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ESTUDO DA SOCIEDADE Marli de Fátima Silva Cidade Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Identificar o que é cidade e a complexidade do seu funcionamento. � Explicar os diversos conceitos engendrados no desenvolvimento do fenômeno urbano. � Reconhecer o processo histórico da urbanização tardia brasileira e suas profundas contradições. Introdução Ao longo deste texto, você acompanhará a edificação de uma cidade, base do processo de urbanização que aconteceu de maneira intensa no pós-Revolução Industrial, sobretudo ao longo dos séculos XIX e XX. No decorrer dos estudos, você entrará em contato não apenas com o con- ceito de cidade, mas também com o processo de funcionamento dela, assim como com a conceituação concernente ao intrincado fenômeno urbano, seguido de uma reflexão a respeito da urbanização brasileira e suas contradições. A definição do termo “cidade” Um famoso dicionário brasileiro (principalmente antes de o Brasil ingressar — de modo seletivo— na era digital) define cidade como um “complexo demográfico formado, social e economicamente, por uma importante concen- tração populacional não agrícola, dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural” (FERREIRA, 1986, p. 403). Embora essa definição seja simples para apresentar um processo de com- plexidade ímpar na realidade da humanidade, possui alguns conteúdos es- senciais para iniciar a reflexão desse fenômeno cuja história se estende desde a Antiguidade clássica até o contexto mundial contemporâneo. Se ao longo de sua extensa jornada passou por altos e baixos, o fenômeno urbano vem configurando as feições mundiais contemporâneas, pois na atualidade, com uma população humana que superou os 7 bilhões de habitantes, a maioria já vive em cidades. As cidades são formadas por assentamentos demográficos de extrema diversidade no que diz respeito às atividades econômicas desenvolvidas em seu interior; assim, sob o ângulo do uso do solo ou das atividades econômi- cas que a caracterizam, a cidade corresponde a um espaço de produção não agrícola. Trata-se, portanto, de um espaço manufatureiro ou industrial, mas, sobretudo, de uma localidade dedicada ao comércio e à oferta de serviços, ou seja, dedicada, por excelência, ao setor terciário da economia — embora haja cidades de função industrial. Para o sociólogo alemão Max Weber, em artigo publicado em 1921, uma cidade é, primordial e essencialmente, um local de mercado, embora nem todo “local de mercado” seja uma cidade; meticuloso, Weber atenta para localidades nas quais ocorre a prática mercantil fora de um espaço citadino, caso da existência de mercados periódicos em assentamentos como aldeias. No entanto, enfatiza que toda cidade é um local onde ocorre um intercâmbio regular de mercadorias — remetendo ao início deste texto, o dicionário Aurélio chama atenção para a questão do mercado. Outro alemão, o geógrafo Walter Christaller, introduziu uma contribuição importante com o conceito de “localidade central”: toda cidade é, na perspec- tiva geoeconômica (atividades econômicas vistas a partir de uma perspectiva espacial), uma localidade central, de nível maior ou menor de acordo com sua centralidade, fato dado a partir da quantidade de bens e serviços ofertados, os quais permitem atrair compradores apenas das redondezas, de uma região inteira, de todo o país, conforme o nível de sofisticação do bem ou do serviço, ou, ainda (como ocorre em tempos de internacionalização do capital, o que contribuiu para o aparecimento de cidades globais), de outros países. Ademais, devido ao fato de sediar os poderes político e econômico por meio de empresas (estatais ou privadas), a cidade constitui um “centro de gestão do território”. Para além dessas duas definições pioneiras — e ainda hoje muito úteis — a respeito do entendimento do fenômeno urbano, e para além daquela definição do dicionário, é fundamental colocar em fluxo o fator humano, que, natural- mente, ao longo de toda a história fundamentou a existência da cidade e de toda a gama de contradições que ela sempre carregou. Uma cidade não é apenas um local onde as pessoas trabalham e produzem bens que serão comercializados; é um local onde as pessoas se organizam e interagem com base em interesses e valores dos mais