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DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM HUMANA Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. ISBN: 978‐85‐7838‐084‐7 Edição Revisada APRESENTAÇÃO Estudar a linguagem humana sempre fez parte do homem. Descobrir como se estruturam as frases e como a criança começa a adquirir um sistema tão complexo na mais tenra idade sem que ninguém a ensine sempre foi motivo de estudos e teorias. Este livro tem como objetivo mostrar como se dá o desenvolvimento da linguagem humana à luz de diferentes teorias e teóricos. O primeiro capítulo traz um pouco da história dos estudos lingüísticos, através – principalmente – dos séculos XVII e XIX, uma vez que eles determinaram as formas metodológicas no que se refere ao estudo da linguagem. Nesse capítulo, temos também os princípios linguísticos, que são de suma importância para o profissional que trabalha com o ensino de língua, pois são leis que regem todas as línguas. O segundo capítulo conceitua termos que farão parte da vida de um profissional do ensino, como a diferença entre linguagem, língua e fala; o que é um processo comunicativo e seus elementos; uma aborda‐ gem, as três tendências que se tem para abordar a aquisição da lingua‐ gem, (behaviorismo, inatismo e interacionismo) e o período crítico que se tem para adquirir uma linguagem. Tudo isso para podermos enten‐ der como se dá o desenvolvimento verbal da criança. O terceiro, o quarto, o quinto e o sexto capítulos trazem, respectiva‐ mente, Piaget, Vigostski, Chomsky e alguns importantes teóricos sobre a aquisição da linguagem, cada um dentro de uma tendência. São abordadas as teorias de cada um e os seus aspectos mais importantes. Além disso, mostramos como cada teórico, principalmente, Piaget, Chomsky e Vigostski, viam o papel da escola. O sétimo capítulo apresenta as fases da linguagem infantil, as funções da linhguagem na criança e a linguagem do adulto com a criança. Tudo isso para que se entendamos como interagir com o falante no momento em que ele está adquirindo a linguagem. O oitavo capítulo trata da aquisição da linguagem da escrita e da leitura, e o nono abor‐ 6 da a alfabetização dessas duas. Tudo para que o profissional de ensino, que lida com os estágios mais sérios – em termos de aquisição da lin‐ guagem – a educação infantil e séries iniciais, entenda como ocorrem esses processos e, de acordo com a aquisição do falante, alfabetize para a cidadania, ou seja, que ensine o falante a usar a língua nos processos comunicativos. Por fim, o décimo capítulo traz as patologias relacionadas à linguagem. O que são essas doenças, como se manifestam em sala de aula, bem como a postura que o professor tem de ter com esse aluno, a fim de ajudá‐lo no processo de ensino‐aprendizagem. Esperamos que o profissional do ensino perceba todas as nuances existentes no processo de aquisição da linguagem, pois somente assim haverá um efetivo ensino da língua materna. SOBRE O AUTOR Vanessa Loureiro Correa É mestre em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católi‐ ca do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Letras e do Ensino a Distância da Ulbra. Coordenadora de Letras e Licenciaturas nas Facul‐ dades Equipe. SUMÁRIO 1 ABORDAGEM HISTÓRICA DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS ................................... 13 1.1 Os séculos XVII e XIX ............................................................................... 13 Atividades .................................................................................................... 23 2 DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM VERBAL NA CRIANÇA ............................... 25 2.1 Linguagem, língua e fala ......................................................................... 25 2.2 Aquisição da linguagem: uma visão ampla e breve .................................... 27 Atividades .................................................................................................... 33 3 PIAGET E A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM .......................................................... 35 3.1 Jean Piaget e o interacionismo ................................................................. 35 3.2 O desenvolvimento mental do ser humano ................................................ 37 3.3 A aquisição da linguagem e pensamento .................................................. 39 3.4 O papel da escola na visão de Piaget ........................................................ 40 Atividades .................................................................................................... 41 4 VIGOTSKI E A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO E LINGUAGEM ............................ 43 4.1 Lev Semionovitch Vigotski e o interacionismo social .................................. 43 4.2 As raízes genéticas do pensamento e da linguagem .................................. 48 4.3 A formação de conceitos no interacionismo .............................................. 50 4.4 Palavra e pensamento ............................................................................. 53 Atividades .................................................................................................... 55 5 CHOMSKY E O INATISMO ................................................................................ 57 10 5.1 Noam Chomsky e o gerativismo ................................................................ 57 5.2 Chomsky e a aquisição da linguagem ....................................................... 60 Atividades .................................................................................................... 63 6 A AQUISIÇÃO À LUZ DE DIFERENTES TEÓRICOS ............................................... 65 6.1 Bakhtin .................................................................................................. 65 6.2 Skinner ................................................................................................... 67 6.3 Steven Pinker .......................................................................................... 68 6.4 Lenneberg .............................................................................................. 69 6.5 Bickerton ............................................................................................... 70 6.6 Alguns teóricos funcionalistas ................................................................. 71 Atividades .................................................................................................... 72 7 FUNÇÕES DA LINGUAGEM INFANTIL E A FALA DO ADULTO ................................ 73 7.1 Fases da linguagem infantil ..................................................................... 73 7.2 Funções da linguagem na criança ............................................................ 75 7.3 A linguagem do adulto ............................................................................. 78 Atividades .................................................................................................... 79 8 A AQUISIÇÃO DA ESCRITA E DA LEITURA NOS ANOS INICIAIS ........................... 81 8.1 Texto e contexto: algumas abordagens ..................................................... 81 8.2 Compreensão e interpretação .................................................................. 85 8.3 Aquisição da escrita ................................................................................ 85 8.4 Aquisição da leitura ................................................................................90 Atividades .................................................................................................... 93 9 ALFABETIZAÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA ..................................................... 94 9.1 O que é alfabetizar? ................................................................................ 94 Atividades .................................................................................................. 103 10 DISTÚRBIOS E PATOLOGIAS LINGUÍSTICAS ................................................. 105 10.1 Os distúrbios linguísticos e as vertentes ............................................... 110 11 10.2 Patologias linguísticas ........................................................................ 113 Atividades .................................................................................................. 116 REFERÊNCIAS NUMERADAS ............................................................................ 119 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 122 GABARITO ...................................................................................................... 124 1 ABORDAGEM HISTÓRICA DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS Vanessa Loureiro Correa Neste capítulo trabalharemos aspectos históricos básicos, que marca‐ ram as linhas de estudo na aquisição da linguagem. Os séculos XVII e XIX, bem como os princípios estabelecidos no primeiro, serão melhor detalhados. 