es péc ies de neces-
sidades, amb as naturais, mas que nada de essenc ial liga: ne-
cess ida de de representar, necessidade de o lha r o qu e se
repr esenta. Como co mpreende r então que possa se co nsti-
tuir , em sua unidad e, algo como "o teat ro", para empregar
nossa designação modern a? Qual pode ser a necessidade desta
aprox imação? Aqui é preciso co nje turar : o textoda Poética
não responde nada de ex plícito . Mas podemos nos ave ntu rar
a deduzir o que e le não diz. Pode mos pensa r que es ta un ião
procede, logicamen te, do fato de que es ta prática c es ta teo-
ria se impli cam recip rocamente. A prática não se basta co m
sua auto-efetiv ação, é-lhe necessário se apresentar a um olhar
que distin ga e des cubra suas formas inteli gíveis . O teatro
atestaria portanto que não há prática pura , mas que a prática
(ao menos a prática que desperta os humanos desde a infância,
dand o-lh es a possibilidad e de aprender por [rejprcsentação)
quer ser co nside rada, teo rizada, co nhec ida . Por seu lado, a
visão (teo ria) não pode se bas tar co mo co ntemp lação pura
das co isas em sua fenome nalidade, seu apa recer imedi ato,
sua presença, mas quer co nhece r represent ações, atos mimé-
ticos, práticas: fatos co mpos tos como histór ias. O teatro di-
ria então que são nec essári as à teori a não co isas que se
mostram, mas histórias ativas. Ou : que as coisas jamais se
mostr am , co ntrariamente aos ideologema s da moda, mas que
o conheci mento as apreend e co mo reali zações práticas. E o
teatro , co mo unidade que engloba, respond er ia a (ou: por)
es ta necessid ade: necessid ade, vital ou viva - natur al - , de
uma visão cog noscc nte de histór ias em ato.
A Poética comprova, contra nossos olhos reticent es, a
existênci a deste teatr o de práticos c teóricos associados. Que
e le tenha ou não existido é uma outr a questão: não temos que
decidir aqui se o livro é um documento fiel ou uma ficção
especulat iva. Uma coisa é certa: o sis tema que e le expõe est á
38
hoje, irremediavelmente, destruído. Este teatro não pode , de
modo algum, ser mais o nosso. E a necess idade, even tual, de
nosso teatro não pode abso lutamente result ar de suas dispo-
sições . É preciso tent ar co mpreender o moviment o que nos
lançou para fora de sua paisagem.
39
k &yyyJ!,.r~ íl
1)~ f){ ICiv.iP
II
La p ratique du th éâtre , de François Héd e lin , ab ade
d ' Aubignac , dat a de 1657 1• Seria se m dú vida apaixonante
conh ecer em detalhes a históri a da gênese dessa obra' : texto
engajad o, qu e desejava agir no sentido de soerguer, de recu-
perar o teatro' qu e d ' Aubignac conside rava, j untamente com
muitos de se us contemporâneos , co mo tend o de saparecido
na noite medi eval para só renascer no século XVI, sob formas
men ores , bufas, ignorantes das normas da Arte", Teatro que,
I. L' Abbé d' Aubignac , La Pratique du théãtre,edição es ta belecida e pre-
faciada por P. Manino. Publications de la Facultédes Lellres d ' A lgcr, I' sé rie , l.
11 , J. Carbo nel ed ., Algcr, 1927. Co mo es ta ed ição não é a mais c itada habitual-
ment e, farei refe rên cia aos capírulos, além do núm ero das páginas.
2. Cf. o pre fácio de P. Martino, pp, I-XXIX.
3. C f. " Projeto para a Recuperaçã o do Teatro Fran cês" , lbid., p. 387 sq .
4 . "A un e de co mpor os poemas dram át icos, e de represent á-los. parece
ler lido o mesm o destin o qu e os so berbos edifícios , onde os antigos os havi am
tantas vezes admirado . Ela seg uiu a derro cada destes prédios e por muito tempo
esteve co mo que sote rrada sob as ruínas de Arenas e de Rom a . E qu and o Foi
41
a part ir de meados do século XVII, se procurou restaurar em
se us fund am entos , e levando -o à altura de sua d ign idad e .
D' Aubignac (co nse lhe iro de um Richelieu cujo e ngajame nto
nesta lu ta foi da ma ior importância") tom ou parte ativa neste
co mbate - co m mais algumas pessoas , cl aro. E a história
desta luta co letiva é ai nda mais fasc inante na me dida em qu e
produziu aquilo que pretendia : em 1680 , o teatro tinh a mu-
dado de face , um a outra "prática do teat ro" tinha vindo à luz
e tomado a dianteira.
