Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DEEP WEB A VERDADE POSSUI DIVERSAS CAMADAS L. E. SILVA DIAS DEEP WEB – A verdade possui diversas camadas Copyright 2015 © by L. E. Silva Dias É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo, sob quaisquer meios, sem a autorização expressa do autor. Capa: Ravenink Esta obra está registrada no IGAC: Número: 1758/2015 IGAC: INSPEÇÃO-GERAL DAS ATIVIDADES CULTURAIS - DIREÇÃO DE SERVIÇOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL Telefone: 351 21 321 25 00 Fax: 351 21 321 25 66 www.igac.pt Palácio Foz, Praça dos Restauradores, Apartado 2616, 1116-802 Lisboa, Portugal. Agradecimentos Ao amigo Alex Magnum. Que este possa ser o primeiro passo do recomeço da nossa antiga parceria. Sumário Aflição Saída Desvio Ascensão Queda Purgatório Ataque Insight Caos Despertar Capítulo Um Aflição O azul do céu sem nuvens fazia um belo contraste com o verde da quadra de tênis. Beverly Hills nesta época do ano era irritantemente perfeita. Mesmo vazio, o local parecia não possuir tamanho suficiente para conter os meus pensamentos. Arremessei a bola novamente numa esperança irracional de que as minhas aflições fossem embora com ela. Prontamente Til correu para buscá-la, trazendo-a de volta para as minhas mãos, molhada pela sua saliva - exatamente como nos velhos tempos. Sabia que não demoraria muito para que alguém da família surgisse para o meu resgate, podia ouvi-los ao longe, sem entender o significado da conversa. Um ruído ambiente: era como eu lidava com as conversas típicas destes encontros familiares. Na impossibilidade de ser bem sucedido podia sempre contar com meu mp3 player, mesmo correndo o risco de ser repreendido pelos meus pais. Mas este não era o caso. Por enquanto, a distância cuidava da minha surdez momentânea. De onde eu estava, podia ver o novo Porsche estacionado. Independente das várias vezes em que meu pai citou o seu modelo e ano, fui incapaz de guardar a informação. Arremessei a bola novamente: antes que ela pudesse tocar o chão Til disparou como um foguete atrás dela. Pelo canto dos meus olhos, podia ver a família reunida na mesa do jardim protegida pelos grandes guarda-sóis amarelos, tio Adam estava de pé com o braço ao redor da cintura de sua nova namorada. Como era mesmo o nome dela? Shelly? Sharon? Com a respiração ofegante, ele entregou-me a bola babada; permaneceu estático a me observar com a boca aberta e a língua de fora: era como se pudesse perceber minha aflição, cada retorno seu mostrava que arremessar uma estúpida bola de tênis não apaziguaria minha dor. Fingi arremessar a bola: continuou a me olhar como se meu esforço para enganá-lo nunca tivesse ocorrido. Os almoços dominicais para celebrar qualquer nova conquista já faziam parte da tradição familiar. Qualquer coisa servia de motivo – qualquer coisa. Desde a conclusão da obra do terceiro piso da casa até um novo relacionamento: sempre há um motivo para celebrar a vida, dizia tio Adam. Da posição dele, isso parecia fácil de dizer. Do meu canto, não tinha motivos para celebrar. Faltavam poucos dias para as aulas recomeçarem na CSU e a dúvida continua a me consumir. O que me consolava eram as boas amizades que cultivei durante o primeiro ano do curso. Em particular, sentia falta de Stan e de nossas conversas – que não tinham o mesmo sabor em sua versão online. - Eddie, não vai querer pudim? – disse tio Adam que surgiu sorrateiramente do nada. A farta fatia de pudim dançava suavemente sobre o pequeno prato de sobremesa. Essa era uma das características mais marcantes de sua personalidade: o exagero. - Claro tio – menti -, obrigado. Antes de pegar o prato, pude fitar o coração na altura de seu pulso: aquela marca me trazia boas recordações. Recordações das estórias que ele inventava para me entreter quando criança: os deuses marcaram-no por causa do seu bom coração e era necessário que ele fosse reconhecido no meio da multidão. Outra versão – mais moderna – dizia que um anjo tinha tatuado o seu pulso esquerdo para que ele se lembrasse do que era mais importante nesta vida: o amor pela sua família. - Sente-se bem? Porque está aqui sozinho? - Não estou sozinho, estou com Til – disse procurando dissimular. Sabia que estava em franca desvantagem: ele me conhecia desde que nasci e, de certa forma, talvez me conhecesse melhor do que meus pais. Tornei a arremessar a bola na inútil expectativa de que a conversa pudesse mudar de foco. - Qual o problema? Alguma namorada? – perguntou ao mesmo tempo em que sentava ao meu lado. Era inquietante fitar seus olhos azuis enquanto me preparava para mentir, mas eu estava me tornando um perito na arte da dissimulação. Arrisquei: - Sim. Foi uma coisa rápida de verão – pisquei o olho direito à procura de uma conexão emocional – Já me sinto melhor, vai passar. - Acredite: ficar isolado não ajuda nessas horas – disse ele com o peso de sua experiência. Meu sentimento de culpa só se agravou ao ouvir aquilo. Sabia que ele falava do fundo do coração e desperdiçava sua bondade com a minha falsa tristeza. - Vamos nos juntar aos outros – disse-me enquanto levantava. Encurralado pelo meu próprio ardil, confirmei com um aceno de cabeça. Sabia que tio Adam não iria mencionar o meu suposto namoro – seria como jogar uma lata de querosene na fogueira. Restava-me apenas torcer para que o fantasma do assunto CSU não assombrasse a mesa do almoço. - Eddie! Onde estava se escondendo? – disse meu pai. - Consegui resgatá-lo da quadra de tênis – emendou tio Adam – estava lá brincando com Til. Sentei-me debaixo de um dos grandes guarda-sóis amarelos (podia sentir que o meu sorriso era da mesma cor). Minha mãe e Shelly (Sharon?) conversavam a respeito de uma revista de decoração. Tio Adam mantinha o interesse pelo assunto assinando todo tipo de revistas. Um dos seus passatempos favoritos era repensar os cômodos de sua casa e dar trabalho para os arquitetos. Meu pai saboreava um suco de melancia – a ausência de pratos ao seu redor indicava que ele tinha resistido bravamente ao pudim. Ele não se atreveria a dar vazão a sua gula, não com minha mãe por perto. Desde a cirurgia que podia se notar uma mistura de medo e tristeza no seu olhar. Tinha ficado mais parecido comigo desde então. - Chegou a ver o carro? – meu pai me perguntou. - Sim. Vi de longe. - Tem que ir até lá ver de perto. É lindo. Eu te falei que é um Cayman S? Para a minha sorte nossa conversa foi interrompida pelo som do alarme. Aquilo já tinha ocorrido tantas vezes que suspeitava que no dia em que ele soasse por algum motivo verdadeiro ninguém acreditaria. Tio Adam já tinha gasto uma fortuna na constante mudança de marcas e modelos sem obter êxito: inexplicavelmente um rotweiler tinha o poder de acionar o sistema da porta de entrada da mansão que servia para detectar metais. Outra fortuna tinha sido gasta com o inútil adestramento de Til, parecia que nada o convencia a permanecer o tempo todo do lado de fora – eventualmente ele ousava ultrapassar os limites impostos. - Til! Faz três semanas que isso não acontece – disse Tio Adam irritado com o controle remoto do alarme nas mãos -, pensei que tinha terminado. Aproveitei a confusão para levantar da mesa e sair à procura de Til: queria encontrá-lo para agradecer por conseguir me tirar dali. Corri para dentro da mansão aparentando preocupação. O alarme cessou assim que adentrei, apenas para aumentar o impacto: por mais que soubesse da existência da enorme foto de Glenda e Nathan na sala, eu levava um chute no estomago toda vez que a encarava. Passaram-se dois anos: o planeta deu a volta em torno do sol duas vezes, mas a dor continuava viva. Til permanecia invisível como um chihuahua (talvez um chihuahua fosse mais fácilde encontrar). Preparava-me para subir a escada para o segundo piso quando Tio Adam passou por mim. - Safado! Eu sei onde ele gosta de ficar. Quer ver? Venha comigo – disse com um sorriso malicioso. Seu rosto emanava uma mistura de fascínio e irritação. Disparou pela escada em direção ao terceiro piso, eu corria logo atrás para não perder um segundo sequer, entrou no escritório onde ficava a central de câmeras do circuito interno de TV da mansão. Lá estava ele sentado, como um fiel espectador na poltrona do cinema. - Veio assistir um pouco de TV, não é Til? Não sei qual o interesse dele nas imagens do circuito interno. Um dos adestradores me disse para criar uma forma de punição quando isso acontecesse, chegou até a sugerir um pequeno chicote para isso. A expressão de surpresa no meu rosto deve ter funcionado como legendas num filme. - Não! Eu não seria capaz de machucar Til – disse acariciando a cabeça dele que retribuía lambendo-lhe as mãos –, já passamos por muitas coisas juntos, não é verdade rapaz? Depois desta dica, dispensei o adestrador e joguei fora seu cartão. Apontou com o dedo a direção da escada fazendo com que ele obedecesse prontamente. - Troquei recentemente o sistema – sentou-se na enorme cadeira de diretor -, é de uma empresa alemã: Brickstein Software. Na verdade, o erro é meu: esqueço-me de desligar o alarme durante estes convívios familiares. Este software é tão específico que consegue detectar apenas armas através de um scanner 3D. Desisti de tentar entender porque ele o ativa, ninguém sabe explicar. – disse ao abrir o notebook e inicializar o sistema operacional -, eu já te mostrei a nova versão do site? – perguntou mudando o rumo da conversa bruscamente. - Não – disse aparentando curiosidade – já está online? - Ainda não. Vou te mostrar o site na área de pré-produção. Com o entusiasmo de uma criança com um novo brinquedo após o natal, tio