1.1 Os séculos XVII e XIX O homem sempre foi um curioso em relação aos estudos linguísticos. A curiosidade de saber como e por que os objetos têm certos nomes, como é a estrutura da frase e quais são os sons de uma língua, por exemplo, rendeu alguns estudos em séculos passados. Porém, o maior segredo que se buscou desvendar ao longo desses séculos é como o homem adquiria a linguagem. Um faraó grego isolou duas crianças do convívio humano para ver como elas adquiriam a linguagem. A pri‐ meira palavra que pronunciaram foi algo parecida com a palavra “pão”, na língua da época. No entanto, todos os estudos feitos acerca da língua e de sua aquisição eram isolados e específicos de uma única língua. Sendo assim, não configura um estudo científico. Esse panorama começou a mudar no século XVII que, assim como o século XIX, foi decisivo para uma mu‐ dança na postura dos estudiosos, no que se refere aos estudos linguís‐ ticos. Esses dois séculos também irão marcar as tendências que servem para o estudo da aquisição da linguagem. 1.1.1 Século XVII O século XVII instala a necessidade, por parte dos teóricos, da busca pela língua universal. Este século foi de suma importância para os estudos linguísticos, incluindo aí a aquisição da linguagem porque foi marcado por uma tendência na área de análise dos fenômenos linguís‐ ticos: o formalismo. Os teóricos deste século analisaram não somente 14 uma língua com profundidade, mas várias línguas, buscando estabele‐ cer entre elas semelhanças e diferenças que facilitassem a elaboração de uma língua que fosse falada por todos os povos. Essa língua uni‐ versal teria que ser livre de ambiguidades, ironias, sentidos figurativos e todo e qualquer aspecto passível de interpretação por parte do falan‐ te. No entanto, esse objetivo não é alcançado, pois o homem faz uso de vários recursos para expressar seus sentimentos e mensagem. Isso, portanto, demanda a necessidade de interpretação do outro parceiro no processo comunicativo, uma vez que é imprescindível que se leve em conta o contexto no qual a mensagem foi dita. A importância des‐ ses estudos também está no fato de que, a partir da análise de várias línguas, foi possível perceber e elaborar alguns princípios que regem todas elas. Alguns desses princípios são relevantes para o falante nativo e, princi‐ palmente, para o professor de educação infantil e séries iniciais, uma vez que proporciona uma reflexão da forma como ensinamos e vemos a nossa língua e o ensino da mesma. A seguir, vamos conhecer cada um desses princípios. 1.1.1.1 Princípio da Variação Linguística Muitos falantes nativos acreditam que a língua é invariável. Porém, basta que peguemos o português falado no início do século XVIII, por exemplo, para vermos que isso não é verdade. O princípio da variação linguística tem como base a afirmação de que todas as línguas variam no tempo e no espaço, uma vez que ela é social e serve para exprimir as necessidades do falante. Saussure, linguista Suíço considerado o pai da Linguística, diz que “Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá‐la, nem modificá‐la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade”1. Há uma crença que somente um certo grupo de nossa sociedade, aque‐ les que dominam as regras da língua portuguesa, podem modificá‐la ou criá‐la. Na verdade, a língua é de todos que a usam e ela vai mu‐ dando de acordo com a necessidade daquela comunidade linguística. Não existem “donos” de uma língua, e sim usuários que a constroem diariamente, no momento que se envolvem em diferentes processos comunicativos. Da mesma forma, temos a tendência de achar que existem línguas mais bonitas, mais complexas do que outras. Vejamos o que diz Magda Soares a respeito disso: 15 O estudo das línguas de diferentes culturas deixa claro, da mesma forma, que não há línguas mais complexas ou mais simples, mais lógicas ou menos lógicas: todas elas são adequadas às necessidades e características da cultura a que servem, e igualmente válidas como instrumentos de comunicação social. Não se pode dizer que o português seja “melhor”, mais “rico”, mais “expressivo”, mais “flexível” que o inglês. É verdade que algumas línguas são funcionalmente mais desenvolvidas que outras: o inglês, por exemplo, é, atualmente, uma língua internacional, enquanto o português não o é; por outro lado, inglês, francês, alemão e várias outras línguas têm um sistema de escrita altamente sofisticado, que permite que sejam usadas tanto para uma conversação casual quanto para a redação de artigos científicos... No entanto, umas e outras são adequadas à cultura que servem.2 Temos que nos dar conta que a língua, por ser social e servir ao seu falante, atende àquela comunidade na qual é usada. Sendo assim, é um equívoco pensar que existem línguas melhores ou piores do que ou‐ tras. O mesmo acontece dentro do nosso país, pois há falantes que acreditam que certas regiões falam a língua portuguesa mais correta do que outras. Para reforçar esse argumento, há a situação do pronome “tu”, usado somente na região Sul. Existem pessoas que acreditam que pelo fato dos gaúchos empregarem o “tu” – pronome pessoal do caso reto – ao invés do “você” – pronome de tratamento, contração da alo‐ cução “Vossa Mercê” e usado no restante do Brasil – eles falam mais “corretamente”. Realmente, os gaúchos usam o pronome adequado, dentro da gramática normativa, para exercer a função de sujeito, mas concordam o verbo com a terceira pessoa do singular (ele). Dentro das regras do português, isso é considerado, também, “erro”, o que leva todos os falantes de português para a mesma situação: uso diferencia‐ do das regras existentes nas gramáticas tradicionais. Essa consciência e cuidado é que devemos ter em sala de aula, quando temos alunos de regiões diferentes, classes sociais e tribos distintas. Não podemos apontar para eles dizendo que não falam o português correto, mas sim mostrar que existem outros níveis de linguagem que podem e devem ser usados em diferentes contextos comunicativos.1.1.1.2 Princípio da Prioridade da Língua Oral sobre a Escrita Há uma tendência no ensino brasileiro de se valorizar as avaliações e manifestações escritas. É muito raro encontrar uma escola que faça provas oral e escrita, a fim de avaliar o conhecimento do aluno em determinada disciplina. Também concursos não investem na prova oral, como se a língua oral fosse menos importante do que a escrita. Temos que ser conscientes, enquanto profissionais da educação, que ambas, no contexto adequado, têm a mesma importância. 16 O princípio da prioridade da língua oral sobre a escrita se dá por causa de duas razões: a universalidade e antiguidade. Primeiro o homem falou, depois ele escreveu. Primeiro a criança fala, depois ela escreve. Logo, a língua oral é mais antiga do que a escrita. Existem povos que falam, mas não escrevem; contudo, não existem povos que escrevem, mas não falam. Logo, a língua oral é universal. Sobre isso, Martinet expõe: não esqueçamos, que os signos da linguagem humana são precisamente vocais, [...] exclusivamente hoje a maioria dos homens sabe falar sem saber escrever nem ler. Nós aprendemos a falar antes de aprender a ler, é a leitura que vem acrescentar‐se, sobrepor‐se à fala, e não esta àquela. Embora, na prática, lhe seja anexo, o estudo da escrita constitui disciplina distinta da linguística, e por isso o linguista abstrai, em princípio, da grafia.3 Isso não significa dizer que a língua escrita não é importante. Se não fosse a escrita, não teríamos o registro dos fatos históricos, por exem‐ plo. Só devemos cuidar para que a valorização de uma não implique na desvalorização da outra, essencialmente em sala de aula. O aluno precisa saber lidar com as duas formas de expressão, e cabe ao profes‐ sor trabalhar isso em sala de aula, através de atividades diversificadas. 1.1.1.3 Princípio da Dupla Articulação Todas as línguas possuem duas articulações. A primeira diz respeito às palavras de uma língua, por isso é aberta, tendo em vista o fato de podermos criar novas palavras. As unidades dessa articulação são chamadas de morfemas – unidades mínimas significativas. A área da língua portuguesa que estuda essa articulação é a Morfologia. Como unidades significativas temos, por exemplo, o O, A, S: Atencioso Atenciosos Atenciosa Atenciosas Nas palavras acima, a presença do O, A e S faz com que as palavras mudem de gênero – masculino e feminino – e de número – singular e plural. Precisamos notar que essas mesmas letras, quando sozinhas, não têm sentido. Elas se tornam morfemas quando carregam as desi‐ nências de nossa gramática: gênero, número, grau, pessoa, tempo, entre outros. 17 A segunda articulação diz respeito aos sons da língua. Sendo assim, é uma lista fechada porque não podemos criar novos sons. As unidades dessa articulação são chamadas de fonemas – unidades mínimas sono‐ ras. A área da língua portuguesa que estuda essa articulação chama‐se Fonética e Fonologia. Cabe ressaltarmos que as letras não representam os sons. Elas são representações gráficas da língua, mas não são os mesmos. Vejamos: Feliz ‐ /`felis/ Osso ‐ /`osu/ Açude‐ /a`sudi/ Essas duas articulações geram uma economia linguística. Isso é algo facilmente comprovável quando paramos para pensar em todos os arranjos que a língua faz a partir de termos já existentes. Vamos pegar como exemplo a palavra “pato” para trocarmos apenas o primeiro som, o /p/, como segue: PATO BATO CATO DATO FATO JATO LATO MATO NATO RATO TATO Temos, então, 11 novas palavras, com significados completamente diferentes, surgidas a partir da troca, apenas, do primeiro som. Tente‐ mos imaginar o tamanho de nosso cérebro se tivéssemos que fazer arranjos completamente inéditos para cada nome existente no mundo. Certamente, ele teria que ser umas cinco vezes maior. Nesse sentido, é muito bonito ver como a própria língua se organiza para que possa‐ mos usar ao máximo as formas já existentes para significar conceitos novos. 