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02-Deep Web - a verdade possui diversas camadas ( PDFDrive com )

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DEEP	WEB
A	VERDADE		POSSUI	DIVERSAS	CAMADAS
L.	E.	SILVA	DIAS
DEEP	WEB	–	A	verdade	possui	diversas	camadas
Copyright	2015	©	by	L.	E.	Silva	Dias
É	 proibida	 a	 duplicação	 ou	 reprodução	 deste	 volume,	 ou	 de	 partes	 do	 mesmo,	 sob	 quaisquer	 meios,	 sem	 a	 autorização
expressa	do	autor.
Capa:	Ravenink
Esta	obra	está	registrada	no	IGAC:
Número:	1758/2015
IGAC:	INSPEÇÃO-GERAL	DAS	ATIVIDADES	CULTURAIS	-	DIREÇÃO	DE	SERVIÇOS	DE	PROPRIEDADE	INTELECTUAL
Telefone:	351	21	321	25	00	Fax:	351	21	321	25	66
www.igac.pt
Palácio	Foz,	Praça	dos	Restauradores,	Apartado	2616,	1116-802	Lisboa,	Portugal.
Agradecimentos
Ao	amigo	Alex	Magnum.
Que	este	possa	ser	o	primeiro	passo	do	recomeço	da	nossa	antiga	parceria.
Sumário
	
Aflição
Saída
Desvio
Ascensão
Queda
Purgatório
Ataque
Insight
Caos
Despertar
	
	
Capítulo	Um
Aflição
	
O	azul	do	céu	sem	nuvens	fazia	um	belo	contraste	com	o	verde	da	quadra	de	tênis.	Beverly
Hills	nesta	época	do	ano	era	irritantemente	perfeita.	Mesmo	vazio,	o	local	parecia	não	possuir
tamanho	 suficiente	 para	 conter	 os	meus	 pensamentos.	 Arremessei	 a	 bola	 novamente	 numa
esperança	 irracional	 de	 que	 as	 minhas	 aflições	 fossem	 embora	 com	 ela.	 Prontamente	 Til
correu	 para	 buscá-la,	 trazendo-a	 de	 volta	 para	 as	 minhas	 mãos,	 molhada	 pela	 sua	 saliva	 -
exatamente	 como	 nos	 velhos	 tempos.	 Sabia	 que	 não	 demoraria	muito	 para	 que	 alguém	 da
família	 surgisse	para	o	meu	resgate,	podia	ouvi-los	ao	 longe,	 sem	entender	o	significado	da
conversa.	Um	ruído	ambiente:	era	como	eu	lidava	com	as	conversas	típicas	destes	encontros
familiares.	Na	impossibilidade	de	ser	bem	sucedido	podia	sempre	contar	com	meu	mp3	player,
mesmo	 correndo	 o	 risco	de	 ser	 repreendido	pelos	meus	pais.	Mas	 este	 não	 era	 o	 caso.	 Por
enquanto,	a	distância	cuidava	da	minha	surdez	momentânea.
De	onde	eu	estava,	podia	ver	o	novo	Porsche	estacionado.	 Independente	das	várias	vezes
em	que	meu	pai	citou	o	seu	modelo	e	ano,	fui	incapaz	de	guardar	a	informação.	Arremessei	a
bola	novamente:	antes	que	ela	pudesse	tocar	o	chão	Til	disparou	como	um	foguete	atrás	dela.
Pelo	 canto	 dos	meus	 olhos,	 podia	 ver	 a	 família	 reunida	 na	mesa	 do	 jardim	 protegida	 pelos
grandes	guarda-sóis	amarelos,	tio	Adam	estava	de	pé	com	o	braço	ao	redor	da	cintura	de	sua
nova	namorada.	Como	era	mesmo	o	nome	dela?	Shelly?	Sharon?	Com	a	respiração	ofegante,
ele	 entregou-me	a	bola	babada;	permaneceu	estático	 a	me	observar	 com	a	boca	aberta	 e	 a
língua	de	fora:	era	como	se	pudesse	perceber	minha	aflição,	cada	retorno	seu	mostrava	que
arremessar	uma	estúpida	bola	de	tênis	não	apaziguaria	minha	dor.	Fingi	arremessar	a	bola:
continuou	a	me	olhar	como	se	meu	esforço	para	enganá-lo	nunca	tivesse	ocorrido.
Os	almoços	dominicais	para	celebrar	qualquer	nova	conquista	 já	 faziam	parte	da	tradição
familiar.	 Qualquer	 coisa	 servia	 de	 motivo	 –	 qualquer	 coisa.	 Desde	 a	 conclusão	 da	 obra	 do
terceiro	piso	da	casa	até	um	novo	relacionamento:	sempre	há	um	motivo	para	celebrar	a	vida,
dizia	tio	Adam.	Da	posição	dele,	isso	parecia	fácil	de	dizer.	Do	meu	canto,	não	tinha	motivos
para	celebrar.	Faltavam	poucos	dias	para	as	aulas	recomeçarem	na	CSU	e	a	dúvida	continua	a
me	consumir.	O	que	me	consolava	eram	as	boas	amizades	que	cultivei	durante	o	primeiro	ano
do	curso.	Em	particular,	sentia	falta	de	Stan	e	de	nossas	conversas	–	que	não	tinham	o	mesmo
sabor	em	sua	versão	online.
-	Eddie,	não	vai	querer	pudim?	–	disse	tio	Adam	que	surgiu	sorrateiramente	do	nada.	A	farta
fatia	de	pudim	dançava	suavemente	sobre	o	pequeno	prato	de	sobremesa.	Essa	era	uma	das
características	mais	marcantes	de	sua	personalidade:	o	exagero.
-	Claro	tio	–	menti	-,	obrigado.
Antes	de	pegar	o	prato,	pude	fitar	o	coração	na	altura	de	seu	pulso:	aquela	marca	me	trazia
boas	 recordações.	 Recordações	 das	 estórias	 que	 ele	 inventava	 para	 me	 entreter	 quando
criança:	os	deuses	marcaram-no	por	causa	do	seu	bom	coração	e	era	necessário	que	ele	fosse
reconhecido	 no	meio	 da	multidão.	 Outra	 versão	 –	mais	moderna	 –	 dizia	 que	 um	 anjo	 tinha
tatuado	o	 seu	pulso	 esquerdo	para	que	 ele	 se	 lembrasse	do	que	 era	mais	 importante	nesta
vida:	o	amor	pela	sua	família.
-	Sente-se	bem?	Porque	está	aqui	sozinho?
-	 Não	 estou	 sozinho,	 estou	 com	 Til	 –	 disse	 procurando	 dissimular.	 Sabia	 que	 estava	 em
franca	desvantagem:	ele	me	conhecia	desde	que	nasci	e,	de	certa	forma,	talvez	me	conhecesse
melhor	do	que	meus	pais.	Tornei	a	arremessar	a	bola	na	inútil	expectativa	de	que	a	conversa
pudesse	mudar	de	foco.
-	Qual	 o	problema?	Alguma	namorada?	 –	 perguntou	ao	mesmo	 tempo	em	que	 sentava	ao
meu	lado.	Era	inquietante	fitar	seus	olhos	azuis	enquanto	me	preparava	para	mentir,	mas	eu
estava	me	tornando	um	perito	na	arte	da	dissimulação.	Arrisquei:
-	 Sim.	 Foi	 uma	 coisa	 rápida	 de	 verão	 –	 pisquei	 o	 olho	 direito	 à	 procura	 de	 uma	 conexão
emocional	–	Já	me	sinto	melhor,	vai	passar.
-	Acredite:	ficar	isolado	não	ajuda	nessas	horas	–	disse	ele	com	o	peso	de	sua	experiência.
Meu	sentimento	de	culpa	só	se	agravou	ao	ouvir	aquilo.	Sabia	que	ele	 falava	do	fundo	do
coração	e	desperdiçava	sua	bondade	com	a	minha	falsa	tristeza.
-	Vamos	nos	juntar	aos	outros	–	disse-me	enquanto	levantava.	Encurralado	pelo	meu	próprio
ardil,	 confirmei	 com	 um	 aceno	 de	 cabeça.	 Sabia	 que	 tio	 Adam	 não	 iria	 mencionar	 o	 meu
suposto	 namoro	 –	 seria	 como	 jogar	 uma	 lata	 de	 querosene	na	 fogueira.	Restava-me	 apenas
torcer	para	que	o	fantasma	do	assunto	CSU	não	assombrasse	a	mesa	do	almoço.
-	Eddie!	Onde	estava	se	escondendo?	–	disse	meu	pai.
-	Consegui	resgatá-lo	da	quadra	de	tênis	–	emendou	tio	Adam	–	estava	lá	brincando	com	Til.
Sentei-me	debaixo	de	um	dos	grandes	guarda-sóis	amarelos	(podia	sentir	que	o	meu	sorriso
era	da	mesma	cor).	Minha	mãe	e	Shelly	(Sharon?)	conversavam	a	respeito	de	uma	revista	de
decoração.	Tio	Adam	mantinha	o	interesse	pelo	assunto	assinando	todo	tipo	de	revistas.	Um
dos	seus	passatempos	favoritos	era	repensar	os	cômodos	de	sua	casa	e	dar	trabalho	para	os
arquitetos.	 Meu	 pai	 saboreava	 um	 suco	 de	 melancia	 –	 a	 ausência	 de	 pratos	 ao	 seu	 redor
indicava	que	ele	tinha	resistido	bravamente	ao	pudim.	Ele	não	se	atreveria	a	dar	vazão	a	sua
gula,	não	com	minha	mãe	por	perto.	Desde	a	cirurgia	que	podia	se	notar	uma	mistura	de	medo
e	tristeza	no	seu	olhar.	Tinha	ficado	mais	parecido	comigo	desde	então.
-	Chegou	a	ver	o	carro?	–	meu	pai	me	perguntou.
-	Sim.	Vi	de	longe.
-	Tem	que	ir	até	lá	ver	de	perto.	É	lindo.	Eu	te	falei	que	é	um	Cayman	S?
Para	 a	minha	 sorte	 nossa	 conversa	 foi	 interrompida	 pelo	 som	 do	 alarme.	 Aquilo	 já	 tinha
ocorrido	 tantas	 vezes	 que	 suspeitava	 que	 no	 dia	 em	 que	 ele	 soasse	 por	 algum	 motivo
verdadeiro	ninguém	acreditaria.	Tio	Adam	já	tinha	gasto	uma	fortuna	na	constante	mudança
de	 marcas	 e	 modelos	 sem	 obter	 êxito:	 inexplicavelmente	 um	 rotweiler	 tinha	 o	 poder	 de
acionar	 o	 sistema	 da	 porta	 de	 entrada	 da	 mansão	 que	 servia	 para	 detectar	 metais.	 Outra
fortuna	 tinha	 sido	 gasta	 com	 o	 inútil	 adestramento	 de	 Til,	 parecia	 que	 nada	 o	 convencia	 a
permanecer	o	tempo	todo	do	 lado	de	fora	–	eventualmente	ele	ousava	ultrapassar	os	 limites
impostos.
-	 Til!	 Faz	 três	 semanas	 que	 isso	 não	 acontece	 –	 disse	 Tio	 Adam	 irritado	 com	 o	 controle
remoto	do	alarme	nas	mãos	-,	pensei	que	tinha	terminado.
Aproveitei	a	confusão	para	levantar	da	mesa	e	sair	à	procura	de	Til:	queria	encontrá-lo	para
agradecer	 por	 conseguir	 me	 tirar	 dali.	 Corri	 para	 dentro	 da	 mansão	 aparentando
preocupação.	O	alarme	cessou	assim	que	adentrei,	apenas	para	aumentar	o	impacto:	por	mais
que	soubesse	da	existência	da	enorme	foto	de	Glenda	e	Nathan	na	sala,	eu	levava	um	chute	no
estomago	toda	vez	que	a	encarava.	Passaram-se	dois	anos:	o	planeta	deu	a	volta	em	torno	do
sol	duas	vezes,	mas	a	dor	continuava	viva.
Til	 permanecia	 invisível	 como	 um	 chihuahua	 (talvez	 um	 chihuahua	 fosse	 mais	 fácilde
encontrar).	Preparava-me	para	subir	a	escada	para	o	segundo	piso	quando	Tio	Adam	passou
por	mim.
-	Safado!	Eu	sei	onde	ele	gosta	de	 ficar.	Quer	ver?	Venha	comigo	–	disse	com	um	sorriso
malicioso.	Seu	rosto	emanava	uma	mistura	de	 fascínio	e	 irritação.	Disparou	pela	escada	em
direção	ao	terceiro	piso,	eu	corria	logo	atrás	para	não	perder	um	segundo	sequer,	entrou	no
escritório	onde	ficava	a	central	de	câmeras	do	circuito	interno	de	TV	da	mansão.	Lá	estava	ele
sentado,	como	um	fiel	espectador	na	poltrona	do	cinema.
-	 Veio	 assistir	 um	 pouco	 de	 TV,	 não	 é	 Til?	Não	 sei	 qual	 o	 interesse	 dele	 nas	 imagens	 do
circuito	interno.	Um	dos	adestradores	me	disse	para	criar	uma	forma	de	punição	quando	isso
acontecesse,	chegou	até	a	sugerir	um	pequeno	chicote	para	isso.
A	expressão	de	surpresa	no	meu	rosto	deve	ter	funcionado	como	legendas	num	filme.
-	Não!	Eu	não	seria	capaz	de	machucar	Til	–	disse	acariciando	a	cabeça	dele	que	retribuía
lambendo-lhe	as	mãos	–,	 já	passamos	por	muitas	coisas	juntos,	não	é	verdade	rapaz?	Depois
desta	dica,	dispensei	o	adestrador	e	joguei	fora	seu	cartão.
Apontou	com	o	dedo	a	direção	da	escada	fazendo	com	que	ele	obedecesse	prontamente.
-	 Troquei	 recentemente	 o	 sistema	 –	 sentou-se	 na	 enorme	 cadeira	 de	 diretor	 -,	 é	 de	 uma
empresa	 alemã:	 Brickstein	 Software.	 Na	 verdade,	 o	 erro	 é	meu:	 esqueço-me	 de	 desligar	 o
alarme	 durante	 estes	 convívios	 familiares.	 Este	 software	 é	 tão	 específico	 que	 consegue
detectar	 apenas	 armas	 através	 de	 um	 scanner	 3D.	Desisti	 de	 tentar	 entender	 porque	 ele	 o
ativa,	ninguém	sabe	explicar.		–	disse	ao	abrir	o	notebook	e	inicializar	o	sistema	operacional	-,
eu	 já	 te	 mostrei	 a	 nova	 versão	 do	 site?	 –	 perguntou	 mudando	 o	 rumo	 da	 conversa
bruscamente.
-	Não	–	disse	aparentando	curiosidade	–	já	está	online?
-	Ainda	não.	Vou	te	mostrar	o	site	na	área	de	pré-produção.