Adam mostrava as novas funcionalidades da sua mais famosa criação: a rede social kissesandhugs.com. Em apenas um ano e meio tinha conquistado quinhentos milhões de assinantes: era um verdadeiro sucesso. Percebi minha mente divagar enquanto ele se vangloriava do tempo gasto em reuniões para definição do padrão dos novos ícones. Fisgava uma palavra ou duas dos sons que saíam de sua boca – o suficiente para acompanhar a linha de raciocínio geral. Seus olhos brilhavam ao explicar os benefícios da versão 3.4.1 da linguagem Python; eu continuava a esconder o meu desinteresse concordando com tudo que dizia, às vezes abanava a cabeça e de vez em quando sorria: era o que bastava para mantê-lo convencido do meu interesse. Momentos como este funcionavam como um gatilho para sentimentos de culpa. Uma estranha ressonância invadiu-me enquanto li o slogan do site: “para além do simples gostar”. A frase que tinha sido concebida como um desafio explícito ao facebook ecoava de modo diferente no meu ser: dar o passo além do gostar significava estar apaixonado. Paixão. Onde estava a minha? Longe dali. Antes de voltarmos para o jardim, tio Adam parou diante da enorme foto da sala e lembrou- se que precisava falar com meu pai a respeito de um evento beneficente patrocinado pela G&N Foundation na próxima semana. Desta vez era algo relacionado com as vítimas da amiotrofia muscular espinhal. Parecia que seu coração tinha sempre tamanho para acomodar algo mais, uma forma de partilhar a prosperidade que tinha surgido em sua vida. A fundação também cumpria o papel de manter viva a memória de tia Glenda e Nathan. Meus pais seguiam coordenando as atividades, fingindo que aquilo não tinha se tornado um bote salva vidas no meio do naufrágio. Reminiscências. Era o que restava daquele período: apenas reminiscências. Consegui ouvir tio Adam chamar a namorada pelo nome: Sharon. Bastava criar uma associação para que aquela informação ficasse gravada de forma permanente: Sharon Carter a namorada do Capitão América. Pronto, tio Adam era o Capitão América – o protótipo do sonho americano: bem sucedido através do seu próprio trabalho. Sua marca de nascença era o seu escudo. Melhor impossível. O cair do final da tarde fazia minha aflição aumentar. A sensação foi apaziguada por uma mensagem de Stan: ele estava de volta das férias em Miami. Era estranho perceber como pequenos alívios podiam se tornar um grande prazer. Podiam ser tão pequenos como a mensagem: - Estou na área Sr. Coburn. Capítulo 2 Saída Lá fora, o sol tinha acabado de nascer e minha ansiedade me impedia de apreciar o início de mais um dia. Aguardava na cama pela chegada do meu pai: mais preciso do que um relógio atômico. Irritante. Encontrava consolo no fato de que podia ser pior: eu podia estar dormindo de verdade. Era o primeiro dia de aula do segundo ano do curso e eu já me sentia assim. - Bom dia alegria! – disse num tom de voz acima do normal ao entrar no meu quarto. A frase que me trazia boas recordações da infância não funcionava no contexto atual. Relevava meus sentimentos (eu sempre o fazia) e retribuía o sorriso. Não existia hipótese de ser diferente: não depois de tudo que a família tinha passado. No fundo, eu sabia que não tinha nada para reclamar. Preparava-me psicologicamente para o café da manhã. Na maioria das vezes acabava em pequenas discussões entre meus pais. Onde, para a minha sorte, eu permanecia invisível. Imaginar que hoje seria diferente era pura ingenuidade. - Stephanie, está fazendo tempestade em copo d’água! – disse meu pai. - Não se trata disso. Seu irmão tem idade suficiente para ser pai dela! Por pouco ela não seria candidata ideal para namorar Eddie – disse antes de dar um longo gole no copo de suco de laranja. - Está exagerando Stephanie. Deixe meu irmão ser feliz. Eddie! Está animado com o retorno das aulas? – disse mudando bruscamente o alvo da conversa para a minha pessoa. Desprevenido, engasguei com o pedaço de melão que tinha acabado de colocar na boca. Sabia que ele fazia isso como manobra para desviar a conversa do assunto que minha mãe insistia em abordar. Era o verdadeiro fio da navalha: caso aceitasse o seu convite, deixaria minha mãe frustrada, caso contrário ele ficaria frustrado. Deixei que o pedaço de melão fizesse o seu trabalho: levantei da mesa indicando que precisava ir para o banheiro enquanto tossia exageradamente – mantive minha mão direita com o polegar para cima indicando a resposta para sua pergunta. Consegui ver a satisfação se desfazer em seu rosto antes que minha mãe retornasse ao tópico da conversa anterior. No banheiro deparei com meu reflexo no espelho me encarando como se dissesse: quem você pensa que está enganando? Acha mesmo que é competente o suficiente para arcar com o tamanho das responsabilidades que te aguardam? Fitava o meu corpo franzino e os cabelos ruivos espetados: nada parecia ajudar a minha autoconfiança. Saí de casa com Susie – minha companheira inseparável – em direção ao calvário da CSU. Como sempre, enfrentaria a minha via-crúcis em grande estilo: coloquei o fone esquerdo do meu celular antes do capacete. Ajustei o volume para o nível imediatamente inferior ao que pudesse explodir os meus tímpanos. Quando os primeiros acordes de Lies do Electric Mary começaram a soar nós (eu e Susie) já estávamos em movimento. Ao atravessar a Lindley Avenue o prédio da CSU permanecia atrás das árvores, como um feroz animal pré-histórico pronto para atacar. Embora ainda não visível, sua presença já me causava arrepios. Ele podia me farejar, preparando-se para me engolir. Invejei o homem que se preparava para recolher as folhas das árvores: ele era ignorado pelo feroz animal. Deixei Susie no estacionamento. O contraste com os carros dos outros alunos trouxe de volta os ecos da propostade tio Adam: uma Harley Davidson nova em folha. Convencê-lo da minha fidelidade a Susie – fruto de uma relação de longa data – foi bem difícil. Tio Adam é um homem que não aceita argumentos fracos. Fui engolido ao atravessar o portão principal (senti calafrios na espinha) na direção da secretaria, precisava descobrir a sala da primeira aula. Nada melhor do que começar o ano letivo com uma aula de Java e orientação a objetos. Uma simpática senhora de cabelos lisos claros e óculos fez o favor de me indicar o mural onde os nomes dos alunos e respectivas salas estavam indicadas; doce ironia: um curso de ciência da computação com sua informação ainda impressa em papel. Decidi considerar o sorriso da atendente como um sinal de boa sorte, quem sabe meu humor não mudava? Subi as escadas para o segundo piso entre acenos e movimentos de sobrancelhas. Eventualmente esbarrava em alguma pessoa que perguntava como tinham sido minhas férias – o velho protocolo de comunicação -, eu seguia respondendo (devolvendo): tudo ótimo e você? A expectativa de que eu tivesse algo fora do normal para contar borbulhava diante dos meus olhos. Encontrei refúgio na sala 212 onde alguns rostos conhecidos insistiam em fazer contato, para minha sorte Stan era um deles. - Senhor Coburn! Sente-se aqui! – disse indicando a cadeira ao seu lado. - Quantas vezes tenho que pedir para não me chamar pelo sobrenome? - Pelo menos mais um milhão de vezes – disse antes de tomar um gole da lata de Red Bull e abocanhar um pedaço do donut -, é melhor ir se acostumando com este tipo de tratamento, parece estar no seu destino. Só estou te ajudando. - Vamos ver – disse procurando inutilmente dissimular minha preocupação. Stan conhecia minhas aflições melhor do que ninguém. - Aqui estamos novamente: mais seis meses de tortura – disse passando o cabo do mouse em volta do pescoço fingindo estar sendo enforcado -, espero apenas que Sr. Greenwich não seja nosso professor, ele devia estar aposentado morando na Flórida. Toda vez que via uma cabeça com cabelos brancos pilotando um Cadillac DeVille eu me lembrava dele. - Bom dia – disse Sr. Greenwich ao entrar na sala. Imediatamente Stan deitou a cabeça no teclado do notebook dizendo: - Mate-me, por favor, Sr.Coburn. Use o machado, basta um golpe na altura do pescoço para acabar com meu sofrimento. - Vamos começar. Espero que todos tenham começado a ler a cópia do excelente livro Thinking in Java durante as férias. Vamos direto para a página sessenta e um onde o autor diz que em Java nós manipulamos objetos com referências. - Por favor, alguém mostre a escala musical para este homem – disse mostrando o afinador digital na tela de seu notebook, o ponteiro não saía da de um fá sustenido – Ele precisa saber que existem outras notas musicais. O humor ácido de Stan era um oásis no meio do deserto. O deserto se configurava diante dos nossos olhos: era a voz monotônica do Sr. Greenwich pelos próximos seis meses. Enquanto ele falava eu realizava o download da nova versão do Eclipse IDE – tinha protelado a instalação o máximo possível, agora estava encurralado -, eram necessários dez minutos para que os 254MB estivessem disponíveis. Abri o bloco de notas para o caso ele começasse a disparar exemplos neste meio tempo através de sua metralhadora monotônica. A tabela com os tipos primitivos da linguagem permanecia projetada na tela diante de todos: boolean, char, byte, short, int, long, float, double – bastou esta palavra mágica para que impulsivamente eu abrisse a janela do navegador e digitasse: Rickenbacker 4080 Double Neck. Meu sonho de consumo estava ali na tela, Era exatamente o tipo de incentivo que eu precisava no meio daquele concerto de uma nota só para monocórdio. - Sr. Edgar Coburn pode responder? – ele perguntou. Senti um cubo de gelo percorrer minha