1.1.1.4 Princípio da Sistematicidade O princípio da sistematicidade tem como base o fato de que, quando adquirimos um sistema linguístico, usamos todos os seus aspectos 18 simultaneamente, e não as suas partes. Sendo assim, uma criança não pensa primeiro nos sons, para depois formar palavras, em seguida frases, para finalmente formar textos mais longos. Na verdade, tudo isso acontece simultaneamente, pois ela é exposta a uma língua “intei‐ ra” e não a partes dela. É importante que tenhamos claro os termos sistema e estrutura, uma vez que os mesmos são imprescindíveis para a compreensão da aquisi‐ ção de uma língua. Sobre esses conceitos, explica e exemplifica Borba: Dizemos que um conjunto de objetos constitui um sistema quando esses mesmos objetos se aproximam por terem alguns traços em comum e se organizam seguindo determinados princípios de tal modo que o resultado seja um todo coerente. Por exemplo, o sistema solar é formado por um conjunto de astros – o sol, os planetas, os satélites, os asteroides ‐, que seguem determinadas leis da mecânica celeste: os satélites giram em torno dos planetas, e estes, em torno do sol; planetas e satélites giram em torno do próprio eixo etc. O que caracteriza o sistema é o arranjo de seus componentes e, depois, os princípios que determinam tal arranjo. Digamos que a esse arranjo se dê o nome de estrutura; então, uma estrutura vem a ser a disposição dos elementos dentro de um sistema, o que vale dizer que ela é fundamental para a existência do sistema. Assim, só existe um sistema solar porque seus componentes se dispõem numa certa ordem: o sol no centro, os planetas em sequência a partir do sol, os satélites ao lado dos planetas, os asteroides entre as órbitas de determinados planetas etc. A organização do sistema é, então, dada pela estrutura que, por sua vez, só existe porque seus elementos se inter‐relacionam. É por isso que os componentes de uma estrutura são obrigatoriamente solidários, o que é possível porque eles mantêm, entre si, identidades e diferenças. As primeiras os aproximam por serem compatíveis e possibilitando as segundas, pelas quais um elemento se opõe a outro dando sustentação à própria estrutura.4 A criança adquire o sistema linguístico e aprende, naturalmente, toda a sua estrutura. Essa ideia de sistema e estrutura deve permear o ensino de uma língua, a fim de que possamos mostrar como funciona a mes‐ ma, a partir das diferenças e semelhanças existentes dentro do próprio funcionamento e, também, em relação a outras línguas. 1.1.1.5 Princípio da Singularidade Todas as línguas possuem uma forma própria de articular a primeira e segunda articulações. Ainda que provenientes de um mesmo tronco linguístico, as formas de organização da estrutura linguística vão ser diferentes. Aqui cabe ressaltarmos que nem todas essas diferenças são totais, como veremos no Princípio da Universalidade. Elas podem ser parciais ou totais, dependendo da língua, ou seja, cada língua tem uma maneira singular de organizar o seu sistema linguístico. Vamos ver como isso acontece entre o português e o inglês, por exemplo: 19 Quadro 1.1 - Título PORTUGUÊS INGLÊS Ele, amigavelmente, me abraçou. He, friendly, hold me. Ele é um menino esperto. He is a smart boy. O menino é esperto. The boy is smart. Os meninos são espertos. The boys are smarts. A menina está atrasada. The girl is late. As meninas estão atrasadas. The girls are late. A partir do quadro acima, podemos ver que, em termos de estrutura linguística, as duas línguaspossuem diferenças. No português, o ad‐ vérbio é formado, principalmente, pelo sufixo MENTE; em inglês, esse sufixo é LY. Na nossa língua, o adjetivo vem sempre depois do subs‐ tantivo; em inglês é ao contrário. Enquanto temos, em português, qua‐ tro artigos definidos (o, a, os, as), no inglês temos somente THE, e é nisso que se baseia o Princípio da Singularidade. 1.1.1.6 Princípio da Universalidade Embora todas as línguas tenham um modo próprio de organizar as duas articulações, existem, entre elas, vários aspectos que são seme‐ lhantes ou iguais. Quem se deu conta desse Princípio foi Noam Cho‐ msky, porque ele analisou a língua a partir de sua formação na mente. Como não usava a língua usada por falantes reais, mas sim falantes ideais, e partindo da premissa de que já nascemos com a faculdade da linguagem, ele observou que vários fatores iguais ocorrem em diferen‐ tes línguas. Alguns deles, citados por Fromkim e Rodman5, são: a) existência de uma evolução da língua no tempo; b) todas as línguas humanas utilizam‐se de signos linguísticos, ou seja, de significantes para expressarem significados; c) em todas as línguas, a relação entre o significante e o significado é arbitrária; d) todas as línguas utilizam um número limitado de fonemas que, quando se combinam, formam morfemas que, também, unem‐se para formar frases e textos; e) em todas as línguas encontram‐se semelhantes regras fônicas e sintáticas; f) todas as línguas possuem classes gramaticais semelhantes, tais como nome, verbo, entre outros; 20 g) em todas as línguas podem ser encontradas palavras destinadas a indicar o tempo passado, a formular uma negação ou uma inter‐ rogação; h) todos os falantes (de qualquer língua) são capazes de produzir e compreender um número infinito de frases; i) qualquer criança normal é capaz de aprender uma língua, sem distinção de classe, raça ou lugar de nascimento; j) não existem línguas mais elaboradas do que outras. Todas são complexas, uma vez que exprimem todas as necessidades de seus falantes; k) em todas as línguas é possível aumentar o léxico. 1.1.1.7 Princípio do Processo Analógico Para quem lida com crianças em fase de aquisição da linguagem, o Princípio do Processo Analógico é um dos mais importantes, uma vez que ele afirma que o falante tende a tornar regular as formas irregula‐ res da língua. A criança, no momento em que vai ouvindo e usando a língua mater‐ na, vai percebendo, de acordo com a sua gramática interna (conforme veremos em Chomsky), que a língua é um sistema que tem uma estru‐ tura, isto é, regras que regem o seu funcionamento. Por incrível que pareça, o pequeno falante, sem perceber e sistematizar, vai aplicando essas normas em sua fala. No entanto, tanto a criança quanto o falante que não conhece todas essas regras, aplicam‐nas nas suas regularida‐ des, e não as exceções. Por isso, acontecem os chamados “erros”, que tanto pais quanto professores corrigem. Porém, esses erros escondem uma bela linha de raciocínio linguístico. Vejamos alguns exemplos: Eu sabo. Eu fazi. Vamos na carneria? Vamos comprar chapeis? Nos exemplos acima, temos, na verdade, irregularidades da língua portuguesa. Qual foi a linha de raciocínio do falante ao emitir tais frases? Vamos analisar cada uma delas: 21 Conjugação dos verbos em português Conjugação dos verbos pela criança Verbo ler Verbo comer Verbo beber Verbo saber Eu leio Eu como Eu bebo Eu sabo Verbo ler Verbo comer Verbo beber Verbo fazer Eu li Eu comi Eu bebi Eu fazi Formação dos substantivos da língua portuguesa Formação do substantivo pela criança Livraria Padaria/confeitaria Carneria Lugar onde se compra livros Lugar onde se compra pães Lugar onde se compra carne. Formação do plural na língua portuguesa Formação do plural pela criança Pastel Anel Cordel Chapéu Pastéis Anéis Cordéis Chapéis Como podemos ver, em todos os casos, houve uma aproximação de uso da forma regular. Naturalmente, à proporção que o falante for sendo exposto a essas irregularidades, ele vai aplicá‐las, sem haver necessidade de saber as razões que estão por trás desses fatos linguísti‐ cos. Cabe ao educador levar o aluno perceber que o uso não está erra‐ do, apenas precisa ser internalizado dentro das irregularidades da língua. 1.1.1.8 Princípio da Criatividade Linguística O Princípio da Criatividade Linguística afirma que somente o homem é capaz de criar novas frases e palavras para exprimir situações lin‐ guísticas novas. Além disso, ele é o único capaz de se comunicar com os outros seres de sua espécie através da linguagem verbal. Isso não quer dizer que os animais não se comunicam. Muito pelo contrário, descobertas recentes apontam não somente para o fato de que os ani‐ mais se comunicam, como também tem cultura. No entanto, o código usado pelos animais para a comunicação não é o verbal (usa a palavra na sua forma oral ou escrita). Eles usam sinais no rabo, como os lobos, os excrementos, os cheiros, sons diversos, entre outros. Tudo isso não é a linguagem verbal. 