Ora, lend o o texto do tratado podem os, num primeiro
mom ento, ac red itar que es tamos num uni verso mu ito próxi-
mo ao da Poética . D' Aubignac não pára de citar Ar istóte les ,
cujos princípios ele pretende exp licitar para que sejam nova-
me nte respe itados. Além dis to, a "prática do teat ro" na q ua l
e le se e mpe nha é, na verdade, bastante poética. A ressonâ n-
cia modern a do títul o não nos deve enga nar : a obra não visa
qu estões cê nicas , trabalh o de ato res ou dir eção de trup cs.
Sua "prática" é a do dram aturgo . "Ao lon go desta obra não
tive outro prop ósito senão o de instruir o poe ta de várias parti-
cu larida des que ju lgue i muito importantes para que se for me a
con tento uma peça de teat ro'". Ou, mais precisam ente ainda:
No tocante às observações que era necessário fazer so bre [...] a habilida-
de para prepara r os incidentes, para reunir os temp os e os lugares, a co ntinu ida -
de da ação, a ligação das cenas , os inte rva los dos atos , e ce m outros detalhes,
não nos restou nenhum relato da Antig üidade e os modernos falara m tão pouco
sobre o assunto que é possível di zer que ele s nada esc reve ram a res pei to. É a
isto que ch amo Prát ica do teatro",
Para e le , co mo para Aristóteles, todo o fa zer do teat ro (o que
nós chama ría mos o "fazer teatro" ) est á reunido na escrita, a
fábr ica da s obras desti nada s ao pa lco . E se enco ntra mo s na
obra , co mo em Aris tóte les, algumas observações so bre ou-
recupe rada nos últimos te mpos para ser revivida neste Reino , surgiu como um
corpo ex umado, horrend o, disforme, se m vigor c qua se sem movimen to." Idem,
livro I ca poI, p. 15. Mode rnizei a grafia .
5. tbid., livro I, cap oI, pp. 16-1 7.
6. tu«, livro 111 , cap . l lI, p. 185.
7 . Ibid. , livro I, cap o 111 , "Sobre o que se deve e ntender por Prática do
Teatro" , p. 22 .
42
tros aspectos da "prá tica" , é, no e ntanto, a feitura dos poe-
mas que co nce ntra sua atenção .
Mas d' Aubig nac nos pare ce próxim o da Poética tam-
bém por um a outra razão . É que , seg uindo o uso c láss ico, se u
texto de no ta uma es pécie de indec isão no emprego das pala-
vras "ator" e " personagem" . "Ator" é entendido às vezes em
nosso se ntido moderno: evocando o teatro po uco depo is de
se u "socrguirnento" quando, ainda co nvalescente , e le não ti-
nha se recuperado seg undo os pr incíp ios da ar te , d ' A ubig nac
escreve: "Os atores não tinh am co mpreensão alguma do ofí-
c io que cxcrcia rn' ". Neste caso trata-se dos atores . Mas e le
nota em outra passagem que "os ant igos poetas rarame nte
fazem os atores morrerem em cena?", o que , com ce rteza, se
refere aos personage ns - uso corrente em Cornei lle e em to-
dos os escritores da quela época. De um term o a outro , o se n-
tido pode perm anecer indeterminado, o que poderia lev ar a
acred itar num a es péc ie de indi stin ção aná loga à dos prátton-
tes da Poética: afina l, "ato res " pode va ler co mo trad ução
adeq uada do termo grego e designar, na mesm a ambigüida -
de , aque les que agem no palco!", Ass im d' A ubignac , lendo
Ar istóte les , opõe o coro "aos outros ato res que são, em geral,
be m mais atuantes" !I , o qu e, para nós, pode ser co mpreend i-
do tant o como re ferênc ia aos outros perso nage ns , mais enga-
jados na históri a , qu ant o aos outros intér pretes, mai s ativos
na represent ação. Uma Ilu tuação co mparáve l ati nge a pala-
vra "personagem". Ela vale, co mo hoje, para o ser de ficção:
d ' Aubignac cita Dem ósten es que, para falar mal de Ésquino,
quer " reve lar que e le tinh a sido histri ão, mas muito ruim e
representava apenas o terceiro pe rsonagem''P; aqu i, "pe r-
so nage m" é empregad o numa acepção mais próx ima do uso
mod ern o . Enquanto qu e, qu and o e le nos rec ord a "que no tem-
8. iu«, livro I, ca poI, p. 15.
9 . lbid., livro 111 , cap. Iv, p. 208 .
10. Um séc ulo mais ta rde, Rémond de Sai nte-A lbinc citará ainda "a desig-
nação de ato res, qu e só é atribuída aos personagens de uma obra dramát ica
porq ue es tes devem ser sempre age ntes" . Cf. Lc Comédien, em Didenn e/ te
thé âtre ll.L 'Acte ut; apresentação A. Mesnil , Agora-Pockct, 1995, p. 203 .