espinha. - Desculpe Sr. Greenwich, eu não estava prestando atenção. Qual foi mesmo a pergunta? - Eu repito – disse com um sorriso sarcástico -, é necessário explicitamente destruir os objetos criados em Java? Isso era o que o Sr. Greenwich sabia fazer melhor: pegar desprevenido quem não estava prestando atenção a sua aula. A esta altura minhas orelhas já deviam estar vermelhas como tomates. Senti meu coração na boca quando os olhares voltaram-se para mim - como dezenas de mira lasers de soldados famintos por humilhação. - Eu não faço ideia, Sr. Greenwich. - Muito bem - disse antes de anotar alguma coisa em seu tablet – Sr. Alexei Rostov, pode responder? Ainda sentindo o meu rosto quente, agradeci pela mudança de foco. O pobre Alexei era a bola da vez. A ausência de resposta fez com que todos olhassem para o fundo da sala – lugar preferido do anárquico russo que veio desbravar a América. Esperava que ele se saísse melhor do que eu, comprovando sua fama de habilidoso hacker. - Sr. Rostov? – disse em tom alto Sr. Greenwich. Alexei permanecia dormindo. Era do conhecimento de todos que o russo era um festeiro de primeira linha. Seu braço direito, repleto de tatuagens, pendia imóvel para fora de sua mesa. Era fácil imaginar como tinha sido a noite anterior de despedida das férias: recheada com vodka, marijuana e prostitutas. – Alguém pode me fazer o favor de acordá-lo? Jane, sentada ao lado de Alexei, assumiu a responsabilidade e cutucou seu ombro enquanto o chamava pelo nome. Após muita insistência ele acordou resmungando alguma coisa em russo (para a sorte de Jane). - Então Sr. Rostov? Pode responder a minha pergunta? - Posso. Qual era mesmo? - É necessário explicitamente destruir os objetos criados em Java? - Não – soltou um bocejo -, Java trabalha com o coletor de lixo. - Muito bem - disse e tornou a anotar alguma coisa em seu tablet -, muito obrigado pela participação Sr. Rostov. - Mas a ação do coletor de lixo resulta numa queda de performance das aplicações que trabalham com múltiplos threads – continuou Alexei –, isso para não falar na fragmentação da memória. - Grato pela informação – pigarreou -, mas ainda não chegamos neste ponto – interrompeu Sr. Greenwich voltando a falar nas vantagens do coletor de lixo. Imediatamente Stan enviou uma mensagem para a minha tela que dizia: - A velha raposa deve compensar a falta de sexo pegando todos desprevenidos aqui, deve ser por isso que não se aposenta! Mas ele não contava com o nosso russo louco. Aha! Durante o horário de almoço no refeitório, Stan fez questão de sentar junto com Alexei, queria parabenizá-lo pelo constrangimento causado. Aceitei o convite relutante: o russo me causava arrepios; apesar de perceber que minha opinião tinha sido formada mais pelo que os outros falavam a respeito dele do que por experiência própria. Talvez tivéssemos conversado duas ou três vezes durante ano letivo anterior: uma delas foi durante um trabalho em grupo onde ele me deu uma excelente explicação sobre o funcionamento de ponteiros na linguagem C++; daquele momento em diante, não tive mais dúvidas a respeito do assunto. Como de costume, ele sentava nas mesas ao fundo do refeitório cercado por um pequeno e seleto grupo de adoradores que o veneravam por suas habilidades como hacker. Stan conhecia as minhas reservas e por isso fez questão de me tranquilizar: - Não se preocupe. O quadro horrível que pintam a respeito dele é um bocado exagerado. Notei a expressão em seu rosto se alterar quando nos aproximamos de sua mesa - não conseguia identificar claramente o que significava; esse era um dos motivos do meu incômodo. - Grande Alexei! Detonou o Sr. Greenwich – disse Stan enquanto apertavam as mãos, ele fez sinal com a cabeça para que sentássemos enquanto algo como um esboço de um sorriso se manifestava em seu rosto. - Não foi a minha intenção – respondeu Alexei -, tinha tanto sono que não me lembro do que falei. - Noite agitada ontem? Despedidadas férias? – perguntou Stan sorrindo. - Na verdade não. Quase não dormi ontem porque estive entretido na Deep Web. Aquilo é viciante – disse antes de esfregar o rosto com as mãos. Pude ler a frase “In chaos we trust” tatuada no seu antebraço direito. - Deep Web? – perguntou Stan – eu li alguma coisa a respeito. Não se trata de um site que não consta nas ferramentas de pesquisa? Eu não tinha a menor ideia do que eles estavam falando. A primeira coisa que me ocorreu foi que poderia ser uma espécie de game ilícito: esperava sempre pelo pior quando o assunto era Alexei. - Não. É muito mais que isso. É uma rede formada por cerca de 300.000 sites. Sim, é verdade que eles não constam nas ferramentas de busca. Para isso utilizam um complicado mecanismo de ocultação que utiliza a constante alteração dos endereços IPs. - Que tipo de informação existe lá? – arrisquei a pergunta. - O tipo de informação que rapazes como vocês não podem ver – disse com um sorriso estampado no rosto; eu começava a entender as expressões dele e não gostava do que via - Pedofilia, vídeos snuffs, pornografia grotesca, canibalismo, bonecas sexuais e outras coisas do gênero. Nada para corações fracos – tornou a sorrir -, particularmente eu não me interesso por nada disso que fica na primeira camada. - Primeira camada? – perguntou Stan. - Muitos ouviram falar que a Deep Web é composta por camadas, mas são poucos que conseguem se aprofundar. A maioria se contenta com a primeira camada, onde encontram todo este lixo e podem ir correndo contar para os amigos. Existem, pelo menos, cinco camadas. - O que mais há para ver? – estava me tornando ousado com o russo. Fitou-nos da cabeça aos pés, fez silêncio por alguns segundos (que pareceram uma eternidade) e em seguida se aproximou inclinando a cabeça como se fosse passar a senha de sua conta no banco, eu e Stan acompanhamos o movimento como um balé sincronizado. - Na última camada, chamada Mariana, existe um fórum onde uma seita satânica chamada Devil’s Friends se reúne. Tenho tentado invadi-lo, mas a segurança é demasiada complexa. Quem entra no fórum, participa de desafios para passar de nível. Existem 66 níveis. Os desafios são baseados em rituais que devem ser gravados em vídeo e postados no fórum. Pelo que sei o desafio mais básico para passar para o nível dois é o de matar uma galinha preta e beber seu sangue. Olhei para a cara de Stan que permanecia como que hipnotizado. - Conhecem a estória do criador do game Sloppy Chickadee? – Alexei perguntou. Stan confirmou com a cabeça, mas eu disse que desconhecia o assunto, notei algo como frustração em seu rosto (mas podia ser desprezo), Stan fez um gesto de reprovação na minha direção antes de Alexei retomar o assunto. – Pois bem, o autor do game saiu do anonimato para o sucesso em apenas seis meses! Dizem as más línguas que ele faz parte desta seita e cumpriu alguns rituais para conseguir fama e sucesso. Caso não saibam – disse olhando para mim – o jogo está disponível em todas as plataformas e continua a vender muito bem. Se isso for verdade, toda a informação deve estar disponível neste fórum. - E caso consiga acessá-la o que irá fazer com isso? – estava me sentindo cada vez mais corajoso diante dele. - Nada. Meu único interesse é descobrir quem são os outros empreendedores que fazem parte deste fórum macabro e comprar ações de suas empresas antes que eles façam sucesso. Vocês conseguem imaginar qual seria o lucro obtido só no caso do Sloppy Chickadee? Sem dizer nada, Stan permanecia com a boca aberta. Começava a achar estranho que ele partilhasse este tipo de informação conosco. Os parabéns de Stan pela humilhação do Sr. Greenwich valiam tanto assim? - Mas espere – disse Stan saindo de seu transe -, quer dizer que acha que esta coisa toda de magia negra funciona mesmo? - O desenvolvedor do Sloopy publicou mês passado no seu perfil no Twitter que o jogo não ganharia novas versões. Junto com esta notícia ele acrescentou: “Eu não aguento mais”. Se o que dizem for verdade, ele deve ter esbarrado em algum limite moral nos rituais propostos pelos administradores do fórum que fez o estômago dele embrulhar. Enquanto o queixo de Stan quase tocava o tampo da mesa do refeitório, eu permanecia sem saber o que dizer a respeito de toda aquela estória maluca. - Respondendo sua pergunta: não me interesso em saber se isso funciona ou não, basta que funcione para eles. Sou inteligente o suficiente para perceber que pelo nível de segurança que existe no fórum eles não devem estar brincando. São profissionais. Aliás, tenho uma proposta para vocês: preciso de ajuda nisso, a minha equipe não é suficiente – olhou para os três discípulos que permaneciam calados durante toda a nossa conversa -, preciso de mais duas pessoas que possam ajudar no mascaramento dos IPs, basta que vocês instalem um software de acesso remoto em seus notebooks que eu cuido do resto. Vocês podem se beneficiar da informação do mesmo jeito que eu. - Não obrigado – respondi ao mesmo tempo em que Stan disse: - Claro! Quando começamos? - Aqui estamos diante de uma divergência – disse em tom sarcástico -, se quiserem podem me responder no final do dia, mas adianto que preciso de duas pessoas. O meu algoritmo para quebrar a segurança depende de pelo menos cinco máquinas com IPs diferentes funcionando como um cluster. Resolvam suas diferenças e me digam alguma coisa depois. O horário da próxima aula se aproximava, Stan abriu outra lata de Red Bull enquanto caminhávamos de volta para a sala, ele sempre apelava para os energéticos quando precisava pensar. Sabia que ele iria insistir para que eu aceitasse fazer parte daquele insano projeto. Deixar Alexei