22 O homem tem a competência linguística, ou seja, somente ele é capaz de produzir e compreender as frases de uma língua, conforme diz Descartes, citado por Chomsky: é um fato muito notável que não há homens tão embotados ou estúpidos, sem mesmo excluir os dementes, que não sejam capazes de arrumar várias palavras juntas, formando com elas uma proposição pela qual dão a entender seus pensamentos; enquanto por outro lado, não há outro animal, por mais perfeito e afortunadamente constituído que seja, que faça a mesma coisa. Esse mesmo falante, quando exposto a uma situação em que não há na língua expressão ou frase que dê conta do que precisa ser comunicado, ele naturalmente cria linguisticamente essas estruturas. Um grande exemplo disso foi o Ministro Magri ‐ Ministro do Trabalho e da Assis‐ tência Social do governo Collor – que, referindo‐se ao Plano Collor, sem encontrar uma palavra única que expressasse “algo que não pode ser mexido”, criou o termo IMEXÍVEL. Na época, fizeram várias críti‐ cas ao Ministro; contudo, o que não se sabia é que a nova palavra era perfeita para ser dicionarizada, como já se encontra, na página 1576 do Dicionário Houaiss7. O que ele percebeu, em um momento de apuros político, é que não existia, na língua portuguesa, um termo que signifi‐ casse IMEXÍVEL. Sendo assim, pegou o radical do verbo MEXER – MEX‐, o prefixo I – que tem valor semântico de NÃO ‐ e o sufixo IVEL – que significa POSSIBILIDADE ‐, logo temos a impossibilidade de mexer, em outras palavras, o imexível. Outro exemplo são as nossas prisões. Como os presos não querem ser entendidos pelos policiais e pelos grupos rivais, eles criaram uma linguagem própria para a comunicação. Assim, a frase: “O alibã me deu um atraque e me chamou na pedra.” significa “O policial me revis‐ tou e me colocou de castigo.” Ainda que para falantes que não estão encarcerados pareça uma frase pertencente a outra língua, a frase ante‐ rior pertence aos presos brasileiros, que a criaram para dar conta de suas necessidades. Todos esses princípios devem estar presentes para o profissional que vai lidar com o ensino de línguas, principalmente para aquele que trabalha nos anos iniciais. São eles que vão ajudar a compreender o funcionamento linguístico do aluno e a aplicação dos mesmos nos planos de aula tornarão a formalização dos aspectos linguísticos mais fáceis. 1.1.2 Século XIX 23 O século XIX foi amplamente influenciado pelaBiologia. Todos esta‐ vam encantados com a Teoria da Evolução e buscavam aplicá‐las nas mais variadas áreas do conhecimento. O mesmo aconteceu com a Lin‐ guística, pois os estudiosos estavam curiosos para descobrirem a ori‐ gem de cada língua. Logo, o objetivo dos linguistas desse século era saber quem era a língua‐mãe de cada família linguística. A grande contribuição foi verificar que as mudanças linguísticas não são caóticas, como se pensava, nem ocorrem de acordo com a vontade do homem, mas seguem uma ordem. Por isso, ao longo do tempo alguns termos ganham flexões e outros perdem, sons são suprimidos ou acrescentados, de acordo com a frequência do uso linguístico. Este século marca uma outra tendência para os estudos linguísticos ”o sociologismo”, porque considera a língua na sociedade, o uso da mes‐ ma pelos falantes. O mesmo não acontece com o século XVII, que tem como corrente teórica o formalismo, isto é, estuda a língua através de falantes ideais e não reais. Essas duas tendências também marcarão o modo de se estudar a aquisição da linguagem, conforme veremos no decorrer do material. Atividades Marque com um X a única alternativa correta: 1) O princípio que tem como tese que somente o ser humano é capaz de formar novas palavras e frases para explicar contextos novos é: a) Princípio da Sistematicidade; b) Princípio da Singularidade; c) Princípio do Processo Analógico; d) Princípio da Criatividade Linguística. 2) O princípio que tem como tese que todas as línguas, embora seme‐ lhantes, articulam de forma própria as articulações é: a) Princípio da Sistematicidade; b) Princípio da Singularidade; c) Princípio do Processo Analógico; d) Princípio da Universalidade. 3) O princípio que tem como tese que o falante adquire o sistema integral linguístico é: a) Princípio da Sistematicidade; b) Princípio da Singularidade; c) Princípio do Processo Analógico; 24 d) Princípio da Criatividade Linguística. 4) O princípio que tem como tese que, embora as línguas tenham maneiras próprias de organizar as duas articulações, possuem tra‐ ços semelhantes é: a) Princípio da Sistematicidade; b) Princípio da Singularidade; c) Princípio do Processo Analógico; d) Princípio da Universalidade. 5) O princípio que tem como tese que temos a tendência de tornar regular as formas irregulares da língua é: a) Princípio da Sistematicidade; b) Princípio da Singularidade; c) Princípio do Processo Analógico; d) Princípio da Universalidade. 2 DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM VERBAL NA CRIANÇA Vanessa Loureiro Correa Neste capítulo trabalharemos os conceitos mais abrangentes para a compreensão do desenvolvimento da linguagem verbal na criança. Vamos começar com os conceitos de linguagem, língua e fala, de co‐ municação com os seus elementos. 2.1 Linguagem, língua e fala Sempre houve uma confusão, por parte dos falantes, no que se refere à diferença entre linguagem, língua e fala. Embora pareça que todos tratem da mesma ação, cada uma tem uma especificidade. Antes de conceituarmos esses termos, vamos precisar saber o que é comunica‐ ção, uma vez que todas essas palavras são instrumentos para o proces‐ so comunicativo. Comunicar é transmitir uma mensagem e a mesma ser entendida. Não adianta falarmos por horas, se a pessoa que está a nossa frente não consegue entender o que estamos dizendo. Precisamos, ao passarmos a nossa mensagem, saber quem são os elementos que compõem aquele processo, a fim de adequarmos o nosso nível de linguagem. São ele‐ mentos do processo comunicativo: a) Fonte: de onde parte a mensagem; b) Emissor: quem transmite a mensagem; c) Mensagem: a ideia que desejamos comunicar; d) Canal: o meio pelo qual passamos a mensagem. Pode ser tecno‐ lógico, quando a mensagem final fica em qualquer recurso que não seja o corpo (livros, telefone, computador, cd, DVD, entre outros), ou natural, quando a mensagem final está no corpo (voz, sinais, gestos, entre outros); 26 e) Código: conjunto de signos estruturados, partilhados por uma comunidade linguística. Pode ser verbal (faz uso da palavra es‐ crita ou oral) ou não verbal (faz uso de qualquer código que não seja verbal, como: sinais, gestos, sons, desenhos, entre ou‐ tros); f) Receptor: é quem recebe a mensagem e tem a tarefa de com‐ preendê‐la; g) Destinatário: é para quem a mensagem se destina. Como profissionais da educação, temos que ter claro esses elementos, pois precisamos deles para que haja efetivo processo de ensino e aprendizagem. Não tem como ensinar os elementos do processo co‐ municativo, por exemplo, para crianças dos anos iniciais, sem adequar o conteúdo ao receptor que temos diante de nós. Assim como não podemos usar a mesma linguagem e metodologia para ensinar o con‐ teúdo para alunos universitários. Agora que já temos clareza do que é comunicação, vamos entender o que é linguagem. Segundo Chomsky1, o homem já nasce com a capaci‐ dade da linguagem, uma vez que ela é a capacidade que todo o ser humano tem de se comunicar. É claro que essa comunicação pode se dar com diferentes códigos ou canais, mas ela acontecerá. É o que acontece com pessoas especiais, porque, muitas vezes, sem saberem como usar o código verbal, estabelecem meios para passar a sua men‐ sagem para o seu receptor. Essa capacidade de comunicação pode ocorrer através de uma língua que, segundo Saussure2, é um conjunto de signos linguísticos. Para Chomsky3, língua é um conjunto infinito de frases regida por um número finito de regras. É através da língua que expressamos a nossa linguagem. Ambas tratam da competência linguística do falante, ou seja, a capacidade que todo falante tem de entender e produzir frases na sua língua. O mesmo já não acontece com a fala. Ela está ligada à performance linguística, isto é, ao uso particular que o falante faz da língua. O fato de um falante falar bem, não significa que ele domine todas as normas de sua língua. Temos falantes que não falam e escrevem muito bem, em outras palavras, comunica‐se por outro meio que não da fala. É impossível, cientificamente, estudarmos a fala, porque teríamos que levar em conta cada usuário que emitisse aquela fala. Como não se faz ciência do particular, a fala está excluída dos estudos científicos. Precisamos ter presentes essas diferenças, a fim de ajudarmos nossos alunos em sala de aula. O ideal é mostrar que analisar a língua mater‐ Rubiel Realce Rubiel Realce Rubiel Realce 27 na nas disciplinas escolares que se dedicam ao estudo da mesma ser‐ vem para ajudar o falante a ter completo sucesso em todas as situações comunicativas a que ele se propõe. Devemos também ter cuidado para não valorizarmos somente a parte escrita, como tem acontecido em nosso país. Cada vez mais, os jovens são avaliados através da escrita, como se a fala não tivesse valor. A comunicação se dá das duas formas; logo temos que praticá‐las com atenção. Nas escolas, há uma valorização da escrita em detrimento da forma oral, pois se entende que a segunda já é bastante praticada no dia a dia. No entanto, esquecemos que uma fala direcionada e pensada não é parte da nossa realidade. Muitos candidatos passam na parte escrita dos concursos e rodam na entrevista, justamente por não con‐ seguirem se expressar adequadamente. Sendo assim, é de suma importância que os planos completem as duas formas de expressão. Somente dessa forma estaremos preparando nossos alunos para a vida e para o mercado de trabalho. 