Com	o	entusiasmo	de	uma	criança	com	um	novo	brinquedo	após	o	natal,	tio	Adam	mostrava
as	novas	 funcionalidades	da	 sua	mais	 famosa	criação:	 a	 rede	 social	 kissesandhugs.com.	Em
apenas	um	ano	e	meio	tinha	conquistado	quinhentos	milhões	de	assinantes:	era	um	verdadeiro
sucesso.	 Percebi	 minha	 mente	 divagar	 enquanto	 ele	 se	 vangloriava	 do	 tempo	 gasto	 em
reuniões	para	definição	do	padrão	dos	novos	 ícones.	Fisgava	uma	palavra	ou	duas	dos	sons
que	saíam	de	sua	boca	–	o	suficiente	para	acompanhar	a	linha	de	raciocínio	geral.	Seus	olhos
brilhavam	 ao	 explicar	 os	 benefícios	 da	 versão	 3.4.1	 da	 linguagem	 Python;	 eu	 continuava	 a
esconder	o	meu	desinteresse	concordando	com	tudo	que	dizia,	às	vezes	abanava	a	cabeça	e	de
vez	 em	 quando	 sorria:	 era	 o	 que	 bastava	 para	 mantê-lo	 convencido	 do	 meu	 interesse.
Momentos	como	este	funcionavam	como	um	gatilho	para	sentimentos	de	culpa.	Uma	estranha
ressonância	 invadiu-me	enquanto	 li	o	slogan	do	site:	“para	além	do	simples	gostar”.	A	 frase
que	tinha	sido	concebida	como	um	desafio	explícito	ao	facebook	ecoava	de	modo	diferente	no
meu	 ser:	 dar	 o	 passo	 além	 do	 gostar	 significava	 estar	 apaixonado.	 Paixão.	 Onde	 estava	 a
minha?	Longe	dali.
Antes	de	voltarmos	para	o	jardim,	tio	Adam	parou	diante	da	enorme	foto	da	sala	e	lembrou-
se	 que	 precisava	 falar	 com	meu	 pai	 a	 respeito	 de	 um	 evento	 beneficente	 patrocinado	 pela
G&N	 Foundation	 na	 próxima	 semana.	 Desta	 vez	 era	 algo	 relacionado	 com	 as	 vítimas	 da
amiotrofia	muscular	espinhal.	Parecia	que	seu	coração	tinha	sempre	tamanho	para	acomodar
algo	mais,	uma	forma	de	partilhar	a	prosperidade	que	tinha	surgido	em	sua	vida.	A	fundação
também	 cumpria	 o	 papel	 de	 manter	 viva	 a	 memória	 de	 tia	 Glenda	 e	 Nathan.	 Meus	 pais
seguiam	coordenando	as	atividades,	 fingindo	que	aquilo	não	tinha	se	tornado	um	bote	salva
vidas	 no	 meio	 do	 naufrágio.	 Reminiscências.	 Era	 o	 que	 restava	 daquele	 período:	 apenas
reminiscências.
Consegui	 ouvir	 tio	 Adam	 chamar	 a	 namorada	 pelo	 nome:	 Sharon.	 Bastava	 criar	 uma
associação	para	que	aquela	informação	ficasse	gravada	de	forma	permanente:	Sharon	Carter
a	 namorada	 do	 Capitão	 América.	 Pronto,	 tio	 Adam	 era	 o	 Capitão	 América	 –	 o	 protótipo	 do
sonho	americano:	bem	sucedido	através	do	seu	próprio	trabalho.	Sua	marca	de	nascença	era	o
seu	escudo.	Melhor	impossível.
O	cair	do	final	da	tarde	fazia	minha	aflição	aumentar.	A	sensação	foi	apaziguada	por	uma
mensagem	 de	 Stan:	 ele	 estava	 de	 volta	 das	 férias	 em	Miami.	 Era	 estranho	 perceber	 como
pequenos	 alívios	 podiam	 se	 tornar	 um	 grande	 prazer.	 Podiam	 ser	 tão	 pequenos	 como	 a
mensagem:
-	Estou	na	área	Sr.	Coburn.
Capítulo	2
Saída
	
Lá	fora,	o	sol	tinha	acabado	de	nascer	e	minha	ansiedade	me	impedia	de	apreciar	o	início	de
mais	um	dia.	Aguardava	na	cama	pela	chegada	do	meu	pai:	mais	preciso	do	que	um	relógio
atômico.	Irritante.	Encontrava	consolo	no	fato	de	que	podia	ser	pior:	eu	podia	estar	dormindo
de	verdade.	Era	o	primeiro	dia	de	aula	do	segundo	ano	do	curso	e	eu	já	me	sentia	assim.
-	Bom	dia	alegria!	–	disse	num	tom	de	voz	acima	do	normal	ao	entrar	no	meu	quarto.	A	frase
que	me	trazia	boas	recordações	da	infância	não	funcionava	no	contexto	atual.	Relevava	meus
sentimentos	 (eu	sempre	o	 fazia)	e	 retribuía	o	sorriso.	Não	existia	hipótese	de	ser	diferente:
não	depois	de	tudo	que	a	família	tinha	passado.	No	fundo,	eu	sabia	que	não	tinha	nada	para
reclamar.
Preparava-me	psicologicamente	para	o	 café	da	manhã.	Na	maioria	das	 vezes	acabava	em
pequenas	 discussões	 entre	 meus	 pais.	 Onde,	 para	 a	 minha	 sorte,	 eu	 permanecia	 invisível.
Imaginar	que	hoje	seria	diferente	era	pura	ingenuidade.
-	Stephanie,	está	fazendo	tempestade	em	copo	d’água!	–	disse	meu	pai.
-	Não	se	 trata	disso.	Seu	 irmão	tem	 idade	suficiente	para	ser	pai	dela!	Por	pouco	ela	não
seria	candidata	ideal	para	namorar	Eddie	–	disse	antes	de	dar	um	longo	gole	no	copo	de	suco
de	laranja.
-	Está	exagerando	Stephanie.	Deixe	meu	irmão	ser	feliz.	Eddie!	Está	animado	com	o	retorno
das	 aulas?	 –	 disse	 mudando	 bruscamente	 o	 alvo	 da	 conversa	 para	 a	 minha	 pessoa.
Desprevenido,	engasguei	com	o	pedaço	de	melão	que	tinha	acabado	de	colocar	na	boca.	Sabia
que	ele	fazia	isso	como	manobra	para	desviar	a	conversa	do	assunto	que	minha	mãe	insistia
em	abordar.	Era	o	verdadeiro	fio	da	navalha:	caso	aceitasse	o	seu	convite,	deixaria	minha	mãe
frustrada,	 caso	 contrário	 ele	 ficaria	 frustrado.	 Deixei	 que	 o	 pedaço	 de	melão	 fizesse	 o	 seu
trabalho:	 levantei	 da	 mesa	 indicando	 que	 precisava	 ir	 para	 o	 banheiro	 enquanto	 tossia
exageradamente	–	mantive	minha	mão	direita	com	o	polegar	para	cima	indicando	a	resposta
para	sua	pergunta.	Consegui	ver	a	satisfação	se	desfazer	em	seu	rosto	antes	que	minha	mãe
retornasse	ao	tópico	da	conversa	anterior.
No	banheiro	 deparei	 com	meu	 reflexo	no	 espelho	me	 encarando	 como	 se	 dissesse:	 quem
você	pensa	que	está	enganando?	Acha	mesmo	que	é	competente	o	suficiente	para	arcar	com	o
tamanho	das	responsabilidades	que	 te	aguardam?	Fitava	o	meu	corpo	 franzino	e	os	cabelos
ruivos	espetados:	nada	parecia	ajudar	a	minha	autoconfiança.
Saí	de	casa	com	Susie	–	minha	companheira	inseparável	–	em	direção	ao	calvário	da	CSU.
Como	sempre,	enfrentaria	a	minha	via-crúcis	em	grande	estilo:	coloquei	o	 fone	esquerdo	do
meu	celular	antes	do	capacete.	Ajustei	o	volume	para	o	nível	 imediatamente	 inferior	ao	que
pudesse	explodir	os	meus	 tímpanos.	Quando	os	primeiros	acordes	de	Lies	 do	Electric	Mary
começaram	a	soar	nós	(eu	e	Susie)	já	estávamos	em	movimento.
Ao	atravessar	a	Lindley	Avenue	o	prédio	da	CSU	permanecia	atrás	das	árvores,	como	um
feroz	animal	pré-histórico	pronto	para	atacar.	Embora	ainda	não	visível,	sua	presença	 já	me
causava	arrepios.	Ele	podia	me	farejar,	preparando-se	para	me	engolir.	Invejei	o	homem	que
se	preparava	para	recolher	as	folhas	das	árvores:	ele	era	ignorado	pelo	feroz	animal.
Deixei	 Susie	 no	 estacionamento.	 O	 contraste	 com	 os	 carros	 dos	 outros	 alunos	 trouxe	 de
volta	os	ecos	da	propostade	tio	Adam:	uma	Harley	Davidson	nova	em	folha.	Convencê-lo	da
minha	fidelidade	a	Susie	–	fruto	de	uma	relação	de	longa	data	–	foi	bem	difícil.	Tio	Adam	é	um
homem	que	não	aceita	argumentos	fracos.
Fui	 engolido	 ao	 atravessar	 o	 portão	 principal	 (senti	 calafrios	 na	 espinha)	 na	 direção	 da
secretaria,	precisava	descobrir	a	sala	da	primeira	aula.	Nada	melhor	do	que	começar	o	ano
letivo	com	uma	aula	de	Java	e	orientação	a	objetos.	Uma	simpática	senhora	de	cabelos	 lisos
claros	e	óculos	fez	o	favor	de	me	indicar	o	mural	onde	os	nomes	dos	alunos	e	respectivas	salas
estavam	indicadas;	doce	ironia:	um	curso	de	ciência	da	computação	com	sua	informação	ainda
impressa	 em	 papel.	 Decidi	 considerar	 o	 sorriso	 da	 atendente	 como	 um	 sinal	 de	 boa	 sorte,
quem	sabe	meu	humor	não	mudava?
Subi	 as	 escadas	 para	 o	 segundo	 piso	 entre	 acenos	 e	 movimentos	 de	 sobrancelhas.
Eventualmente	esbarrava	em	alguma	pessoa	que	perguntava	como	tinham	sido	minhas	férias
–	o	velho	protocolo	de	comunicação	-,	eu	seguia	respondendo	(devolvendo):	tudo	ótimo	e	você?
A	expectativa	de	que	eu	tivesse	algo	fora	do	normal	para	contar	borbulhava	diante	dos	meus
olhos.	 Encontrei	 refúgio	 na	 sala	 212	 onde	 alguns	 rostos	 conhecidos	 insistiam	 em	 fazer
contato,	para	minha	sorte	Stan	era	um	deles.
-	Senhor	Coburn!	Sente-se	aqui!	–	disse	indicando	a	cadeira	ao	seu	lado.
-	Quantas	vezes	tenho	que	pedir	para	não	me	chamar	pelo	sobrenome?
-	Pelo	menos	mais	um	milhão	de	vezes	–	disse	antes	de	tomar	um	gole	da	lata	de	Red	Bull	e
abocanhar	um	pedaço	do	donut	 -,	é	melhor	 ir	se	acostumando	com	este	 tipo	de	 tratamento,
parece	estar	no	seu	destino.	Só	estou	te	ajudando.
-	Vamos	ver	–	disse	procurando	 inutilmente	dissimular	minha	preocupação.	Stan	conhecia
minhas	aflições	melhor	do	que	ninguém.
-	Aqui	estamos	novamente:	mais	seis	meses	de	tortura	–	disse	passando	o	cabo	do	mouse	em
volta	do	pescoço	fingindo	estar	sendo	enforcado	-,	espero	apenas	que	Sr.	Greenwich	não	seja
nosso	professor,	ele	devia	estar	aposentado	morando	na	Flórida.	Toda	vez	que	via	uma	cabeça
com	cabelos	brancos	pilotando	um	Cadillac	DeVille	eu	me	lembrava	dele.
-	Bom	dia	–	disse	Sr.	Greenwich	ao	entrar	na	sala.
Imediatamente	Stan	deitou	a	cabeça	no	teclado	do	notebook	dizendo:
-	Mate-me,	por	favor,	Sr.Coburn.	Use	o	machado,	basta	um	golpe	na	altura	do	pescoço	para
acabar	com	meu	sofrimento.
-	 Vamos	 começar.	 Espero	 que	 todos	 tenham	 começado	 a	 ler	 a	 cópia	 do	 excelente	 livro
Thinking	in	Java	durante	as	férias.	Vamos	direto	para	a	página	sessenta	e	um	onde	o	autor	diz
que	em	Java	nós	manipulamos	objetos	com	referências.
-	Por	favor,	alguém	mostre	a	escala	musical	para	este	homem	–	disse	mostrando	o	afinador
digital	na	tela	de	seu	notebook,	o	ponteiro	não	saía	da	de	um	fá	sustenido	–	Ele	precisa	saber
que	existem	outras	notas	musicais.
O	humor	ácido	de	Stan	era	um	oásis	no	meio	do	deserto.	O	deserto	se	configurava	diante
dos	nossos	olhos:	era	a	voz	monotônica	do	Sr.	Greenwich	pelos	próximos	seis	meses.	Enquanto
ele	 falava	 eu	 realizava	 o	 download	 da	 nova	 versão	 do	 Eclipse	 IDE	 –	 tinha	 protelado	 a
instalação	o	máximo	possível,	agora	estava	encurralado	-,	eram	necessários	dez	minutos	para
que	 os	 254MB	 estivessem	 disponíveis.	 Abri	 o	 bloco	 de	 notas	 para	 o	 caso	 ele	 começasse	 a
disparar	exemplos	neste	meio	tempo	através	de	sua	metralhadora	monotônica.
A	 tabela	 com	 os	 tipos	 primitivos	 da	 linguagem	 permanecia	 projetada	 na	 tela	 diante	 de
todos:	boolean,	char,	byte,	short,	int,	long,	float,	double	–	bastou	esta	palavra	mágica	para	que
impulsivamente	 eu	 abrisse	 a	 janela	 do	 navegador	 e	 digitasse:	 Rickenbacker	 4080	 Double
Neck.	Meu	sonho	de	consumo	estava	ali	na	tela,	Era	exatamente	o	 tipo	de	 incentivo	que	eu
precisava	no	meio	daquele	concerto	de	uma	nota	só	para	monocórdio.
-	Sr.	Edgar	Coburn	pode	responder?	–	ele	perguntou.
Senti	um	cubo	de	gelo	percorrer	minha	espinha.
-	Desculpe	Sr.	Greenwich,	eu	não	estava	prestando	atenção.	Qual	foi	mesmo	a	pergunta?
