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Autoridade espiritual e poder temporal - René Guénon

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l\ené ~uénon 
~ uto rítrnb e 
(S%pírítual e 
lDober ZC:emporal 
Paris, 1929 
ftitota ~r1et 
6io .tl11111o 2014 ' 
. : 
Instituto René Guénon 
de Estudos Tradicionais 
IRGET, Editora e Distribuidora 
São Paulo - 2011 
Fone (li) 8384 4440 
IRGET@RENEGUENON.NET 
WWW.RENEGUENON.NET 
Resen-ados os direitos de publicação 
para a língua portuguesa. 
Copyright() Abdel Wahid Yebya 
René Guénon 
AUTORIDADE 
ESPIRITUAL 
E 
PODER 
TEMPORAL 
PRÓLOGO 
Não temos o hábito, em nossos trabalhos. de nos 
referir à atualidade imediata, já que o que constantemente 
temos em vista são os princípios, que são, poder-se-ia 
dizer, de uma atualidade pennanente. posto que se situem 
fora do tempo: e. inclusive. embora saiamos do domínio 
da metafísica para considerar cenas aplicações. fazemo-lo 
sempre de tal maneira que estas aplicações conservem um 
alcance completamente geral. É o que faremos aqui 
também; e, entretanto, devemos convir que as 
considerações que vamos expor neste estudo oferecem 
ainda certo interesse mais particular no momento 
presente, em razão das discussões que se produziram 
nestes últimos tempos sobre a questão das relações entre 
a religião e a política, questão que não é mais que uma 
forma especial. em certas condições detenninadas, das 
relações entre o espiritual e o temporal. Isso é certo, mas 
seria um engano acreditar que tais considerações nos 
foram mais ou menos inspiradas pelos incidentes aos 
quais aludimos, ou que pretendemos relacioná-las 
diretamente com eles, pois isto seria conceder uma 
importância muito exagerada a questões que têm apenas 
um caráter puramente episódico e que não poderiam 
influir sobre concepções cuja natureza e origem são na 
realidade de uma ordem muito diferente. Como nos 
esforçamos sempre em dissipar, em primeiro lugar, os 
mal-entendidos que nos é possível prever, devemos 
descartar acima de tudo, tão clara e explicitamente quanto 
seja possível, essa falsa interpretação que alguns 
poderiam dar sobre nosso pensamento. seja por paixão 
política ou religiosa, ou em virtude de algumas idéias 
preconcebidas, seja inclusive por simples incompreensão 
do ponto de vista no qual nos situamos. Tudo o que aqui 
diremos o teríamos dito também. e exatamente da mesma 
maneira. se os fatos que hoje em dia atraem a atenção 
sobre o assunto do espiritual e do temporal não se 
tivessem produzido; as circunstâncias presentes somente 
nos demonstraram, mais claramente que nunca, que era 
necessário e oportuno dizê-lo; constituíram, caso se 
queira, a ocasião que nos conduziu a expor agora certas 
verdades com preferência a muitas outras que igualmente 
nos temos proposto fommlar. mas que não parecem 
suscetíveis de uma aplicação Ião imediata; e a isto se 
limita lodo seu papel no que a nós concerne. 
O que nos chamou especialmente a atenção nas 
discussões de que se trata é que. nem de um lado nem de 
outro, existiu a princípio a preocupação por situar as 
questões em seu verdadeiro terreno, para distinguir de 
maneira precisa entre o essencial e o acidental, entre os 
princípios necessários e as circunstâncias contingentes; e, 
para falar a verdade. isto não nos surpreendeu. pois não 
vimos nisso senão um novo exemplo, entre muitos outros, 
da confusão que hoje em dia reina em lodos os domínios, 
e que consideramos como eminentemente característica 
do mundo moderno, pelas razões que já explicamos em 
precedentes obras (1). Não obstante, não podemos 
impedir de deplorar que esta confusão afete até os 
representantes de uma autoridade espiritual autêntica, que 
parecem ter perdido de vista o que deveria ser sua 
verdadeira força. quer dizer. a transcendência da doutrina 
em nome da qual estão qualificados para falar. Faria falta 
distinguir acima de tudo entre questão de princípio e 
questão de oportunidade: sobre a primeira não cabe 
discutir, pois se tratam de coisas que pertencem a um 
domínio que não pode estar submetido aos procedimentos 
essencialmente "profanos" de discussão; e, enquanto à 
segunda, que, por outro lado, não é senão de ordem 
política e, poder-se-ia dizer, diplomática, é em lodo caso 
muito secundária e. inclusive, rigorosamente, não deve 
contar com respeito à questão de princípio; 
consequentemente. teria sido preferível não oferecer ao 
adversário a possibilidade de expô-la. embora não seja 
senão sobre simples aparências; acrescentaremos que, 
quanto a nós, não nos interessa absolutamente. 
Pretendemos, pois, de nossa parte, nos situar 
exclusivamente no domínio dos princípios; é o que nos 
pennite permanecer inteiramente além de toda discussão, 
de toda polêmica. de toda querela de escola ou de partido. 
estes assuntos com os quais não queremos nos misturar. 
nem de peno nem de longe, de nenhum modo e em 
nenhum grau. Sendo absolutamente independentes com 
relação a tudo o que não é a verdade pura e 
desinteressada, e decididos a permanecer nesta, 
simplesmente nos propomos a dizer as coisas tal como 
são, sem o menor cuidado de agradar ou desagradar a 
quem quer que seja; não temos nada a esperar nem de uns 
nem de outros, não concamos inclusive com que aqueles 
que possam tirar vantagens das idéias que formulemos o 
agradeçam de algum modo e. além do mais, isto nos 
importa muito pouco. Advertiremos uma vez mais que 
não estamos dispostos a nos deixar encerrar em nenhum 
dos limites ordinários, e que seria perfeitamente vão 
tentar nos aplicar uma etiqueta qualquer, pois, entre 
aquelas que existem no mundo ocidental, não há 
nenhuma que na realidade nos convenha; algumas 
insinuações, chegadas simultaneamente dos setores mais 
opostos, demonstraram-nos de novo recentemente que era 
bom renovar esta declaração. a fim de que as pessoas de 
boa fé saibam a que se ater e não sejam induzidas a nos 
atribuir intenções incompatíveis com nossa verdadeira 
atitude e com o ponto de vista puramente doutrinal que é 
o nosso. 
Em razão da própria natureza deste ponto de vista. 
separado de toda'i as contingências, podemos considerar 
os fatos atuais de uma maneira tão completamente 
imparcial como se tratassem de acontecimentos que 
pertencessem a um passado longínquo, como aqueles dos 
quais trataremos, sobretudo aqui, quando citarmos alguns 
exemplos históricos para esclarecer nossa exposição. 
Deve ficar claro que damm a esta. tal e qual dissemos 
desde o começo, um alcance completamente geral. que 
supera todas as formas particulares das quais se podem 
revestir, segundo os tempo~ e lugares, o poder temporal e, 
inclusive. a autoridade espiritual; e é necessário 
estabelecer especialmente, sem demora, que esta última, 
para nós, não tem necessariamente uma fonna religiosa, 
ao contrário do que usualmente se acredita no Ocidente. 
Deixamos a cada um o cuidado de fazer com estas 
considerações as aplicações que julgue conveniente em 
relação aos casos particulares que, a propósito. nos 
abstemos de considerar diretamente; basta que esta 
aplicação, para ser legítima e válida, esteja feita com um 
espírito verdadeiramente conforme aos princípios dos 
quais tudo depende, espírito que é ao qual chamamos 
espírito tradicional no verdadeiro sentido da palavra. e do 
qual, infelizmente, todas as tendências especificamente 
modernas são sua antítese ou sua negação. 
Precisamente é um desses aspectos da separação 
moderna o que vamos considerar e. a este respeito, o 
presente estudo completará o que já ti\'emos ocasião de 
explicar nas obras às quais aludimos anteriormente. Ver-
se-á, além do mais. que, sobre esta questão das relações 
entre o espiritual e o temporal, os enganos que se 
desenvolveram no curso dos últimos séculos estão longe 
de ser novos; mas ao menos suas manifestações 
anteriores jamais tiveram mais que efeitos bastante 
limitados, enquanto que hoje em dia estes mesmos 
enganos se tomaram, de certa forma, inerentes à 
mentalidade comum, fonnam parte integrante de um 
estado de espírito que se generaliza cada vez mais. Isto é 
o mais particularmente grave e inquietante e, a menos que 
em breve não se opereuma retificação, é previsível que o 
mundo moderno seja arrastado a alguma catástrofe, para a 
qual parece marchar com uma rapidez sempre crescente. 