diversos, formando grupos de afinidade e de interesses bem definidos ou moderadamente definidos Cidade2 territorialmente nas identidades culturais e territoriais que seus membros buscam manter e preservar. Ou seja, a cultura desempenha um papel crucial na produção do espaço urbano e na projeção da importância de uma cidade para fora de seus limites físicos. Experiências humanas se materializam es- pecialmente na forma de cidades, que também constituem entes simbólicos. Toda cidade é uma entidade socioespacial de compreensão laboriosa — na- turalmente, as maiores carregam mais complexidade. Assim, os seres humanos, com seus processos e práticas sociais, são os responsáveis por animar o núcleo urbano e estão envolvidos na dinâmica da produção do espaço urbano. Classificação das cidades Para ampliar o conhecimento a respeito das cidades, seja para entender esse arranjo espacial fundamental da organização humana, seja para melhor intervir nos seus rumos, ou para empreender seu planejamento, é possível classificar as cidades segundo uma série de aspectos e critérios, entre os quais se destacam os seguintes. Quanto à origem, as cidades podem ser classificadas como espontâneas (também denominadas como naturais), corresponde às cidades que surgem e se expandem sem um plano previamente elaborado de urbanização. Desse modo, é comum que suas ruas sigam trajetos tortuosos ou estreitos, e eventualmente os dois ao mesmo tempo. Por outro lado, é comum que seus bairros mais no- vos sejam elaborados dentro de critérios e padrões organizativos, mostrando diferenças flagrantes. Essa condição urbana abrange a esmagadora maioria das cidades do mundo, de São Paulo a Nova York, passando por Pequim, Cidade do México, Santos, Poços de Caldas e São João da Boa Vista. Por outro lado, uma cidade pode ser planejada (também chamada de ar- tificial), quando sua construção é precedida por um plano prévio, que lhe garante racionalidade organizativa quanto ao uso dos espaços, com setores bem definidos. Brasília, capital brasileira, e Palmas, no Tocantins, são dois exemplos dessa modalidade urbana. Quanto ao sítio urbano, há uma diversidade de condicionamentos da cidade. Em uma definição mais ampla e contemporânea, sítio urbano é tratado como o lugar onde a cidade se desenvolve, e pode ser uma planície, um planalto, uma montanha, ou outra formação espacial natural que influencia na dinâmica urbana, desde sua arquitetura até mesmo uma possível função urbana. É possível também classificar as cidades quanto à função urbana, ou seja, os possíveis papéis econômicos que elas possam desempenhar no contexto de 3Cidade uma lógica da divisão do trabalho; nesse sentido, quando sua economia gravita em torno da atividade fabril, há espaços urbanos que ganham contornos de cidade industrial, pois possuem um parque industrial alentado, a ponto de este se tornar sua principal fonte geradora de receita — como ocorre com a cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo. Há o caso de cidades que possuem a economia baseada em atividade portuária, como Santos (SP), no Brasil, ou Hamburgo, na Alemanha. Há, ainda, cidades que ancoram sua economia no turismo, como a brasileira Porto Seguro, na Bahia, ou Cancun, no México; na atividade religiosa, como Aparecida, em São Paulo, Juazeiro do Norte, no Ceará, ou Meca, situada na Arábia Saudita; ou histórica (Ouro Preto, em Minas Gerais, e Atenas, na Grécia), entre outras tantas funções possíveis. Toda e qualquer cidade apresenta os mais variados tipos de espaços, de acordo com a atividade predominante. Em áreas residenciais, não se encontra muito mais doque um comércio de bairro; já em espaços com comércio e serviços se observam verdadeiras localidades centrais intraurbanas. Os espaços onde as atividades de comércio e serviços se concentram são de vários tipos: a grande maioria das cidades possui um “centro” muito evidenciado, que geralmente corresponde à localidade onde a urbe foi fundada. Esse “centro” abriga prédios de valor histórico-arquitetônico e, no caso das cidades maiores, tendeu, muitas vezes, a se expandir e evoluir até atingir as dimensões de uma moderna área central de negócios, mais conhecida como Central Business District (CBD). O CBD sozinho não daria conta de atender a todas as demandas da cidade por bens de