-	 Eu	 repito	 –	 disse	 com	 um	 sorriso	 sarcástico	 -,	 é	 necessário	 explicitamente	 destruir	 os
objetos	criados	em	Java?
Isso	 era	o	que	o	Sr.	Greenwich	 sabia	 fazer	melhor:	 pegar	desprevenido	quem	não	estava
prestando	atenção	a	sua	aula.	A	esta	altura	minhas	orelhas	já	deviam	estar	vermelhas	como
tomates.	Senti	meu	coração	na	boca	quando	os	olhares	voltaram-se	para	mim	-	como	dezenas
de	mira	lasers	de	soldados	famintos	por	humilhação.
-	Eu	não	faço	ideia,	Sr.	Greenwich.
-	Muito	bem	 -	disse	antes	de	anotar	alguma	coisa	em	seu	 tablet	 –	Sr.	Alexei	Rostov,	pode
responder?
Ainda	sentindo	o	meu	rosto	quente,	agradeci	pela	mudança	de	 foco.	O	pobre	Alexei	era	a
bola	da	vez.	A	ausência	de	resposta	fez	com	que	todos	olhassem	para	o	fundo	da	sala	–	lugar
preferido	do	anárquico	russo	que	veio	desbravar	a	América.	Esperava	que	ele	se	saísse	melhor
do	que	eu,	comprovando	sua	fama	de	habilidoso	hacker.
-	Sr.	Rostov?	–	disse	em	tom	alto	Sr.	Greenwich.
Alexei	permanecia	dormindo.	Era	do	conhecimento	de	todos	que	o	russo	era	um	festeiro	de
primeira	linha.	Seu	braço	direito,	repleto	de	tatuagens,	pendia	imóvel	para	fora	de	sua	mesa.
Era	 fácil	 imaginar	 como	 tinha	 sido	 a	 noite	 anterior	 de	 despedida	 das	 férias:	 recheada	 com
vodka,	marijuana	e	prostitutas.
–	Alguém	pode	me	fazer	o	favor	de	acordá-lo?
Jane,	sentada	ao	lado	de	Alexei,	assumiu	a	responsabilidade	e	cutucou	seu	ombro	enquanto
o	 chamava	 pelo	 nome.	 Após	 muita	 insistência	 ele	 acordou	 resmungando	 alguma	 coisa	 em
russo	(para	a	sorte	de	Jane).
-	Então	Sr.	Rostov?	Pode	responder	a	minha	pergunta?
-	Posso.	Qual	era	mesmo?
-	É	necessário	explicitamente	destruir	os	objetos	criados	em	Java?
-	Não	–	soltou	um	bocejo	-,	Java	trabalha	com	o	coletor	de	lixo.
-	Muito	bem	 -	 disse	e	 tornou	a	anotar	 alguma	coisa	em	seu	 tablet	 -,	muito	 obrigado	pela
participação	Sr.	Rostov.
-	Mas	 a	 ação	 do	 coletor	 de	 lixo	 resulta	 numa	 queda	 de	 performance	 das	 aplicações	 que
trabalham	com	múltiplos	threads	–	continuou	Alexei	–,	isso	para	não	falar	na	fragmentação	da
memória.
-	Grato	pela	informação	–	pigarreou	-,	mas	ainda	não	chegamos	neste	ponto	–	interrompeu
Sr.	Greenwich	voltando	a	falar	nas	vantagens	do	coletor	de	 lixo.	 Imediatamente	Stan	enviou
uma	mensagem	para	a	minha	tela	que	dizia:
-	A	velha	raposa	deve	compensar	a	 falta	de	sexo	pegando	todos	desprevenidos	aqui,	deve
ser	por	isso	que	não	se	aposenta!	Mas	ele	não	contava	com	o	nosso	russo	louco.	Aha!
Durante	 o	 horário	 de	 almoço	 no	 refeitório,	 Stan	 fez	 questão	 de	 sentar	 junto	 com	Alexei,
queria	parabenizá-lo	 pelo	 constrangimento	 causado.	Aceitei	 o	 convite	 relutante:	 o	 russo	me
causava	arrepios;	apesar	de	perceber	que	minha	opinião	tinha	sido	formada	mais	pelo	que	os
outros	falavam	a	respeito	dele	do	que	por	experiência	própria.	Talvez	tivéssemos	conversado
duas	ou	três	vezes	durante	ano	letivo	anterior:	uma	delas	foi	durante	um	trabalho	em	grupo
onde	ele	me	deu	uma	excelente	explicação	sobre	o	funcionamento	de	ponteiros	na	linguagem
C++;	 daquele	 momento	 em	 diante,	 não	 tive	 mais	 dúvidas	 a	 respeito	 do	 assunto.	 Como	 de
costume,	ele	sentava	nas	mesas	ao	fundo	do	refeitório	cercado	por	um	pequeno	e	seleto	grupo
de	adoradores	que	o	veneravam	por	suas	habilidades	como	hacker.	Stan	conhecia	as	minhas
reservas	e	por	isso	fez	questão	de	me	tranquilizar:
-	Não	se	preocupe.	O	quadro	horrível	que	pintam	a	respeito	dele	é	um	bocado	exagerado.
Notei	 a	 expressão	 em	 seu	 rosto	 se	 alterar	 quando	 nos	 aproximamos	 de	 sua	 mesa	 -	 não
conseguia	identificar	claramente	o	que	significava;	esse	era	um	dos	motivos	do	meu	incômodo.
-	Grande	Alexei!	Detonou	o	Sr.	Greenwich	–	disse	Stan	enquanto	apertavam	as	mãos,	ele	fez
sinal	com	a	cabeça	para	que	sentássemos	enquanto	algo	como	um	esboço	de	um	sorriso	 se
manifestava	em	seu	rosto.
-	Não	foi	a	minha	intenção	–	respondeu	Alexei	-,	tinha	tanto	sono	que	não	me	lembro	do	que
falei.
-	Noite	agitada	ontem?	Despedidadas	férias?	–	perguntou	Stan	sorrindo.
-	Na	verdade	não.	Quase	não	dormi	ontem	porque	estive	entretido	na	Deep	Web.	Aquilo	é
viciante	–	disse	antes	de	esfregar	o	rosto	com	as	mãos.	Pude	ler	a	frase	“In	chaos	we	trust”
tatuada	no	seu	antebraço	direito.
-	Deep	Web?	–	perguntou	Stan	–	eu	li	alguma	coisa	a	respeito.	Não	se	trata	de	um	site	que
não	consta	nas	ferramentas	de	pesquisa?
Eu	não	tinha	a	menor	ideia	do	que	eles	estavam	falando.	A	primeira	coisa	que	me	ocorreu
foi	que	poderia	ser	uma	espécie	de	game	ilícito:	esperava	sempre	pelo	pior	quando	o	assunto
era	Alexei.
-	 Não.	 É	 muito	 mais	 que	 isso.	 É	 uma	 rede	 formada	 por	 cerca	 de	 300.000	 sites.	 Sim,	 é
verdade	que	eles	não	constam	nas	 ferramentas	de	busca.	Para	 isso	utilizam	um	complicado
mecanismo	de	ocultação	que	utiliza	a	constante	alteração	dos	endereços	IPs.
-	Que	tipo	de	informação	existe	lá?	–	arrisquei	a	pergunta.
-	 O	 tipo	 de	 informação	 que	 rapazes	 como	 vocês	 não	 podem	 ver	 –	 disse	 com	 um	 sorriso
estampado	no	rosto;	eu	começava	a	entender	as	expressões	dele	e	não	gostava	do	que	via	 -
Pedofilia,	vídeos	snuffs,	pornografia	grotesca,	canibalismo,	bonecas	sexuais	e	outras	coisas	do
gênero.	Nada	para	corações	 fracos	–	 tornou	a	sorrir	 -,	particularmente	eu	não	me	 interesso
por	nada	disso	que	fica	na	primeira	camada.
-	Primeira	camada?	–	perguntou	Stan.
-	 Muitos	 ouviram	 falar	 que	 a	 Deep	 Web	 é	 composta	 por	 camadas,	 mas	 são	 poucos	 que
conseguem	 se	 aprofundar.	 A	maioria	 se	 contenta	 com	 a	 primeira	 camada,	 onde	 encontram
todo	 este	 lixo	 e	 podem	 ir	 correndo	 contar	 para	 os	 amigos.	 Existem,	 pelo	 menos,	 cinco
camadas.
-	O	que	mais	há	para	ver?	–	estava	me	tornando	ousado	com	o	russo.
Fitou-nos	 da	 cabeça	 aos	 pés,	 fez	 silêncio	 por	 alguns	 segundos	 (que	 pareceram	 uma
eternidade)	e	em	seguida	se	aproximou	inclinando	a	cabeça	como	se	fosse	passar	a	senha	de
sua	conta	no	banco,	eu	e	Stan	acompanhamos	o	movimento	como	um	balé	sincronizado.
-	Na	última	camada,	chamada	Mariana,	existe	um	fórum	onde	uma	seita	satânica	chamada
Devil’s	Friends	 se	 reúne.	 Tenho	 tentado	 invadi-lo,	mas	 a	 segurança	 é	 demasiada	 complexa.
Quem	 entra	 no	 fórum,	 participa	 de	 desafios	 para	 passar	 de	 nível.	 Existem	 66	 níveis.	 Os
desafios	são	baseados	em	rituais	que	devem	ser	gravados	em	vídeo	e	postados	no	fórum.	Pelo
que	sei	o	desafio	mais	básico	para	passar	para	o	nível	dois	é	o	de	matar	uma	galinha	preta	e
beber	seu	sangue.
Olhei	para	a	cara	de	Stan	que	permanecia	como	que	hipnotizado.
-	Conhecem	a	estória	do	criador	do	game	Sloppy	Chickadee?	–	Alexei	perguntou.
Stan	 confirmou	 com	a	 cabeça,	mas	 eu	 disse	 que	 desconhecia	 o	 assunto,	 notei	 algo	 como
frustração	em	seu	rosto	(mas	podia	ser	desprezo),	Stan	fez	um	gesto	de	reprovação	na	minha
direção	antes	de	Alexei	retomar	o	assunto.
–	 Pois	 bem,	 o	 autor	 do	 game	 saiu	 do	 anonimato	 para	 o	 sucesso	 em	 apenas	 seis	 meses!
Dizem	as	más	 línguas	que	ele	 faz	parte	desta	seita	e	cumpriu	alguns	rituais	para	conseguir
fama	e	sucesso.	Caso	não	saibam	–	disse	olhando	para	mim	–	o	jogo	está	disponível	em	todas
as	plataformas	e	continua	a	vender	muito	bem.	Se	 isso	for	verdade,	 toda	a	 informação	deve
estar	disponível	neste	fórum.
-	E	 caso	 consiga	 acessá-la	 o	 que	 irá	 fazer	 com	 isso?	 –	 estava	me	 sentindo	 cada	 vez	mais
corajoso	diante	dele.
-	Nada.	Meu	único	 interesse	 é	 descobrir	 quem	 são	 os	 outros	 empreendedores	 que	 fazem
parte	deste	fórum	macabro	e	comprar	ações	de	suas	empresas	antes	que	eles	façam	sucesso.
Vocês	conseguem	imaginar	qual	seria	o	lucro	obtido	só	no	caso	do	Sloppy	Chickadee?
Sem	dizer	nada,	Stan	permanecia	com	a	boca	aberta.	Começava	a	achar	estranho	que	ele
partilhasse	 este	 tipo	 de	 informação	 conosco.	 Os	 parabéns	 de	 Stan	 pela	 humilhação	 do	 Sr.
Greenwich	valiam	tanto	assim?
-	Mas	espere	–	disse	Stan	saindo	de	seu	transe	-,	quer	dizer	que	acha	que	esta	coisa	toda	de
magia	negra	funciona	mesmo?
-	O	desenvolvedor	do	Sloopy	publicou	mês	passado	no	seu	perfil	no	Twitter	que	o	jogo	não
ganharia	novas	versões.	Junto	com	esta	notícia	ele	acrescentou:	“Eu	não	aguento	mais”.	Se	o
que	dizem	 for	verdade,	 ele	deve	 ter	esbarrado	em	algum	 limite	moral	nos	 rituais	propostos
pelos	administradores	do	fórum	que	fez	o	estômago	dele	embrulhar.
Enquanto	o	queixo	de	Stan	quase	tocava	o	tampo	da	mesa	do	refeitório,	eu	permanecia	sem
saber	o	que	dizer	a	respeito	de	toda	aquela	estória	maluca.
-	Respondendo	sua	pergunta:	não	me	interesso	em	saber	se	isso	funciona	ou	não,	basta	que
funcione	para	eles.	Sou	inteligente	o	suficiente	para	perceber	que	pelo	nível	de	segurança	que
existe	no	fórum	eles	não	devem	estar	brincando.	São	profissionais.	Aliás,	tenho	uma	proposta
para	 vocês:	 preciso	 de	 ajuda	 nisso,	 a	 minha	 equipe	 não	 é	 suficiente	 –	 olhou	 para	 os	 três
discípulos	que	permaneciam	calados	durante	 toda	a	nossa	conversa	 -,	preciso	de	mais	duas
pessoas	que	possam	ajudar	no	mascaramento	dos	IPs,	basta	que	vocês	instalem	um	software
de	 acesso	 remoto	 em	 seus	 notebooks	 que	 eu	 cuido	 do	 resto.	 Vocês	 podem	 se	 beneficiar	 da
informação	do	mesmo	jeito	que	eu.
-	Não	obrigado	–	respondi	ao	mesmo	tempo	em	que	Stan	disse:
-	Claro!	Quando	começamos?
-	Aqui	estamos	diante	de	uma	divergência	–	disse	em	tom	sarcástico	-,	se	quiserem	podem
me	responder	no	final	do	dia,	mas	adianto	que	preciso	de	duas	pessoas.	O	meu	algoritmo	para
quebrar	a	segurança	depende	de	pelo	menos	cinco	máquinas	com	IPs	diferentes	funcionando
como	um	cluster.	Resolvam	suas	diferenças	e	me	digam	alguma	coisa	depois.
O	 horário	 da	 próxima	 aula	 se	 aproximava,	 Stan	 abriu	 outra	 lata	 de	 Red	 Bull	 enquanto
caminhávamos	de	volta	para	a	sala,	ele	sempre	apelava	para	os	energéticos	quando	precisava
pensar.	Sabia	que	ele	 iria	 insistir	para	que	eu	aceitasse	 fazer	parte	daquele	 insano	projeto.
Deixar	 Alexei	 Rostov	 instalar	 um	 software	 de	 acesso	 remoto	 no	meu	notebook?	 Eu	 deveria
estar	louco	para	concordar	com	isso.
-	 Eddie,	 vamos	 participar.	Não	 consigo	 acreditar	 que	 não	 tenha	 ficado	 curioso.	 Faça	 isso
pelo	menos	pela	curiosidade!
-	 Desista	 Stan.	 Não	 vou	me	 envolver	 com	 as	 loucuras	 do	 anarquista	 russo.	 Acho	melhor
procurar	outra	pessoa.