9 
Tendo exposto em outro lugar as considerações que 
podem justificar tal afirmação (2), não insistiremos sobre 
elas, e somente acrescentaremos o seguinte: se ainda há, 
nas presentes circunstâncias. alguma esperança de 
salvação para o mundo ocidental, parece que esta 
esperança deve residir, ao menos em parte, na 
manutenção da única autoridade espiritual que subsiste; 
mas para isso é necessário que esta autoridade possua 
uma plena consciência de si mesma, a fim de que seja 
capaz de oferecer uma base efetiva aos esforços que. de 
outro modo, correm o risco de permanecer dispersos e 
sem coordenação. Este é, ao menos, um dos meios mais 
imediatos que podem ser tomados em consideração para 
uma restauração do espírito tradicional; sem dúvida há 
outros, se este faltar; mas, como esta res1auração, que é o 
único remédio à desordem atual, é o propósito essencial 
que temos em vista desde que. saindo da pura metafísica. 
devamos considerar as contingências, é fácil compreender 
que não desprezemos nenhuma das possibilidades que se 
oferecem para alcançá-la, ainda que estas possibilidades 
pareçam ter no momento muito poucas chances de 
realização. Nisso, e somente nisso, consistem nossas 
verdadeiras intenções; todas as que nos poderiam atribuir. 
além delas, são perfeitamente inexistentes; e, se alguns 
chegassem a pre1ender que as reflexões que vamos dar a 
seguir nos foram inspiradas por influências ex.teriores, 
sejam quais forem, opomos a partir de agora nosso mais 
formal desmentido. 
lO 
Dito i~to, já que por experiência sabemos que tais 
precauções não são inúteis, pensamos poder nos 
dispensar a seguir de toda alusão direta à atualidade. a 
fim de fazer ainda mais sensível e indubitável o caráter 
estritamente doutrinal que pretendemos conservar em 
todos nossos trabalhos. Sem dúvida, as paixões políticas 
ou religiosas não contam aqui, mas isto é algo do qual 
devemos nos felicitar, pois absolutamente se tratam para 
nós de alimentar novas discussões que nos parecem muito 
vãs, inclusive bastante miseráveis. senão, pelo contrário, 
de recordar os princípios cujo esquecimento é, no fundo, 
a única verdadeira causa de rodas estas discussões. É, 
repetimo-lo, nossa própria independência que nos permite 
realizar esta pontualização com toda imparcialidade, sem 
concessões nem compromissos de nenhum tipo; e. ao 
mesmo tempo. ela nos proíbe qualquer outro papel 
distinto do qual acabamos de definir, pois não pode ser 
mantida senão à condição de pennanecer sempre no 
domínio puramente intelectual, domínio que. por outra 
parte, é o dos princípios essenciais e imutáveis e. em 
conseqüência. aquele do qual todo o resto deriva mais ou 
menos diretamente. e pelo qual deve forçosamente 
começar a retificação da qual falamos: fora da vinculação 
aos princípios, não se podem obter mais que resultados 
exteriores. instáveis e ilusórios; mas isto, para falar a 
verdade, não é mais que uma das formas da própria 
afinnação da supremacia do espiritual sobre o temporal, 
que precisamente vai ser o objeto deste estudo. 
li 
Notas 
(l) "Oriente e Ocidente'· e ··A Crise do Mundo Moderna·· 
(2) "A Crise do Mundo Moderno" 
Capítulo 1: AUTORIDADE E 
HIERARQUIA 
Em épocas muito diferentes da história. e 
inclusive nos remontando muito além do que se conveio 
chamar "tempos históricos", na medida em que nos é 
possível fazê-lo com ajuda dos testemunhos coincidentes 
que nos subministram as tradições orais ou escritas de 
todos os povos (1), encontramos os indícios de uma 
freqüente oposição entre os representantes dos dois 
poderes, um espiritual e o outro temporal, sejam quais 
forem por outra parte as formas especiais que se tenham 
revestido um e outro para se adaptarem à diversidade das 
circunstâncias. segundo as épocas e os países. Isto não 
significa, entretanto, que esta opo~ição, e as lutas que 
engendra, sejam "velhas como o mundo", segundo uma 
ex.pressão da qual se abusa muito; seria esta um exagero 
manifesto, pois, para que se cheguem a produzir, é 
preciso, segundo o ensino de todas as tradições, que a 
humanidade já tenha alcançado uma fase bastante 
afastada da pura espiritualidade primitiva. Por outra parte, 
na origem. ambos os poderes não deveriam existir em 
estado de funções separadas, exercida~ respectivamente 
por individualidades diferentes; pelo contrário, deviam 
estar contidas, então, no princípio comum de que 
procedem. e do qual representavam somente dois 
aspectos indivisíveis, indissoluvelmente unidos na 
unidade de uma síntese simultaneamente superior e 
anterior a sua distinção. É o que expressa especialmente a 
13 
doutrina hindu quando ensina que não havia no princípio 
mais que uma só casta; o nome de Hamsa dado a esta 
casta primitiva única indica um grau espiritual muito 
elevado, hoje em dia completamente excepcional, mas 
comum então a todos os homens e que, de certo modo, 
possuíam espontaneamente (2); e este grau está para além 
das quatro castas que se constituíram posteriormente, e 
entre as quais se repartem as diferentes funções sociais. 
O princípio da instituição das castas, tão 
completamente incompri!endido pelos ocidentais. não é 
outra coisa que a diferença de natureza existente entre os 
indivíduos humanos, e que estabelece entre eles uma 
hierarquia cujo desconhecimento só pode levar à 
desordem e à confusão. É precisamente este 
desconhecimento que está implícito na teoria 
"igualitária", tão cara ao mundo moderno, teoria que é 
contrária aos fatos melhor estabelecidos, e que inclusive é 
desmentida pela simples observação, posto que a 
igualdade não exista na realidade em parte alguma; mas 
não vamos nos estender sobre este ponto, que já tratamos 
em outro lugar (3). 
As palavras que servem para designar à casta, na 
Índia, significam "natureza individual"; por isto deve ser 
entendido o conjunto dos caracteres que se acrescentam à 
natureza humana "específica" para diferenciar os 
indivíduos entre si; e convém acrescentar, a seguir, que a 
herança entra apenas em parte na determinação dos 
caracteres, já que do contrário os indivíduos de uma 
14 
mesma família seriam ex.atamente semelhantes, de modo 
que, em princípio, a casta não é estritamente hereditária, 
ainda que de fato tenha chegado a sê-lo freqüentemente 
na prática. Além disso, posto que não poderiam ex.istir 
dois indivíduos idênticos ou iguais em todos os aspectos, 
há forçosamente diferença entre aqueles que pertencem a 
uma mesma casta; mas. tal como há mais caracteres 
comuns entre os seres de uma mesma espécie que entre 
seres de espécies diferentes, há também mais, no interior 
da espécie, entre os indivíduos de uma mesma casta do 
que entre os de castas diferentes; poder-se-ia dizer então 
que a distinção das castas constitui, na espécie humana, 
uma verdadeira classificação natural, à qual deve 
corresponder à repartição das funções sociais. 
Efetivamente. cada homem, em razão de sua natureza 
própria, é apto para cumprir algumas funções definidas 
com a exclusão de outras; e, numa sociedade 
regulannente estabelecida sobre bases tradicionais. estas 
aptidões devem ser determinadas segundo regras precisas, 
a fim de que, pela correspondência entre os diversos 
gêneros de funções com as grandes divisões da 
classificação das "naturezas individuais" -salvo ex.ceções 
devidas a enganos de aplicação sempre possíveis. embora 
reduzidas de certa forma ao mínimo- cada um se encontre 
no lugar que deva ocupar normalmente, e desta forma a 
ordem social traduza ex.atamente as relações hierárquicas 
que resultam da própria natureza dos seres. Tal é, 
resumida em poucas palavras, a razão fundamental da 
existência das castas; e é necessário conhecer ao menos 
estas noções essenciais para compreender as alusões que 
15 
forçosamente estaremos obrigados a fazer em seguida, 
seja a sua constituição tal como existe na Índia,seja às 
instituições análogas que se encontram em outros lugares, 
pois é evidente que os mesmos princípios, embora com 
modos de aplicação diferentes, presidiram a organização 
de todas as civilizações que possuem um caráter 
verdadeiramente tradicional. 