Rostov instalar um software de acesso remoto no meu notebook? Eu deveria estar louco para concordar com isso. - Eddie, vamos participar. Não consigo acreditar que não tenha ficado curioso. Faça isso pelo menos pela curiosidade! - Desista Stan. Não vou me envolver com as loucuras do anarquista russo. Acho melhor procurar outra pessoa. - Outra pessoa? Sabe que não confio em mais ninguém neste grupo. Quando queria, Stan conseguia ser um ótimo manipulador: aquele era mais um de seus momentos históricos. - Eu não sei Stan, eu realmente não sei. Fiz uma busca agora sobre a Deep Web no meu celular e aqui diz que o FBI monitora parte do acesso a esta rede. Imagine no que vamos nos meter. - Acha que Alexei não pensou nisto? Ele tem experiência. Caso contrário já estaria preso, concorda? Sem dizer que sim ou que não, sentamos a espera da próxima aula. As sinapses de Stan pareciam estar em pleno carnaval por causa da cafeína de sua bebida misturada com o excesso de açúcar dos donuts. Ele insistia para que eu fizesse parte do plano vermelho. Pela primeira vez agradeci quando o professor entrou na sala e começou a aula apaziguando a sua verborragia. Durante o decorrer da aula de Banco de Dados Distribuídos, pensei na arquitetura da aplicação que Alexei deveria utilizar para quebrar a segurança do site. Movido pela curiosidade, pesquisei na internet como funcionava um cluster - através de um sistema operacional distribuído, vários computadores podiam funcionar como se fossem uma única máquina. Enquanto isso Stan insistia em enviar mensagens para o meu notebook: - Vamos lá Eddie! Prometo nunca mais chamá-lo de Sr. Coburn depois disto. Lá estava o manipulador novamente: a tentação de sua proposta me fez ponderar por um segundo, mas minha sanidade – como sempre - acabou por falar mais alto: - Desista! – respondi. Passei o resto da aula com a minha atenção oscilando entre a arquitetura de banco de dados distribuídos, deep web e os acordes da música Little Monster do RoyalBlood, escrevi o que eu acreditava ser a introdução no MuseScore. Aquilo era um fá seguido por um dó? Não tinha certeza. Stan parecia ter se convencido da minha posição. As poucas vezes em que nos encaramos ele fez questão de fazer caretas demonstrando sua indignação, mas não me chateava com as mensagens. Pouco antes do término da aula arrisquei um olhar para o fundo da sala: Alexei apontou o dedo para mim ao mesmo tempo em que piscou o olho – uma autêntica piada russa sobre um clichê americano. Eu e Susie voltamos para casa ao som do Static X (trilha sonora perfeita para um dia incomum). Em casa, aproveitei a ausência dos meus pais para verificar minhas anotações do MuseScore. Há quanto tempo não ligava os amplificadores? Eu sabia a resposta: três semanas. Senti prazer ao introduzir o plug (também consegui claramente imaginar Stan fazendo uma piada de caráter sexual a respeito disso). Confirmei minhas suspeitas a respeito do que tinha anotado. Aumentei o volume. Subitamente aquele espaço não era mais o meu quarto, fui transportado pelo som da minha própria execução para o palco do Wiltern Theatre onde uma multidão imaginária dançava ao meu som. Eu falava (muito além das palavras) através do meu baixo. A multidão ouvia. Concordava. - Edgard! – gritou meu pai fazendo minhas pálpebras saltarem freneticamente – Não está ouvindo eu te chamar? Seu tio quer falar com você. Ele disse que tentou o celular, mas só cai na caixa postal. Ira: era o que eu via estampado no rosto do meu pai sempre que qualquer coisa relativa ao meu tio não fosse tratada com urgência. Desde que ele havia se recuperado da cirurgia que sua submissão me enojava. Ele devia a vida ao irmão, não dava para ser diferente. Não para ele. Engoli minha repulsa para não me tornar o pivô de uma nova crise que o levasse para o hospital. A voz do médico insistia em ecoar na minha mente: - A última coisa que o Sr. Jerry Coburn precisa é de estresse. Convém que a família dê o suporte necessário neste momento delicado de sua recuperação – disse ele olhando para a minha mãe que se encontrava abraçada com tio Adam chorando. A impressão daquele dia permanece tatuada em minha mente: lembro-me da cena como se fosse ontem. - Sim pai – respondi desligando o amplificador. - Vou retornar a ligação imediatamente. Ele esperou até que eu colocasse o meu contrabaixo de lado e pegasse no celular para que pudesse sair do quarto. Retive o meu impulso de arremessar meu corpo na direção da porta e fechá-la violentamente (sim, ele a deixou aberta para escutar a conversa). Diante da impossibilidade de manifestar minhas indignações no mundo real, voltei minha atenção para o celular. Bastaram apenas dois toques para que meu tio atendesse: - Olá Eddie! Tudo bem? - Tudo tio Adam. Claro que sim – menti descaradamente. Nada pode estar bem! Afinal você e meu pai me fizeram cair das nuvens quando me tiraram bruscamente do Wiltern Theatre onde a multidão me aplaudia. Eu era um deus do rock! - Olha, queria que soubesse que fiquei muito feliz com seu interesse demonstrado pelas novas modificações no site kissesandhugs.com no outro dia. - Sim tio. O site está excelente – menti novamente. Nem me lembrava do que ele tinha me mostrado. - Por causa disso, pensei em convidá-lo para participar de uma reunião de projeto amanhã. Seria bom que você começasse a se aprofundar mais no assunto. O que me diz? Três socos no estômago: eu? Amanhã? Reunião de projetos? Nocauteado, lutava por uma pronta resposta para a minha defesa. Negar a presença estava fora de questão. Só me restava conferir o horário e rezar para que eu tivesse uma aula ao mesmo tempo. - Qual o horário? - Às 15h. Tudo bem? A aula de Arquitetura de Sistemas Operacionais: era o golpe fatal que me restava. - Caso tenha aula no mesmo horário posso providenciar um documento da empresa atestando que você participou da reunião. Cinco, quatro, três - podia ouvir o juiz realizando a contagem – dois, um. Tio Adam tinha sido mais rápido. Beijei a lona. - Ok tio, sendo assim te encontro às três horas. Desliguei o celular com uma certeza clara em minha mente: aquilo era apenas o começo do meu atoleiro. Sentia minhas pernas se debatendo, perdidas na areia movediça. Como uma represa prestes a explodir, senti minha garganta apertada junto com uma enorme vontade de chorar. Dor. Pontiaguda. Lancinante. Meu contrabaixo me olhava da cama e sentia pena de mim. A vibração do celular me puxou para fora do denso torpor deprimente. Era Stan: - Última tentativa Sr. Coburn: mudou de ideia quanto ao plano soviético? Enxuguei as lágrimas com a correia do baixo e vi minha resistência desaparecer diante do “Sr. Coburn” da mensagem. Era tão óbvio que eu não conseguia enxergar: aquela poderia ser a minha grande chance de sair da sombra da minha família e vencer sozinho. Seria possível que a resposta para as minhas aflições estivessem nas mãos de um louco hacker russo? Até o início do dia eu nunca tinha ouvido falar na Deep Web, clusters ou no Sloopy Chickadee e me preparava para tomar uma decisão puramente baseada no meu estado emocional: - Ok, eu estou dentro! – respondi. Capítulo 3 Desvio As primeiras horas da manhã passaram e eu não tinha ideia de como tinha chegado até ali, apenas quando Stan começou a tagarelar sobre os detalhes do plano de Alexei que consegui sair do piloto automático. Meu corpo ainda apresentava sinais da raiva contida da noite anterior: minha pálpebra esquerda não parava de tremer. Como um zumbi, cujo único pensamento é o de se alimentar de cérebros, minha mente estava agarrada na reunião da tarde. Como pude ser tão estúpido em demonstrar interesse pelo site? Imaginava que este dia chegaria, mas não tão rápido. Definitivamente era rápido demais. Eu e minha ingenuidade! Achei que coisa semelhante fosse ocorrer apenas quando me graduasse. Até lá bastava frequentar as aulas e tirar notas regulares para que todos ficassem felizes enquanto eu ganhava algum tempo. Tempo para que algo de extraordinário acontecesse e tudo mudasse. Quanta ingenuidade. - Eddie! Alexei vai nos enviar o programa de acesso remoto. Ele vai realizar um teste logo em seguida. Vamos lá Sr. Coburn! Instala isso aí. Mesmo de longe, seu bafo denunciava o consumo matutino de Red Bull. Olhei para a caixa de entrada do meu correio eletrônico sem encontrar nada de especial. Antes que pudesse questionar, Stan disparou: - Na área de trabalho! Na área de trabalho! Lá estava ela novamente: a ingenuidade. Claro que Alexei não iria perder uma oportunidade de demonstrar seus dons enviando-me o programa por email. Tive vontade de virar para trás e perguntar em voz alta por que ele mesmo não instalava, mas percebi que seria apenas um resquício da raiva da noite anterior. O programa – com seus irritantes 16KB de tamanho – chamava-se arostov-111283.exe e possuía o ícone de uma caveira com dois ossos cruzados. Um bocado idiota e, sem sombra de dúvida, desprovido de imaginação. Eu escolheria um coelho ou uma joaninha, para não levantar suspeitas. Durante um segundo ponderei sobre o que eu estava prestes a fazer: instalar um programa de acesso remoto enviado por Alexei Rostov, o russo louco que pretende fazer fortuna espionando a Deep Web. Qual era mesmo o meu interesse nisso? Ah! Abocanhar uma fatia do bolo e ficar milionário, me livrando - de uma vez por todas – destas responsabilidades que caíram no meu colo sem que eu pedisse. Sim, era exatamente isso que eu ia fazer. Executei o programa como administrador e nada aconteceu. - O que deveria acontecer Stan? – sussurrei enquanto o professor seguia demonstrando o algoritmo de busca binária no quadro. - Não