-	Outra	pessoa?	Sabe	que	não	confio	em	mais	ninguém	neste	grupo.
Quando	 queria,	 Stan	 conseguia	 ser	 um	 ótimo	manipulador:	 aquele	 era	mais	 um	 de	 seus
momentos	históricos.
-	Eu	não	sei	Stan,	eu	 realmente	não	sei.	Fiz	uma	busca	agora	sobre	a	Deep	Web	no	meu
celular	e	aqui	diz	que	o	FBI	monitora	parte	do	acesso	a	esta	rede.	Imagine	no	que	vamos	nos
meter.
-	Acha	que	Alexei	não	pensou	nisto?	Ele	 tem	experiência.	Caso	contrário	 já	estaria	preso,
concorda?
Sem	dizer	que	 sim	ou	que	não,	 sentamos	a	 espera	da	próxima	aula.	As	 sinapses	de	Stan
pareciam	 estar	 em	 pleno	 carnaval	 por	 causa	 da	 cafeína	 de	 sua	 bebida	 misturada	 com	 o
excesso	de	açúcar	dos	donuts.	Ele	insistia	para	que	eu	fizesse	parte	do	plano	vermelho.	Pela
primeira	vez	agradeci	quando	o	professor	entrou	na	sala	e	começou	a	aula	apaziguando	a	sua
verborragia.
Durante	 o	 decorrer	 da	 aula	 de	 Banco	 de	 Dados	 Distribuídos,	 pensei	 na	 arquitetura	 da
aplicação	 que	 Alexei	 deveria	 utilizar	 para	 quebrar	 a	 segurança	 do	 site.	 Movido	 pela
curiosidade,	 pesquisei	 na	 internet	 como	 funcionava	 um	 cluster	 -	 através	 de	 um	 sistema
operacional	 distribuído,	 vários	 computadores	 podiam	 funcionar	 como	 se	 fossem	 uma	 única
máquina.	Enquanto	isso	Stan	insistia	em	enviar	mensagens	para	o	meu	notebook:
-	Vamos	lá	Eddie!	Prometo	nunca	mais	chamá-lo	de	Sr.	Coburn	depois	disto.
Lá	estava	o	manipulador	novamente:	a	 tentação	de	sua	proposta	me	fez	ponderar	por	um
segundo,	mas	minha	sanidade	–	como	sempre	-	acabou	por	falar	mais	alto:
-	Desista!	–	respondi.
Passei	o	resto	da	aula	com	a	minha	atenção	oscilando	entre	a	arquitetura	de	banco	de	dados
distribuídos,	deep	web	e	os	acordes	da	música	Little	Monster	do	RoyalBlood,	escrevi	o	que	eu
acreditava	ser	a	 introdução	no	MuseScore.	Aquilo	era	um	 fá	seguido	por	um	dó?	Não	 tinha
certeza.	 Stan	 parecia	 ter	 se	 convencido	 da	 minha	 posição.	 As	 poucas	 vezes	 em	 que	 nos
encaramos	 ele	 fez	 questão	 de	 fazer	 caretas	 demonstrando	 sua	 indignação,	 mas	 não	 me
chateava	com	as	mensagens.	Pouco	antes	do	término	da	aula	arrisquei	um	olhar	para	o	fundo
da	 sala:	 Alexei	 apontou	 o	 dedo	 para	 mim	 ao	 mesmo	 tempo	 em	 que	 piscou	 o	 olho	 –	 uma
autêntica	piada	russa	sobre	um	clichê	americano.
Eu	 e	 Susie	 voltamos	 para	 casa	 ao	 som	 do	 Static	 X	 (trilha	 sonora	 perfeita	 para	 um	 dia
incomum).
Em	 casa,	 aproveitei	 a	 ausência	 dos	 meus	 pais	 para	 verificar	 minhas	 anotações	 do
MuseScore.	 Há	 quanto	 tempo	 não	 ligava	 os	 amplificadores?	 Eu	 sabia	 a	 resposta:	 três
semanas.	 Senti	 prazer	 ao	 introduzir	 o	 plug	 (também	 consegui	 claramente	 imaginar	 Stan
fazendo	uma	piada	de	caráter	sexual	a	respeito	disso).	Confirmei	minhas	suspeitas	a	respeito
do	que	 tinha	 anotado.	Aumentei	 o	 volume.	Subitamente	 aquele	 espaço	não	 era	mais	 o	meu
quarto,	fui	transportado	pelo	som	da	minha	própria	execução	para	o	palco	do	Wiltern	Theatre
onde	 uma	 multidão	 imaginária	 dançava	 ao	 meu	 som.	 Eu	 falava	 (muito	 além	 das	 palavras)
através	do	meu	baixo.	A	multidão	ouvia.	Concordava.
-	Edgard!	–	gritou	meu	pai	 fazendo	minhas	pálpebras	saltarem	freneticamente	–	Não	está
ouvindo	eu	te	chamar?	Seu	tio	quer	falar	com	você.	Ele	disse	que	tentou	o	celular,	mas	só	cai
na	caixa	postal.
Ira:	era	o	que	eu	via	estampado	no	rosto	do	meu	pai	sempre	que	qualquer	coisa	relativa	ao
meu	tio	não	fosse	tratada	com	urgência.	Desde	que	ele	havia	se	recuperado	da	cirurgia	que
sua	submissão	me	enojava.	Ele	devia	a	vida	ao	irmão,	não	dava	para	ser	diferente.	Não	para
ele.	Engoli	minha	repulsa	para	não	me	tornar	o	pivô	de	uma	nova	crise	que	o	levasse	para	o
hospital.	A	voz	do	médico	insistia	em	ecoar	na	minha	mente:
-	A	última	coisa	que	o	Sr.	 Jerry	Coburn	precisa	é	de	estresse.	Convém	que	a	 família	dê	o
suporte	 necessário	 neste	momento	 delicado	 de	 sua	 recuperação	 –	 disse	 ele	 olhando	 para	 a
minha	mãe	 que	 se	 encontrava	 abraçada	 com	 tio	 Adam	 chorando.	 A	 impressão	 daquele	 dia
permanece	tatuada	em	minha	mente:	lembro-me	da	cena	como	se	fosse	ontem.
-	Sim	pai	–	respondi	desligando	o	amplificador.	-	Vou	retornar	a	ligação	imediatamente.
Ele	esperou	até	que	eu	colocasse	o	meu	contrabaixo	de	lado	e	pegasse	no	celular	para	que
pudesse	sair	do	quarto.	Retive	o	meu	impulso	de	arremessar	meu	corpo	na	direção	da	porta	e
fechá-la	 violentamente	 (sim,	 ele	 a	 deixou	 aberta	 para	 escutar	 a	 conversa).	 Diante	 da
impossibilidade	de	manifestar	minhas	indignações	no	mundo	real,	voltei	minha	atenção	para	o
celular.	Bastaram	apenas	dois	toques	para	que	meu	tio	atendesse:
-	Olá	Eddie!	Tudo	bem?
-	Tudo	tio	Adam.	Claro	que	sim	–	menti	descaradamente.	Nada	pode	estar	bem!	Afinal	você
e	meu	pai	me	 fizeram	cair	das	nuvens	quando	me	 tiraram	bruscamente	do	Wiltern	Theatre
onde	a	multidão	me	aplaudia.	Eu	era	um	deus	do	rock!
-	 Olha,	 queria	 que	 soubesse	 que	 fiquei	muito	 feliz	 com	 seu	 interesse	 demonstrado	 pelas
novas	modificações	no	site	kissesandhugs.com	no	outro	dia.
-	Sim	tio.	O	site	está	excelente	–	menti	novamente.	Nem	me	lembrava	do	que	ele	tinha	me
mostrado.
-	Por	causa	disso,	pensei	em	convidá-lo	para	participar	de	uma	reunião	de	projeto	amanhã.
Seria	bom	que	você	começasse	a	se	aprofundar	mais	no	assunto.	O	que	me	diz?
Três	 socos	no	estômago:	 eu?	Amanhã?	Reunião	de	projetos?	Nocauteado,	 lutava	por	uma
pronta	resposta	para	a	minha	defesa.	Negar	a	presença	estava	fora	de	questão.	Só	me	restava
conferir	o	horário	e	rezar	para	que	eu	tivesse	uma	aula	ao	mesmo	tempo.
-	Qual	o	horário?
-	Às	15h.	Tudo	bem?
A	aula	de	Arquitetura	de	Sistemas	Operacionais:	era	o	golpe	fatal	que	me	restava.
-	 Caso	 tenha	 aula	 no	 mesmo	 horário	 posso	 providenciar	 um	 documento	 da	 empresa
atestando	que	você	participou	da	reunião.
Cinco,	quatro,	 três	 -	podia	ouvir	o	 juiz	 realizando	a	contagem	–	dois,	um.	Tio	Adam	tinha
sido	mais	rápido.	Beijei	a	lona.
-	Ok	tio,	sendo	assim	te	encontro	às	três	horas.
Desliguei	o	celular	com	uma	certeza	clara	em	minha	mente:	aquilo	era	apenas	o	começo	do
meu	 atoleiro.	 Sentia	 minhas	 pernas	 se	 debatendo,	 perdidas	 na	 areia	 movediça.	 Como	 uma
represa	prestes	a	explodir,	senti	minha	garganta	apertada	junto	com	uma	enorme	vontade	de
chorar.	Dor.	 Pontiaguda.	Lancinante.	Meu	 contrabaixo	me	olhava	da	 cama	e	 sentia	 pena	de
mim.
A	vibração	do	celular	me	puxou	para	fora	do	denso	torpor	deprimente.	Era	Stan:
-	Última	tentativa	Sr.	Coburn:	mudou	de	ideia	quanto	ao	plano	soviético?
Enxuguei	as	lágrimas	com	a	correia	do	baixo	e	vi	minha	resistência	desaparecer	diante	do
“Sr.	Coburn”	da	mensagem.	Era	tão	óbvio	que	eu	não	conseguia	enxergar:	aquela	poderia	ser
a	minha	grande	chance	de	sair	da	sombra	da	minha	família	e	vencer	sozinho.	Seria	possível
que	a	resposta	para	as	minhas	aflições	estivessem	nas	mãos	de	um	louco	hacker	russo?	Até	o
início	do	dia	eu	nunca	tinha	ouvido	falar	na	Deep	Web,	clusters	ou	no	Sloopy	Chickadee	e	me
preparava	para	tomar	uma	decisão	puramente	baseada	no	meu	estado	emocional:
-	Ok,	eu	estou	dentro!	–	respondi.
Capítulo	3
Desvio
	
As	primeiras	horas	da	manhã	passaram	e	eu	não	tinha	ideia	de	como	tinha	chegado	até	ali,
apenas	quando	Stan	começou	a	tagarelar	sobre	os	detalhes	do	plano	de	Alexei	que	consegui
sair	 do	 piloto	 automático.	 Meu	 corpo	 ainda	 apresentava	 sinais	 da	 raiva	 contida	 da	 noite
anterior:	 minha	 pálpebra	 esquerda	 não	 parava	 de	 tremer.	 Como	 um	 zumbi,	 cujo	 único
pensamento	 é	 o	 de	 se	 alimentar	 de	 cérebros,	minha	mente	 estava	 agarrada	 na	 reunião	 da
tarde.	Como	pude	ser	tão	estúpido	em	demonstrar	interesse	pelo	site?	Imaginava	que	este	dia
chegaria,	mas	não	 tão	 rápido.	Definitivamente	 era	 rápido	demais.	Eu	 e	minha	 ingenuidade!
Achei	 que	 coisa	 semelhante	 fosse	 ocorrer	 apenas	 quando	 me	 graduasse.	 Até	 lá	 bastava
frequentar	 as	 aulas	 e	 tirar	 notas	 regulares	 para	 que	 todos	 ficassem	 felizes	 enquanto	 eu
ganhava	algum	tempo.	Tempo	para	que	algo	de	extraordinário	acontecesse	e	 tudo	mudasse.
Quanta	ingenuidade.
-	Eddie!	Alexei	vai	nos	enviar	o	programa	de	acesso	remoto.	Ele	vai	realizar	um	teste	logo
em	seguida.	Vamos	lá	Sr.	Coburn!	Instala	isso	aí.
Mesmo	de	longe,	seu	bafo	denunciava	o	consumo	matutino	de	Red	Bull.	Olhei	para	a	caixa
de	 entrada	 do	 meu	 correio	 eletrônico	 sem	 encontrar	 nada	 de	 especial.	 Antes	 que	 pudesse
questionar,	Stan	disparou:
-	Na	área	de	trabalho!	Na	área	de	trabalho!
Lá	estava	ela	novamente:	a	ingenuidade.	Claro	que	Alexei	não	iria	perder	uma	oportunidade
de	demonstrar	seus	dons	enviando-me	o	programa	por	email.	Tive	vontade	de	virar	para	trás	e
perguntar	 em	voz	 alta	 por	 que	 ele	mesmo	não	 instalava,	mas	percebi	 que	 seria	 apenas	um
resquício	 da	 raiva	 da	 noite	 anterior.	O	 programa	 –	 com	 seus	 irritantes	 16KB	 de	 tamanho	 –
chamava-se	 arostov-111283.exe	e	possuía	 o	 ícone	de	uma	caveira	 com	dois	 ossos	 cruzados.
Um	 bocado	 idiota	 e,	 sem	 sombra	 de	 dúvida,	 desprovido	 de	 imaginação.	 Eu	 escolheria	 um
coelho	ou	uma	joaninha,	para	não	levantar	suspeitas.	Durante	um	segundo	ponderei	sobre	o
que	 eu	 estava	 prestes	 a	 fazer:	 instalar	 um	 programa	 de	 acesso	 remoto	 enviado	 por	 Alexei
Rostov,	o	russo	louco	que	pretende	fazer	fortuna	espionando	a	Deep	Web.	Qual	era	mesmo	o
meu	interesse	nisso?	Ah!	Abocanhar	uma	fatia	do	bolo	e	ficar	milionário,	me	livrando	-	de	uma
vez	por	todas	–	destas	responsabilidades	que	caíram	no	meu	colo	sem	que	eu	pedisse.	Sim,	era
exatamente	isso	que	eu	ia	fazer.	Executei	o	programa	como	administrador	e	nada	aconteceu.
-	O	que	deveria	acontecer	Stan?	–	sussurrei	enquanto	o	professor	seguia	demonstrando	o
algoritmo	de	busca	binária	no	quadro.
-	Não	tenho	certeza,	posso	perguntar...
Uma	 janelaterminal	 surgiu	 em	 nossa	 tela	 simultaneamente	 interrompendo	 seu	 discurso.
Nela	Alexei	dizia:
-	Tudo	certo	rapaziada!	Amanhã,	por	volta	das	vinte	e	três	horas,	realizamos	nossa	primeira
incursão.	Todos	de	acordo?