A distinção das castas, com a diferenciação das 
funções sociais à qual corresponde, resulta, em suma, de 
uma ruptura da unidade primitiva; e é então quando 
aparecem também, como separados um do outro, o poder 
espiritual e o poder temporal. que constituem 
precisamente, em seu exercício distinto. as funções 
respectivas das duas primeiras castas, a dos Brâhmanes e 
a dos Kshatriyas (Kshatriyas). Por outra parte, entre 
ambos os poderes, assim como de uma forma geral entre 
todas as funções sociais atribuídas após a grupos 
diferentes de indivíduos, devia haver originariamente 
uma perfeita harmonia, pela qual a primeira unidade era 
mantida tanto quanto o permitiam as condições de 
existência da humanidade em sua nova fase, pois a 
harmonia não é, em suma. mais que um reflexo ou uma 
imagem da verdadeira unidade. Seria apenas em outro 
estágio, quando a distinção deveria transformar-se em 
oposição e em rivalidade, que a harmonia haveria de ser 
destruída e deixaria lugar à luta dos dois poderes, 
chegando ao ponto em que as funções inferiores 
pretendessem, por sua vez, a supremacia. para terminar 
finalmente na confusão mais completa, na negação e na 
16 
inversão de toda hierarquia. A concepção geral que 
acabamos de esboçar assim, de um modo geral, é 
conforme à doutrina tradicional das quatro idades 
sucessivas nas quais se divide a história da humanidade 
terrestre, doutrina que não só se encontra na Índia, mas 
também era igualmente conhecida pelos Gregos e pelos 
Latinos. Estas quatro idades são as diferentes fases que 
atravessa a humanidade afastando-se do princípio. quer 
dizer, da unidade e da espiritualidade primitiva; são como 
as etapas de uma espécie de materialização progressiva, 
necessariamente inerente ao desenvolvimento de todo 
ciclo de manifestação, tal e como em outro lugar já o 
explicamos (4). 
É só na última destas quatro idades, à qual a 
tradição hindu chama de Kali-Yuga, ou "idade sombria", 
e que corresponde à época em que nos encontramos, 
quando a subversão da ordem normal pôde se produzir e 
quando, em primeiro lugar. o poder temporal pôde se 
elevar sobre o espiritual; mas as primeiras manifestações 
da revolta dos Kshatriyas contra a autoridade dos 
Brâhmanes podem, não obstante, se remontar a muito 
antes do início desta idade (5), início que é ele mesmo 
muito anterior a tudo o que conhece a história ordinária 
ou "profana". Esta oposição dos dois poderes, esta 
rivalidade de seus representantes respectivos, estava 
representada entre os Celtas com a figura da luta entre o 
javali e o urso, segundo um simbolismo de origem 
hiperbórea que se vincula a uma das tradições mais 
antiga'i da humanidade. caso não o seja, inclusive, à 
17 
primeira de toda-;, à verdadeira tradição primitiva; e este 
simbolismo poderia dar lugar a amplos 
desenvolvimentos, que não podem encontrar aqui seu 
lugar, mas que possivelmente tenhamos ocasião de expor 
algum dia (6). 
No que vem a seguir. não temos intenção de nos 
remontar até as origens, e todos nossos exemplos serão 
tirados de épocas muito mais próximas a nós, inclusive 
circunscrita-; unicamente no que podemos chamar de 
última parte do Kali-Yuga, a qual é acessível à história 
ordinária, e que exatamente começa no século VI antes da 
era cristã. Não menos necessário era oferecer estas 
noções sumárias sobre o conjunto da história tradicional, 
sem as quais o resto não seria compreendido senão de 
uma forma muito imperfeita. pois não se pode 
compreender verdadeiramente uma época qualquer senão 
a situando no lugar que ocupa dentro do todo, do qual é 
um dos elementos; assim, como tivemos que demonstrar 
recentemente, as características particulares da época 
moderna não se explicam senão quando se considere a 
esta constituindo a fase final do Kali-Yuga. Bem sabemos 
que este ponto de vista sintético é completamente 
contrário ao espírito de análise que preside o 
desenvolvimento da ciência "profana", a única que 
conhecem a maioria de nossos contemporâneos; mas 
precisamente convém afirmá-lo tanto mais claramente 
quanto mais seja desconhecido e, por outra parte. é o 
único que podem adotar todos aqueles que, como nós, 
pretenderem se manter escritamente na linha da 
18 
verdadeira ortodoxia tradicional, sem nenhuma concessão 
a esse espírito moderno que. jamais insistiremos muito, 
não constitui mais do que uma coisa só com o próprio 
espírito antitradicional. 
Sem dúvida, a tendência que prevalece atualmente 
é tratar de "lendários" e inclusive de "míticos" os fatos da 
história mais longínqua. tais como aqueles aos quais 
acabamos de aludir, ou inclusive alguns outros que não 
obstante serem muito menos antigos, como os que 
poderemos tratar a seguir, porque escapam aos meios de 
investigação de que dispõem os historiadores "profanos". 
Quem assim pensa, em virtude de costumes adquiridos 
por uma educação que, hoje em dia, não é com muita 
freqüência mais que uma verdadeira deformação mental, 
poderá ao menos. se apesar de tudo conservou certas 
possibilidades de compreensão, tomar estes fatos 
simplesmente por seu valor simbólico~ sabemos, quanto a 
nós, que este valor nada tira a sua realidade própria 
enquanto fatos hi:itóricos, ma~ é em suma o que mais 
importa, posto que lhes confere um significado superior, 
de uma ordem muito mais profunda que o que em si 
mesmos podem ter; e este é um ponto que requer certas 
explicações. 
Tudo o que é. sob qualquer modo que seja, 
participa necessariamente dos princípios universais, e não 
é nada senão por participação em tais princípios, que são 
as essências eternas e imutáveis contidas na permanente 
atualidade do Intelecto divino; em conseqüência, pode-se 
19 
dizer que toda~ as coisas, por contingentes que sejam em 
si mesmas. traduzem ou representam os princípios a sua 
maneira e segundo sua ordem de existência, pois, de 
outro modo. não seriam mais que puro nada. Assim. de 
uma ordem a outra, tudo se encadeia e se corresponde 
para concorrer à harmonia universal e total. pois a 
harmonia, como já indicamos. não é mais que o reflexo 
da unidade principiai na multiplicidade do mundo 
manifestado; e esta correspondência é o verdadeiro 
fundamento do simbolismo. Tal é a razão pela qual as leis 
de um domínio inferior sempre podem ser tomadas para 
simbolizar as realidades de uma ordem superior, no qual 
têm sua razão profunda, que é simultaneamente seu 
princípio e seu fim; e assinalaremos de passagem, nesta 
ocasião, o engano das modernas interpretações 
"naturalistas" das antigas doutrinas tradicionais, 
interpreiações que invertem pura e simplesmente a 
hierarquia das relações entre a~ diferentes ordens de 
realidades. Por exemplo, para não considerar mais que 
uma das teorias mais estendidas em nossos dias. os 
símbolos ou os mitos jamais tiveram o papel de 
representar o movimento dos astros, embora o que é certo 
é que freqüentemente se encontram figuras inspiradas 
neste e destinadas a expressar Analogicamente outra 
coisa, posto que as leis deste movimento traduzem 
fisicamente os princípios metafísicos dos quais 
dependem; e nisto se fundamenta a verdadeira astrologia 
dos antigos. O inferior pode simbolizar o superior. mas o 
contrário é impossível; por outra parte, se o símbolo 
estivesse mais afastado da ordem sensível que aquilo que 
20 
representa, em lugar de estar mais próximo, como poderia 
cumprir a função à qual está destinado, que é a de fazer a 
verdade mais acessível ao homem lhe oferecendo um 
"suporte" para sua concepção? Além do mais, é evidente 
que o emprego de um simbolismo astronômico, para 
retomar o mesmo exemplo, não impede absolutamente 
que os fenômenos astronômicos existam como tais, e que 
tenham, em sua própria ordem, toda a realidade da qual 
são suscetíveis;ex.atamente o mesmo ocorre com os fatos 
históricos, pois estes, como todos os outros, ex.pressam 
segundo seu modo as verdades superiores e se adequam a 
esta lei de correspondência que acabamos de indicar. 
Estes fatos, também, ex.istem realmente como tais, mas, 
ao mesmo tempo, são igualmente símbolos: e, desde 
nosso ponto de vista, são muito mais dignos de interesse 
enquanto símbolos do que enquanto fatos; não pode ser 
de outra forma a partir do momento em que pretendemos 
nos vincular aos princípios. e é isto precisamente, como 
em outro lugar já explicamos (9), o que distingue 
essencialmente a "ciência sagrada" da "ciência profana". 