2.2 Aquisição da linguagem: uma visão ampla e breve Estudar a linguagem e a forma como o falante a adquire é antiga. Mui‐ tos são os relatos de tentativa de estudo,como conta Scarpa: A linguagem da criança sempre provocou especulações diversas entre leigos e estudiosos do assunto. Seja essa linguagem a manifestação imperfeita de um ser incompleto, seja a expressão primitiva da palavra de Deus, o fato é que relatos mais ou menos esparsos, porém constantes, têm sido registrados ao longo dos séculos e chegaram até nós. Tais relatos dizem respeito às primeiras palavras emitidas pelas crianças, ou a que condições a criança deveria ser exposta para aprender a falar. Heródoto, por exemplo, narra que, no século VII a.C., o rei Pasmético do Egito ordenou que duas crianças fossem confinadas desde o nascimento até a idade de dois anos, sem convívio com outros seres humanos, a fim de se observarem as manifestações “linguísticas” produzidas em contexto de provação interativa. Sua hipótese era que se uma criança sem exposição à fala humana, a primeira palavra que emitisse espontaneamente pertenceria à língua mais antiga do mundo. Ao cabo e dois anos de total isolamento, as crianças emitiram uma sequência fônica interpretada como “bekos”, palavra frigia para “pão”. Conclui, então, que a língua que o povo frígio falava era mais antiga que a dos egípcios.4 Todo esse esforço foi repetido, através dos séculos, pelos estudiosos da linguagem e da língua. Muitos faziam as análises e verificações nos próprios filhos, relatando, por escrito, diariamente, a evolução linguís‐ tica deles. Esses estudos eram conhecidos como diaristas e inaugura‐ ram uma das formas de se estudar a aquisição da linguagem: a longi‐ 28 tudinal. Nessa metodologia, primeiramente, anotava‐se o que as crian‐ ças diziam diariamente, em processos comunicativos cotidianos. Com a chegada da tecnologia, essas falas começaram a ser gravadas ou filmadas, em períodos regulares (de 15 em 15 dias, semanalmente, mensalmente, entre outros). Depois disso, faziam a transcrição dos dados de forma que atendesse ao objetivo da pesquisa, sendo ela de ordem sintática, fonológica, semântica ou morfológica. Tudo isso era observado em ambientes naturalístico. Outra metodologia é a transversal, que pega, por exemplo, um núme‐ ro grande de crianças da mesma faixa etária para analisar fatos seleci‐ onados, dão porque essa metodologia é, principalmente, experimental, que depois são controlados de acordo com o objetivo da pesquisa. Cabe ressaltarmos que dados de ordem naturalística prestam‐se mais à produção da linguagem. Já o experimental é melhor para analisar a percepção, compreensão e processamento da linguagem por parte da criança. A Aquisição da Linguagem, enquanto área da Linguística, é bastante rica e proporciona um estudo conjunto com outras áreas do conheci‐ mento. Também possui subáreas, como nos enumera e explica Scarpa: a) aquisição da língua materna, tanto normal quanto “com desvios”, recobrindo os componentes “tradicionais”dos estudos da lin‐ guagem, como fonologia, semântica e pragmática, sintaxe e morfologia, aspectos comunicativos, interativos e discursivos da aquisição da língua materna. Sob a égide de “desvios”, con‐ tam‐se: aquisição da linguagem em surdos, desvios articulató‐ rios, retardos mentais e específicos da linguagem etc; b) aquisição da segunda língua, quer como bilinguismo infantil ou cultural, quer na verificação dos processos pelos quais se dá a aquisição de segunda língua entre adultos e crianças, seja em situação formal escolar, seja informal de imersão linguística; c) aquisição da escrita, letramento, processos de alfabetização, relação entre fala e escrita, entre o sujeito e a escrita nesse pro‐ cesso etc.5 Sempre que pensamos em aquisição, acreditamos que essa é somente relacionada à língua materna ou somente a segunda língua. Como vimos acima, quando falamos em aquisição da linguagem, estamos analisando todas as aquisições linguísticas. Para os profissionais da educação, esse fato é de suma importância para o ensino de línguas em sala de aula. 29 2.2.1 Behaviorismo, Inatismo e Interacionismo Nos estudos sobre a aquisição da linguagem, sempre houve as seguin‐ tes tendências: behaviorista, inatista e interacionista, como expõe Richter: No primeiro grupo situam‐se as teorias que defendem a experiência como fonte básica do conhecimento. Todas as ideias vêm da expe‐ riência com o mundo material e a mente só as organiza. O mundo exterior e suas conexões não dependem da mente para serem o que são. Esta posição teórica, também conhecida por alguns como Associacionismo é, aqui, denominada Behaviorismo. No segundo grupo encontramos teorias que atribuem à mente o papel mais importante do conhecimento. As ideias são inatas e a experiência, pouco importante. O rótulo para esta posição teórica é Inatismo. No terceiro grupo estão as teorias que evitam separar mente e experiência. Para tanto, há duas soluções importantes, que não se excluem.6 A teoria behaviorista é baseada no comportamento, como já diz o no‐ me da própria teoria, uma vez que behavior, em inglês, é comportamen‐ to. Trabalha com o método do estímulo e resposta, ou seja, toda vez que a criança acerta, seja em termos linguísticos como em qualquer outra área que esteja sendo pesquisada à luz dessa teoria, e um adulto ou responsável elogia e/ou dá prêmios. Isso é o que acontece, por exemplo, com os animais adestrados, pois eles são premiados com comida quando atendem a um pedido ou fazem uma peripécia. Nessa teoria, a linha de ação é a mesma. Acreditam os teóricos que trabalha‐ mos incentivados por palavras ou prêmios. Muitos podem estar pensando que nossas crianças são, por exemplo, papagaios, animais que aprendem a língua de forma mecânica e por repetição. Isso não é verdade, conforme foi visto no Princípio da Cria‐ tividade Linguística, estudado no capítulo anterior, somente o homem é capaz de criar novas palavras e sentenças para expressar situações novas. É claro que a criança aprende com as pessoas que a cercam, seja a língua, sejam os valores, mas ela também cria, relaciona, raciocina. É muito comum o pequeno falante nativo começar pedindo “água” e, em seguida, acrescentar “quelo água”, para – mais adiante – dizer “eu quero água”. É óbvio que nenhum adulto fica na frente ensinando estrutura sintática, simplesmente usamos as frases e as crianças perce‐ 30 bem não somente a estrutura da frase afirmativa no português, como também em que contexto aplicá‐las. Tendo em vista o fato que a aprendizagem de uma língua não é mecâ‐ nica, uma vez que a mente colabora para essa aquisição, vamos conhe‐ cer os dois mecanismos que Ritcher diz serem da mente nesse proces‐ so: O reforço positivo faz o aprendiz generalizar a resposta para um conjunto maior de estímulos. Assim, uma criança de dois anos diz: “Dá!”, para ganhar um objeto particular e ganha. Vai depois dizer “Dá!” quando quiser ganhar outros objetos. A mente é capaz de desagrupar as características de um objeto percebido e armazená‐las em separado. Digamos que uma criança tenha uma reação de prazer consumindo um alimento junto com o comentário “doce gostoso”. Numa próxima ocasião, reagirá com prazer ao ouvir a palavra “gostoso” isolada da palavra anterior.7 Nessa teoria, o reforço e a aprendizagem se dá através da memoriza‐ ção. O problema é que não podemos adquirir tudo memorizando. É claro que certos termos e expressões nós podemos e devemos memori‐ zar, mas são adquiridos pelo próprio uso da língua e consequente internalização das regras gramaticais. Ritcher8, por fim, aponta alguns problemas do behaviorismo,como o fato de que as crianças adquirem a língua‐mãe imitando bem menos do que se imaginava, uma vez que elas imitam o que, de certa forma, já conhecem, e não qualquer estru‐ tura. Outro problema apontado é que as crianças são expostas a falas reais, o que significa dizer imperfeitas. As frases são truncadas, depen‐ dem de contexto para serem entendidas, possuem erros estruturais, têm marcas de ambiguidade e todas as falhas que permitem a língua oral. No entanto, TODAS AS CRIANÇAS chegam aos três ou quatro anos com toda a estrutura gramatical de sua língua. Por fim, critica a teoria associacionista, dizendo que as associações são falhas e temporá‐ rias. Não é porque associamos vermelho com violência, porque lembra sangue, que toda a vez que vemos uma cena de violência vamos lem‐ brar do vermelho. Sem sombra de dúvida que o behaviorismo ajuda bastante na questão das normas de ortografia, acentuação, pontuação, entre outras que exigem memorização, mas como toda teoria científica, não dá conta de todos os problemas. Surge, então, a teoria inatista, que afirma que todo o ser humano já nasce com a capacidade de se comunicar na forma verbal, exceto por problemas físicos ou mentais. Nessa teoria, todos nós nascemos com uma gramática interna, que é alimentada pelas 31 frases que ouvimos com o decorrer do tempo. Naturalmente, separa‐ mos as frases que são válidas dentro da gramática de nossa língua materna daquelas que não são válidas, tudo porque já temos um con‐ junto de princípios válidos para todas as línguas. Como essa teoria trabalha com a mente, fica mais fácil entendermos se usarmos o exem‐ plo que Ritcher deu para explicar a aquisição da linguagem à luz dessa teoria: Para mostrar como funciona a especificação mencionada, vamos fazer uma comparação. Suponha que você comprou um aparelho de videocassete, trouxe‐o para casa e vi fazê‐lo funcionar. Para isto ele já tem a capacidade, desde que saiu da fábrica. Mas, a fim de fazer este seu aparelho funcionar de fato, você deve de levar em conta um “princípio”‐ válido