Olhei	para	Stan	e	digitamos	ao	mesmo	tempo:
-	OK.
Pronto.	Estava	feito.	Agora	só	me	restava	retornar	ao	estado	zumbi:	cérebros,	mais	cérebros
-	 contar	 os	 minutos	 até	 a	 famigerada	 reunião	 na	 Kisses	 and	 Hugs.	 Não	 tinha	 coragem	 de
contar	para	Stan,	ele	iria	me	infernizar	até	o	limite,	e	meu	olho	ainda	tremia.
Esforcei-me	 para	 prestar	 atenção	 nos	 últimos	 momentos	 da	 aula:	 inútil.	 Era	 necessário
muito	mais	do	que	vários	algoritmos	de	busca	para	me	tirar	do	estado	obsessivo	em	que	me
encontrava.	Tentava	enumerar	motivos	para	faltar,	mas	o	sentimento	de	culpa	se	agigantava
cada	vez	pensava	no	assunto.	Conseguia	imaginar	a	irritação	do	meu	pai	caso	descobrisse	que
eu	não	compareci.	O	pobre	coitado	já	tinha	passado	por	um	inferno	pessoal,	não	merecia	mais
aborrecimentos.
Fim	 da	 aula,	 hora	 de	 partir.	 Antes	 que	 pudesse	 colocar	 a	 culpa	 sobre	 a	minha	 ausência
durante	a	 tarde	numa	consulta	médica,	Stan	me	convidou	para	que	estivéssemos	 juntos	em
sua	casa	durante	a	primeira	 incursão.	Gostei	da	 ideia	de	 imediato,	uma	vez	que	privacidade
não	era	o	forte	onde	eu	moro.	Sempre	senti	uma	ponta	de	inveja	do	espaço	no	subsolo	onde
ele	mantinha	uma	cama,	uma	pequena	geladeira	(carregada	de	donuts	e	Red	Bulls,	é	claro)	e
todo	seu	equipamento	de	informática.	Era	um	local	sagrado.	Um	verdadeiro	bunker.
Assim	que	me	pus	a	caminhar	em	direção	ao	estacionamento,	pude	ouvir	Stan	gritar	pelas
minhas	costas:
-	Dê	lembranças	minhas	ao	seu	proctologista!
Levantei	meu	dedo	médio	em	resposta	sem	olhar	para	trás.
Desolado,	 parti	 com	 Susie	 para	 a	 Lincoln	 Boulevard	 número	 5511.	 Pelos	 meus	 cálculos,
demoraria	cerca	de	meia	hora	para	chegar	lá.	Embora	nunca	tivesse	visitado	as	instalações	da
Kisses	and	Hugs,	tinha	a	impressão	de	já	a	conhecer.	Talvez	de	tanto	ouvir	meus	pais	e	meu
tio	 conversarem	 a	 respeito	 durante	 os	 almoços	 dominicais.	 Sentia	 meu	 olho	 ainda	 tremer
dentro	do	capacete;	enquanto	isso	minha	mente	caçava	um	culpado	por	aquela	situação.	Tudo
apontava	para	uma	única	direção:	Til.	Se	aquele	cão	insano	não	tivesse	disparado	o	alarme	no
domingo,	 eu	 não	 teria	 acabado	 no	 escritório	 com	 tio	 Adam	 para	 apreciar	 as	 novas
modificações	do	site.	
Uma	pontada:	meu	 estômago	 entrou	 em	 revolução	 ao	me	 aproximar	do	 prédio	 de	quatro
andares.	Se	não	 fosse	pela	placa	com	a	 logomarca	da	Kiss	and	Hugs	passaria	despercebido
como	 um	 prédio	 residencial.	 A	 marca	 fazia	 toda	 a	 diferença	 –	 eu	 podia	 sentir	 nas	 minhas
entranhas.
Segui	 com	 Susie	 para	 o	 estacionamento.	 Um	 senhor	 uniformizado	 me	 pediu	 uma
identificação.	Percebi	que	minhas	mãos	estavam	geladas	ao	procurar	minha	carteira	no	bolso
da	calça	–	seria	a	primeira	pessoa	a	descobrir	quem	eu	era:	um	Coburn.	Sua	indiferença	ao	me
devolver	o	documento	indicava	que	ele	não	devia	conhecer	o	nome	de	seu	patrão.	Permaneci
incógnito	até	ali.
Ao	 entrar	 no	 elevador	 senti	meu	 batimento	 cardíaco	 no	 ritmo	 de	 tambores	 africanos.	No
quarto	 andar	 a	 porta	 abriu:	 o	 rosto	 redondo	 de	 uma	 bela	 moça	 de	 longos	 cabelos	 pretos
cacheados	 atrás	 do	 balcão	 da	 recepção	 apaziguou	 a	 minha	 ansiedade.	 Ela	 era	 linda.	 Seu
crachá	denunciava	o	seu	nome:	Susan.
-	Bom	dia,	em	que	possa	ajudar?
-	Meu	nome	é	Edgard.	Edgard	Coburn	–	quase	engasguei	ao	dizer	o	sobrenome	–,	eu	estou
aqui	para	uma	reunião.
-	 Oh!	 Você	 é	 o	 Edgard!	 –	 abriu	 um	 sorriso	 capaz	 de	 iluminar	 o	mais	 escuro	 dos	 dias	 de
inverno	–	Eles	estão	na	sala	de	reuniões	no	final	do	corredor.	Seja	bem-vindo.
Com	 imenso	pesar,	 parti	 da	 recepção	para	 a	 tal	 sala.	 Perseguido	por	uma	 série	 de	miras
lasers:	atravessei	o	corredor	de	cabeça	baixa.	Eu	era	o	alvo	–	meu	estômago	insistia	em	fazer
barulho	 -,	 por	 de	 trás	 das	 baias	 surgiam	olhares	 questionadores,	 alguns	 ao	 telefone	 (talvez
recebendo	 uma	 ligação	 da	 recepcionista,	 avisando	 que	 o	 sobrinho	 do	 homem	 estava	 na
empresa).	A	movimentação	estomacal	era	tamanha	que	cheguei	a	achar	que	estava	tremendo
de	frio.	Respirei	fundo.	Estava	diante	da	porta	da	sala	de	reuniões	e	só	conseguia	pensar	em
estar	longe	dali.	Enquanto	minha	mente	esperneava	como	um	animal	ferido,	meu	corpo	abriu
a	porta:	entrei.
Bastou	um	instante	–	o	tempo	necessário	para	um	piscar	de	olhos	–	para	que	eu	percebesse
toda	a	cena:	uma	mesa	de	dez	lugares	ocupada	por	tio	Adam	e	mais	quatro	pessoas:	um	rapaz
da	minha	idade	com	o	ar	entediado;	uma	jovem	loura,	de	rosto	sério	com	o	cabelo	preso	em
rabo	de	cavalo;	outra	moça,	com	alguns	quilos	acima	do	 ideal	 (podia	se	passar	por	 irmã	de
Stan),	vestida	toda	de	preto	(talvez	para	disfarçar	o	peso);	e	por	último,	uma	mulher	com	mais
idade	do	que	o	resto,	de	óculos	–	possivelmente	a	coordenadora	da	equipe.	Apesar	do	 tédio
evidente	no	rosto	do	rapaz	(com	esforço,	notei	algo	parecido	com	um	sorriso	no	canto	de	sua
boca),	 o	 ambiente	 parecia	 descontraído.	 Elas	 riam	 de	 algo	 que	 tio	 Adam	 tinha	 acabado	 de
falar.	Seus	olhares	se	voltaram	para	a	minha	direção	quando	entrei.
-	Eddie!	Estávamos	a	sua	espera.	Sente-se	aqui	–	 indicou	a	cadeira	ao	seu	 lado.	O	tremor
acima	 da	 altura	 do	 umbigo	 recomeçou.	 Meu	 corpo	 identificava	 aquilo	 como	 frio,	 mas	 não
estava	frio	(eu	sabia).
-	 Deixe-me	 apresentar	 a	 equipe	 principal	 de	 desenvolvedores.	 Primeiro,	 a	 nossa
coordenadora	Martha	Reynolds	–	confirmei	a	minha	suspeita	a	respeito	da	mulher	mais	velha,
já	 tinha	escutado	o	 seu	nome	 inúmeras	vezes	nos	encontros	 familiares	 -,	nossa	DBA	Senior,
Amanda	Singer	 –	DBA:	 o	 cargo	 explicava	 a	 seriedade	da	 loira	 de	 cabelo	 preso	 -,	 Alexandra
Bentley	 nossa	 programadora	 sênior	 javascript	 –	 a	 nerd	 gorducha	 sorriu	 para	mim	após	 dar
uma	dentada	na	barra	de	twix,	quem	come	chocolates	durante	uma	reunião?	 -	e	por	último,
mas	 não	menos	 importante,	 nosso	 programador	 sênior	 python,	 Ian	MacNeil	 –	 o	 sobrenome
escocês	soava	como	uma	justificativa	para	o	tédio	estampado	em	sua	cara.	Ele	era	a	antítese
do	 meu	 escocês	 preferido,	 Craig	 Ferguson.	 Acenou	 com	 a	 cabeça	 e	 tornou	 a	 olhar	 para	 o
infinito.
-	Muito	bem,	podemos	começar?	–	após	dizer	isso,	a	sala	se	encheu	com	ruído	de	todos	se
ajeitando	em	suas	cadeiras	e	organizando	papéis	e	canetas.	Ian	corrigiu	a	postura	e	esfregou
as	mãos	na	calça	jeans	como	se	procurasse	esquentá-las.	Alexandra	se	apressou	para	comer	o
último	pedaço	de	seu	twix.	Minha	barriga	voltou	a	tremer	e	eu	tornei	a	respirar	fundo.	Assim
que	os	ruídos	terminaram,	tio	Adam	continuou:
-	Vamos	ouvir	o	resultado	da	avaliação	feita	por	Alexandra	e	sua	equipe	sobre	o	impacto	da
mudança	da	biblioteca	 javascript	utilizada	no	site.	Espero	que	ao	 final,	possamos	decidir	 se
vale	a	pena	a	mudança	para	jQuery.	Por	favor,	Alexandra.
-	Pois	não	Adam	–	disse	antes	de	se	levantar	com	o	controle	remoto	na	mão.
Uma	hora	e	meia.	A	gorducha	levou	uma	hora	e	meia	falando	enquanto	mostrava	gráficos	e
tabelas	com	comparações	entre	as	diversas	bibliotecas.	O	tremor	que	sentia	na	barriga	havia
sido	 substituído	 por	 um	 esforço	 sobre-humano	 para	 manter	 os	 meus	 olhos	 abertos	 e	 não
bocejar.	Para	a	minha	sorte	a	atenção	de	todos	estava	na	tela	onde	ela	fazia	sua	apresentação.
Os	 resultados	 eram	 tão	 inconclusivos	 quanto	 a	 minha	 presença	 naquela	 sala.	 Todas	 as
bibliotecas	 possuíam	 vantagens	 e	 desvantagens.	 A	 DBA	 loura	 mantinha	 a	 atenção	 focada
enquanto	 Martha	 seguia	 fazendo	 uma	 série	 de	 anotações.	 O	 tédio	 de	 Ian	 só	 parecia	 ter
aumentado.	 Apoiava	 a	 cabeça	 em	 sua	 mão	 direita	 enquanto	 que,	 com	 o	 dedo	 mindinho,
acariciava	 seu	 próprio	 rosto.	 Conforme	 o	 tempo	 passava	 parecia	 entendê-lo	melhor.	Minha
atenção?	 Flutuou	 como	 um	 balão	 entre	 os	 acordes	 da	 música	 Figure	 it	 out	 e	 qualquer
fragmentode	informação	vindo	da	boca	comedora	de	twix.
Tudo	 corria	 bem:	 minha	 presença	 era	 praticamente	 ignorada.	 Após	 o	 término	 da
apresentação	de	Alexandra,	Tio	Adam	deu	a	palavra	para	loura	de	pedra.	Foi	sua	vez	de	fazer
a	apresentação	(desta	vez	em	apenas	quarenta	e	cinco	minutos)	sobre	a	atualização	de	versão
do	banco	de	dados	Oracle.	Apesar	de	sua	 rígida	aparência,	 sua	voz	era	suave	como	veludo.
Desta	 vez	minha	atenção	não	 flutuou	 tanto,	 banco	de	dados	é	um	dos	poucos	assuntos	que
atrai	a	minha	atenção	no	mundo	informático.
Ian	 foi	 o	 último	 a	 falar.	 Sua	 minúscula	 apresentação	 se	 resumiu	 a	 uma	 tabela	 onde
apresentava	 as	 melhorias	 de	 performance	 da	 nova	 versão	 da	 linguagem	 Python.	 Quinze
minutos	–	começava	a	gostar	do	sujeito.	Foi	direto	ao	assunto,	sem	rodeios.	Quase	grosseiro.	O
seu	sotaque	denunciava	sua	origem.
Quando	julguei	estar	próximo	do	final,	foi	a	vez	de	Martha	falar.	Detalhou	o	cronograma	do
projeto	sem	sair	da	mesa.	Em	sete	meses	o	site	passaria	por	uma	grande	reformulação.	Todas
as	 tecnologias	 utilizadas	 sofreriam	 atualizações	 enquanto	 novas	 funcionalidades	 seriam
desenvolvidas.	 Tudo	 orquestrado	 –	 no	papel	 –	 com	a	precisão	de	um	 relógio	 suíço.	 Sua	 voz
trazia	 segurança.	 O	 tipo	 que	 alguém	 gostaria	 de	 ouvir	 dizer	 que	 bastava	 apertar	 o	 cinto
durante	um	voo	turbulento.	Contive-me	para	não	rir	deste	pensamento.
No	 meio	 da	 apresentação,	 tio	 Adam	 pediu	 desculpas	 para	 atender	 uma	 ligação	 em	 seu
celular.	Consegui	ouvir	parte	da	conversa	por	estar	próximo	dele.	Era	Sharon.
-	Não	querida,	não	posso	falar	agora,	estou	em	reunião	–	sussurrou.	Sim,	eu	também	te	amo.
Falamos	mais	tarde.	Um	beijo.
No	 meio	 de	 uma	 reunião	 o	 homem	 consegue	 arrumar	 tempo	 para	 dizer	 que	 ama	 a
namorada.	Impecável.	Podia	ter	deixado	o	celular	desligado	e	se	perder	na	rotina	corporativa.
Não.	Meu	tio	sempre	disse	que	as	relações	eram	as	coisas	mais	importantes	da	vida.
Assim	que	Martha	terminou	sua	apresentação,	tio	Adam	encerrou	a	reunião	parabenizando
a	 todos.	 Não	 pude	 conter	 a	 minha	 surpresa	 quando	 a	 tela	 onde	 foram	 projetadas	 as
apresentações	foi	recolhida	automaticamente,	revelando	uma	enorme	foto	de	Glenda	e	Nathan
na	parede.	Mesmo	no	ambiente	de	trabalho	ele	fazia	questão	de	manter	a	memória	da	minha
tia	e	do	meu	primo	viva.