tenho certeza, posso perguntar... Uma janelaterminal surgiu em nossa tela simultaneamente interrompendo seu discurso. Nela Alexei dizia: - Tudo certo rapaziada! Amanhã, por volta das vinte e três horas, realizamos nossa primeira incursão. Todos de acordo? Olhei para Stan e digitamos ao mesmo tempo: - OK. Pronto. Estava feito. Agora só me restava retornar ao estado zumbi: cérebros, mais cérebros - contar os minutos até a famigerada reunião na Kisses and Hugs. Não tinha coragem de contar para Stan, ele iria me infernizar até o limite, e meu olho ainda tremia. Esforcei-me para prestar atenção nos últimos momentos da aula: inútil. Era necessário muito mais do que vários algoritmos de busca para me tirar do estado obsessivo em que me encontrava. Tentava enumerar motivos para faltar, mas o sentimento de culpa se agigantava cada vez pensava no assunto. Conseguia imaginar a irritação do meu pai caso descobrisse que eu não compareci. O pobre coitado já tinha passado por um inferno pessoal, não merecia mais aborrecimentos. Fim da aula, hora de partir. Antes que pudesse colocar a culpa sobre a minha ausência durante a tarde numa consulta médica, Stan me convidou para que estivéssemos juntos em sua casa durante a primeira incursão. Gostei da ideia de imediato, uma vez que privacidade não era o forte onde eu moro. Sempre senti uma ponta de inveja do espaço no subsolo onde ele mantinha uma cama, uma pequena geladeira (carregada de donuts e Red Bulls, é claro) e todo seu equipamento de informática. Era um local sagrado. Um verdadeiro bunker. Assim que me pus a caminhar em direção ao estacionamento, pude ouvir Stan gritar pelas minhas costas: - Dê lembranças minhas ao seu proctologista! Levantei meu dedo médio em resposta sem olhar para trás. Desolado, parti com Susie para a Lincoln Boulevard número 5511. Pelos meus cálculos, demoraria cerca de meia hora para chegar lá. Embora nunca tivesse visitado as instalações da Kisses and Hugs, tinha a impressão de já a conhecer. Talvez de tanto ouvir meus pais e meu tio conversarem a respeito durante os almoços dominicais. Sentia meu olho ainda tremer dentro do capacete; enquanto isso minha mente caçava um culpado por aquela situação. Tudo apontava para uma única direção: Til. Se aquele cão insano não tivesse disparado o alarme no domingo, eu não teria acabado no escritório com tio Adam para apreciar as novas modificações do site. Uma pontada: meu estômago entrou em revolução ao me aproximar do prédio de quatro andares. Se não fosse pela placa com a logomarca da Kiss and Hugs passaria despercebido como um prédio residencial. A marca fazia toda a diferença – eu podia sentir nas minhas entranhas. Segui com Susie para o estacionamento. Um senhor uniformizado me pediu uma identificação. Percebi que minhas mãos estavam geladas ao procurar minha carteira no bolso da calça – seria a primeira pessoa a descobrir quem eu era: um Coburn. Sua indiferença ao me devolver o documento indicava que ele não devia conhecer o nome de seu patrão. Permaneci incógnito até ali. Ao entrar no elevador senti meu batimento cardíaco no ritmo de tambores africanos. No quarto andar a porta abriu: o rosto redondo de uma bela moça de longos cabelos pretos cacheados atrás do balcão da recepção apaziguou a minha ansiedade. Ela era linda. Seu crachá denunciava o seu nome: Susan. - Bom dia, em que possa ajudar? - Meu nome é Edgard. Edgard Coburn – quase engasguei ao dizer o sobrenome –, eu estou aqui para uma reunião. - Oh! Você é o Edgard! – abriu um sorriso capaz de iluminar o mais escuro dos dias de inverno – Eles estão na sala de reuniões no final do corredor. Seja bem-vindo. Com imenso pesar, parti da recepção para a tal sala. Perseguido por uma série de miras lasers: atravessei o corredor de cabeça baixa. Eu era o alvo – meu estômago insistia em fazer barulho -, por de trás das baias surgiam olhares questionadores, alguns ao telefone (talvez recebendo uma ligação da recepcionista, avisando que o sobrinho do homem estava na empresa). A movimentação estomacal era tamanha que cheguei a achar que estava tremendo de frio. Respirei fundo. Estava diante da porta da sala de reuniões e só conseguia pensar em estar longe dali. Enquanto minha mente esperneava como um animal ferido, meu corpo abriu a porta: entrei. Bastou um instante – o tempo necessário para um piscar de olhos – para que eu percebesse toda a cena: uma mesa de dez lugares ocupada por tio Adam e mais quatro pessoas: um rapaz da minha idade com o ar entediado; uma jovem loura, de rosto sério com o cabelo preso em rabo de cavalo; outra moça, com alguns quilos acima do ideal (podia se passar por irmã de Stan), vestida toda de preto (talvez para disfarçar o peso); e por último, uma mulher com mais idade do que o resto, de óculos – possivelmente a coordenadora da equipe. Apesar do tédio evidente no rosto do rapaz (com esforço, notei algo parecido com um sorriso no canto de sua boca), o ambiente parecia descontraído. Elas riam de algo que tio Adam tinha acabado de falar. Seus olhares se voltaram para a minha direção quando entrei. - Eddie! Estávamos a sua espera. Sente-se aqui – indicou a cadeira ao seu lado. O tremor acima da altura do umbigo recomeçou. Meu corpo identificava aquilo como frio, mas não estava frio (eu sabia). - Deixe-me apresentar a equipe principal de desenvolvedores. Primeiro, a nossa coordenadora Martha Reynolds – confirmei a minha suspeita a respeito da mulher mais velha, já tinha escutado o seu nome inúmeras vezes nos encontros familiares -, nossa DBA Senior, Amanda Singer – DBA: o cargo explicava a seriedade da loira de cabelo preso -, Alexandra Bentley nossa programadora sênior javascript – a nerd gorducha sorriu para mim após dar uma dentada na barra de twix, quem come chocolates durante uma reunião? - e por último, mas não menos importante, nosso programador sênior python, Ian MacNeil – o sobrenome escocês soava como uma justificativa para o tédio estampado em sua cara. Ele era a antítese do meu escocês preferido, Craig Ferguson. Acenou com a cabeça e tornou a olhar para o infinito. - Muito bem, podemos começar? – após dizer isso, a sala se encheu com ruído de todos se ajeitando em suas cadeiras e organizando papéis e canetas. Ian corrigiu a postura e esfregou as mãos na calça jeans como se procurasse esquentá-las. Alexandra se apressou para comer o último pedaço de seu twix. Minha barriga voltou a tremer e eu tornei a respirar fundo. Assim que os ruídos terminaram, tio Adam continuou: - Vamos ouvir o resultado da avaliação feita por Alexandra e sua equipe sobre o impacto da mudança da biblioteca javascript utilizada no site. Espero que ao final, possamos decidir se vale a pena a mudança para jQuery. Por favor, Alexandra. - Pois não Adam – disse antes de se levantar com o controle remoto na mão. Uma hora e meia. A gorducha levou uma hora e meia falando enquanto mostrava gráficos e tabelas com comparações entre as diversas bibliotecas. O tremor que sentia na barriga havia sido substituído por um esforço sobre-humano para manter os meus olhos abertos e não bocejar. Para a minha sorte a atenção de todos estava na tela onde ela fazia sua apresentação. Os resultados eram tão inconclusivos quanto a minha presença naquela sala. Todas as bibliotecas possuíam vantagens e desvantagens. A DBA loura mantinha a atenção focada enquanto Martha seguia fazendo uma série de anotações. O tédio de Ian só parecia ter aumentado. Apoiava a cabeça em sua mão direita enquanto que, com o dedo mindinho, acariciava seu próprio rosto. Conforme o tempo passava parecia entendê-lo melhor. Minha atenção? Flutuou como um balão entre os acordes da música Figure it out e qualquer fragmentode informação vindo da boca comedora de twix. Tudo corria bem: minha presença era praticamente ignorada. Após o término da apresentação de Alexandra, Tio Adam deu a palavra para loura de pedra. Foi sua vez de fazer a apresentação (desta vez em apenas quarenta e cinco minutos) sobre a atualização de versão do banco de dados Oracle. Apesar de sua rígida aparência, sua voz era suave como veludo. Desta vez minha atenção não flutuou tanto, banco de dados é um dos poucos assuntos que atrai a minha atenção no mundo informático. Ian foi o último a falar. Sua minúscula apresentação se resumiu a uma tabela onde apresentava as melhorias de performance da nova versão da linguagem Python. Quinze minutos – começava a gostar do sujeito. Foi direto ao assunto, sem rodeios. Quase grosseiro. O seu sotaque denunciava sua origem. Quando julguei estar próximo do final, foi a vez de Martha falar. Detalhou o cronograma do projeto sem sair da mesa. Em sete meses o site passaria por uma grande reformulação. Todas as tecnologias utilizadas sofreriam atualizações enquanto novas funcionalidades seriam desenvolvidas. Tudo orquestrado – no papel – com a precisão de um relógio suíço. Sua voz trazia segurança. O tipo que alguém gostaria de ouvir dizer que bastava apertar o cinto durante um voo turbulento. Contive-me para não rir deste pensamento. No meio da apresentação, tio Adam pediu desculpas para atender uma ligação em seu celular. Consegui ouvir parte da conversa por estar próximo dele. Era Sharon. - Não querida, não posso falar agora, estou em reunião – sussurrou. Sim, eu também te amo. Falamos mais tarde. Um beijo. No meio de uma reunião o homem consegue arrumar tempo para dizer que ama a namorada. Impecável. Podia ter deixado o celular desligado e se perder na rotina corporativa. Não. Meu tio sempre disse que as relações eram as coisas mais importantes da vida. Assim que Martha terminou sua apresentação, tio Adam