Se insistimos ainda um pouco sobre isso é para que não 
se produza nenhuma confusão a este respeito: é 
necessário saber pôr cada coisa no lugar que 
normalmente lhe corresponde; a história, à condição de 
ser considerada como convém, tem, como todo o reslO, 
seu lugar no conhecimento integral, ma" carece de valor, 
sob este aspecto, se não permitir encontrar, nas próprias 
contingências que são seu objeto imediato, um ponto de 
apoio para elevar-se acima de tais contingências. Quanto 
ao ponto de vista da história "profana", que 
21 
exclusivamente se apega aos fatos e não os transcende, 
não tem interesse para nós. tal como tudo o que depende 
do domínio da simples erudição; não é então 
absolutamente como historiador, caso se entenda em tal 
sentido, como consideramos os fatos, e é isto o que nos 
permite não levar em conta certos preconceitos "críticos" 
particulannente caros a nossa época. Parece, além do 
mais, que o emprego exclusivo de certos métodos foi 
imposto aos historiadores modernos para lhes impedir de 
ver claramente em questões às quais não terei que tocar, 
pela simples razão de que teriam podido conduzi·los a 
conclusões contrárias às tendências "materialistas" que o 
ensino "oficial" tem por missão fazer prevalecer; é 
evidente que. por nossa parte, não nos sentimos de modo 
algum obrigados a manter a mesma reserva. Dito isto. 
pensamos já poder abordar diretamente o tema de nosso 
estudo, sem nos demorar mais nestas observações 
preliminares, que em suma não têm como fim senão o 
definir o mais claramente possível o espírito no qual o 
escrevemos, e no qual igualmente o convém ler se 
verdadeiramente quer compreender seu sentido. 
Notas 
(1) Estas tradições sempre foram primeiramente orais; às vezes, 
como entre os celtas. nunca seriam escritas; sua concordância prova 
ao mesmo tempo a comunidade de origem e, portanto, a vinculação a 
uma tradição primitiva. e a rigorosa fidelidade da transmissão oral. 
cuja manutenção é, neste caso. uma das principais funções da 
autoridade espiritual. 
(2) A mesma indicação se encontra também claramente formulada na 
tradição extremo-oriental. como o mostra concretamente esta 
passagem do Lao-Tse: «Os Antigos, mestres possuíam a Lógica. a 
Clarividência e a Intuição; esta Força da Alma permanecia 
inconsciente: esta Inconsciência de sua Força Interior dava a sua 
aparência a majestade ... Quem poderia, em nossos dias, por sua 
claridade majestosa. clarificar as trevas interiores? Quem poderia. em 
nossos dias, por sua vida majestosa, revivificar a mone interior?. Eles 
levavam a Via (Tao) em sua alma e foram Indivíduos Autônomos: 
como tais. viam as perfeições de suas debilidades» (Tao-te-king. c. 
XV: também Chuang-tse. c. VI. que é o comentário desta passagem). 
A «Inconsciência» da qual se fala aqui se refere à espontaneidade 
desse estado, que não era então o resultado de nenhum esforço; e a 
expressão «Indivíduos Autônomos» deve entender-se no sentido do 
sãnscrito. swêc/1chllâchâri. quer dizer. «que segue sua própria 
rnntade», ou segundo outra expressão equivalente que se encontra no 
esoterismo islãmico. «que é ele mesmo sua própria lei». 
(3) "A Crise do Mundo Moderno ... e. VI: por outra pane, sobre o 
princípio da instituição das casta~. ver. Introdução geral ao eswdo 
da.f do14tri11as hindus. 3ª parte, c. VI. 
(4) "A Crise do Mundo Moderno ... c. 1. 
(5) Encontra-se uma indicação a este respeito na história de Parash11-
Râma. que. diz-se. aniquilou aos Kshatriyas rebeldes. numa época 
em que os antepassados dos hindus habitavam ainda uma região 
setentrional. 
23 
(6) Por oulra pane. é necessário dizer que os dois símbolos do javali 
e do urso não aparecem sempre forçosamente em luta ou em 
oposição. mas sim podem também representar às vezes os dois 
poderes espiritual e temporal, ou as duas castas dos druidas e dos 
cavaleiros. em suas relações normais e harmônicas, como se vê 
concretamente na lenda de Merlin e de Artur, que. efetivamen1e, são 
também o javali e o urso. assim como o explicaremos se as 
circunstâncias nos permitirem desenvolver este simbolismo em outro 
estudo. 
(7) "A Crise do Mundo Moderno". e. IV. 
Capítulo li: FUNÇÕES DO 
SACERDÓCIO E DA REALEZA 
A oposição entre os poderes espiritual e temporal. 
sob uma forma ou outra, encontra-se em quase todos os 
povos. o que não tem nada de surpreendenle, posto que 
corresponda a uma lei geral da história humana, 
relacionada. além do mais, com todo o conjunto dessas 
"leis cíclicas" às quais, em quase todas nossas obras. 
fizemos freqüentes alusões. Para os períodos mais 
antigos, esta oposição se acha habitualmente, nos dados 
tradicionais, expressa sob uma forma simbólica, tal como 
indicamos anteriormente no que concerne aos Celtas; mas 
não é este aspecto da questão que nos propomos 
especialmente desenvolver aqui. Ater-nos-emas, 
sobretudo, no momento. em dois exemplos históricos, 
tirados um do Oriente e outro do Ocidente: na Índia, o 
antagonismo de que se trata se encontra na forma da 
rivalidade entre Brâhmanes e K.rhatriyas, da qual 
mencionaremos alguns episódios; na Europa da Idade 
Média aparece. sobretudo, como o aquilo que se chamou 
a questão entre o Sacerdócio e o Império. embora 
também tivesse então outros aspectos mais particulares, 
ainda que não menos característicos, como se verá 
posteriormente (1). Por outra parte. não seria muito difícil 
comprovar que a mesma luta prossegue ainda em nossos 
dias, embora, devido à desordem moderna e à "mescla 
das castas", complique-se com elementos heterogêneos 
25 
que podem dissimulá-la às vezes ante o olhar de um 
observador superficial. 
Não é que se conteste, no geral ao menos, e 
excetuando alguns casos extremos, que ambos os 
poderes, aos quais podemos chamar o poder sacerdotal e 
o poder real, pois são estas suas verdadeiras 
denominações tradicionais, não lenham um e outro sua 
razão de ser e seu domínio próprio. Em suma, o debate 
não alcança habitualmente mais que sobre a questão das 
relações hierárquicas que devem existir entre eles; trata-
se de uma luta pela supremacia, e esta luta se produz 
invariavelmente da mesma maneira: vemos os guerreiros, 
depositários do poder temporal, depois de estarem a 
princípio submetidos à autoridade espiritual, rebelarem-se 
contra ela e se declararem independentes de toda 
potestade superior, ou inclusive tentar submeter esta 
autoridade da qual não obstante, na origem. houvessem 
reconhecido seu poder. e fazer dela um instrumento a 
serviço de sua própria dominação. Tão somente isto basta 
para demonstrar que deve haver, em tal rebeldia, uma 
inversão das relações nonnais; mas esta se vê ainda muito 
mais claramente ao se considerarem estas relações como 
sendo, não simplesmente as de duas Funções sociais mais 
ou menos claramente definida~ e nas quais cada uma 
pode ter a natural tendência a elevar-se sobre a outra, mas 
sim as de dois domínios nos quais se exercem 
respectivamente tais funções; são, efetivamente, as 
relações entre ambos domínios o que deve logicamente 
detenninar as dos poderes correspondentes. 
26 
Entretanto, antes de abordar diretamente estas 
considerações, devemos formular algumas observações 
que facilitarão sua compreensão, tomando preciso o 
sentido de alguns dos termos dos quais deveremos nos 
servir constantemente; e isso é ainda mais necessário 
quando taistermos, no uso corrente, tenham adotado um 
significado bastante vago e, às vezes, muito afastado de 
sua concepção original. Em primeiro lugar. se falarmos 
de dois poderes, e se podemos fazê-lo nos casos nos quais 
cabe, por razões diversas, guardar entre eles uma espécie 
de simetria exterior. preferimos não obstante. mais 
freqüentemente e para marcar melhor a distinção, 
empregar, para a ordem espiritual, a palavra "autoridade", 
mais que a de "poder", que reservaremos à ordem 
temporal, à qual convém mais propriamente quando quer 
entender em seu sentido estrito. Efetivamente, a palavra 
"poder"' evoca quase inevitavelmente a idéia de potência 
ou de força. e, sobretudo, de uma força material (2). de 
uma potência que se manifesta visivelmente fora e que se 
afirma mediante o emprego dos meios exteriores; e tal é, 
por própria definição, o poder temporal (3). Pelo 
contrário, a autoridade espiritual, interior por essência, 
não se afirma senão por si mesma, independentemente de 
todo apoio sensível, e de certo modo se exerce 
invisivelmente; caso possa se falar aqui de potência ou de 
força não é mais que por transposição analógica e, ao 
menos no caso de uma autoridade espiritual em estado 
puro, se assim pode ser dito, deve se compreender que se 
trata de uma potência totalmente intelectual, cujo nome é 
"sabedoria", e da única força da verdade (4). 