para todos os eletrodomésticos da sua espécie: deve ser alimentado com energia elétrica de uma tomada. Então, o que você faz? Dependendo do “ambiente” (cidade) em que você se encontra, a corrente pode ser de 110 ou 220 Volts. Ou uma, ou outra, mas não qualquer voltagem. Você precisa dar uma “especificação” para o videocassete, isto é, “informar” ao aparelho qual das opções possíveis é válida. Então você se certifica da corrente da cidade e move uma chavinha (que pode marcar ou 110 ou 220 Volts) do eletrodoméstico para que fique “de acordo” com a corrente da cidade. Pronto. A partir de agora, você liga o videocassete e este, especificado “por dentro” para um fator “de fora”, passa a funcionar normalmente.9 Como toda teoria, também o inatismo tem pontos favoráveis e pro‐ blemas. No primeiro grupo, segundo Ritcher10, entram fatores como o fato de que a criança é exposta a um pequeno número de regras e ad‐ quire as demais sozinha, provando a existência de uma gramática interna. Além disso, ela consegue emitir frases adequadas estrutural‐ mente e semanticamente sem que nenhum falante adulto sente para explicar o funcionamento da língua. Toda e qualquer criança, entre três e quatro anos está pronta linguisticamente, mesmo que não tenha um ambiente culto e estimulante. Da mesma forma que somente o ser humano, e nenhum outro animal, consegue dominar um sistema tão complexo como o da língua em uma idade tão tenra (três ou quatro anos). Por fim, somente a existência de uma gramática interna justifica‐ ria a aprendizagem de um sistema tão difícil, como é a língua, com tão pouca idade. Ao mesmo tempo, o autor11 aponta como falha dessa teoria a questão da língua não ser adquirida de qualquer forma, em qualquer momen‐ to. Na verdade, a aquisição da linguagem se dá por um sistema coope‐ rativo, entre adulto e criança, no qual o primeiro irá facilitar sua pro‐ dução para que a criança entenda o que ele está transmitindo. Sendo assim, tem‐se a mente e a experiência unidas para que a criança adqui‐ ra um código linguístico. 32 Na teoria interacionista, a criança aprende tanto pelo modelo mental, quanto pela interação entre o aprendiz e um interlocutor. Nessa teoria, não vale somente a língua que vem de fora como modelo para aquisi‐ ção, mas também a língua que vem de dentro, aquela que é produzida pela criança, uma vez que ela vai testando o que dá ou não certo com os enunciados produzidos. A ênfase, na visão interacionista, é na semântica, ou seja, no significado das palavras, e não nas estruturas sintáticas. Por isso, o desenvolvi‐ mento cognitivo está ligado ao desenvolvimento linguístico, porque é através do cognitivo que a criança consegue mapear os significados encaixando‐os nos respectivos morfemas. Segundo Ritcher, o desen‐ volvimento cognitivo baseia‐se em dois fatores: os esquemas inatos ou preexistentes (adquiridos e estruturados) da cognição, que respondem pelo crescimento da capacidade de interpretar e comunicar; os esquemas inatos de aquisição de gramática – note o(a) leitor(a) que este é o ponto de contato entre o interacionismo e o inatismo , que respondem pelo crescimento de capacidade de perceber, pro‐ cessar e organizar a informação.12 Estudos mais recentes descobriram que a aquisição de uma língua passa pelo comportamento social do falante, ou seja, por uma reciproci‐ dade comportamental, que tem como base, segundo Ritcher13, a orienta‐ ção do comportamento em relação ao outro e, também, a aprendiza‐ gem de um se comportar de modos socialmente dotados de sentido, através de um sistema de signos usados pela comunidade linguística, podendo ser esses verbais ou não verbais. 2.2.2 Período crítico para aquisição da linguagem Existe uma discussão muito grande no que diz respeito ao período crítico para aquisição da linguagem. Como falantes, sabemos o quanto é difícil aprender uma segunda língua na adolescência ou na idade adulta. O mesmo não acontece com as crianças, que se incentivadas cedo para aprendizagem de outras línguas, tendem a falá‐las como falantes nativos daquele país. Segundo Lemeberg, existe uma explica‐ ção biológica para isso: Entre dois e três anos de idade, a linguagem emerge através da interação entre maturação e aprendizado pré‐programado. Entre os três anos de idade e a adolescência, a possibilidade de aquisição primária da linguagem continua a ser boa; o indivíduo parece ser mais sensível a estímulos durante este período e preservar uma certa flexibilidade inata para organização de funções cerebrais para 33 levar a cabo a complexa integração de subprocessos necessários à adequada elaboração da fala e da linguagem. Depois da puberdade, a capacidade de auto‐ organização e ajuste às demandas psicológicas do comportamento verbal declinam rapidamente. O cérebro comporta‐se como se tivesse se fixado daquela maneira e as habilidades primárias e básicas não adquiridas até então geralmente permanecem deficientes até o final da vida.14 É inegável que, quando mais jovens, temos menos vergonha. Com isso, participamos mais da aula de língua estrangeira, sem medo de errar, pois o erro é visto como normal. Já na adolescência, além dos fatores biológicos, temos dificuldades de lidar com o erro. Não queremos “pagar mico”, como eles mesmos dizem, e o silêncio e a pouca partici‐ pação dominam a atitude dos alunos. É muito difícil, em termos de aprendizado de uma língua, ficarmos em silêncio e aprendê‐la. Para adquirir uma língua, sejaqual for a teoria, a interação do falante com o meio é essencial. O mesmo ocorre na idade adulta, tendo em vista o fato de que outros fatores, além do biológico e da vergonha interferem. Com o passar dos anos, o modelo da língua materna fica mais forte, tornando difícil que se pense em outra língua sem passar por ela. O adulto traduz rapidamente as estruturas linguísticas, porque não con‐ segue pensar em inglês, por exemplo. Com muito estudo, ele consegue ser um tradutor rápido, mas não falará como um falante nativo. Por isso, é aconselhável ensinar línguas estrangeiras para as crianças até a adolescência, por mais estranho que isso possa acontecer. Embora muitos pensem que elas misturarão as duas línguas, isso não acontece‐ rá, tendo em vista a capacidade de elas separarem naturalmente a língua materna das demais. Atividades Marque com um X a única alternativa correta: 1) Linguagem é: a) o uso particular da língua; b) um sistema de códigos partilhado por uma comunidade lin‐ guística; c) a capacidade que todo o ser humano tem de se comunicar; d) a união entre significado e o significante. 2) Na teoria behaviorista, a aquisição da linguagem: a) se dá tanto pelo modelo mental quanto pela interação entre aprendiz e interlocutor; b) ocorre através da experiência, que leva à memorização do sis‐ tema linguístico; 34 c) é de onde parte a mensagem; d) é inata ao homem, uma vez que ele já nasce com ela. 3) No inatismo, a aquisição da linguagem: a) se dá tanto pelo modelo mental quanto pela interação entre aprendiz e interlocutor; b) ocorre através da experiência, que leva à memorização do sis‐ tema linguístico; c) é de onde parte a mensagem; d) é inata ao homem, uma vez que ele já nasce com ela. 4) No interacionismo, a aquisição da linguagem: a) se dá tanto pelo modelo mental quanto pela interação entre aprendiz e interlocutor; b) ocorre através da experiência, que leva à memorização do sis‐ tema linguístico; c) é de onde parte a mensagem; d) é inata ao homem, uma vez que ele já nasce com ela. 5) Segundo Pinker, a aquisição da linguagem ocorre: a) normalmente até os 3 anos, fica comprometida entre os 3 anos e até pouco depois da puberdade e é rara a partir daí; b) normalmente até os 4 anos, fica comprometida entre os 4 anos e até pouco depois da puberdade e é rara a partir daí; c) normalmente até os 5 anos, fica comprometida entre os 5 anos e até pouco depois da puberdade e é rara a partir daí; d) normalmente até os 6 anos, fica comprometida entre os 6 anos e até pouco depois da puberdade e é rara a partir daí. 3 PIAGET E A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM Vanessa Loureiro Correa Neste capítulo apresentaremos a teoria de Jean Piaget acerca da aquisi‐ ção da linguagem: o cognitivismo construtivista, ou interacionismo de Piaget . Para isso, teremos, primeiro, uma biografia do biólogo suíço e a sua teoria – interacionismo. Em seguida, estudaremos o desenvolvi‐ mento mental para entendermos a aquisição da linguagem, ponto discutido depois, na teoria de Piaget. Por fim, vamos ver que papel a escola deve ter, de acordo com o interacionismo piagetiano. 