encerrou a reunião parabenizando a todos. Não pude conter a minha surpresa quando a tela onde foram projetadas as apresentações foi recolhida automaticamente, revelando uma enorme foto de Glenda e Nathan na parede. Mesmo no ambiente de trabalho ele fazia questão de manter a memória da minha tia e do meu primo viva. Conforme cada um saía da sala, faziam questão de se despedir. Fiquei surpreso com a manifestação de Ian, nitidamente mais leve: - Grande Eddie! – apertou minha mão na altura do peito, como se me conhecesse há muito tempo – Bom te conhecer, cara! Seu tio sempre fala em você. Desculpe o mau jeito, mas tenho pouca paciência para reuniões – sussurrou -, até breve. Definitivamente: eu gostava dele. O relógio na parede marcava seis e quinze. Comecei a juntar minhas coisas para partir quando meu tio me surpreendeu: - Vou para casa agora. Não quer ir até lá? Podemos jantar e conversar um pouco. O que me diz? Ele podia querer ouvir minha opinião a respeito da reunião e sobre os participantes. Ou simplesmente queria passar um fim de tarde ameno se divertindo com o sobrinho. Seja qual fosse o papel que ele assumisse, era o meu tio Adam, como recusar-lhe um convite? - Claro tio, vamos? Tive a doce oportunidade de estar mais uma vez com Susan enquanto esperávamos pelo elevador em direção ao estacionamento. Trocamos olhares. Sorrisos. Muito perspicaz, meu tio rapidamente percebeu que existia algum interesse da minha parte. Logo que entramos no elevador ele começou: - Então? Gostou da Susan? Seu safado! – disse ao mesmo tempo em que despenteava o meu cabelo. Deixei o estacionamento com a ingênua ideia de que conseguiria seguir seu Porsche com Susie. Após a primeira quadra já o tinha perdido de vista. Pensava na experiência da reunião: o monstro que pintei na minha mente não era tão feio assim. As pessoas foram relativamente amigáveis, o ambiente era agradável, e o principal: entrei mudo e saí calado. Não podia me deixar enganar: por mais que a ideia de rever Susan fosse agradável, meu objetivo de vencer sozinho era maior. Nunca mais sentir aquelas sensações de frio na barriga. Tinha até um discurso de improviso pronto para a ocasião: - Agradeço muito pela ajuda e preocupação que a família tem demonstrado durante os anos, mas chegou o momento de seguir o meu caminho sozinho. Faltava a parte de explicar como enriqueci com informações provenientes de espionagem na Deep Web participando de um plano em que o mentor era um russo anarquista. Sorte. Sempre poderia culpar a sorte e tudo estaria resolvido. Cheguei à mansão em Beverly Hills e encontrei o Porsche já estacionado. Til veio correndo me recepcionar com a bola babada na boca. Pude ver meu tio na cozinha no celular. A gastronomia era uma área onde ele se tornava tediosamente previsível: os dois grandes caranguejos deitados na pia com as patas para o ar revelavam o cardápio do jantar. Embora eu tivesse - repetidas vezes – dito que era desconfortável comer com as mãos, ele insistia em preparar essas iguarias. Arremessei a bola o mais longe que consegui, me assustei com o som do celular que tocou no exato momento do arremesso – por um segundo pareceu ter uma relação causal de natureza desconhecida. Era Stan. - Então Eddie? Ainda pode sentar, ou só consegue ficar de pé? Esforcei-me para entender a piada. O proctologista. Claro, era isso. - Já disse que foi uma consulta de rotina com o clínico geral. Você é que parece muito interessado em experimentar, já falou nisso várias vezes hoje. - Quando tiver uns quarenta anos, casado com uma mulher gorda, com dois filhos capetas e minha vida sexual estiver em declínio posso pensar numa consulta dessas. Quem sabe não descubro novas formas de prazer? Escute, eu não te liguei para isso, quero saber se está tudo confirmado para amanhã? Stan tinha esta mania: uma vez que nos comprometíamos com um plano, ele gostava de revalidar inúmeras vezes. Um efeito colateral do excesso de consumo de Red Bull, eu acho. Confirmei minha participação para acalmar seu ânimo. - Passei o dia pesquisando sobre a Deep Web, andei nos blogs e no youtube vendo pessoas falando a respeito, mas não tive coragem de arriscar um acesso. Cheguei a fazer o download do browser Tor, mas fiquei com medo. Stan continuava a falar sobre tudo que tinha visto: assassinos e hackers de aluguel, venda de armas e drogas, e tudo de mais obscuro que a mente humana pode conceber. Foi quando estranhei Til, que voltava com a bola na boca de repente largá-la e começar a correr na minha direção. A menos de um metro de distância começou a latir ferozmente. Paralisado, senti meu sangue gelar. Tio Adam, percebendo o que se passava, veio ao meu encontro para a minha salvação. - Til! Já para casa! – como se saísse de um transe ele obedeceu caminhando com o rabo entre as pernas para o canil. - Que diabos você fez? Nunca o vi assim. - Eu não sei, estava no telefone... – foi quando me dei conta que Stan permanecia na ligação. - Stan, ainda está aí? - Sim. Que barulheira foi essa? Ouvi latidos. Está tudo bem? - Sim, tenho que desligar. Depois nos falamos. Meu tio aproveitou para me convidar para entrar, deixando Til do lado de fora para refletir sobre o seu comportamento rebelde. Da cintura para baixo havia um tremor quando comecei a andar. Será que os cães podem sofrer das mesmas doenças mentais que nós? Bipolaridade: dois comprimidos de cloridrato de fluoxetina em sua ração para tudo ficar bem. Vi isto num filme, mas não me lembro do nome. O cheiro do caranguejo circulava no ambiente. Para a minha sorte, tratava-se de um risoto - coisa de garfo e faca. Ele sempre dava um jeito de adaptar suas vontades às necessidades dos outros. Só me dei conta de que ele vestia um avental da Kisses and Hugs após me recuperar do susto. Fomos para a sala de jantar,onde comecei a ajudar na arrumação dos pratos e talheres. Assim que ele trouxe a travessa com o risoto começou a falar da reunião. - Fiquei muito feliz de estar ao seu lado na reunião. Espero que tenha gostado. O que achou do pessoal? Estava pisando em terreno minado. Decidi avançar com cautela. - Foram todos muito amistosos. Parece-me que está cercado por bons profissionais. Tio Adam fitou-me por um momento, e prossegui após pegar a garrafa de vinho branco. - Não consegue uma resposta mais vaga? Vamos lá! Estamos apenas os dois aqui sozinhos. Além do seu óbvio interesse pela Susan, o que você achou, por exemplo... Do Ian? Um passo arriscado. Vamos lá. - A princípio julguei que ele estava entediado, o que considerei uma falta de respeito, mas com o passar do tempo mudei de opinião. - De fato ele estava entediado, faz questão de deixar claro que acha as reuniões uma perda de tempo – arrancou a rolha da garrafa -, mas o bastardo é brilhante! Já me pediu aumento três vezes em dois anos. Não neguei nenhuma – sorriu -, e o que mais? O que me diz da Amanda? Outro passo. Mina adiante? - Muito séria. Parece entender bastante do assunto. Fiquei surpreso ao ouvir a sua voz. - É mesmo? O que lhe passou pela cabeça? - Imaginei um tom de voz que combinasse com a seriedade estampada em seu rosto. Mais grave talvez – sorri -, Eu diria que sua voz é quase sexy. - Aha! Os hormônios estão falando por você – deu uma gargalhada. Ríamos. Quase não me preocupava com o terreno minado e caminhava com certa leveza quando de repente vi o perigo logo à frente. - Como vai o seu pai? - Desculpe tio, não entendi. Você e papai se encontram diariamente. - Eu o conheço no papel de irmão e atualmente nos encontramos para falar dos assuntos da fundação – sorriu -, eu quis dizer no ambiente familiar. Como ele tem se comportado com você e sua mãe após o transplante? Sabia que o que dissesse ficaria entre nós. Sempre confiei em tio Adam para os meus desabafos familiares. - Ele parece tenso desde que tudo aconteceu – confessei -, quase não temos conversado e acho que o mesmo vale para a minha mãe. - Entendo. Procure ter paciência. Todos nós vimos pelo que ele passou durante o período de internação no hospital. E depois de tudo, não conseguir se recolocar no mercado de trabalho em sua profissão... Sei que ele não é feliz no cargo de diretor da G&N Foundation, lecionar é o que ele ama fazer, mas quem sabe, com o tempo, ele aprende a gostar de sua nova profissão? - Às vezes tenho a impressão de que... – hesitei por um momento – Ele não parece grato por estar vivo. Pelo menos ele poderia demonstrar gratidão pela sua generosidade. Se não fosse pelo seu dinheiro ele estaria morto, seria impossível pagar um transplante com o salário de professor. - Duas coisas: primeiro: eu fiz o que devia ser feito, que era estar presente para a família. Segundo: do jeito dele, ele demonstra gratidão todos os dias, quando senta na cadeira de diretor da G&N. Não se esqueça de que o objetivo da fundação é obter crédito perante os bancos para famílias carentes que precisem de transplantes. Posso te garantir: ele vibra de alegria toda vez que uma família consegue realizar um transplante. - É muito bom saber disso. Fico sempre preocupado que a saúde dele seja afetada pelo seu estado de humor. Passamos alguns minutos em silêncio. Sentia-me aliviado em poder desabafar sobre meu pai e – principalmente – ouvir de meu tio que ele não estava tão mal quanto parecia. Foi quando eu pensava estar pisando em terreno seguro que a mina explodiu. - Você sabe qual foi a minha intenção em te chamar para a reunião hoje, não sabe? Senti meu rosto ferver. Tinha uma resposta, mas a única manifestação que meu corpo foi capaz de ter foi a de negar com a cabeça. - Desde o acidente com Glenda e Nathan, seguido do problema de saúde do seu pai, que