Conforme	 cada	 um	 saía	 da	 sala,	 faziam	 questão	 de	 se	 despedir.	 Fiquei	 surpreso	 com	 a
manifestação	de	Ian,	nitidamente	mais	leve:
-	Grande	Eddie!	–	apertou	minha	mão	na	altura	do	peito,	como	se	me	conhecesse	há	muito
tempo	–	Bom	te	conhecer,	cara!	Seu	tio	sempre	fala	em	você.	Desculpe	o	mau	jeito,	mas	tenho
pouca	paciência	para	reuniões	–	sussurrou	-,	até	breve.
Definitivamente:	eu	gostava	dele.
O	 relógio	 na	 parede	marcava	 seis	 e	 quinze.	 Comecei	 a	 juntar	 minhas	 coisas	 para	 partir
quando	meu	tio	me	surpreendeu:
-	Vou	para	casa	agora.	Não	quer	ir	até	lá?	Podemos	jantar	e	conversar	um	pouco.	O	que	me
diz?
Ele	 podia	 querer	 ouvir	minha	 opinião	 a	 respeito	 da	 reunião	 e	 sobre	 os	 participantes.	Ou
simplesmente	queria	passar	um	fim	de	tarde	ameno	se	divertindo	com	o	sobrinho.	Seja	qual
fosse	o	papel	que	ele	assumisse,	era	o	meu	tio	Adam,	como	recusar-lhe	um	convite?
-	Claro	tio,	vamos?
Tive	 a	 doce	 oportunidade	 de	 estar	mais	 uma	 vez	 com	Susan	 enquanto	 esperávamos	 pelo
elevador	em	direção	ao	estacionamento.	Trocamos	olhares.	Sorrisos.	Muito	perspicaz,	meu	tio
rapidamente	 percebeu	 que	 existia	 algum	 interesse	 da	minha	 parte.	 Logo	 que	 entramos	 no
elevador	ele	começou:
-	Então?	Gostou	da	Susan?	Seu	safado!	–	disse	ao	mesmo	tempo	em	que	despenteava	o	meu
cabelo.
Deixei	o	estacionamento	com	a	 ingênua	 ideia	de	que	conseguiria	 seguir	 seu	Porsche	com
Susie.	Após	a	primeira	quadra	já	o	tinha	perdido	de	vista.	Pensava	na	experiência	da	reunião:
o	monstro	que	pintei	na	minha	mente	não	era	tão	feio	assim.	As	pessoas	foram	relativamente
amigáveis,	o	ambiente	era	agradável,	e	o	principal:	entrei	mudo	e	saí	calado.	Não	podia	me
deixar	enganar:	por	mais	que	a	ideia	de	rever	Susan	fosse	agradável,	meu	objetivo	de	vencer
sozinho	 era	 maior.	 Nunca	 mais	 sentir	 aquelas	 sensações	 de	 frio	 na	 barriga.	 Tinha	 até	 um
discurso	de	improviso	pronto	para	a	ocasião:
-	Agradeço	muito	pela	ajuda	e	preocupação	que	a	família	tem	demonstrado	durante	os	anos,
mas	chegou	o	momento	de	seguir	o	meu	caminho	sozinho.
Faltava	a	parte	de	explicar	como	enriqueci	com	informações	provenientes	de	espionagem	na
Deep	Web	participando	de	um	plano	em	que	o	mentor	era	um	russo	anarquista.	Sorte.	Sempre
poderia	culpar	a	sorte	e	tudo	estaria	resolvido.
Cheguei	à	mansão	em	Beverly	Hills	e	encontrei	o	Porsche	já	estacionado.	Til	veio	correndo
me	 recepcionar	 com	 a	 bola	 babada	 na	 boca.	 Pude	 ver	 meu	 tio	 na	 cozinha	 no	 celular.	 A
gastronomia	 era	 uma	 área	 onde	 ele	 se	 tornava	 tediosamente	 previsível:	 os	 dois	 grandes
caranguejos	deitados	na	pia	com	as	patas	para	o	ar	revelavam	o	cardápio	do	jantar.		Embora
eu	tivesse	-	repetidas	vezes	–	dito	que	era	desconfortável	comer	com	as	mãos,	ele	insistia	em
preparar	essas	iguarias.	Arremessei	a	bola	o	mais	longe	que	consegui,	me	assustei	com	o	som
do	 celular	 que	 tocou	 no	 exato	momento	 do	 arremesso	 –	 por	 um	 segundo	 pareceu	 ter	 uma
relação	causal	de	natureza	desconhecida.	Era	Stan.
-	Então	Eddie?	Ainda	pode	sentar,	ou	só	consegue	ficar	de	pé?
Esforcei-me	para	entender	a	piada.	O	proctologista.	Claro,	era	isso.
-	 Já	 disse	 que	 foi	 uma	 consulta	 de	 rotina	 com	 o	 clínico	 geral.	 Você	 é	 que	 parece	 muito
interessado	em	experimentar,	já	falou	nisso	várias	vezes	hoje.
-	Quando	tiver	uns	quarenta	anos,	casado	com	uma	mulher	gorda,	com	dois	filhos	capetas	e
minha	 vida	 sexual	 estiver	 em	 declínio	 posso	 pensar	 numa	 consulta	 dessas.	 Quem	 sabe	 não
descubro	novas	formas	de	prazer?	Escute,	eu	não	te	liguei	para	isso,	quero	saber	se	está	tudo
confirmado	para	amanhã?
Stan	 tinha	 esta	mania:	 uma	 vez	 que	 nos	 comprometíamos	 com	um	plano,	 ele	 gostava	 de
revalidar	 inúmeras	vezes.	Um	efeito	colateral	do	excesso	de	consumo	de	Red	Bull,	eu	acho.
Confirmei	minha	participação	para	acalmar	seu	ânimo.
-	Passei	o	dia	pesquisando	sobre	a	Deep	Web,	andei	nos	blogs	e	no	youtube	vendo	pessoas
falando	a	respeito,	mas	não	tive	coragem	de	arriscar	um	acesso.	Cheguei	a	fazer	o	download
do	browser	Tor,	mas	fiquei	com	medo.
Stan	continuava	a	falar	sobre	tudo	que	tinha	visto:	assassinos	e	hackers	de	aluguel,	venda
de	armas	e	drogas,	e	tudo	de	mais	obscuro	que	a	mente	humana	pode	conceber.	Foi	quando
estranhei	Til,	que	voltava	com	a	bola	na	boca	de	repente	largá-la	e	começar	a	correr	na	minha
direção.	A	menos	de	um	metro	de	distância	começou	a	latir	ferozmente.	Paralisado,	senti	meu
sangue	gelar.	Tio	Adam,	percebendo	o	que	 se	passava,	 veio	 ao	meu	encontro	para	a	minha
salvação.
-	 Til!	 Já	 para	 casa!	 –	 como	 se	 saísse	de	um	 transe	 ele	 obedeceu	 caminhando	 com	o	 rabo
entre	as	pernas	para	o	canil.
-	Que	diabos	você	fez?	Nunca	o	vi	assim.
-	Eu	não	sei,	estava	no	telefone...	–	foi	quando	me	dei	conta	que	Stan	permanecia	na	ligação.
-	Stan,	ainda	está	aí?
-	Sim.	Que	barulheira	foi	essa?	Ouvi	latidos.	Está	tudo	bem?
-	Sim,	tenho	que	desligar.	Depois	nos	falamos.
Meu	tio	aproveitou	para	me	convidar	para	entrar,	deixando	Til	do	lado	de	fora	para	refletir
sobre	o	seu	comportamento	rebelde.	Da	cintura	para	baixo	havia	um	tremor	quando	comecei	a
andar.	Será	que	os	 cães	podem	sofrer	das	mesmas	doenças	mentais	que	nós?	Bipolaridade:
dois	comprimidos	de	cloridrato	de	fluoxetina	em	sua	ração	para	tudo	ficar	bem.	Vi	 isto	num
filme,	mas	não	me	lembro	do	nome.
O	cheiro	do	caranguejo	circulava	no	ambiente.	Para	a	minha	sorte,	tratava-se	de	um	risoto	-
coisa	de	garfo	e	faca.	Ele	sempre	dava	um	jeito	de	adaptar	suas	vontades	às	necessidades	dos
outros.	Só	me	dei	conta	de	que	ele	vestia	um	avental	da	Kisses	and	Hugs	após	me	recuperar
do	 susto.	 Fomos	 para	 a	 sala	 de	 jantar,onde	 comecei	 a	 ajudar	 na	 arrumação	 dos	 pratos	 e
talheres.	Assim	que	ele	trouxe	a	travessa	com	o	risoto	começou	a	falar	da	reunião.
-	Fiquei	muito	feliz	de	estar	ao	seu	lado	na	reunião.	Espero	que	tenha	gostado.	O	que	achou
do	pessoal?
Estava	pisando	em	terreno	minado.	Decidi	avançar	com	cautela.
-	Foram	todos	muito	amistosos.	Parece-me	que	está	cercado	por	bons	profissionais.
Tio	Adam	fitou-me	por	um	momento,	e	prossegui	após	pegar	a	garrafa	de	vinho	branco.
-	Não	consegue	uma	resposta	mais	vaga?	Vamos	lá!	Estamos	apenas	os	dois	aqui	sozinhos.
Além	do	seu	óbvio	interesse	pela	Susan,	o	que	você	achou,	por	exemplo...	Do	Ian?
Um	passo	arriscado.	Vamos	lá.
-	A	princípio	julguei	que	ele	estava	entediado,	o	que	considerei	uma	falta	de	respeito,	mas
com	o	passar	do	tempo	mudei	de	opinião.
-	De	fato	ele	estava	entediado,	faz	questão	de	deixar	claro	que	acha	as	reuniões	uma	perda
de	tempo	–	arrancou	a	rolha	da	garrafa	-,	mas	o	bastardo	é	brilhante!	Já	me	pediu	aumento
três	 vezes	 em	 dois	 anos.	 Não	 neguei	 nenhuma	 –	 sorriu	 -,	 e	 o	 que	mais?	 O	 que	me	 diz	 da
Amanda?
Outro	passo.	Mina	adiante?
-	Muito	séria.	Parece	entender	bastante	do	assunto.	Fiquei	surpreso	ao	ouvir	a	sua	voz.
-	É	mesmo?	O	que	lhe	passou	pela	cabeça?
-	Imaginei	um	tom	de	voz	que	combinasse	com	a	seriedade	estampada	em	seu	rosto.	Mais
grave	talvez	–	sorri	-,	Eu	diria	que	sua	voz	é	quase	sexy.
-	Aha!	Os	hormônios	estão	falando	por	você	–	deu	uma	gargalhada.
Ríamos.	Quase	 não	me	 preocupava	 com	 o	 terreno	minado	 e	 caminhava	 com	 certa	 leveza
quando	de	repente	vi	o	perigo	logo	à	frente.
-	Como	vai	o	seu	pai?
-	Desculpe	tio,	não	entendi.	Você	e	papai	se	encontram	diariamente.
-	Eu	o	conheço	no	papel	de	irmão	e	atualmente	nos	encontramos	para	falar	dos	assuntos	da
fundação	–	sorriu	-,	eu	quis	dizer	no	ambiente	familiar.	Como	ele	tem	se	comportado	com	você
e	sua	mãe	após	o	transplante?
Sabia	 que	 o	 que	 dissesse	 ficaria	 entre	 nós.	 Sempre	 confiei	 em	 tio	 Adam	 para	 os	 meus
desabafos	familiares.
-	Ele	parece	tenso	desde	que	tudo	aconteceu	–	confessei	 -,	quase	não	temos	conversado	e
acho	que	o	mesmo	vale	para	a	minha	mãe.
-	Entendo.	Procure	ter	paciência.	Todos	nós	vimos	pelo	que	ele	passou	durante	o	período	de
internação	no	hospital.	E	depois	de	tudo,	não	conseguir	se	recolocar	no	mercado	de	trabalho
em	sua	profissão...	Sei	que	ele	não	é	feliz	no	cargo	de	diretor	da	G&N	Foundation,	lecionar	é	o
que	ele	ama	fazer,	mas	quem	sabe,	com	o	tempo,	ele	aprende	a	gostar	de	sua	nova	profissão?
-	Às	vezes	tenho	a	impressão	de	que...	–	hesitei	por	um	momento	–	Ele	não	parece	grato	por
estar	vivo.	Pelo	menos	ele	poderia	demonstrar	gratidão	pela	sua	generosidade.	Se	não	fosse
pelo	seu	dinheiro	ele	estaria	morto,	seria	 impossível	pagar	um	transplante	com	o	salário	de
professor.
-	Duas	coisas:	primeiro:	eu	fiz	o	que	devia	ser	feito,	que	era	estar	presente	para	a	família.
Segundo:	 do	 jeito	 dele,	 ele	 demonstra	 gratidão	 todos	 os	 dias,	 quando	 senta	 na	 cadeira	 de
diretor	 da	G&N.	Não	 se	 esqueça	 de	 que	 o	 objetivo	 da	 fundação	 é	 obter	 crédito	 perante	 os
bancos	para	 famílias	carentes	que	precisem	de	 transplantes.	Posso	 te	garantir:	 ele	vibra	de
alegria	toda	vez	que	uma	família	consegue	realizar	um	transplante.
-	É	muito	bom	saber	disso.	Fico	sempre	preocupado	que	a	saúde	dele	seja	afetada	pelo	seu
estado	de	humor.
Passamos	alguns	minutos	em	silêncio.	Sentia-me	aliviado	em	poder	desabafar	sobre	meu	pai
e	–	principalmente	–	ouvir	de	meu	tio	que	ele	não	estava	tão	mal	quanto	parecia.	Foi	quando
eu	pensava	estar	pisando	em	terreno	seguro	que	a	mina	explodiu.
-	Você	sabe	qual	foi	a	minha	intenção	em	te	chamar	para	a	reunião	hoje,	não	sabe?
Senti	meu	rosto	 ferver.	Tinha	uma	resposta,	mas	a	única	manifestação	que	meu	corpo	 foi
capaz	de	ter	foi	a	de	negar	com	a	cabeça.
-	Desde	o	acidente	com	Glenda	e	Nathan,	 seguido	do	problema	de	saúde	do	seu	pai,	que
julgo	 que	 nossa	 família	 já	 sofreu	 o	 suficiente.	 Temos	 que	 zelar	 uns	 pelos	 outros	 –	 fez	 uma
pausa	e	olhou	para	o	enorme	retrato	na	parede.	Tomou	um	gole	da	taça	de	vinho	e	continuou.
-	Eu	não	tenho	mais	herdeiros	diretos,	Eddie.	Você	sabe	que	sempre	o	amei	como	um	filho	–
parou	para	pensar,	parecia	hesitante	em	falar.