consumo não rotineiros, assim, à medida que cresce, a cidade vê crescerem as distâncias e a combinação de densidade demográfica — distância em relação ao centro e à renda da população. Isso faz aparecerem importantes subcentros de comércio e de serviços, o que evita que os moradores dos dife- rentes bairros precisem se deslocar para o CBD sempre que precisam adquirir algo além de pão, leite ou jornal. Os subcentros apresentam um status que reflete as características socioeconômicas da população que reside em seu território; desse modo, há subcentros de status elevado, de status médio e, até mesmo, subcentros populares, na periferia metropolitana. A função urbana e o sítio urbano de uma determinada cidade podem redundar em uma situação urbana, que corresponde à posição da cidade no contexto de uma determinada região, caso de Campina Grande, por exemplo, que corresponde a uma situação de entreposto agreste-sertão no Estado da Paraíba, na região nordestina brasileira. Cidade4 Por fim, vale destacar dois fatos recorrentes no Brasil e no mundo; o primeiro diz respeito a questões comportamentais que levam pessoas a se deslocarem dos grandes centros em direção a cidades menores e, até mesmo, para o campo, em novas experiências de trabalho que se avança espacialmente. Salvo certo exagero, há até uma expressão para identificar o fenômeno, “des- metropolização”. O segundo diz respeito a um evento que tem sido chamado de “rurbanização”, que trata da expansão das atividades terciárias em direção ao espaço rural, palco de atividades econômicas denominadas primárias, e, também, das mudanças no modo de vida e uma nova organização socioespacial do homem do campo. Urbanização versus crescimento urbano De tudo que vimos até aqui, você já notou que a urbanização é um processo radical de intervenção humana sobre o espaço geográfico contemporâneo; envolve realidades humanas distintas a partir do momento em que ocorre a transferência de pessoas do campo para a cidade; trata-se de um fenômeno capaz de traduzir a realidade social, econômica e cultural de uma sociedade, e, portanto, não é um fenômeno que ocorre de maneira homogênea no mundo contemporâneo, ainda que a maioria da população mundial resida em cidades. Teoricamente, a urbanização corresponde ao crescimento do meio urbano em relação ao rural e, portanto, à reestruturação espacial das sociedades envolvidas nesse processo, que pode ter ocorrido de modo mais rápido ou mais lento, conforme a localidade em que o fenômeno aconteceu. Portanto, é um processo de modificação de toda uma sociedade e envolve ampla porção territorial e grande contingente demográfico. Desse modo, o conceito de ur- banização vai além do crescimento populacional do meio urbano, trata-se do aumento do contingente populacional da cidade sobre o contingente do campo. Para que esse fenômeno ocorra, é necessário haver êxodo rural, ou seja, a transferência massiva da população do campo para as cidades. Assim, urbani- zação lastreia um processo de modificação de toda uma sociedade, envolvendo ampla porção territorial e grande contingente demográfico. Desse modo, por trás dessa conceituação em princípio bastante simples, em sua lógica numérica, o processo de urbanização envolve realidades sociais, políticas, econômicas e culturais carregadas de grande complexidade, pois ocorre a partir de uma grande travessia, o êxodo rural. 5Cidade Estatuto da cidade — Lei que estabelece normas de ordem pública e interesse social para regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O Estatuto vem ao encontro de uma postura aberta pela Constituição brasileira que pensou a necessidade do uso do solo urbano enquanto função social. Fonte: São Paulo ([2018]). Os diversos conceitos acerca de organização e vida urbana A urbanização intensificou-se imensamente após a Revolução Industrial, que teve início na Europa (mais especificamente na Inglaterra), em meados do século XVIII, e se expandiu para as áreas periféricas do capitalismo principalmente na segunda metade do século XX. Devido à grande complexidade que o fe- nômeno urbano atingiu no mundo contemporâneo, houve uma multiplicação de conceitos relativos à organização e à vida urbana. A seguir, são destacados alguns dos mais fundamentais. Da conurbação urbana à “cidade-dormitório” Conurbação