julgo que nossa família já sofreu o suficiente. Temos que zelar uns pelos outros – fez uma pausa e olhou para o enorme retrato na parede. Tomou um gole da taça de vinho e continuou. - Eu não tenho mais herdeiros diretos, Eddie. Você sabe que sempre o amei como um filho – parou para pensar, parecia hesitante em falar. - Eddie, eu consegui erguer algo de significativo para a família: a Kisses and Hugs. Ela serve de base para a G&N Foundation, onde seus pais trabalham. Acredito que seja do interesse de todos que o negócio permaneça sempre dentro dos limites da família. Hoje demos um pequeno grande passo para que você, no futuro, possa assumir a gestão. Inicialmente cheguei a duvidar do seu súbito interesse pela informática, mas quando vi que tinha entrado para a CSU, meu coração vibrou de alegria. Naquele instante me dei conta de uma verdade: existe um gap enorme entre imaginar uma situação e experimentá-la na realidade. Eu sabia que este momento chegaria – já o tinha imaginado inúmeras vezes -, mas nunca pensei que fosse tão rápido. Achei que teria mais tempo (para que exatamente eu não sei). Minha mente percorria um infinito labirinto de decisões passadas que eram impossíveis de remediar. Por algum motivo idiota achei que escolher informática traria paz para a família (após tanto sofrimento). E a minha paz? Tudo indicava que eu tinha me esquecido (e ninguém parecia se importar com isso). Meu corpo, incapaz de reagir adequadamente, permanecia paralisado. Procurava apaziguar a cena, me recompor para poder continuar a conversar com meu tio, mas tudo que me aparecia na cabeça era a noite do dia seguinte, quando na casa de Stan me tornaria milionário invadindo a Deep Web. Vendo o meu sucesso ele não se preocuparia tanto com a longevidade da Kisses and Hugs. Claro que não. - Estou lisonjeado tio – disse sorrindo -, nem sei o que dizer. - Não diga nada! Coma seu risoto e tome um pouco do vinho apenas para brindarmos, afinal você ainda tem que dirigir até sua casa. Serviu dois dedos do vinho branco na minha taça. Fomos para perto da foto de Glenda e Nathan onde ele disse: - Onde quer que vocês estejam meus queridos, abençoem este momento. Fiquem com Deus. O suave sabor do vinho desceu pela minha garganta amarga. Amarga pela impossibilidade de dizer o que eu sentia e pensava. Mas amanhã era outro dia. Capítulo 4 Ascensão Os dias ensolarados se repetiam e minha incapacidade de apreciá-los parecia cada vez pior. Sem dormir direito por duas noites, acordei com dor de cabeça – era inevitável. As recordações do dia anterior ainda pipocavam na minha mente. Precisava estar bem para nossa primeira incursão. Dois comprimidos. Sim, era disso que eu precisava: dois comprimidos daqueles brancos que minha mãe tomava toda vez que reclamava da enxaqueca. Pulei da cama rumo ao armário do banheiro, tinha que agir rápido para não levantar suspeitas a respeito dos comprimidos. Inútil. Nada no banheiro, só me restava vasculhar a bolsa da minha mãe. Aproveitando que eles estavam na cozinha, fui sorrateiramente até a sala. Assim que comecei a vasculhar a grande bolsa verde, lá de dentro seu celular começou a gritar. Merda! Quem telefona para alguém às sete e quinze da manhã? Instintivamente peguei o aparelho para silenciá-lo, com um pouco de sorte ninguém notaria a chamada: era tio Adam. Paciência. Seja o que for ficaria para depois. Provavelmente algum assunto pendente da fundação. Minha mão percorria os caminhos multidimensionais de uma típica bolsa feminina sem encontrar os malditos comprimidos. Lá pela quinta dimensão, quando pensava em desistir, encontrei a cartela. Sem pensar, tomei-os sem água. Como a cartela estava quase cheia, achei que ela não daria falta. Engoli qualquer coisa de café da manhã – juro que não me lembro, sei que apenas ajudaram a empurrar os comprimidos. Fragmentos dasconversas entre meus pais ficaram retidos na minha memória: ela reclamava do meu tio, dizia que não concordava com sua postura em algum assunto da fundação; meu pai, por sua vez, fazia-se de morto enquanto as ondas sonoras de suas cordas vocais insistiam em perturbá-lo. Era mais uma manhã como outra qualquer. As aulas passaram mais lentamente do que o usual. Se não fosse pela excitação de Stan em contar as horas para nossa primeira incursão na Deep Web, eu diria que o dia teria passado mais rápido. Não tinha como ignorar a minha própria ansiedade a respeito do assunto: era como se Alexei tivesse atirado um pedaço de madeira capaz de me remover da areia movediça em que me encontrava. Definitivamente o dia anterior tinha me deixado atolado até a cintura. Durante o intervalo, Stan abriu as comportas de sua excitação deixando-a transbordar livremente. - Eddie! Eddie! Eddie! Quando ele chamava meu nome três vezes era um mau sinal. – Não dormi nada ontem. Minha mente só pensava na Deep Web. Apenas quando me levantei da cama e instalei o Tor browser que fui capaz de pregar o olho. Não é estranho? Nem cheguei a navegar. Eu tinha que fazer alguma coisa, entende? Enfatizou a palavra fazer com um gesto parecido com o de um lutador de boxe. - Não aguentava mais ficar só na imaginação. Não, não, não! Não aguentava. Tinha que entrar em ação! Ação! Ação! – distribuía socos no ar. - Acalme-se! Eu entendi. Procure maneirar nas doses de Red Bull, ok? - Vamos lá falar com Alexei? Vamos? Vamos? Concordei sem pensar. Qualquer coisa que o acalmasse me traria paz. Como de costume, o russo se encontrava no fundo do refeitório cercado pelo seu fiel séquito. Assim que Stan sentou a mesa, começou com a verborragia sobre a Deep Web. - Então Alexei? É hoje que nós vamos ficar ricos? Ricos! Ricos! Passei a noite sem dormir pensando nisso. Você não vai acreditar! Não cara, você não vai. Adivinha? Adivinha? Adivinha? Só quando instalei o browser Tor que consegui sossegar. É cara! O browser Tor! Apontei sutilmente para a lata de Red Bull na mão esquerda de Stan: esperava que Alexei fosse inteligente para entender a mensagem. - Você é viciado nesta merda? – perguntou antes de resmungar alguma coisa em russo (da qual eu não precisei de tradutor para perceber que se tratava de um insulto). - Tome uma destas – disse após tirar um comprimido de um vidro com o rótulo escrito no alfabeto cirílico que estava no bolso de sua calça –, durma quando chegar a casa, depois vai me agradecer por isso. Antes que Stan pudesse levar o comprimido à boca, segurei seu braço numa atitude que até eu mesmo me surpreendi. - Por acaso você não está desconfiado do que vou dar para o seu amigo, está? Seus três seguidores se aproximaram. De onde eu estava, consegui ouvir Stan engolir em seco. Senti que podia estar pondo tudo a perder. - Tenho interesse que vocês estejam inteiros hoje à noite. O comprimido vai ajudá-lo a se livrar deste vício. Confie em mim. Era um bocado difícil confiar em alguém que carrega no braço a frase tatuada “In chaos we trust”, pensei. Soltei o braço de Stan decidindo acreditar no interesse dele em nos manter saudáveis até a noite. Seus capangas se afastaram, para o nosso alívio. Após colocar o comprimido na boca, vi a lata de Red Bull entrar em órbita por um tapa de Alexei quando Stan, mecanicamente, ameaçou usar o veneno negro para tomar o remédio. - Se soubesse que estava lidando com idiotas não os convidava para o projeto! – disse Alexei por entre os dentes cheio de raiva. - Acalme-se, vai dar tudo certo. Ele só está ansioso, ok? Você não vai se arrepender de ter nos chamado. Dito isso, puxei Stan pelo braço para longe dali. Antes que pudesse dar três passos, Alexei falou. - Ei! Foguinho! Trate de colocar o gorducho na linha! É bom que vocês estejam online às onze horas, caso contrário irão arcar com as consequências. Demorei alguns segundos para entender a piada com a cor dos meus cabelos. Sim, nós estaremos lá, pensei. Mesmo que eu tenha que açoitar Stan para que ele se acalme. Não consegui prestar atenção nas aulas durante a tarde. Seja lá qual fosse o medicamento que Stan tivesse ingerido, teve um efeito avassalador sobre ele. Além de silenciar sua tagarelice, o manteve num estado zen, onde um sorriso incomum permaneceu estampado em seu rosto todo o tempo. Tudo indicava que o chicote não seria necessário. Ao cair da tarde, durante a volta para casa, meu estômago vibrava cada vez que o ponteiro do relógio se aproximava das onze da noite (e ainda eram seis e quarenta). Enquanto percorria as ruas de LA junto com Susie, comecei a fazer planos com o dinheiro da Deep Web: a primeira providência seria comprar uma casa. Construiria um estúdio: um puta estúdio, sim senhor, de matar de inveja até o dono do Sound City! Ali gravariam as maiores estrelas do rock, além de servir de ambiente para evolução da minha banda. Minha coleção de baixos ficaria exposta na sala e reservaria um espaço na parede para os discos de ouro, é claro. Com dinheiro tudo se tornaria fácil: inclusive o livre trânsito aos locais caros frequentados pelos grandes astros. Sim, eu fui moldado para esta vida, eu não tinha dúvidas disso! Faltava apenas esta peça do quebra cabeças. Ao buzinar na minha cara o furgão branco me trouxe de volta para o planeta Terra: - Preste atenção ao sinal garoto de merda! Quer morrer antes do tempo? – gritou o motorista. Estava vivo graças aos meus reflexos que me fizeram frear a tempo; meu coração parecia que ia sair pela garganta. Aproveitei a parada forçada e fui até o mercado comprar umas pizzas e refrigerantes que pudessem nos alimentar durante a noite, não tinha a mínima ideia de quanto tempo aquilo demoraria. No mercado, aproveitei para me acalmar do susto. Procurava por alguma bebida