-	 Eddie,	 eu	 consegui	 erguer	 algo	 de	 significativo	 para	 a	 família:	 a	 Kisses	 and	 Hugs.	 Ela
serve	 de	 base	 para	 a	 G&N	 Foundation,	 onde	 seus	 pais	 trabalham.	 Acredito	 que	 seja	 do
interesse	de	todos	que	o	negócio	permaneça	sempre	dentro	dos	limites	da	família.	Hoje	demos
um	 pequeno	 grande	 passo	 para	 que	 você,	 no	 futuro,	 possa	 assumir	 a	 gestão.	 Inicialmente
cheguei	a	duvidar	do	seu	súbito	interesse	pela	informática,	mas	quando	vi	que	tinha	entrado
para	a	CSU,	meu	coração	vibrou	de	alegria.
Naquele	instante	me	dei	conta	de	uma	verdade:	existe	um	gap	enorme	entre	imaginar	uma
situação	 e	 experimentá-la	 na	 realidade.	 Eu	 sabia	 que	 este	 momento	 chegaria	 –	 já	 o	 tinha
imaginado	 inúmeras	 vezes	 -,	 mas	 nunca	 pensei	 que	 fosse	 tão	 rápido.	 Achei	 que	 teria	mais
tempo	 (para	 que	 exatamente	 eu	 não	 sei).	 Minha	 mente	 percorria	 um	 infinito	 labirinto	 de
decisões	 passadas	 que	 eram	 impossíveis	 de	 remediar.	 Por	 algum	 motivo	 idiota	 achei	 que
escolher	 informática	 traria	paz	para	a	 família	 (após	 tanto	sofrimento).	E	a	minha	paz?	Tudo
indicava	que	 eu	 tinha	me	esquecido	 (e	 ninguém	parecia	 se	 importar	 com	 isso).	Meu	 corpo,
incapaz	 de	 reagir	 adequadamente,	 permanecia	 paralisado.	 Procurava	 apaziguar	 a	 cena,	me
recompor	para	poder	continuar	a	conversar	com	meu	tio,	mas	tudo	que	me	aparecia	na	cabeça
era	a	noite	do	dia	seguinte,	quando	na	casa	de	Stan	me	tornaria	milionário	invadindo	a	Deep
Web.	 Vendo	 o	meu	 sucesso	 ele	 não	 se	 preocuparia	 tanto	 com	 a	 longevidade	 da	 Kisses	 and
Hugs.	Claro	que	não.
-	Estou	lisonjeado	tio	–	disse	sorrindo	-,	nem	sei	o	que	dizer.
-	Não	diga	nada!	Coma	seu	risoto	e	tome	um	pouco	do	vinho	apenas	para	brindarmos,	afinal
você	ainda	tem	que	dirigir	até	sua	casa.
Serviu	dois	dedos	do	vinho	branco	na	minha	 taça.	Fomos	para	perto	da	 foto	de	Glenda	e
Nathan	onde	ele	disse:
-	Onde	quer	que	vocês	estejam	meus	queridos,	abençoem	este	momento.	Fiquem	com	Deus.
O	suave	sabor	do	vinho	desceu	pela	minha	garganta	amarga.	Amarga	pela	impossibilidade
de	dizer	o	que	eu	sentia	e	pensava.	Mas	amanhã	era	outro	dia.
Capítulo	4
Ascensão
	
Os	dias	ensolarados	se	repetiam	e	minha	incapacidade	de	apreciá-los	parecia	cada	vez	pior.
Sem	 dormir	 direito	 por	 duas	 noites,	 acordei	 com	 dor	 de	 cabeça	 –	 era	 inevitável.	 As
recordações	do	dia	anterior	ainda	pipocavam	na	minha	mente.	Precisava	estar	bem	para	nossa
primeira	 incursão.	 Dois	 comprimidos.	 Sim,	 era	 disso	 que	 eu	 precisava:	 dois	 comprimidos
daqueles	 brancos	 que	 minha	 mãe	 tomava	 toda	 vez	 que	 reclamava	 da	 enxaqueca.	 Pulei	 da
cama	 rumo	 ao	 armário	 do	 banheiro,	 tinha	 que	 agir	 rápido	 para	 não	 levantar	 suspeitas	 a
respeito	dos	comprimidos.
Inútil.	Nada	no	banheiro,	só	me	restava	vasculhar	a	bolsa	da	minha	mãe.	Aproveitando	que
eles	 estavam	 na	 cozinha,	 fui	 sorrateiramente	 até	 a	 sala.	 Assim	 que	 comecei	 a	 vasculhar	 a
grande	bolsa	 verde,	 lá	 de	dentro	 seu	 celular	 começou	a	 gritar.	Merda!	Quem	 telefona	para
alguém	às	sete	e	quinze	da	manhã?	 Instintivamente	peguei	o	aparelho	para	silenciá-lo,	com
um	pouco	de	sorte	ninguém	notaria	a	chamada:	era	tio	Adam.	Paciência.	Seja	o	que	for	ficaria
para	 depois.	 Provavelmente	 algum	 assunto	 pendente	 da	 fundação.	Minha	mão	 percorria	 os
caminhos	 multidimensionais	 de	 uma	 típica	 bolsa	 feminina	 sem	 encontrar	 os	 malditos
comprimidos.	Lá	pela	quinta	dimensão,	quando	pensava	em	desistir,	encontrei	a	cartela.	Sem
pensar,	tomei-os	sem	água.	Como	a	cartela	estava	quase	cheia,	achei	que	ela	não	daria	falta.
Engoli	qualquer	coisa	de	café	da	manhã	–	juro	que	não	me	lembro,	sei	que	apenas	ajudaram
a	 empurrar	 os	 comprimidos.	 Fragmentos	 dasconversas	 entre	meus	 pais	 ficaram	 retidos	 na
minha	memória:	 ela	 reclamava	 do	meu	 tio,	 dizia	 que	 não	 concordava	 com	 sua	 postura	 em
algum	 assunto	 da	 fundação;	 meu	 pai,	 por	 sua	 vez,	 fazia-se	 de	 morto	 enquanto	 as	 ondas
sonoras	 de	 suas	 cordas	 vocais	 insistiam	 em	 perturbá-lo.	 Era	 mais	 uma	manhã	 como	 outra
qualquer.
As	aulas	passaram	mais	lentamente	do	que	o	usual.	Se	não	fosse	pela	excitação	de	Stan	em
contar	as	horas	para	nossa	primeira	incursão	na	Deep	Web,	eu	diria	que	o	dia	teria	passado
mais	 rápido.	Não	 tinha	 como	 ignorar	 a	minha	própria	 ansiedade	 a	 respeito	 do	 assunto:	 era
como	se	Alexei	tivesse	atirado	um	pedaço	de	madeira	capaz	de	me	remover	da	areia	movediça
em	que	me	encontrava.	Definitivamente	o	dia	anterior	tinha	me	deixado	atolado	até	a	cintura.
Durante	 o	 intervalo,	 Stan	 abriu	 as	 comportas	 de	 sua	 excitação	 deixando-a	 transbordar
livremente.
-	Eddie!	Eddie!	Eddie!
Quando	ele	chamava	meu	nome	três	vezes	era	um	mau	sinal.
–	 Não	 dormi	 nada	 ontem.	 Minha	 mente	 só	 pensava	 na	 Deep	 Web.	 Apenas	 quando	 me
levantei	 da	 cama	e	 instalei	 o	Tor	browser	que	 fui	 capaz	de	pregar	 o	 olho.	Não	é	 estranho?
Nem	cheguei	a	navegar.	Eu	tinha	que	fazer	alguma	coisa,	entende?
Enfatizou	a	palavra	fazer	com	um	gesto	parecido	com	o	de	um	lutador	de	boxe.
-	 Não	 aguentava	mais	 ficar	 só	 na	 imaginação.	Não,	 não,	 não!	Não	 aguentava.	 Tinha	 que
entrar	em	ação!	Ação!	Ação!	–	distribuía	socos	no	ar.
-	Acalme-se!	Eu	entendi.	Procure	maneirar	nas	doses	de	Red	Bull,	ok?
-	Vamos	lá	falar	com	Alexei?	Vamos?	Vamos?
Concordei	sem	pensar.	Qualquer	coisa	que	o	acalmasse	me	traria	paz.
Como	 de	 costume,	 o	 russo	 se	 encontrava	 no	 fundo	 do	 refeitório	 cercado	 pelo	 seu	 fiel
séquito.	Assim	que	Stan	sentou	a	mesa,	começou	com	a	verborragia	sobre	a	Deep	Web.
-	Então	Alexei?	É	hoje	que	nós	vamos	ficar	ricos?	Ricos!	Ricos!	Passei	a	noite	sem	dormir
pensando	nisso.	Você	não	vai	acreditar!	Não	cara,	você	não	vai.	Adivinha?	Adivinha?	Adivinha?
Só	quando	instalei	o	browser	Tor	que	consegui	sossegar.	É	cara!	O	browser	Tor!
Apontei	sutilmente	para	a	lata	de	Red	Bull	na	mão	esquerda	de	Stan:	esperava	que	Alexei
fosse	inteligente	para	entender	a	mensagem.
-	Você	é	viciado	nesta	merda?	–	perguntou	antes	de	resmungar	alguma	coisa	em	russo	(da
qual	eu	não	precisei	de	tradutor	para	perceber	que	se	tratava	de	um	insulto).
-	Tome	uma	destas	–	disse	após	tirar	um	comprimido	de	um	vidro	com	o	rótulo	escrito	no
alfabeto	cirílico	que	estava	no	bolso	de	sua	calça	–,	durma	quando	chegar	a	casa,	depois	vai
me	agradecer	por	isso.
Antes	que	Stan	pudesse	levar	o	comprimido	à	boca,	segurei	seu	braço	numa	atitude	que	até
eu	mesmo	me	surpreendi.
-	Por	acaso	você	não	está	desconfiado	do	que	vou	dar	para	o	seu	amigo,	está?
Seus	três	seguidores	se	aproximaram.	De	onde	eu	estava,	consegui	ouvir	Stan	engolir	em
seco.	Senti	que	podia	estar	pondo	tudo	a	perder.
-	Tenho	 interesse	que	vocês	estejam	 inteiros	hoje	à	noite.	O	comprimido	vai	ajudá-lo	a	se
livrar	deste	vício.	Confie	em	mim.
Era	um	bocado	difícil	confiar	em	alguém	que	carrega	no	braço	a	frase	tatuada	“In	chaos	we
trust”,	 pensei.	 Soltei	 o	 braço	 de	 Stan	 decidindo	 acreditar	 no	 interesse	 dele	 em	nos	manter
saudáveis	até	a	noite.	Seus	capangas	se	afastaram,	para	o	nosso	alívio.
Após	colocar	o	comprimido	na	boca,	vi	a	lata	de	Red	Bull	entrar	em	órbita	por	um	tapa	de
Alexei	quando	Stan,	mecanicamente,	ameaçou	usar	o	veneno	negro	para	tomar	o	remédio.
-	Se	soubesse	que	estava	lidando	com	idiotas	não	os	convidava	para	o	projeto!	–	disse	Alexei
por	entre	os	dentes	cheio	de	raiva.
-	Acalme-se,	vai	dar	tudo	certo.	Ele	só	está	ansioso,	ok?	Você	não	vai	se	arrepender	de	ter
nos	chamado.
Dito	isso,	puxei	Stan	pelo	braço	para	longe	dali.	Antes	que	pudesse	dar	três	passos,	Alexei
falou.
-	Ei!	Foguinho!	Trate	de	colocar	o	gorducho	na	 linha!	É	bom	que	vocês	estejam	online	às
onze	horas,	caso	contrário	irão	arcar	com	as	consequências.
Demorei	 alguns	 segundos	 para	 entender	 a	 piada	 com	 a	 cor	 dos	 meus	 cabelos.	 Sim,	 nós
estaremos	lá,	pensei.	Mesmo	que	eu	tenha	que	açoitar	Stan	para	que	ele	se	acalme.
Não	consegui	prestar	atenção	nas	aulas	durante	a	tarde.	Seja	lá	qual	fosse	o	medicamento
que	 Stan	 tivesse	 ingerido,	 teve	 um	 efeito	 avassalador	 sobre	 ele.	 Além	 de	 silenciar	 sua
tagarelice,	o	manteve	num	estado	zen,	onde	um	sorriso	incomum	permaneceu	estampado	em
seu	rosto	todo	o	tempo.	Tudo	indicava	que	o	chicote	não	seria	necessário.
Ao	cair	da	tarde,	durante	a	volta	para	casa,	meu	estômago	vibrava	cada	vez	que	o	ponteiro
do	 relógio	 se	 aproximava	 das	 onze	 da	 noite	 (e	 ainda	 eram	 seis	 e	 quarenta).	 Enquanto
percorria	as	ruas	de	LA	junto	com	Susie,	comecei	a	fazer	planos	com	o	dinheiro	da	Deep	Web:
a	primeira	providência	seria	comprar	uma	casa.	Construiria	um	estúdio:	um	puta	estúdio,	sim
senhor,	de	matar	de	 inveja	 até	o	dono	do	Sound	City!	Ali	 gravariam	as	maiores	estrelas	do
rock,	 além	 de	 servir	 de	 ambiente	 para	 evolução	 da	minha	 banda.	Minha	 coleção	 de	 baixos
ficaria	exposta	na	sala	e	reservaria	um	espaço	na	parede	para	os	discos	de	ouro,	é	claro.	Com
dinheiro	 tudo	se	 tornaria	 fácil:	 inclusive	o	 livre	 trânsito	aos	 locais	caros	 frequentados	pelos
grandes	astros.	Sim,	eu	fui	moldado	para	esta	vida,	eu	não	tinha	dúvidas	disso!	Faltava	apenas
esta	peça	do	quebra	cabeças.
Ao	buzinar	na	minha	cara	o	furgão	branco	me	trouxe	de	volta	para	o	planeta	Terra:
-	 Preste	 atenção	 ao	 sinal	 garoto	 de	 merda!	 Quer	 morrer	 antes	 do	 tempo?	 –	 gritou	 o
motorista.	Estava	vivo	graças	aos	meus	reflexos	que	me	fizeram	frear	a	tempo;	meu	coração
parecia	que	ia	sair	pela	garganta.
Aproveitei	a	parada	forçada	e	fui	até	o	mercado	comprar	umas	pizzas	e	refrigerantes	que
pudessem	nos	 alimentar	 durante	 a	 noite,	 não	 tinha	 a	mínima	 ideia	 de	 quanto	 tempo	 aquilo
demoraria.
No	mercado,	 aproveitei	para	me	acalmar	do	 susto.	Procurava	por	alguma	bebida	 livre	de
cafeína	 –	 não	 queria	 provocar	 uma	 recaída	 em	 Stan.	 Dois	 litros	 de	 Sprite	 dariam	 conta	 do
recado.