urbana é a denominação dada à junção territorial de duas ou mais cidades limítrofes até formarem um único núcleo — é comum às pessoas se deslocar de um município para outro, dentro de uma área conturbada, e sequer notar seus limites. A conurbação urbana é muito comum em áreas bastante urbanizadas, e provoca diversos problemas relacionados ao uso do solo e das infraestruturas urbanas, como transportes, tratamento e fornecimento de água, serviço de esgoto e de coleta de lixo, entre outros. A fim de que as cidades desse tipo de complexo urbano desenvolvam alternativas satisfatórias para tais problemas, surgem as regiões metropolita- nas, que correspondem a um conjunto de municípios próximos e integrados a uma cidade principal (metrópole) pelo aspecto socioeconômico, com serviços públicos de infraestrutura comuns. O caso mais expressivo desse fenômeno Cidade6 no Brasil é a cidade de São Paulo, que está conurbada com quase todos os municípios limítrofes. A migração pendular acaba por tornar-se mais um dos problemas que ocorrem nas áreas conurbadas, onde há forte interdependência entre os mu- nicípios, com tendência a mais influência das cidades maiores, que possuem centralidades, também, maiores, sobretudo a metrópole, onde o custo de vida, em geral (e os aluguéis, em específico), são maiores, o que obriga a população de menor renda a residir em cidades menores, cumprindo um exaustivo des- locamento de trabalho cotidiano, considerando que uma das infraestruturas mais precárias é o transporte coletivo. Essa condição urbana provoca, também, o surgimento das chamadas “cidades-dormitórios”, nas quais os residentes não possuem a vivência do cotidiano de seus lugares, pois não vivenciam o seu turno diurno. O Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta para uma população predominantemente urbana no Brasil, que denota novas formas de migração humana, entre elas a migração de tipo diária (pen- dular), um típico movimento urbano-urbano local (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016). Da metrópole à megalópole Nos municípios onde ocorre a conurbação, surgem as regiões metropolitanas, as quais gravitam em torno de uma metrópole, que corresponde a uma cidade de elevado desenvolvimento urbano que promove intensa centralização ao seu redor, provocando a gravitação de uma extensa porção da rede urbana em torno de si, em razão da concentração de atividades econômicas, como comércio e serviços especializados, e, por conseguinte, do capital e da geração de empregos das mais variadas exigências de qualificação. Note-se que o conjunto de cidades conurbadas à metrópole e que gravitam imediatamente em torno dela constitui uma região metropolitana. A expressão megalópole corresponde a um aglomerado (uma conurbação) de várias regiões metropolitanas, caso de uma faixa que se estende pela costaleste norte-americana, de Boston a Washington DC, e compreende Nova York, Filadélfia e Baltimore — daí sua denominação de Bosnywashou Bos-Wash. Esses tipos de aglomeração são típicos do mundo criado pela Revolução Industrial, mas tornaram-se muito expressivos e evidenciados na segunda metade do século XX. 7Cidade Na porção densamente urbanizada do nordeste dos Estados Unidos, chama atenção outra megalópole, a Chipitts (estende-se de Chicago a Pittsburgh); outra megalópole estadunidense se situa na Califórnia, em uma das regiões mais ricas do mundo, sendo integrada pelas metrópoles de São Francisco, Los Angeles e San Diego. É informalmente conhecida como San-San. Diferente da megalópole Bosnywash, na californiana, o grau de conurbação é bem menor; no entanto, as cidades que a compõem estão fortemente integradas por mo- dernas redes de transportes e telecomunicações. No mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que há uma rede de cidades, estas estão interconectadas globalmente por redes, sendo as cidades globais um bom exemplo disso. Há megalópoles em outras localidades, como na Europa, onde há extensas áreas de conurbação (caso da Londres-Birmingham-Manchester, uma área econômica britânica de grande importância), e no Japão (Tokaido se localiza no sudeste japonês e abrange a capital, Tóquio, além de cidades como Osaka, Kyoto e Kobe, entre outras). No Brasil, há anos vem se formando uma mega- lópole entre as regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro no rodoviário da via Presidente Dutra, situada no Vale do Paraíba. Quantidade versus qualidade: megacidades e cidades globais O conceito de “megacidades” corresponde a uma definição quantitativa. Por definição, são áreas urbanas com mais de 10 milhões de habitantes — os pesquisadores da área afirmam que o mundo possui cerca de 60 megacidades, as quais abrigam mais de 600 milhões de pessoas. Atualmente, é nessas áreas que ocorre a maior parte do processo de urbanização global. Já o termo “cidade global” corresponde a um conceito qualitativo, pois essas cidades — também conhecidas como metrópoles mundiais — possuem influência em âmbito mundial, influenciando, portanto, os centros urbanos do próprio país e de outras áreas do planeta. São algumas características típicas dessas cidades: influência e ativa participação em eventos internacionais — Nova York, por exemplo, sedia a ONU, enquanto Bruxelas é sede da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); área central com significativo contingente demográfico (embora não seja o essencial); presença de aeroporto internacio- nal de grande porte, que serve como base para linhas aéreas internacionais; sistema avançado e eficiente de transportes, fato que inclui vias expressas, Cidade8 autoestradas e sistemas de transporte público; sedes de grandes companhias, como conglomerados e empresas transnacionais, que contam com bolsa de valores de projeção mundial com a presença de instituições financeiras de porte, ou seja, um polo financeiro; infraestrutura avançada de telecomunicações e presença de aparato cultural, com museus, centros de referência multicultural, bibliotecas, pinacotecas, teatros, cinemas, entre outros. Seguramente uma das maiores marcas dessas porções territoriais é a cosmologia humana que elas apresentam, pois há um gigante fluxo local e internacional de pessoas, o que lhes confere caráter cosmopolita, com um talhe multicultural e multicomportamental. Nas metrópoles que recebem mais migrantes, são publicados periódicos, até mesmo diários, em variados idiomas. Rede e hierarquia urbanas A rede urbana é o conjunto articulado de cidades, desde as pequenas aos grandes centros urbanos, que se integram em escalas mundial, regional e local por meio de fluxos de serviços, mercadorias, capitais, informações e recursos humanos. A rede se configura, portanto, pelo sistema de cidades interligadas umas às outras por meio do sistema de transportes e de comunicações. O professor Milton Santos (1994) nos lembra que vivemos em um meio técnico-científico e informacional, e, nesse contexto, o entendimento das articulações da rede urbana nos leva ao reconhecimento de que esta apresenta intensa fluidez devido à integração da rede de cidades em redes informacionais, o que promove a flexibilização das relações intralugares, em vez da rigidez verificada em um passado não muito distante — destarte os altos e baixos do desenvolvimento tecnológico no Brasil do último triênio do século XX, algumas instituições empresariais iniciam processo de integração tecnológica nos anos 1970. É comum que essa rede redunde uma estruturação por meio de uma hierar- quia, em que as cidades menores costumam ser relativamente dependentes das cidades maiores e economicamente mais desenvolvidas. Nesse caso, quando cidades de maior porte exercem influência nas cidades de menor porte, ocorre uma determinada estrutura econômica e, por conseguinte, uma rede de liga- ções e de influências entre os centros urbanos, como no caso brasileiro, que possui — segundo classificação do IBGE — uma divisão em cinco grupos de cidades (metrópoles, capitais regionais, centros sub-regionais, centros de zona e centros locais). 