livre de cafeína – não queria provocar uma recaída em Stan. Dois litros de Sprite dariam conta do recado. Conclui que era melhor dizer aos meus pais que passaria a noite na casa de Stan, independente de quanto tempo demorasse. Colocaria a culpa em algum trabalho da faculdade. Tinha a certeza de que funcionaria. Assim que abri a porta de casa, minha mãe foi logo iniciando o interrogatório: - Edgar, por acaso você andou mexendo na minha bolsa hoje de manhã? Tive que pensar rápido: se eu confirmasse o roubo dos comprimidos corria o risco de criar um clima desfavorável para a minha ausência durante a noite. Isso sem contar com a possibilidade dela imaginar que eu tinha desenvolvido algum tipo de vício por ibuprofeno. Negar também parecia não ser uma opção viável. O caminho do meio, o caminho do meio Eddie! - Sim, mãe. Ouvi o seu celular tocar e percebi que ele estava em sua bolsa, mas quando cheguei a enfiar a mão para procurá-lo demorei tanto para encontrá-lo que parou de tocar. Chegou a ver a chamada não atendida? Afinal, quantos compartimentos existem na sua bolsa? Minha nossa! Aquilo parece um labirinto do minotauro. Ela riu. Bem no alvo, Eddie. - Mas por que não me avisou do telefonema? - Sabe que sou meio zumbi pela manhã... Acabei esquecendo-me no minuto seguinte. Desculpe - sorri. Era impressionante ver como um indivíduo com uma meta na cabeça é capaz de mentir com maior facilidade. Aproveitei o embalo para notificá-la que passaria a noite fora. Emendei a mentira dizendo que tínhamos um trabalho sobre arquitetura de sistemas distribuídos onde precisávamos testar um sistema com outros quatro alunos. Aquilo era uma meia verdade: Alexei e seus três capangas estariam online juntos conosco. Uma grande mentira é sempre melhor digerida se acompanhada de meias verdades. Apressei-me para deixar tudo pronto, queria jantar com meus pais como forma de compensarminha ausência durante a noite. Acho que parte disso era pelo sentimento de culpa por ter mentido para a minha mãe. Sei lá. Fosse como fosse, eu jantaria com eles. Estava decidido. Por volta das 20h30, senti o aroma das panquecas de carne vindo da cozinha. Só me dei conta de estava faminto no momento em que minhas glândulas salivares jorraram como uma garrafa de champanhe durante o ano novo. Com a mochila pronta e com o espírito de quem ia se tornar um milionário da noite para o dia, fui jantar. Notei algo diferente no ar quando sentei a mesa. Inicialmente não soube dizer do que se tratava; podia ser decorrência da minha boa disposição pelo evento da noite, mas não era. - Stephanie, passe-me a pimenta, por favor. - Você já sabe sobre a pimenta Jerry. Com moderação. - Eddie, tudo bem? Soube que esteve lá na Kisses and Hugs com seu tio em reunião – ele disse antes de abrir um sorriso enorme -, não vai nos contar nada a respeito? Se você pensava em fazer uma surpresa seu tio estragou tudo. Quase me arrependi da decisão de jantar em casa. - Eu? Ah sim! Mas é claro que ia contar para vocês. Tenho andando tão ocupado com os trabalhos da faculdade que as coisas me escapam. Não vai acreditar, mas hoje de manhã me esqueci de dizer para ela que o celular tinha tocado. Não é incrível? Diga para ele mãe, diga - sorri. Ríamos todos juntos: estava funcionando. - A propósito: a reunião foi ótima. Conheci a equipe principal de desenvolvedores do site. O pessoal é muito bacana. Por favor, me passe o sal, pai. Finalmente eu conheci a Martha. Vocês sempre falam dela. Eu a tinha imaginado completamente diferente, não é engraçado? Cada frase que saía da minha boca era como um sinal luminoso indicando que eu estava indo longe demais. Era bom que o software de Alexei funcionasse hoje à noite. Por quanto mais tempo eu seria capaz de bloquear meus sentimentos? Eu não tinha resposta para isso. - Nós ficamos muito felizes com a notícia, filho. Da próxima vez, pode nos visitar na fundação. Fica no mesmo prédio no primeiro andar. O ideal é que não existisse uma próxima vez, mas eu tinha que acalmar os meus ânimos. Quanto tempo levaria até fazer algum dinheiro com a informação obtida? Essa era outra pergunta sem resposta. Saí por volta das nove e vinte. Segundo os meus cálculos, com o trânsito fluindo, chegaria à casa de Stan por volta das dez. Uma hora antes do combinado com Alexei. Sentia minha ansiedade pulsar. Aquela estranha vibração na boca do estômago começava a dar sinais de vida. No caminho, fiquei recordando o ar de felicidade dos meus pais durante o jantar. Qual seria a reação deles se eu dissesse que não me interesso em me tornar mais um idiota engravatado do mundo corporativo? Ri daquele pensamento: afinal não tinha visto ninguém usar gravata na empresa. Enfim, o que aconteceria quando eu revelasse que a minha paixão estava – onde sempre esteve – na música? Podia ver meu pai sofrendo uma síncope, e minha mãe me culpando para todo o sempre. Somente muito dinheiro poderia sossegá-los. Muito mesmo. O suficiente para uma vida toda. Assim que me aproximei de sua casa, pude vê-lo sentado do lado de fora com uma garrafa de água tônica na mão. - Dormi durante três horas seguidas. Sinto-me renovado – disse ao abrir o portão de casa – Não consigo nem chegar perto do Red Bull. Tenho náuseas só de pensar nisso. Inutilmente tentei descobrir qual substância pode ter este resultado instantâneo no vício da cafeína. Se alguma coisa existe, deve ser um antigo segredo soviético guardado na Sibéria. Descemos imediatamente para o porão. Por mais que já estivesse acostumado com o bunker de Stan, era sempre um impacto entrar ali. A parafernália tecnológica que se misturava entre vídeo games, computadores, caixas de som e monitores de variados tamanhos era sempre um espetáculo a parte. Parte do que se encontrava ali, era fruto de sua obsessão pela história da informática. Afinal, qual a utilidade que alguém poderia dar a um Commodore 64 hoje? Ele guardava itens suficientes para fundar um museu, caso quisesse. Seu pai, que sempre trabalhou na IBM, era um grande cúmplice e fornecedor das relíquias. Nas paredes, posters de suas bandas preferidas se misturavam com propagandas de softwares e hardware. Era engraçado ver o Black Veil Brides ao lado do Kapersky Anti Vírus. A cama beliche, a pequena geladeira e o pequeno banheiro – pequeno mesmo, mal cabia uma pessoa lá dentro – tornavam o lugar autossuficiente, por assim dizer. No final, aquilo tudo parecia um cenário de um filme de ficção científica do tempo do meu avô. - Cuidado para não pisar no Zax! – ele gritou. No chão, estava a caixa do antigo ZX Spectrum trazido pelo pai há alguns anos. Lembro-me de ficarmos boquiabertos com um jogo de labirinto onde você é perseguido por um dinossauro. Acho que foi a primeira vez que vi uma fita cassete funcionar pessoalmente. - Zax? Seu ZX Spectrum tem o nome de Zax? Não é um bocado óbvio? - Tão óbvio quanto dar o nome de Susie para uma moto Suzuki, meu querido! - Xeque-mate. Apressei-me para arrumar minhas coisas. Já passavam das dez e quinze. Eu tinha a intenção de conversar com Stan antes de tudo começar. Enquanto ligava meu notebook, ele foi mais rápido e começou a me contar o que tinha descoberto sobre a Deep Web nos últimos dias. - No meio da minha euforia de ontem, andei pesquisando sobre a origem da Deep Web. Sabe o que eu descobri? Originalmente, foi o projeto do governo americano com a intenção de melhorar a privacidade das suas próprias comunicações. Se ficarmos ricos temos que agradecer, ao U.S. Naval Research Laboratory, mais especificamente ao Dr. Paul Syverson que liderou o projeto. O principal requisito do projeto era de que a comunicação entre as partes fosse realizada sem alguém, que interceptasse a mensagem no meio do caminho, fosse capaz de associar a fonte e o destino. Foi assim que nasceu a rede Tor. Sabia que o nome é um acrônimo para “The Onion Router”? Ao navegar nesta rede, seu endereço IP é criptografado por três camadas – como as camadas de uma cebola – cada computador da rede “descasca” uma das camadas passando adiante o pacote mantendo o usuário anônimo. Mesmo que no meio do caminho alguém intercepte a conexão, é impossível decifrar o que vai por ali. - Mas então, como explica o que eu li sobre o FBI monitorar parte do tráfego? - Lembrei-me de você ter dito isso, procurei também sobre o assunto: eles conseguiram, utilizando manobras do direito internacional, monitorar alguns servidores da rede Tor em casos de investigação de pedofilia. Como este assunto não faz parte do nosso interesse, eu acredito que estamos a salvo. Abriu o tubo de batatas prinkles e abocanhou duas ao mesmo tempo. - Continuando: a rede Tor possui grande importância em países com regimes ditatoriais, achei diversos casos de pessoas que conseguiram se comunicar com o mundo exterior enquanto seu país estava em guerra através dela. Ah! Sem esquecer de que ela estava por trás de toda aquela discussão a respeito do site Wikileaks e Edward Snowden, lembra? Enfim, o tiro saiu pela culatra, quando a turma do mal percebeu que ali existia a plataforma ideal para expandir o seu tipo de negócio. Você sabe que até uma moeda virtual foi criada para as transações? Chama-se Bitcoin. Mesmo após prenderem o fundador do site, a coisa ressurgiu com força total. Infernal, não é? - Impressionante. Parece que nós éramos os únicos dois alienados do planeta que não sabíamos nada a respeito. Eu sonhando com a música e você perdido nos vídeo games. - Ei! Não se esqueça: também me perco com a pornografia! Sr. Coburn, o que importa é que agora sabemos. E vamos nos tornar ricos por causa disso! – gritou. Os steel drums caribenhos começaram
Compartilhar