Conclui	 que	 era	 melhor	 dizer	 aos	 meus	 pais	 que	 passaria	 a	 noite	 na	 casa	 de	 Stan,
independente	de	quanto	tempo	demorasse.	Colocaria	a	culpa	em	algum	trabalho	da	faculdade.
Tinha	a	certeza	de	que	funcionaria.
Assim	que	abri	a	porta	de	casa,	minha	mãe	foi	logo	iniciando	o	interrogatório:
-	Edgar,	por	acaso	você	andou	mexendo	na	minha	bolsa	hoje	de	manhã?
Tive	que	pensar	rápido:	se	eu	confirmasse	o	roubo	dos	comprimidos	corria	o	risco	de	criar
um	 clima	 desfavorável	 para	 a	 minha	 ausência	 durante	 a	 noite.	 Isso	 sem	 contar	 com	 a
possibilidade	 dela	 imaginar	 que	 eu	 tinha	 desenvolvido	 algum	 tipo	 de	 vício	 por	 ibuprofeno.
Negar	 também	 parecia	 não	 ser	 uma	 opção	 viável.	 O	 caminho	 do	meio,	 o	 caminho	 do	meio
Eddie!
-	Sim,	mãe.	Ouvi	 o	 seu	 celular	 tocar	 e	percebi	que	ele	 estava	em	sua	bolsa,	mas	quando
cheguei	 a	 enfiar	 a	mão	para	procurá-lo	demorei	 tanto	para	encontrá-lo	que	parou	de	 tocar.
Chegou	a	ver	a	chamada	não	atendida?	Afinal,	quantos	compartimentos	existem	na	sua	bolsa?
Minha	nossa!	Aquilo	parece	um	labirinto	do	minotauro.
Ela	riu.	Bem	no	alvo,	Eddie.
-	Mas	por	que	não	me	avisou	do	telefonema?
-	 Sabe	 que	 sou	 meio	 zumbi	 pela	 manhã...	 Acabei	 esquecendo-me	 no	 minuto	 seguinte.
Desculpe	-	sorri.
Era	impressionante	ver	como	um	indivíduo	com	uma	meta	na	cabeça	é	capaz	de	mentir	com
maior	 facilidade.	 Aproveitei	 o	 embalo	 para	 notificá-la	 que	 passaria	 a	 noite	 fora.	 Emendei	 a
mentira	dizendo	que	 tínhamos	um	 trabalho	 sobre	arquitetura	de	 sistemas	distribuídos	onde
precisávamos	 testar	 um	 sistema	 com	 outros	 quatro	 alunos.	 Aquilo	 era	 uma	 meia	 verdade:
Alexei	 e	 seus	 três	 capangas	 estariam	online	 juntos	 conosco.	Uma	grande	mentira	 é	 sempre
melhor	digerida	se	acompanhada	de	meias	verdades.
Apressei-me	 para	 deixar	 tudo	 pronto,	 queria	 jantar	 com	 meus	 pais	 como	 forma	 de
compensarminha	ausência	durante	a	noite.	Acho	que	parte	disso	era	pelo	sentimento	de	culpa
por	 ter	mentido	 para	 a	minha	mãe.	 Sei	 lá.	 Fosse	 como	 fosse,	 eu	 jantaria	 com	 eles.	 Estava
decidido.
Por	 volta	das	20h30,	 senti	 o	 aroma	das	panquecas	de	 carne	vindo	da	 cozinha.	Só	me	dei
conta	de	estava	faminto	no	momento	em	que	minhas	glândulas	salivares	jorraram	como	uma
garrafa	de	champanhe	durante	o	ano	novo.	Com	a	mochila	pronta	e	com	o	espírito	de	quem	ia
se	tornar	um	milionário	da	noite	para	o	dia,	fui	jantar.
Notei	algo	diferente	no	ar	quando	sentei	a	mesa.	 Inicialmente	não	soube	dizer	do	que	se
tratava;	podia	ser	decorrência	da	minha	boa	disposição	pelo	evento	da	noite,	mas	não	era.
-	Stephanie,	passe-me	a	pimenta,	por	favor.
-	Você	já	sabe	sobre	a	pimenta	Jerry.	Com	moderação.
-	Eddie,	tudo	bem?	Soube	que	esteve	lá	na	Kisses	and	Hugs	com	seu	tio	em	reunião	–	ele
disse	antes	de	abrir	um	sorriso	enorme	-,	não	vai	nos	contar	nada	a	respeito?	Se	você	pensava
em	fazer	uma	surpresa	seu	tio	estragou	tudo.
Quase	me	arrependi	da	decisão	de	jantar	em	casa.
-	Eu?	Ah	 sim!	Mas	é	 claro	que	 ia	 contar	para	 vocês.	Tenho	andando	 tão	ocupado	com	os
trabalhos	da	faculdade	que	as	coisas	me	escapam.	Não	vai	acreditar,	mas	hoje	de	manhã	me
esqueci	de	dizer	para	ela	que	o	celular	tinha	tocado.	Não	é	incrível?	Diga	para	ele	mãe,	diga	-
sorri.
Ríamos	todos	juntos:	estava	funcionando.
-	A	propósito:	a	reunião	foi	ótima.	Conheci	a	equipe	principal	de	desenvolvedores	do	site.	O
pessoal	é	muito	bacana.	Por	favor,	me	passe	o	sal,	pai.	Finalmente	eu	conheci	a	Martha.	Vocês
sempre	falam	dela.	Eu	a	tinha	imaginado	completamente	diferente,	não	é	engraçado?
Cada	 frase	que	 saía	da	minha	boca	era	 como	um	sinal	 luminoso	 indicando	que	eu	estava
indo	 longe	 demais.	 Era	 bom	que	 o	 software	 de	Alexei	 funcionasse	 hoje	 à	 noite.	 Por	 quanto
mais	tempo	eu	seria	capaz	de	bloquear	meus	sentimentos?	Eu	não	tinha	resposta	para	isso.
-	 Nós	 ficamos	 muito	 felizes	 com	 a	 notícia,	 filho.	 Da	 próxima	 vez,	 pode	 nos	 visitar	 na
fundação.	Fica	no	mesmo	prédio	no	primeiro	andar.
O	 ideal	é	que	não	existisse	uma	próxima	vez,	mas	eu	 tinha	que	acalmar	os	meus	ânimos.
Quanto	 tempo	 levaria	 até	 fazer	 algum	 dinheiro	 com	 a	 informação	 obtida?	 Essa	 era	 outra
pergunta	sem	resposta.
Saí	por	volta	das	nove	e	vinte.	Segundo	os	meus	cálculos,	com	o	trânsito	fluindo,	chegaria	à
casa	 de	 Stan	 por	 volta	 das	 dez.	 Uma	 hora	 antes	 do	 combinado	 com	 Alexei.	 Sentia	 minha
ansiedade	pulsar.	Aquela	 estranha	 vibração	na	boca	do	 estômago	 começava	 a	dar	 sinais	 de
vida.
No	caminho,	fiquei	recordando	o	ar	de	felicidade	dos	meus	pais	durante	o	jantar.	Qual	seria
a	reação	deles	se	eu	dissesse	que	não	me	interesso	em	me	tornar	mais	um	idiota	engravatado
do	mundo	corporativo?	Ri	daquele	pensamento:	afinal	não	tinha	visto	ninguém	usar	gravata	na
empresa.	 Enfim,	 o	 que	 aconteceria	 quando	 eu	 revelasse	 que	 a	minha	 paixão	 estava	 –	 onde
sempre	 esteve	 –	 na	 música?	 Podia	 ver	 meu	 pai	 sofrendo	 uma	 síncope,	 e	 minha	 mãe	 me
culpando	para	todo	o	sempre.	Somente	muito	dinheiro	poderia	sossegá-los.	Muito	mesmo.	O
suficiente	para	uma	vida	toda.
Assim	que	me	aproximei	de	sua	casa,	pude	vê-lo	sentado	do	lado	de	fora	com	uma	garrafa
de	água	tônica	na	mão.
-	Dormi	durante	três	horas	seguidas.	Sinto-me	renovado	–	disse	ao	abrir	o	portão	de	casa	–
Não	consigo	nem	chegar	perto	do	Red	Bull.	 Tenho	náuseas	 só	 de	 pensar	 nisso.	 Inutilmente
tentei	descobrir	qual	 substância	pode	 ter	este	 resultado	 instantâneo	no	vício	da	cafeína.	Se
alguma	coisa	existe,	deve	ser	um	antigo	segredo	soviético	guardado	na	Sibéria.
Descemos	imediatamente	para	o	porão.	Por	mais	que	já	estivesse	acostumado	com	o	bunker
de	Stan,	era	sempre	um	impacto	entrar	ali.	A	parafernália	tecnológica	que	se	misturava	entre
vídeo	games,	computadores,	caixas	de	som	e	monitores	de	variados	tamanhos	era	sempre	um
espetáculo	a	parte.	Parte	do	que	se	encontrava	ali,	era	fruto	de	sua	obsessão	pela	história	da
informática.	Afinal,	qual	a	utilidade	que	alguém	poderia	dar	a	um	Commodore	64	hoje?	Ele
guardava	 itens	 suficientes	 para	 fundar	 um	 museu,	 caso	 quisesse.	 Seu	 pai,	 que	 sempre
trabalhou	na	IBM,	era	um	grande	cúmplice	e	fornecedor	das	relíquias.	Nas	paredes,	posters
de	 suas	 bandas	 preferidas	 se	 misturavam	 com	 propagandas	 de	 softwares	 e	 hardware.	 Era
engraçado	ver	o	Black	Veil	Brides	ao	lado	do	Kapersky	Anti	Vírus.	A	cama	beliche,	a	pequena
geladeira	e	o	pequeno	banheiro	–	pequeno	mesmo,	mal	cabia	uma	pessoa	lá	dentro	–	tornavam
o	lugar	autossuficiente,	por	assim	dizer.	No	final,	aquilo	tudo	parecia	um	cenário	de	um	filme
de	ficção	científica	do	tempo	do	meu	avô.
-	Cuidado	para	não	pisar	no	Zax!	–	ele	gritou.
No	chão,	estava	a	caixa	do	antigo	ZX	Spectrum	trazido	pelo	pai	há	alguns	anos.	Lembro-me
de	 ficarmos	 boquiabertos	 com	 um	 jogo	 de	 labirinto	 onde	 você	 é	 perseguido	 por	 um
dinossauro.	Acho	que	foi	a	primeira	vez	que	vi	uma	fita	cassete	funcionar	pessoalmente.
-	Zax?	Seu	ZX	Spectrum	tem	o	nome	de	Zax?	Não	é	um	bocado	óbvio?
-	Tão	óbvio	quanto	dar	o	nome	de	Susie	para	uma	moto	Suzuki,	meu	querido!
-	Xeque-mate.
Apressei-me	para	arrumar	minhas	coisas.	Já	passavam	das	dez	e	quinze.	Eu	tinha	a	intenção
de	conversar	com	Stan	antes	de	 tudo	começar.	Enquanto	 ligava	meu	notebook,	ele	 foi	mais
rápido	e	começou	a	me	contar	o	que	tinha	descoberto	sobre	a	Deep	Web	nos	últimos	dias.
-	No	meio	da	minha	euforia	de	ontem,	andei	pesquisando	sobre	a	origem	da	Deep	Web.	Sabe
o	 que	 eu	 descobri?	 Originalmente,	 foi	 o	 projeto	 do	 governo	 americano	 com	 a	 intenção	 de
melhorar	 a	 privacidade	 das	 suas	 próprias	 comunicações.	 Se	 ficarmos	 ricos	 temos	 que
agradecer,	ao	U.S.	Naval	Research	Laboratory,	mais	especificamente	ao	Dr.	Paul	Syverson	que
liderou	o	projeto.	O	principal	requisito	do	projeto	era	de	que	a	comunicação	entre	as	partes
fosse	realizada	sem	alguém,	que	interceptasse	a	mensagem	no	meio	do	caminho,	fosse	capaz
de	 associar	 a	 fonte	 e	 o	 destino.	 Foi	 assim	 que	 nasceu	 a	 rede	 Tor.	 Sabia	 que	 o	 nome	 é	 um
acrônimo	para	“The	Onion	Router”?	Ao	navegar	nesta	rede,	seu	endereço	IP	é	criptografado
por	três	camadas	–	como	as	camadas	de	uma	cebola	–	cada	computador	da	rede	“descasca”
uma	 das	 camadas	 passando	 adiante	 o	 pacote	mantendo	 o	 usuário	 anônimo.	Mesmo	 que	 no
meio	do	caminho	alguém	intercepte	a	conexão,	é	impossível	decifrar	o	que	vai	por	ali.
-	Mas	então,	como	explica	o	que	eu	li	sobre	o	FBI	monitorar	parte	do	tráfego?
-	 Lembrei-me	 de	 você	 ter	 dito	 isso,	 procurei	 também	 sobre	 o	 assunto:	 eles	 conseguiram,
utilizando	 manobras	 do	 direito	 internacional,	 monitorar	 alguns	 servidores	 da	 rede	 Tor	 em
casos	de	 investigação	de	pedofilia.	Como	este	 assunto	não	 faz	 parte	 do	nosso	 interesse,	 eu
acredito	que	estamos	a	salvo.
Abriu	o	tubo	de	batatas	prinkles	e	abocanhou	duas	ao	mesmo	tempo.
-	 Continuando:	 a	 rede	 Tor	 possui	 grande	 importância	 em	 países	 com	 regimes	 ditatoriais,
achei	 diversos	 casos	 de	 pessoas	 que	 conseguiram	 se	 comunicar	 com	 o	 mundo	 exterior
enquanto	seu	país	estava	em	guerra	através	dela.	Ah!	Sem	esquecer	de	que	ela	estava	por	trás
de	 toda	aquela	discussão	a	respeito	do	site	Wikileaks	e	Edward	Snowden,	 lembra?	Enfim,	o
tiro	saiu	pela	culatra,	quando	a	turma	do	mal	percebeu	que	ali	existia	a	plataforma	ideal	para
expandir	 o	 seu	 tipo	 de	 negócio.	 Você	 sabe	 que	 até	 uma	 moeda	 virtual	 foi	 criada	 para	 as
transações?	Chama-se	Bitcoin.	Mesmo	após	prenderem	o	fundador	do	site,	a	coisa	ressurgiu
com	força	total.	Infernal,	não	é?
-	 Impressionante.	 Parece	 que	 nós	 éramos	 os	 únicos	 dois	 alienados	 do	 planeta	 que	 não
sabíamos	nada	a	respeito.	Eu	sonhando	com	a	música	e	você	perdido	nos	vídeo	games.
-	Ei!	Não	se	esqueça:	também	me	perco	com	a	pornografia!	Sr.	Coburn,	o	que	importa	é	que
agora	sabemos.	E	vamos	nos	tornar	ricos	por	causa	disso!	–	gritou.
Os	steel	drums	caribenhos	começaram

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