27 
Algo que também precisa ser explicado, e 
inclusive um pouco mais amplamente, são as expressões, 
que faz um momento empregamos, de poder sacerdotal e 
de poder real: o que deve ser entendido exatamente por 
sacerdócio e por realeza? Começando com esta última, 
diremos que a função real compreende tudo o que, na 
ordem social, constitui o "governo" propriamente dito, e 
isso ainda que este governo não tenha forma monárquica; 
esta função, efetivamente, é a que propriamente pertence 
à casta dos Kshatriyas, e o rei não é mais que o primeiro 
deles. A função de que se trata é em certo modo dupla: 
administrativa e judicial por um lado. militar por outro, 
pois deve assegurar a manutenção da ordem, 
simultaneamente dentro, como função reguladora e 
equilibradora. e fora, como função protetora da 
organização social; ambos os elementos constitutivos do 
poder real estão, em diversas tradições, simbolizados 
respectivamente pela balança e pela espada. Vê-se com 
isso que "poder régio" é realmente sinônimo de "poder 
temporal", inclusive tomando este último em Ioda a 
extensão de que é suscetível; mas a idéia muito mais 
restrita que o Ocidente moderno faz da realeza pode 
impedir que esta equivalência apareça imediatamente. e 
por isso foi necessário fonnular esta definição, que jamais 
se deverá perder de vista a partir de agora. 
Quanto ao sacerdócio, sua função essencial é a 
conservação e a transmissão da doutrina lradicional, em 
que toda organização social regular encontra seus 
princípios fundamentais: esta função, além do mais, é 
28 
evidentemente independente de toôas as formas especiais 
que pode revestir a doutrina para se adaptar, em sua 
expressão, às condições particulares de tal povo ou de tal 
época, e que não afetam em nada o fundo mesmo desta 
doutrina, que permanece sempre e em todas panes 
idêntica e imutável, desde que se tratem de tradições 
autenticamente ortodoxas. É fácil compreender que a 
função do sacerdócio não é precisamente a que as 
concepções ocidentais, especialmente hoje em dia, 
atribuem ao "clero" ou aos "sacerdotes", ou que, ao 
menos, ainda que o seja em certa medida e em alguns 
casos, também pode ser algo distinto. De fato, o que 
possui propriamente o caráter "sagrado" é a doutrina 
tradicional e o que se refere diretamente a ela. e esta 
doutrina não toma necessariamente a fonna religiosa (5); 
"sagrado" e "religioso" não são equivalentes de modo 
algum, e o primeiro de ambos os tennos é muito mais 
abrangente que o segundo; embora a religião forme parte 
do domínio "sagrado", este compreende elementos e 
modalidades que não têm absolutamente nada de 
religioso; e o sacerdócio, como seu nome indica, refere-
se, sem nenhuma restrição, a tudo o que verdadeiramente 
deva ser chamado "sagrado". 
A verdadeira função do sacerdócio é, pois, acima 
de tudo, uma função de conhecimento e de ensinamento 
(6) e por isso, como dissemos anteriormente, seu atributo 
próprio é a sabedoria; com segurança, algumas outras 
funções mais exteriores, como o cumprimento dos ritos, 
pertencem-lhe igualmente. porque requerem do 
conhecimento da doutrina, ao menos em princípio, e 
panicipam do caráter "sagrado" inerente a esta; mas tais 
funções não são senão secundárias, contingentes e de 
certo modo acidentais (7). Se, no mundo ocidental, o 
acessório parece aqui haver se convertido na função 
principal, quando não -inclusive- na única. é porque a 
natureza real do sacerdócio foi esquecida quase que por 
completo; este é um dos efeitos da separação moderna, 
que nega a intelectualidade (8), e que, embora não pôde 
fazer desaparecer todo o ensino doutrinal, ao menos o 
"minimizou" e o relegou a um segundo plano. Nem 
sempre foi assim, e a própria palavra "clero" nos oferece 
a prova, pois, originariamente, "clérigo" significava 
"sábio" (9), e se opõe a "laico", que designa ao homem do 
povo, quer dizer. ao "vulgar", comparado ao ignorante ou 
ao "profano", a quem não se pode pedir senão que creias 
no que não é capaz de compreender, porque é este o 
único meio de lhe fazer participar da tradição na medida 
de suas possibilidades (10). É inclusive curioso notar que 
as pessoas que, em nossa época, vangloriam-se de 
chamar-se "laicos", assim como aquelas a quem agrada 
intitularem-se "agnósticos", e que por outra parte 
freqüentemente são as mesmas, não fazem com isso 
senão gabar-se de sua própria ignorância; e, para que não 
se dêem conta de que tal é o sentido das etiquetas com as 
quais se adornam, é preciso que esta ignorância seja 
efetivamente muito grande verdadeiramente 
irremediável. 
30 
Embora o sacerdócio é, por essência, o depositário 
do conhecimento tradicional, isso não significa que tenha 
o monopólio do mesmo, posto que sua missão consiste, 
não somente em conservá-lo integralmente, mas também 
em comunicá-lo a todos aqueles que sejam aptos para 
recebê-lo, em distribuí-lo de certo modo 
hierarquicamente segundo a capacidade intelectual de 
cada um. Todo conhecimento desta ordem tem então sua 
origem no ensino sacerdotal, que é o órgão de sua 
transmissão regular; e o que aparece como mais 
particularmente reservado ao sacerdócio, em razão de seu 
caráter de pura intelectualidade. é a parte superior da 
doutrina, quer dizer, o conhecimento dos próprios 
princípios, enquanto que o desenvolvimento de certas 
aplicações convém melhor às aptidões de outros homens, 
a quem suas funções próprias põem em contato direto e 
constante com o mundo manifestado, quer dizer, com o 
domínio ao qual se referem ditas aplicações. É a razão de 
que vejamos na Índia, por exemplo, que certos ramos 
secundários da doutrina tenham sido estudados mais 
especialmente pelos Kshatriyas, enquanto que os 
Brâhmanes não lhes concedem senão uma importância 
muito relaliva, estando sem cessar sua atenção fixada na 
ordem dos princípios transcendentes e imutáveis, dos 
quais todo o restante não são mais que conseqüências 
acidentais, ou, caso se tomem as coisas em sentido 
inverso, sobre a meta suprema, em relação à qual todo o 
resto não são mais que meios contingentes e 
subordinados (li). Existem inclusive livros tradicionais 
particularmente destinados ao uso dos Kshatriyas, já que 
31 
apresentam aspectos doutrinais adaptados a sua natureza 
própria (12); há "ciências tradicionais" que convêm, 
sobretudo, aos Kshatriyas, enquanto que a metafísica 
pura é patrimônio dos Brâhmanes (13). Não há aqui nada 
que não seja perfeitamente legítimo, poi:-. tais aplicações 
ou adaptações formam também parte do conhecimento 
sagrado considerado em sua integralidade e, por outra 
parte, embora a casta sacerdotal não se interessediretamente nelas. entretanto é sua obra, posto que 
unicamente ela esteja qualificada para controlar sua 
perfeita conformidade com os princípios. Ainda assim, 
pode ocorrer que os Kshatriyas. quando entram em 
rebelião contra a autoridade espiritual. desconheçam o 
caráter relativo e subordinado de tais conhecimentos, aos 
quais ao mesmo tempo consideram como seu bem 
próprio, e negam havê-los recebido dos Brâhmanes. e que 
finalmente cheguem inclusive até pretendê-los superiores 
aos que são da posse exclusiva destes últimos. O que 
disso se resulta é, nas concepções dos Kshatriyas 
rebeldes, a inversão das relações normais entre os 
princípios e suas aplicações, ou inclusive às vezes, nos 
casos mais extremos, a pura e simples negação de todo 
princípio transcendente; trata-se então, em todos os casos, 
da substituição da "metafísica" pela "física". entendendo 
ambos os termos em seu sentido rigorosamente 
etimológico. ou, em outras palavras, o que se pode 
chamar o "naturalismo". assim como se verá melhor 
ainda na continuação (14). 
Desta distinção, no conhecimento sagrado ou 
tradicional, de duas ordens que se podem, de maneira 
geral. designarem como a dos princípios e a das 
aplicações, ou ainda. segundo o que acabamos de dizer, 
como a ordem "metafísica" e a ordem "física", derivava-
se, nos mistérios antigos. tanto no Oriente como no 
Ocidente, a distinção entre o que se chamava "grandes 
mistérios" e "pequenos mistérios", implicando estes. de 
fato, essencialmente o conhecimento da natureza, e 
aqueles o conhecimento do que está além da natureza 
(15). Esta mesma distinção corresponde precisamente à 
existente entre a "iniciação sacerdotal" e a "iniciação 
real", quer dizer, que os conhecimentos que eram 
ministrados nestas duas classes de mistérios eram os que 
se consideravam necessários para o exercício das 
respectivas funções dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou 
do que era o equivalente destas castas nas instituições de 
diversos povos (16): mas, é obvio, é o sacerdócio o que, 
em virtude de sua função de ensino, conferia igualmente 
as duas iniciações. e o que assegurava assim a 
legitimidade efetiva, não só de seus próprios membros, 
mas também daqueles da casta à qual pertencia o poder 
temporal; e disso, como veremos, procede o "direito 
divino" dos reis (17). Se isto é desta forma. é porque a 
posse dos "grandes mistérios" implica, a fortiori e "além 
disso", a dos "pequenos mistérios"; como toda 
conseqüência e toda aplicação estão contidas no princípio 
do qual procedem, a função superior engloba 
"eminentemente" as possibilidades das funções inferiores 
(18); necessariamente é assim em toda hierarquia 
33 
verdadeira, quer dizer, fundada sobre a natureza mesma 
dos seres. 