3.1 Jean Piaget e o interacionismo Jean Piaget nasceu em 9 de agosto de 1896 e morreu em 16 de setembro de 1980. Estudou Biologia e, depois, Psicologia, com ênfase na Educa‐ ção. Começou a escrever suas teorias em 1921. Foi diretor do Instituto Jean‐Jacques Rousseau na Suíça e lecionou Psicologia Infantil na Uni‐ versidade de Genebra. Os principais livros de Piaget foram A Lingua‐ gem e o Pensamento na Criança (1923) e O Juízo e o Raciocínio na Criança (1924). Desde cedo, interessou‐se pela História Natural e, aos 11 anos de ida‐ de, publicou seu primeiro livro que, de acordo com a crítica, era bri‐ lhante. Ainda, quando criança, trabalhava, aos sábados, como voluntá‐ rio no Museu de História Natural. Como biólogo, recebeu o diploma de doutor aos 22 anos. Foi convidado para trabalhar no laboratório de Alfred Binet, um famoso psicólogo infantil da época, na França, para onde se mudou em 1919. Foi nesse laboratório que ele percebeu que o desenvolvimento se dava gradualmente, uma vez que as crianças, de mesma faixa etária, cometiam os mesmos erros. No entanto, foi obser‐ vando seus filhos e muitas outras crianças – e com a ajuda da esposa – que ele desenvolveu, de fato, sua teoria. Primeiramente, assim como Rousseau, ele afirma que a criança não é um adulto em miniatura, consequentemente, o cérebro dela também 36 não corresponde a de um adulto em escala menor. Para ele, o desen‐ volvimento do conhecimento e da inteligência se dá por etapas e gra‐ dativamente. Os pensamentos, conforme os estágios, vão se sobrepon‐ do e tornando‐se cada vez mais sofisticados. A ideia principal de sua teoria é que a criança interage com o meio, ou seja, que a construção do conhecimento se dá na interação organismo‐meio. Afirma que a linguagem socializada está muito ligada à passagem da fase egocêntrica para a objetividade, assim como para o pensamento lógico. Segundo ele, fatores sociais e culturais colaboram para o desen‐ volvimento do pensamento. Até que a criança se socialize, ela tem um pensamento autístico (individual) para em seguida, sob o efeito dos fatores antes mencionados, entrar no pensamento “dirigido”. Sob esse processo de transição, diz o autor: obedece em grande parte ao fato de que a inteligência, precisamente porque se socializa progressivamente, procede cada vez mais por conceitos, em virtude da linguagem que liga o pensamento às palavras, enquanto o autismo, precisamente porque permanece individual, continua ligado à representação por imagens, à atividade orgânica e aos movimentos. O fato de contar seus pensamentos, de transmiti‐los aos outros, ou de calar ou falar somente consigo mesmo, deve ter, portanto, uma importância primordial na estrutura e funcionamento do pensamento em geral, da lógica da criança em particular.1 Também nota que as crianças, até certa idade, fazem menos trocas entre si do que adultos. Embora falem muito, essa fala não é dirigida a ninguém. Ela socializa todos os seus pensamentos com os interlocuto‐ res, no entanto, precisamos saber para quem ela fala de fato. Embora fale mais, a criança tem um pensamento egocêntrico maior que o do adulto. Para explicar esse paradoxo, Piaget propõe uma diferença entre intimidade do pensamento e egocentrismo: É preciso não confundir a intimidade do pensamento e o egocentrismo. A reflexão da criança não consegue, com efeito, permanecer íntima: à parte o pensamento por imagens e por símbolos autísticos, que é incomunicável diretamente, a criança é incapaz de guardar para si, até uma idade ainda indeterminada, mas oscilando provavelmente por volta dos 7 anos, os pensamentos que lhe vêm ao espírito. Diz tudo. Não tem nenhuma continência verbal. Pode‐se afirmar, assim, que ela socializa seu pensamento mais do que nós? Esta é a questão: precisamos verificar para quem ela fala na realidade. Talvez para os outros. Pensamos, pelo contrário, em virtude das pesquisas precedentes, que é antes de mais nada para si mesma, e que a palavra, antes de pretender socializar o pensamento, procura acompanhar e reforçar a atividade individual. Tentemos precisar melhor essa diferença entre pensamento adulto, socializado, mas capaz de intimidade, e o pensamento infantil, egocêntrico, mas incapaz de intimidade.2 37 Na abordagem de Piaget, cabe ressaltarmos alguns aspectos que, mais tarde, serão contestados por Vigotski3. Embora Piaget4 considera os fatores externos no processo de aquisição da linguagem, para ele, a maturação biológica prevalecem em relação aos fatores externos no processodo desenvolvimento humano, sendo que este último segue estágios fixos e universais. A questão social fica dependente da indivi‐ dual, uma vez que a construção do conhecimento vai do individual para o social. A aprendizagem depende do desenvolvimento, e o pensamento apare‐ ce antes da linguagem, tornando a linguagem subordinada aos proces‐ sos dele. A própria linguagem só aparecerá quando determinados níveis e habilidades mentais forem superados. Já que a questão mental conta para a aquisição da linguagem, vamos falar do desenvolvimento mental do ser humano para vermos quando é que ela começa a fazer parte da vida do falante. 3.2 O desenvolvimento mental do ser humano Piaget foi o biólogo que mais estudou o desenvolvimento mental da criança. Segundo ele5, o desenvolvimento começa desde quando nas‐ cemos e termina na idade adulta. Todo esse processo passa por quatro estágios. São eles: a) estágio sensório‐motor (de 0 a 2 anos): o conhecimento é adquiri‐ do de forma empírica, não verbal, uma vez que a criança vai apre‐ endendo os objetos a sua volta, experimentando‐os de variadas formas para somar o conhecimento; b) estágio pré‐operacional (dos 2 aos 7 anos): a criança aprende o signo linguístico, ou seja, nomeia os objetos do mundo, associa um conceito a uma imagem. No entanto, ainda tem um conhecimento experimental; c) estágio operacional‐concreto (dos 7 aos 12 anos): a criança agora já é capaz de pensar de forma lógica, agrupando os objetos do mun‐ do por semelhanças e diferenças; d) estágio operacional‐formal (dos 12 até a idade adulta): o falante já tem todas capacidades para desenvolver e pensar de forma empí‐ rica. O teórico afirma que a aprendizagem se dá por meio de três processos: 38 1. adaptação: é o processo pelo qual a criança passa de conhecer e interagir com o meio onde vive. 2. assimilação: é o processo pelo qual a criança passa de acomodar os conhecimento adquiridos no meio para assimilar os novos que fo‐ ram construídos com a ajuda de conhecimentos velhos. 3. acomodação: os conhecimentos se acomodam em níveis mentais para que possamos experimentar o mundo através deles. Cada um dos estágios, bem como dos processos, se dá de forma orga‐ nizada e evolutiva. É preciso que a criança supere, com sucesso, todos os níveis para que possa adquirir o conhecimento na sua totalidade. Para isso, é preciso que esses processos sejam influenciados pelos se‐ guintes fatores: a) maturação: crescimento biológico dos órgãos. b) exercitação: funcionamento dos esquemas e órgãos que implica na formação de hábitos. c) aprendizagem social: aquisição de valores, linguagem, costu‐ mes e padrões culturais e sociais. d) equilibração: processo de autorregulação interna do organis‐ mo, que se constitui na busca sucessiva de reequilíbrio após cada desequilíbrio sofrido. Tudo isso se dá em estruturas mentais chamadas esquemas. Como esquemas devemos entender como sendo padrões comportamentais que deixam que a informação integrante do ambiente se ajuste, estan‐ do, porém, em constante transformação. No início, esses esquemas são baseados nos reflexos, em seguida, passam a atos involuntários para, finalmente, serem as operações mentais. Conforme o ser humano vai se desenvolvendo, os esquemas são reorganizados de diferentes for‐ mas, bem como novos vão surgindo. Nesse processo de desenvolvimento mental encontra‐se também a inteligência, uma vez que ela só acontecerá a partir da ação própria do sujeito. Assim como tudo na vida, a inteligência só se desenvolve a partir de todas as ações que um bebê consegue fazer. Com o passar do tempo, com a repetição e imitação dos movimentos, vamos possibili‐ tando o surgimento de novos esquemas mentais. É com a aquisição da linguagem que temos a inteligência de uma forma mais complexa e integrada com o meio. 39 Tendo em vista a importância da linguagem para a sofisticação dos processos mentais, vamos estudar a aquisição da linguagem e o pen‐ samento. 3.3 A aquisição da linguagem e pensamento Há, na teoria de Piaget, uma atenção muito grande para a linguagem egocêntrica. Como já vimos antes, a passagem para uma linguagem socializada passa antes pela linguagem egocêntrica. Vigotski, ao criti‐ car a teoria de Piaget, explica o seguinte: Segundo Piaget, o elo de ligação de todas as características específicas da lógica das crianças é o egocentrismo do pensamento infantil. A esse traço central relaciona todos os outros que descobriu, tais como o realismo intelectual, o sincretismo e a dificuldade de compreender as relações. Ele descreve o egocentrismo como ocupando uma posição genética, estrutural e funcionalmente intermediária entre o pensamento autístico e o pensamento dirigido.6 Piaget usa o termo egocentrismo porque não encontrou outro para de‐ signar “uma orientação do espírito que nos pareceu importante do início do desenvolvimento intelectual do indivíduo e que subsiste nos adultos em todas as circunstâncias em que eles são dominados por suas atitudes espontâneas, ingênuas e, por conseguinte, infantis de pensamento”7. Para ele, os egocentrismos social e verbal estão ligados ao egocentrismo intelectual que é definido assim: o que é, então, egocentrismo intelectual da criança? É, de qualquer modo, o conjunto de atitudes pré‐críticas, em por conseguinte, pré‐objetivas, do conhecimento, do conhecimento da natureza, conhecimento dos outros ou conhecimento de si mesmo – pouco importa. O egocentrismo não é, pois, em sua origem, nem um fenômeno de consciência (a consciência do egocentrismo destrói o egocentrismo), nem um fenômeno de comportamento social (o comportamento manifesta indiretamente o egocentrismo, mas não o constitui), mas uma espécie de ilusão sistemática, inconsciente e de perspectiva.8 É muito importante notarmos que ninguém é egocêntrico consciente‐ mente, pois se soubesse disso, o indivíduo tentaria encontrar alguma forma de amenizá‐lo. A criança é colocada no centro do universo e terá somente sua visão própria para adquirir os processos de desenvolvi‐ mento. Assim como existe o egocentrismo intelectual, existe também o verbal. Ele ocorre quando a criança fala para si mesma, sem tentar agir e interagir com o seu interlocutor e também quando não conseguimos distinguir o ponto de vista da própria criança do ponto de vista do outro. 