9Cidade Nos links a seguir, você poderá ampliar o conhecimento a respeito de dois temas capitais da urbanização brasileira. O primeiro, produzido pelo IBGE, apresenta a classificação da hierarquia urbana brasileira que organiza a nossa rede urbana. O segundo, produzido por docentes e pesquisadores da Escola Politécnica da USP, apresenta um estudo pormenorizado da metrópole paulistana, que, além de centralizar a rede urbana brasileira, é a síntese dos problemas desse modelo de formação territorial no País. https://goo.gl/mhSmUc https://goo.gl/hE8fvm As contradições no processo da urbanização brasileira O conjunto das formações urbanas brasileiras constitui a rede urbana nacional, uma estrutura altamente dinâmica, que foi construída ao longo de um processo histórico com suas idiossincrasias, que lhe conferem características muito particulares, como as gigantescas contradições que marcam a urbanização brasileira. Esse processo remonta aos primórdios da construção do Brasil, ou seja, à própria estruturação da colônia, quando Portugal — com sua economia mercantilista e seu regime feudal muito particular — organizou o território colonial na forma de “capitanias hereditárias”, com a intenção de tomar posse das terras encontradas em 1500. Essas faixas de terras eram doadas pelo rei a nobres e outras pessoas de confiança, denominados donatários, cuja função era a de colonizar o novo território, ou seja, administrá-lo, protegê-lo e promover o desenvolvimento de atividades econômicas de interesse da metrópole. Em razão das particularidades de uma colonização agroexportadora de fixação rural, as cidades brasileiras se desenvolveram ao longo do litoral e, com isso, não possuíam muita importância política ou econômica, daí serem historicamente marcadas por elevados níveis de pobreza e por graves problemas de salubridade urbana, como no caso dos dejetos lançados nas ruas à espera das chuvas, situação que se agravava mais ainda quando cadáveres — desta- cadamente de escravos — eram depositados nos monturos de lixo e torrenciais chuvas tropicais espalhavam a lama pelas ruas — nesse contexto, surgiram as primeiras cidades brasileiras, como Igaraçu, em 1527; Marim (Olinda), em Cidade10 1530; Recife, em 1531 (todas em Pernambuco); São Vicente e Itanhaém, 1532 (em São Paulo) e Vitória, em 1535 (Espírito Santo). A ocupação do Brasil a partir de 1500 significou, também, o massacre e/ ou a transculturação de nativos que ocupavam seu vasto território e, antes da chegada de Pedro Álvares Cabral, se organizavam sob a forma tribal, com configurações culturais distintas da portuguesa. Nesse contexto, os primei- ros embriões das cidades são os aldeamentos indígenas — desenvolvidos sobretudo por jesuítas, mas tambémpor franciscanos ou dominicanos, entre outras companhias religiosas. Em geral, esses aldeamentos possuíam uma formatação de “tabuleiro de xadrez”, dentro do qual a Igreja possuía uma posição de destaque. A cidade de São Paulo, capital do Estado homônimo, é um caso expressivo de cidade desenvolvida nesse período.Por outro lado, cidades como Salvador, no Estado da Bahia, Natal, capital do Rio Grande do Norte, Fortaleza, no Ceará, Manaus, a capital do Estado Amazonas, e Belém, no Pará, tiveram origem na função militar. Naturalmente, os clássicos ciclos econômicos são criadores de cidades, caso do “ciclo do ouro”, que gerou suas cidades, atualmente denominadas de “cidades históricas”, as quais retiram boa parte de sua receita do turismo histórico (casos de Ouro Preto, originalmente denominada Vila Rica, em Minas Gerais; e de Ouro Fino, em Goiás). A atividade mineradora, sobretudo nas Minas Gerais, intensificou o deslocamento de tropas em direção à região aurífera, o que exigiu a abertura de caminhos, induzindo, assim, o surgimento de núcleos urbanos, como Pouso Alegre e Pouso Alto, em Minas Gerais. Para chegar a Minas Gerais e Mato Grosso em busca do ouro, os bandeirantes passavam pela região da atual Sorocaba. Há, inclusive, uma significativa lista de casos de cidades associadas à mineração. Porém, no sentido do fenômeno urbano, o mais prodigioso dos ciclos foi o da cafeicultura, que dinamizou intensamente o espaço, como no caso da construção de estradas de ferro, ao longo das quais surgiram cidades — por vezes, aldeias e pousos já instalados tornaram-se cidades. Ainda nesse contexto, a partir de 1850, foi intensificada a vinda de imigrantes (destacadamente para a lavoura do café) que contribuíram para a intensificação e a renovação urbana: a arquitetura foi diversificada com a contribuição de italianos e ingleses, entre outros grupos humanos. Note-se que, nas cidades surgidas no período, a rua principal parte da estação ferroviária e, invariavelmente, há uma praça na qual foi edificada a igreja matriz. Com a dinâmica demográfica, social, econômica e política, desencadeada pela cafeicultura, ocorreu a abolição