Há ainda um ponto que devemos assinalar, ao 
menos sumariamente e sem insistir muito: junto às 
expressões de "iniciação sacerdotal" e de "iniciação real", 
e por assim dizer de forma paralela, encontram-se 
também as de "arte sacerdotal" e "arte real", que 
designam a colocação em prática dos conhecimentos 
adquiridos nas correspondentes iniciações, com todo o 
conjunto das "técnicas" que dependem de seus 
respecLivos domínios (19). Estas denominações se 
conservaram durante longo tempo nas antigas 
corporações. e a segunda. a de "arte real", teve inclusive 
um destino bastante singular, pois se tran!-.mitiu até a 
Maçonaria moderna. embora seja evidente que já não 
subsista, assim como muitos outros termos e símbolos, 
mais que como um vestígio incompreendido do passado. 
Assim que a designação de "arte sacerdotal" desapareceu 
completamente: entretanto, convinha evidenlemente à 
arte dos construtores de catedrais da Idade Média, do 
mesmo modo que aos construtores dos templos da 
Antigüidade; mas aconteceu de se produzir 
posteriormente uma confusão entre ambos os domínios. 
devido a uma perda ao menos parcial da tradição, 
conseqüência das usurpações do temporal sobre o 
espiritual; perdeu-se assim inclusive o nome de "arte 
sacerdotal", sem dúvida na época do Renascimento, que 
assinala efetivamente, sob todos os aspectos, a 
34 
consumação da ruptura do mundo ocidental com suas 
próprias doutrinas tradicionais (20). 
35 
Notas 
(1) Poder-se-iam encomrar mui1os outros exemplos sem muito 
esforço. especialmente no Orieme: na China. as lutas que se 
produziram em certas épocas emre os taoís1as e os confucionistas, 
cujas respecti..,as doutrinas se referem aos domínios de ambos os 
poderes. como mais adiame explicaremos: no Tibete. a hostilidade 
testemunhada em princípio pelos reis contra o Lamaísmo. que por 
outra pane acabou não somen1e por triunfar. mas também por 
absorver completamente o poder temporal na organização 
"teocrática" que ainda atualmeme existe [N.T.: O livro foi escrito 
antes da invasão do Tibete pela China. em 1951 ]. 
(2) Poder-se-ia, além do mais, fazer entrar também nesta noção a 
força da vomade, que não é •·material" no semido estrito da palavra. 
mas que, para nós. ê ainda da mesma ordem. já que está 
essencialmente oriemada à ação. 
(3) O nome da casta dos Ksfiatriyas [K.fhatriyas] deriva de kshatra. 
que significa "força". 
(4) Em hebraico. a distinção que aqui indicamos es1á expressa pelo 
emprego de raízes que se correspondem. mas que diferem pela 
presença das letras kaf e qiif, que são respectivamente. por sua 
interpretação hieroglífica. os sinais da força espiritual e da força 
material, de onde. por um lado, os sentidos de verdade, sabedoria, 
conhecimento, e, por outro, os de potência, posse, dominação: tais 
são as raízesjaq e joq, kall e qah, designando as primeiras formas de 
cada par as atribuições do poder sacerdotal, e as segundas as do 
poder real (ver ··o Rei do Mundo", cap. VI). [N. T.: Do JAK deriva 
JOJMA (Sabedoria). do JOQ deriva JOQ (lei. decreto). do KAH 
deriva KOHEN (Sacerdote). e do QAH deriva QAHAL (Reunir. 
congregação)]. 
(5) Além do mais, mais adiante veremos por que motivo a forma 
religiosa propriamente dita é algo particular ao Ocidente. 
36 
(6) Em razão desta função de ensino. no P1m1sha·sltkra do Rig-Vêda, 
os Brâhmanes são representados como correspondendo à boca de 
P11rusha. considerado como o "Homem Universal". enquanto que os 
Kshatriyas correspondem a seus braços. posto que suas funções se 
refiram essencialmente à ação. 
(7) Às vezes, o exercício das funções intelectuais por um lado e 
rituais por outro deu na:o.cimento. no próprio sacerdócio. a duas 
divisões: encontra-se um exemplo muito claro disso no Tíbete: '"A 
primeira das duas grandes divisões compreende a quem preconiza a 
observação dos preceitos morais e das regras monásticas como meios 
de saJvação; a segunda engloba a aqueles que preferem um método 
puramente intelectual (denominado "via direta"), liberando a aquele 
que a segue de todas as leis, sejam quais forem. 
"Nenhum biombo perfeitamente estanque separa os aderentes de 
ambos os sistemas. Muito raros são os religiosos vinculados ao 
primeiro que não reconheçam que a vida virtuosa e a disciplina das 
observâncias monásticas. por excelentes e, em muitos casos. 
indispensáveis que sejam, não constituem entretanto mais que uma 
simples preparação a uma via superior. Quanto aos partidários do 
segundo sistema, todos, sem exceção, acreditam plenamente nos 
efeitos benéficos de uma estrita fidelidade às leis morais e a aquelas 
que foram especialmente decretadas para os membros do Sangha 
(comunidade budista). Além disso, todos são unânimes em declarar 
que o primeiro dos métodos é o mais recomendável para a maioria 
dos indivíduos" (Alexandra David-Neel. "Le Thibet mys1iq11e". na 
"ReV11e de Paris", 15 de fevereiro de 1928). Reproduzimos 
textualmente a passagem, embora quamo a algumas das expressões 
utilizadas se requeira alguma reserva: assim, não há dois .. sistemas'", 
que, como tais, se excluiriam forçosamente: mas o papel dos meios 
contingentes que é o dos ritos e das observâncias de toda classe e sua 
subordinação com respeito à via puramente intelectual está definido 
muito claramente.e de uma maneira que. por outra parte. é 
37 
exatamente conforme aos ensinos da doutrina hindu sobre o mesmo 
assunto. 
(8) Pensamos que é quase supéríluo recordar que tomamos sempre 
esta palavra no sentido em que se reíere à inteligência pura e ao 
conhecimento supra-racional. 
(9) Não é que seja legítimo estender o significado da palavra 
"clérigo" como tem íeito Julien Benda em seu livro liJ Trahison des 
Clercs. pois tal expressão implica o desconhecimento de uma 
distinção fundamental, a mesma que a existente entre "conhecimento 
sagrado" e "saber profano"; a espiritualidade e a intelectualidade não 
têm cenamente o mesmo sentido para Benda que para nós, e faz 
entrar no domínio ao que qualifica de "espiritual" muitas coisas que, 
a nossos olhos. são de ordem puramente temporal e humana, o que, 
por outra pane. não nos deve impedir que reconheçamos que há em 
seu livro considerações muiw interessantes e justas em muitos 
aspectos. 
(10) A dii.tinção feita no Catolicismo entre a "Igreja ensinadora" e a 
"Igreja ensinada" deveria ser precisamente uma distinção entre 
"quem sabe" e "quem acredita": o é em princípio, mas, no presente 
estado das coisas. é ainda de fato? Limitamo-nos a expor a pergunta, 
pois não é a nós a quem corresponde resolvê-la e, por outra parte, não 
lemos os meios para isso; efetivamente, se muitos indícios nos fazem 
temer que a resposta não deve ser positiva, não pretendemos 
entretamo ter um conhecimento completo da organização atual da 
Igreja católica, e não podemos senão expressar o desejo de que ainda 
exista, em seu interior. um centro no qual se conserve integralmente 
não só a "letra". mas também o "espírito" da doutrina tradicional. 
(11) Tivemos, além do mais, ocasião de assinalar um caso ao qual se 
aplica o que aqui dizemos: enquanto que os Brâhma11es sempre estão 
vinculados quase exclusivamente. ao menos em seu âmbito pessoal, à 
realização imediata da "Liberação" final, os Kshatriyas 
desenvolveram preferentemente o estudo dos estados condicionados 
38 
e transilivos que correspondem aos diversos estados das duas "vias 
do mundo manifes1ado". chamadas dfra-yâna e pitri-yâna ("'O 
Homem e seu Devir Segundo o Vedama", 3" ed., cap. XXI). 