11 . tu«, livro 111 , ca poIV, p. 198.
12. lbid., livro 111 , cap o111 , p. 192. Gr ifo meu .43
po de Tésp is havia [...] coros antigos e atore s que fazi am este
I/ OVO Personagem ou Histriã o" , o termo, tom ado co mo si nô-
nim o de histri ão , de sign a a aparição do ator corno tal!'. Nu-
ances refin adas : mas cujo refin am ento ates ta qu e as palavras
deslizam com facilid ade de um sentido a outro . Poderíam os,
porta nto , supor qu e d ' Aubignac , co mo Aristó te les , es tava
pou co preocupado em dis ting uir aque les que age m na histó-
ria daqu eles que age m no palco.
Ora, não é nad a disto. O equívoco é de língua, todo o
es forço de d ' Aubignac, ao contrário, pretende reduzi-l o. Sua
iniciati va, mesm o tribut ária da Poética e ac red itando ser- lhe
fiel , de fato, de la se distancia, ass ume se ntido por es ta d is-
tância e se empenha em aprofundá -la.
A prim eira diferença, por onde a distância se instaura,
diz respeit o à atitude em relação aos espe ctador es. A Poéti -
ca , co mo vimos , é (para expressá-lo em termos mod ern os)
poética , ao mesm o tempo, da ação e do olhar. Os dois domí-
nios, d ist intos , procedem de du as necessidades di stintas, mas
o fato do teatro os reún e e os torn a so lidá rios . Com La Prati-
que du th éãtre , embora não pareça, não é bem isto o qu e
ocorre . D' Aubignac intitula um capítulo " Dos espectadore s
e d o m od o como o poeta os deve con siderar" . N el e ,
d ' Aubignac menciona, mas para dela se dem arcar, a possibi-
Iidade de uma espécie de teor ia da pos ição es pectadora .
Meu objetivo não é aqui ensinar àqueles que vêem representar uma tragé-
dia o silêncio que eles devem respeitar, a atenção que devem prestar, o
comedimento que devem ter quando a julgarem, com que espírito devem
cxnminti-la, o que devem fazer para evitar erros [...] e mil outras coisas que
talvez pudessem com muua propriedade ser explicadas",
Este ens iname nto seria muito norm at ivo: mas tod a a inicia-
tiva de d ' Aubig nac é, ao mesmo tempo, crítica e prescritiva .
O exame se ria, port ant o, ca bíve l e, co nfo rme D ' Aubignac
13. lsto é, e d' Aubignae insiste nisto: aquele que representa sem cantar.
lbid. , livro 111. eap. IV, p, IX9.
14. OI' . cit, livro I, cap. VI, p. 34. Grifo meu.
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insinua, não desprovido de utilidade. O aut or não va i se de-
dicar a ele . "Pretendo fala r dos espec tado res por ca usa do
poeta , e apenas em rel ação a ele, para lhe dar a conhecer
com o ele os de ve ter em mente qu and o trabalh a para o tea-
tro" !". A prática é, port ant o, neste caso, exclus iva me nte, um
fa zer: fi cará faltando a outra aná lise. O pensam ento do olhar
só ex istirá co mo ausência.
Ma s obse rve mos , a lém disto, qu e, lon ge da unid ade co n-
cedida por Ari stóteles à práxis cê nica como ação, a prática
de d ' Aubignuc abre sobre dois espaços profundamente hete-
rogêneos , cuja un idad e con tradit ória o teatro terá co mo tare-
fa assu mir. O abade ded ica o essenc ial de se u esforço teóri co
a insc rever, acusar, aprofunda r a d istinção entre e les . Qu ais
são es tas du as instâncias? Por um lado, o que ele chama de
espetácul o, o u represent ação, dom ínio daquil o que e fetiva-
mente acontece em cen a: "São prínc ipes desenhados, pal ácios
em telões co lorido s, mort os de mentira ." Há aí atores , ce ná-
rio , maquinari a. "Faz-se falar os personagens em língu a vul-
ga ri!" e a li todas as co isas de vem ser se nsíveis" !' . A es ta
verte nte se opõe o que d ' Aubig nac chama "a história verda-
de ira, ou qu e se supõe verdadeira" . Regist ro do que aconte-
ce u fora da representação e, portanto "de ve rda de" - es ta
verdade rea l ou supos ta , qu e parti c ipa exatamente do que
nós cha mamos ficçã o: a co isa representada, o significado do
signo teatral (histó ria, per son agen s, discurso e ações), e m
sua hete rogene idade em relação à própria representação, à
concretude cê nica daque les que rep rese ntam . Neste campo,
"as pessoas [...1são co nside radas pelas ca rac terís ticas de sua
co nd ição, idad e , sexo, seus discursos são co ns ide rados co mo
tend o sido pronun ciados , suas ações como tend o sid o execu-
tada s" . É verdade que d ' Aub igna c acrescenta: "se i que o poeta
é sobera no, qu e ele dispõe da orde m e da econo mia de sua
peça como lhe ag rada , [... ] e que ele invent a as int rigas".