da escravatura e intensificou-se a cir- culação humana em direção a alguns centros urbanos, como São Paulo e Rio 11Cidade de Janeiro, onde se avolumou o fenômeno urbano da moradia precária e das populações marginalizadas espacialmente, caso das favelas, das estalagens e cortiços. Assim, em razão do pujante ciclo do café, no final do século XIX, o capi- talismo firmou-se no Brasil, provocando uma nova dinâmica econômica que afetou os meios rural e urbano. Houve, a partir daí, um crescimento territorial e populacional das cidades, em um processo contínuo que se intensificou substantivamente no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando foi realizado o desenvolvimento industrial amparado no capital externo. No contexto dessas transformações espaciais verificadas pelo Brasil, ao longo do século, sobretudo após a Segunda Guerra, houve: � Intenso êxodo rural, que atingiu a região Sudeste com maior intensi- dade. Esse fenômeno contribuiu tanto para o processo de urbanização, quanto para o inchaço urbano, uma vez que a dinâmica da economia e o desenvolvimento de infraestruturas essenciais, como educação, saúde, saneamento e lazer, não acompanharam o crescimento populacional. O êxodo rural foi consequência de um conjunto de fatores: principalmente a inserção das relações de produção capitalistas no meio rural, por meio da introdução do trabalho assalariado e das técnicas agrícolas (tratores e máquinas em geral, sementes selecionadas e insumos agrícolas). Destacam-se, ainda, a má qualidade de vida no meio rural, decorrente da precaríssima distribuição de renda, da inexistência ou da precarie- dade dos serviços oferecidos, da insalubridade das moradias que, em sua maioria, não eram atendidas por água encanada e luz elétrica; a capacidade produtiva reduzida nas pequenas e médias propriedades, que eram devoradas pelos latifúndios,seja para especulação imobiliária ou para produção em escala comercial, pois a produção rural passou a atender cada vez mais à indústria e à exportação; a violência no campo, decorrente da estrutura agrária concentradora ainda hoje existente no Brasil. � Intensa atração de contingentes migratórios extrarregionais, entre os quais se destacaram os nordestinos, expulsos de sua região devido às péssimas condições de vida. Esse fato, em conjunto com o êxodo rural e a migração advinda das pequenas localidades em direção às grandes cidades da região Sudeste (destacadamente São Paulo), contribuiu enormemente para a urbanização regional, assim como para o apare- cimento de conurbações urbanas, e uma diversidade de problemas. Se o migrante vislumbrava melhorias nas condições de vida, o resultado Cidade12 que se verificou não foi o esperado, pois as cidades não conseguiram oferecer empregos e infraestruturas suficientes para toda a população. Chame a atenção, ainda, para o fato de que a cidade demanda mão de obra minimamente qualificada, e o campo oferece extensiva mão de obra de baixa qualidade formativa, a qual, em princípio, serviu à expansão da construção civil, mas, posteriormente, ampliou muito os estoques de capacidade de trabalho com salários baixos — aquilo que Karl Marx denominou de exército de reserva. As contradições do intenso e desordenado processo de urbanização As consequências do crescimento urbano rápido e intenso são persistentemente visíveis em pleno século XXI: deficiências de infraestruturas; precariedade da moradia como expressão da segregação espacial e surgimento de sub- -habitações, como favelas, cortiços e moradias autoconstruídas; segregação do espaço urbano; precariedade ou insuficiência do transporte urbano; explosão da violência e do narcotráfico; além da hipertrofia do setor terciário e da precarização do trabalho, as quais produziram um denso circuito inferior da economia. Esse crescimento rápido e desordenado das cidades provoca o inchaço urbano, uma situação de deficiências no planejamento, denominada de macrocefalia urbana. Para piorar o quadro, lembremos que o Brasil desenvolveu um sistema de transportes baseado no eixo rodoviário, o que provoca congestionamentos, perda de qualidade de vida para toda a população (em particular a de baixa renda), poluição, entre outros problemas. Soma-se à falta de planejamento urbano e à deficiência de infraestruturas a especulação