40 Temos também o egocentrismo social, que segundo Piaget acontece da seguinte forma: O egocentrismo social da criança não é inicialmente, da mesma forma que não o é seu egocentrismo no conhecimento do mundo físico, uma qualidade que se possa observar diretamente, por introspecção na consciência do ego ou pela observação do comportamento exterior. O egocentrismo social é uma atitude epistêmica, do mesmo modo que o egocentrismo puramente intelectual: é uma forma de compreender os outros, como o egocentrismo em geral é uma atitude diante dos objetos. Sem dúvida, uma observação atenta da linguagem da criança denota a sua existência, como o fará uma observação atenta das suas reações espontâneas diante dos fenômenos físicos. Mas como atitude epistêmica, o egocentrismo jamais se constata diretamente. Com efeito, do mesmo modo que no plano físico a criança volta‐se inteiramente para as coisas e não para o seu próprio eu como assunto de conhecimento, também no plano social a criança volta‐se inteiramente para os outros, colocando‐se, portanto, no extremo oposto daquilo que na linguagem corrente se chama de egocentrismo, isto é, preocupação constante consigo mesmo. Acontece apenas que, como no plano físico ela não percebe as coisassem um colorido proveniente de certas qualidades do seu próprio eu, também no plano social não percebe os outros sem uma simbiose, inconsciente para ela, entre a sua pessoa e as dos que as rodeiam.9 Embora a palavra egocêntrico leve à compreensão de isolamento, na verdade, o egocentrismo infantil não deixa de ser social, não se opõe ao social. Ela simplesmente, através de uma linguagem ainda pouco do‐ minada em todos os sentidos, tenta entender o outro, a si mesma e o mundo, através do seu próprio eu. O egocentrismo é importante para a socialização, pois o primeiro é uma atitude espontânea em relação a um objeto no ambiente. O aparecimento da linguagem se dá na superação do estágio sensório‐ motor, porque é nesse período que ocorre o desenvolvimento da fun‐ ção simbólica, que consiste na formação do signo linguístico (um signi‐ ficante associado, arbitrariamente, a um significado). Neste sentido, ele postula que, além da linguagem não ser inata, ela ainda tem que espe‐ rar a acomodação e superação de estágios para acontecer. Tendo como base tudo que vimos até agora, cabe analisarmos qual deve ser o papel da escola na perspectiva de Piaget. 3.4 O papel da escola na visão de Piaget Dentro de cada teoria acerca do desenvolvimento mental e aquisição da linguagem, existe uma postura pressuposta por parte das institui‐ ções de ensino. Para Piaget10, a escola deve levar em conta os seguintes aspectos da aprendizagem: 41 é um processo construído internamente; depende do nível de desenvolvimento do sujeito; é um processo de reorganização cognitiva. Tendo isso como fundamentos, o setor pedagógico deve orientar pro‐ gramas e professores para aulas mais autônomas, que levem ao conta‐ to com o meio e que sejam centradas no aluno. Atividades desafiado‐ ras, que levem ao equilíbrio e ao desequilíbrio cognitivo, são de suma importância, pois colaboram com o desenvolvimento da inteligência. Toda essa postura se deve ao fato de que, no interacionismo piagetia‐ no, o sujeito é ativo, buscando interagir com o mundo que o cerca. Cabe mencionarmos que Piaget, em nenhuma obra, sugere um método de ensino ou dá técnicas para o professor. O que ele busca, de fato, é apontar uma estrutura ideal para a construção e desenvolvimento do conhecimento. Afirma ainda que as instituições de ensino deveriam de considerar a importância do brincar e do brinquedo porque “[...] brin‐ car oferece à criança a oportunidade de assimilar o mundo exterior às suas próprias necessidades, sem precisar muito acomodar realidades externas”11. A brincadeira possibilita uma acomodação do mundo exterior completamente livre, uma vez que ela não tem nenhum com‐ promisso com a realidade que a cerca. Assim, Piaget busca um ensino que seja mais integrado. Que não con‐ sidere o aluno um ser zerado de conhecimento e vivência. O que ele propõe é um ensino a partir do que o aluno já sabe, acrescentando novos conceitos aos conceitos já existentes e propondo uma nova for‐ ma de ver os conceitos já existentes. Assim, acredita ele, teremos cida‐ dãos pensantes e críticos. Atividades Marque, com um X, a única alternativa correta. 1) A ideia principal no interacionismo piagetiano é: a) a criança não interage; b) a criança interage com o meio; c) a criança interage com o seu ego; d) a criança leva anos para interagir com o meio. 2) Colaboram para o desenvolvimento do pensamento: a) somente fatores sociais; 42 b) somente fatores culturais; c) fatores sociais e culturais; d) fatores sociais e intelectuais. 3) O processo de acomodação é aquele que: a) os conhecimentos se acomodam em níveis intelectuais para que possamos experimentar o mundo através deles; b) os conhecimentos se acomodam em níveis sociais para que possamos experimentar o mundo através deles; c) os conhecimentos se acomodam em níveis individuais para que possamos experimentar o mundo através deles; d) os conhecimentos se acomodam em níveis mentais para que possamos experimentar o mundo através deles. 4) Esquema é: a) padrão comportamental que deixa que a informação integran‐ te do ambiente se ajuste, estando, porém, em constante trans‐ formação; b) padrão comportamental que deixa que a informação integran‐ te do ambiente não se ajuste, estando, porém, em constante transformação; c) padrão comportamental que deixa que a informação não in‐ tegrante do ambiente se ajuste, estando, porém, em constante transformação; d) padrão comportamental que não deixa que a informação in‐ tegrante do ambiente se ajuste, estando, porém, em constante transformação; 5) Na visão de Piaget (1978, 1999), a escola deve: a) centrar o ensino no conteúdo, pois ele é o sujeito ativo no pro‐ cesso de ensino e aprendizagem. b) centrar o ensino no professor, pois ele é o sujeito ativo no pro‐ cesso de ensino e aprendizagem. c) centrar o ensino no método, pois ele é o sujeito ativo no pro‐ cesso de ensino e aprendizagem. d) centrar o ensino no aluno, pois ele é o sujeito ativo no proces‐ so de ensino e aprendizagem. 4 VIGOTSKI E A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO E LINGUAGEM Vanessa Loureiro Correa Neste capítulo vamos estudar Lev Semionovitch Vigotski, autor de suma importância para a área da aquisição da linguagem devido à sua abordagem: interacionismo social. Serão abordados os conceitos de interacionismo social, a relação do pensamento e linguagem e suas raízes genéticas, como se dá, na visão do autor a construção dos con‐ ceitos. Junto com o interacionismo, faremos uma breve biografia do psicólogo. 4.1 Lev Semionovitch Vigotski e o interacionismo social Lev Semionovitch Vigotski nasceu em 1896 e morreu em 1934, aos trinta e oito anos, de tuberculose. Começou suas leituras e investiga‐ ções nas áreas de Linguística, Ciências Sociais, Psicologia, Filosofia e Artes. Formou‐se em Direito e Literatura na Universidade de Moscou. Escreveu, em 1916, A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. Somente em 1924 iniciou seu trabalho com a Psicologia, juntamente aos colegas Luria, Leontiev e Sakharov. Era filho de uma próspera família judia e acreditava na revolução russa, e isso refletiu em seus trabalhos. Foi casado e teve duas filhas. Vigotski1 não estava contente com as explicações dadas por Piaget e outros teóricos para aquisição da linguagem. Isso porque, no que se refere à relação pensamento e fala, existem somente duas linhas: aque‐ la que identifica ou funde pensamento e fala, e outra que separa e segrega esses dois. Essas formas equivocadas de ver essa relação se devem aos métodos de análise. Para Vigotski, todos os métodos que analisam o pensamento verbal e seus componentes separadamente erram, pois as propriedades originais somem, restando ao pesquisador somente a especulação de como se dá a interação. Diz ainda o teórico: Esse tipo de análise desloca o problema para um nível mais geral; não proporciona uma base mais adequada para o estudo das relações concretas e multiformes entre o 44 pensamento e a linguagem, sugeridas no decorrer do desenvolvimento e do funcionamento do pensamento verbal em seus diversos aspectos. Em vez de nos proporcionar condições para examinar e explicar exemplos e frases específicas, e determinar regularidades concretas no decorrer dos acontecimentos, esse método leva a generalidades relativas a toda fala e todo pensamento. Além do mais, faz‐nos incorrer em sérios erros, na medida em que ignoramos a natureza unitária do processo em estudo. A união viva do som e significado a que chamamos palavra é fragmentada em duas partes que, supostamente, mantêm‐se unidas apenas pelas conexões associativas mecânicas.2 No que diz
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