(12) Tal é, na Índia, o caso dos /tihâsas e dos Purânas. enquanto que 
o estudo do Vêda concerne propriamente aos Brâhmanes, porque 
neles se encontra o princípio de todo o conhecimento sagrado; ver-
se-á além do mais posteriormente que a distinção dos objetos de 
estudo que convêm às duas castas corresponde. de maneira geral. à 
das duas panes da tradição que, na doutrina hindu, são chamadas 
Shrnti e Smriti. 
(13) Falamos sempre de Brâhmanes e Kshatriyas tomados em seu 
conjunto; embora existam distinções individuais. isso não implica 
nenhum prejuízo ao próprio princípio das castas. e somente provam 
que a aplicação deste princípio não pode ser senão aproximada, 
especialmente nas condições do Kali-Yuga. 
(14) Embora falemos aqui de Brâhma11es e dos Kshatriyas. porque o 
emprego de tais palavras facilita enormemente a expressão daquilo 
do que se trata, deve ficar claro que tudo o que aqui dizemos não se 
aplica unicamente à Índia; e esta mesma observação será válida todas 
as vezes que empreguemos tais termos sem nos referir expressamente 
à forma tradicional hindu; explicar-nos-emo mais completamente 
sobre isso, além de tudo, um pouco mais adiante. 
(15) De um ponto de vista um pouco diferente, embora não obstante 
estreitamente ligado a este, pode-se dizer 1ambém que os "pequenos 
mistérios" concernem somente às possibilidades do estado humano, 
enquanto que os ··grandes mistérios" concernem aos estados supra-
humanos; pela realização destas possibilidades ou estados, conduzem 
respectivamente ao "Paraíso terrestre" e ao "Paraíso celestial". tal e 
como afirma Dante num texto do De Monarchia que mais adiante 
citaremos; e não se deve esquecer que, como indica o mesmo Dante 
bastan1e claramente em sua Divina Comédia, e como teremos ocasião 
de repeti-lo a seguir. o "Paraíso terrestre" não de\·e ser considerado, 
39 
na realidade, mas sim como uma e1apa na via que conduz ao "Paraíso 
celestial". 
(16) :'\o antigo o Egito, cuja constituição era claramente "1eocrática", 
parece que o rei era considerado como assimilado à casta sacerdotal 
pelo fato de sua iniciação aos mistérios. e inclusive. às vezes, foi 
eleilo demre os membros desta casta; ao menos é o que afirma 
Plutarco: .. Os reis eram escolhidos dentre os sacerdotes ou os 
guerreiros, porque ambas as classes, uma em razão de sua coragem, a 
outra em virtude de sua sabedoria. gozavam de uma estima e de uma 
consideração paniculares. Quando o rei provinha da classe dos 
guerreiros. enb'ava do momento de sua eleição a formar parte da 
classe dos sacerdotes; era então iniciado nessa filosofia em que tantas 
coisas, sob fórmulas e mitos que envolviam com uma aparência 
obscura a verdade e a manifestavam por transparência, estavam 
ocuhas" (Ísis e Osiris. 9. tradução de Maria Meunier). Advertir-se-á 
que o final desta passagem contém uma indicação muito explícita do 
duplo sentido da palavra "revelação" (cf ... O Rei do Mundo'". P. 38). 
(17) É necessário acrescentar que. na Índia, a terceira casta. a dos 
Vaisl1yas, cujas funções próprias são as de ordem econômica. 
também é admitida a uma iniciação que lhe outorga direito às 
qualificações, que lhe são assim comuns com as duas primeiras, de 
âry•a ou "nobre" e de dwija ou "duas vezes nascido"; os 
conhecimentos que lhe convêm especialmente não representam por 
outra parte. em princípio ao menos, mais que uma porção restringida 
dos "pequenos mistérios" tal como acabamos de defini-los; mas não 
vamos insistir sobre este ponto, já que o tema do presente estudo não 
implica propriamente senão a consideração das relações entre as duas 
primeiras castas. 
(18) Pode-se dizer então que o poder espiritual pertence 
"formalmente" à casta sacerdotal. en~uanto que o poder temporal 
pertence "eminentemente~ a esta mesma casta sacerdotal, e 
"fonnalmente" à casta real. Assim, segundo Aristóteles. as "formas" 
superiores contêm ~eminentemente" as "formas" inferiores. 
40 
(19) Devemos notar a propósito disso que. entre os romanos. Jano. 
que era o deus da iniciação aos mistérios. era ao mesmo tempo o 
deus dos Coffegia fabrorum: este paralelismo é particularmente 
significativo do pomo de visla da correspondência que aqui 
indicamos. Sobre a 1ransposição mediante a qual toda arte. assim 
como toda ciência. pode receber um valor propriameme "iniciático", 
ver "O Esoterismo de Dante'". pp. 12-15. 
(20) Alguns fixam com precisão na metade do século XV a data 
desta perda da antiga rradição, que entranhou a reorganização. em 
1459, das confrarias de construtores sobre uma nova base, desde 
então incompleta. É de as'iinalar que é a partir desta época quando as 
Igrejas deixaram de estar oriemadas regularmente, e este fato tem, 
quanto àquilo do que se trata. uma importância muito mais 
considerável do que se poderia pensar a primeira vista (cf. "O Rei do 
Mundo"" . pp. 96 e 123-124 ). 
Capítulo Ili: CONHECIMENTO E 
AÇÃO 
Dissemos anteriormente que as relações entre os 
poderes espiritual e temporal devem ser determinadas 
pelas de seus respectivos domínios; reconduzida assim a 
seu princípio, a questão nos parece muito simples. pois 
não é diferente. no fundo, que a das relações entre o 
conhecimento e a ação. Poder-se-ia objetar a isto que, 
segundo o que acabamos de expor, os depositários do 
poder temporal devem também possuir normalmente um 
detenninado conhecimento; mas, além de que não o 
possuem por si mesmos, mas o recebem da autoridade 
espiritual, este conhecimento não corresponde senão às 
aplicações da doutrina. e não aos próprios princípios; não 
é então. propriamente falando, mais que um 
conhecimento por participação. O conhecimento por 
excelência, o único que verdadeiramente merece esse 
nome na plenitude de seu sentido, é o conhecimento dos 
princípios, independentemente de toda aplicaçãocontingente, e é este o que pertence exclusivamente a 
aqueles que possuem a autoridade espiritual. porque não 
há nele nada que dependa da ordem temporal. inclusive 
entendida em sua acepção mais ampla. Pelo contrário, 
quando se passa às aplicações. encontramo-nos nessa 
ordem temporal, posto que o conhecimento já não é 
considerado então unicamente em si mesmo e por si 
mesmo, mas sim enquanto que dê à ação sua lei; e é nesta 
medida que é necessário {o conhecimento) àqueles cuja 
42 
função própria depende essencialmente do domínio da 
ação. 
É evidente que o poder temporal, em suas diversas 
fonnas, militar, judicial e administrativa, está 
completamente envolto na ação: encontra-se então, por 
suas próprias atribuições, encerrado nos mesmos limites 
que esta, quer dizer, nos limites do mundo ao qual se 
pode chamar propriamente "humano", compreendendo, 
além disso, neste termo. possibilidades muito mais 
amplas das que habitualmente se consideram. Pelo 
contrário, a autoridade espiritual se funda inteiramente no 
conhecimento. já que, como se viu, sua função essencial é 
a conservação e o ensino da doutrina, e seu domínio é 
ilimitado como a própria verdade (1); o que lhe está 
reservado pela natureza mesma das coisas. aquilo que não 
pode comunicar aos homens cujas funções são de outra 
ordem, e isto porque suas possibilidades não o implicam, 
é o conhecimento transcendente e "supremo" (2), o que 
supera o domínio "humano" e inclusive, mais geralmente, 
o mundo manifestado, que é, não somente "físico", mas 
sim "metafísico" no sentido etimológico da palavra. Deve 
compreender-se que não se trata aqui de uma vontade da 
casta sacerdotal de guardar só para si o conhecimento de 
certas verdades, mas sim de uma necessidade que 
diretamente se desprende das diferenças de natureza que 
ex.istem entre os seres, diferenças que. como já dissemos, 
são a razão de ser e o fundamento da distinção das castas. 
Os homens que estão feitos para a ação não estão feitos 
para o puro conhecimento e. numa sociedade constituída 
43 
sobre bases verdadeiramente tradicionais, cada um deve 
desempenhar a função para a qual está realmente 
"qualificado"; de outro modo, não há mais que confusão e 
desordem, nenhuma função se desempenha como se 
deveria, e é isto precisamente o que se produz na época 
atual. 