imobiliária, expressão que denomina uma prática rentista de se produzir estoque de bens imobiliários, como terrenos, prédios, casas, entre outros, com a finalidade de produzir valor futuro por meio da elevação dos preços de tais imóveis. Trata-se de apostas especulativas, que, em geral, pro- duzem impactos variados sobre o tecido social e econômico da vida urbana, geralmente negativos. Se a horizontalização e a verticalização urbanas são marcantes expressões da especulação imobiliária brasileira, a formação de uma cidade dual — de um lado uma cidade formal e de outro uma cidade informal — é fortemente influenciada pela mesma prática econômica especulativa. 13Cidade Em todo o mundo, e, em nosso caso, no Brasil, especificamente, algumas cidades apresentam elevado nível de especulação imobiliária, recurso econô- mico que provoca efeitos variados no espaço geográfico das cidades, sobretudo no que diz respeito à supervalorização do preço do solo urbano, que se torna mercadoria, sujeita às regras do mercado, em detrimento de cumprir papel social. Desse modo, o mercado imobiliário aposta na valorização futura dos imóveis, garantindo estoques de solo urbano à espera da ampliação do valor, ou promove investimentos pontuais que induzam à valorização, como obras, inclusive de embelezamento. Essa prática envolve a ação de grandes empresas incorporadoras, mas também de pequenos proprietários, que apostam em ganhos futuros com a valorização de certas localidades do espaço urbano. Comisso, ocorre o aumento do preço do solo, fato que expande o desenvolvimento de espaços socialmente especializados, tornando difícil a aquisição de imóveis, sobretudo à população de menor renda. Na esteira dessa prática econômica, ocorre, também, a formação de lotes e edificações vazios, uma vez que os proprietários ficam à espera de valorização espacial, e, por consequência, intensifica-se a horizontalização da cidade (que demanda cada vez mais gastos públicos), pois, além dos espaços vazios no centro ou nas suas proximidades, outros loteamentos vão se firmando em áreas cada vez mais distantes do centro, o que provoca sua valorização e empurra as pessoas de menor renda para distâncias cada vez maiores, nas quais são desprovidas de infraestruturas básicas, como transportes adequado e saneamento básico. Some-se a isso a escalada da violência ancorada no desordenamento espacial. Assim, os espaços residenciais se diferenciam sob o ângulo socioeconômico, sendo a variável renda uma fortíssima definidora de diferenciação, o que não quer dizer que não existam outros fatores, como o étnico, que se entrelaça historicamente com o fator renda: a maioria dos moradores de favela nas regi- ões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste é afrodescendente, e mesmo na região Sul, onde há presença mais expressiva de brancos residentes em favelas, boa parte da população favelada descende de escravos africanos. Isso nos mostra a força de inércia de uma “liberdade” formalmente conquistada há mais de um século, mas que não veio acompanhada de condições reais de acesso à qualificação profissional, à educação e à moradia digna. No Brasil, a segregação afeta enorme parcela da população de uma cidade, a qual reside em favelas, em loteamentos de periferias ou em cortiços. Não se trata da segregação de um grupo específico, por razões étnicas ou culturais, ainda que a correlação entre pobreza e etnicidade seja flagrante. Ocorre, Cidade14 efetivamente, de os pobres residirem em locais afastados do CBD devido ao seu baixo poder aquisitivo. Por todas essas situações, urbanistas, geógrafos, sociólogos e outros profis- sionais refletem o fenômeno urbano, além de cidadãos atentos e militantes de movimentos de desfavorecidos, por exemplo, verem com bastante apreensão a escalada da especulação. A palavra “gentrificação” (do inglês gentrification) pode ser entendida como o processo de mudança imobiliária, nos perfis residenciais e padrões culturais, seja de um bairro, região ou cidade. Esse processo envolve necessariamente a troca de um grupo por outro com maior poder aquisitivo em um determinado espaço e que passa a ser visto como mais qualificado que o outro. https://goo.gl/7QDHwp FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. 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