Mas isto não afeta a distinção de que se está tratando, porqu e
"é, co ntudo , verdade qu e tod as es tas co isas de vem se r tão
I ) . lbid..
16 . Quer dizer, em Irancês, mesmose, suposuuncnrc, eles são gregos.
17. lbid.. pp. 34-3) .
45
bem orde nadas que pareçam ter acont ecido por si mesmas
[...] E, apesa r de ele ser o autor, ele deve manejá-las com tal
habilidade que simplesmente não pareça que ele as esc re-
veu"IX. Trat a-se portanto de uma verdade suposta, mas cuja
hipótese sustenta a existência do teatro.
Ora , estes dois regi stros diferem radi calmente quanto
ao olhar. No espetáculo ou na representação, "h á espectado-
res'' !", A presença deles ali é muit o ativa. "O poeta, levando
em co nside ração em sua tragédi a o es petác ulo ou a represen-
tação, [...] faz tudo o que sua arte e se u es pírito lhe podem
sugerir para torná-Ia admiráve l para os es pec tado res: porque
ele trabalh a para agradar a eles". Este primeiro registro é,
portanto, regido pelo imperativo do prazer, porque os espec ta-
dores constituem o horizonte da represent ação . Na represen-
tação o poeta "procurará todos os meios de conquistar a estima
dos espectadores que, naquele momento, estão presentes ape-
nas em seu espírito"?", Na representa ção, os espectadores são
reis , o prazer deles é a regra. No seg undo domínio, onde o
poeta "considera em sua tragédia a história verdadeira ou que
ele supõe verdade ira" , ocorre o contrário e esta preocup ação
deve passar a um seg undo plano. Aqu i o critério de legitim i-
dade é de natureza compl etamente distinta, é a verossimilhan -
ça, conceito-chave que d' Aubignac esc reve segundo a grafia
antiga "v ray-sembtance'"; com um traço de união para nós
muito sugestivo. Desejando ser-lhe fiel, o poeta " faz tudo como
se não houvesse espectadores" e os personagens devem agir
"como se ninguém os visse nem ouv isse, fora aqueles que es-
tão em cena atuantes'?' .
A dist inção entre o regime da rep resent ação e o da his-
tória se apóia, em fim de co ntas, na presença (e fetiva) ou na
ausência supos ta dos espec tadores. Ali a prát ica do teatro se
cinde: unificada em Aristóteles, como ntintêsis práxeõs, e la
vai se div idir entre uma prát ica e fetiva, cênica , subme tida à
18. tu«, pp. 35-36 . GriFo meu .
19. lbid. , p. 35.
20. tu«, p. 38. GriFo meu.
" Numa tradução literal: verdadeira-semelhança ou verdadcira -parccen-
ça. (N . da T.)
21. Ibit/. Gri Fo meu .
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existência dos es pec tado res e a se u prazer, e uma referência
sup osta, que nós chamaríamos de imag inária, da qu al todo o
públi co es tá, por ass im dizer, ausent e. A prática expulsa para
além de si própri a a lógica das ações. Ela a escorraço", sub-
metend o-se, a partir disto, a algo com que Aristóte les não se
h~1Vi a p~'eocupado : a ação imaginária, o sis tema de stas es pé-
cie s de idealidades teatr ais, dotadas de vida própria, que trans-
cendem a represent ação porque ficticiamente sem plat éia e,
port anto, em alguma medid a, privadas (de qualquer públi co
que exija que lhe proporcionem prazer). A qu arta parede não
vai de morar a cair.
O gesto espec ífico (e a contribuição singular) de La Pra-
tique du tli éãt re co nsiste no fato de traçar, mu ito me todica-
mente, e, é preciso reconh ecer, talent osamente, es ta c livagem
no ce rne de todos os elementos que compõem o teat ro (luga r,
temp o, ação) a fim de tirar as con seqü ênci as propícias à re-
generação da arte. Pedim os licença para citar aqui, de forma
um pouco long a, a belíssim a página do capítulo "So bre a
mistu ra da represent ação com a verdade da ação teatral" , na
qual d ' Aubignac resum e e reitera o trabalho desta dissocia-
ção que e le quer instau rar :
Cha mo, pois , de verdade da ação teatral a história do poema dramático,

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