Bem sabemos que, por causa desta confusão, as 
considerações que aqui expomos podem parecer muito 
estranhas no mundo ocidental moderno, no qual o que se 
chama "espiritual" freqüentemente não tem senão uma 
muito longínqua relação com o ponto de vista 
estritamente doutrinal e com o conhecimento desligado 
de todas as contingências. Pode-se inclusive, a este 
respeito. fazer uma curiosa observação: hoje em dia 
ninguém se limita a distinguir entre o espiritual e o 
temporal, como seria legítimo e inclusive necessário, 
senão que se tem a pretensão de separá-los radicalmente; 
e justamente ocorre que ambas as ordens jamais 
estiveram tão mescladas como no presente, e que, 
sobretudo, as preocupações temporais nunca afetaram 
tanto àquilo que lhe deveria ser absolutamente 
independente; sem dúvida, é inevitável que o seja assim, 
em razão das condições própria., de nossa época, às quais 
descrevemos em outro lugar. Devemos. além disso. para 
evitar toda falsa interpretação, declarar claramente que o 
que aqui dizemos não concerne senão ao que 
anteriormente chamamos autoridade espiritual em estado 
puro, e seria necessário abster-se de procurar exemplos 
disso ao nosso redor. Poder-se-á inclusive, caso se queira, 
44 
que aqui não se trata mais que de um tipo teórico e de 
certo modo "ideal". embora, para falar a verdade, esta 
maneira de considerar as coisas não seja inteiramente a 
nossa: reconhecemos que. de fato. nas aplicações 
históricas. é sempre necessário ter em conta as 
contingências em certa medida, mas, entretanto. tomamos 
à civilização do Ocidente moderno tão somente pelo que 
ela é, ou seja, uma separação e uma anomalia. que por 
outra parte se ex.plica por sua correspondência com a 
última fase do Kali-Yuga. 
Mas voltemos para as relações entre o 
conhecimento e a ação; já tivemos ocasião de tratar este 
tema com certo desenvolvimento (3). e. em conseqüência. 
não repetiremos aqui tudo o que dissemos então; mas é, 
não obstante. indispensável recordar ao menos os pontos 
mais essenciais. Consideramos a antítese entre o Oriente 
e Ocidente, no presente estado das coisas. como podendo 
em suma reduzir-se a isto: Oriente mantém a 
superioridade do conhecimento sobre a ação. enquanto 
que o Ocidente moderno afinna pelo contrário a 
superioridade da ação sobre o conhecimento, e isto 
quando não chega à completa negação deste; dizemos 
somente o Ocidente moderno, pois foi de um modo muito 
distinto na Anrigüidade e na Idade Média. Todas as 
doutrinas tradicionais, sejam orientais ou ocidentais, são 
unânimes em afirmar a superioridade e inclusive a 
transcendência do conhecimento sobre a ação, com 
respeito à qual desempenha de certo modo o papel do 
"motor imóvel" de Aristóteles, o que, é obvio, não quer 
45 
dizer que a ação não tenha também seu lugar legítimo e 
sua importância em sua ordem, mas esta ordem não é 
mais que a das contingências humanas. A mudança seria 
impossível sem um princípio do qual procedesse e que. 
precisamente por ser seu princípio, não pode estar 
submetido a ele. logo é forçosamente "imóvel", sendo o 
centro da "roda das coisas" (4); da mesma forma, a ação. 
que pertence ao mundo da transitoriedade, não pode ter 
seu princípio em si mesma; toda a realidade da qual é 
suscetível é extraída de um princípio que se encontra 
além de seu domínio, e que não pode estar mais que no 
conhecimento. Só este, efelivamente, pennite sair do 
mundo da transitoriedade ou do "suceder" e das 
limitações que lhe são inerentes e, quando alcança o 
imutável, o que é o caso do conhecimento principiai ou 
metafísico, que é o conhecimento por excelência (5), 
possui a imutabilidade. já que todo conhecimento 
verdadeiro é essencia1mente identificação com seu objeto. 
A autoridade espiritual, devido ao que se implica neste 
conhecimento, possui em si mesma a imutabilidade; o 
poder temporal, pelo contrário, está submetido a todas as 
vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que 
um princípio superior lhe comunique, na medida 
compatível com sua natureza e seu caráter, a estabilidade 
que não pode obter por seus próprios meios. Este 
princípio não pode ser mais que o que é representado pela 
autoridade espiritual; o poder temporal tem então 
necessidade, para subsistir, de uma consagração que lhe 
venha desta; é esta consagração a que proporciona sua 
legitimidade, quer dizer, sua conformidade com a ordem 
46 
mesma das coisas. Tal era a razão de ser da "iniciação 
régia", à qual definimos no capítulo anterior; nisso 
consiste propriamente o "direito divino" dos reis, ou o 
que a tradição extremo-oriental denomina o "mandato do 
Céu"; trata-se do exercício do poder temporal em virtude 
de uma delegação da autoridade espiritual, à qual este 
poder pertence "eminentemente". tal como já explicamos 
(6). Toda ação que não proceda do conhecimento carece 
de princípio e não é mais que uma vã agitação; do mesmo 
modo, todo poder temporal que ignore sua subordinação 
frente à autoridade espiritual é igualmente vão e ilusório; 
separado de seu princípio, não poderá exercer-se mais 
que de uma maneira desordenada, e irá fatalmente a sua 
perdição. 
Posto que falamos do "mandato do Céu". não 
estará fora de propósito narrar aqui como, segundo o 
próprio Confúcio, devia cumprir-se este mandato: "Os 
antigos príncipes, para fazer brilhar as virtudes naturais 
no coração de todos os homens, aplicavam-se em 
primeiro lugar a governar bem seus principados. Para 
governar bem seus principados, punham antes em ordem 
suas famílias. Para pôr ordem em suas famílias, 
trabalhavam antes em aperfeiçoar-se a si mesmos. Para 
aperfeiçoar-se a si mesmos. ordenavam antes os 
movimentos deseus corações. Para ordenar os 
movimentos de seus corações, tornavam antes sua 
vontade perfeita. Para tomar sua vontade perfeita, 
desenvolviam seus conhecimentos ao máximo. 
Desenvolviam seus conhecimentos escrutinando a 
47 
natureza da'i coisas. Uma vez escrutinada a natureza das 
coisas, os conhecimentos alcançavam seu mais alto grau. 
Tendo chegado os conhecimentos a seu mais alto grau, a 
vontade se fazia perfeita. Sendo perfeita a vontade, os 
movimentos do coração se ordenavam. Ordenados tais 
movimentos, lodo homem está isento de defeitos. Depois 
de haver-se corrigido a si mesmo, estabelece-se a ordem 
na família. Reinando a ordem na família, o principado 
está bem governado. Estando bem governado o 
principado, muito em breve todo o reino desfruta da paz" 
(7). Há que se reconhecer que existe aqui uma concepção 
do papel do soberano que difere singularmente da idéia 
que disso se faz o Ocidente moderno, e que o converte 
por outra parte em algo muito difícil de cumprir, embora 
também lhe dê um alcance muito diferente: e 
particularmente se observará que o conhecimento está 
expressamente indicado como a primeira condição para o 
estabelecimento da ordem. inclusive no domínio 
temporal. 
É fácil agora compreender que a inversão das 
relações entre o conhecimento e a ação, numa civilização, 
é uma conseqüência da usurpação da supremacia por 
parte do poder temporal; este, efetivamente, deve então 
pretender que não exista nenhum domínio superior ao 
dele, que é precisamente o da ação. Entretanto, embora as 
coisas se apresentem assim, não chegam ainda ao ponto 
em que as vemos atualmente, onde todo valor é negado 
ao conhecimento; para que assim seja, é preciso que os 
próprios Kshatriyas tenham sido alheados de seu poder 
48 
pelas castas inferiores (8). De fato, como indicamos 
anteriormente, os Kshatriyas, inclusive rebeldes, têm 
mais tendência a afirmar uma doutrina truncada, falseada 
pela ignorância ou pela negação de tudo o que supera a 
ordem "física", mas na qual subsistem ainda certos 
conhecimentos reais. embora inferiores: podem inclusive 
albergar a pretensão de fazer passar a esta doutrina 
incompleta e irregular como expressão da verdadeira 
tradição. Há aqui uma atitude que, embora imperdoável 
com respeito à verdade, não está desprovida ainda de 
certa grandeza (9); por outra parte, termos como os de 
"nobreza". "heroísmo", "honra", não são, em sua acepção 
original. a designação das qualidades que são 
essencialmente inerentes à natureza dos Kshatriyas? Pelo 
contrário, quando os elementos correspondentes às 
funções sociais de uma ordem inferior chegam a dominar 
por sua vez. toda doutrina tradicional, inclusive mutilada 
ou alterada. desaparece inteiramente; nem sequer subsiste 
o menor vestígio da "ciência sagrada'', e é o reino do 
"saber profano", quer dizer, da ignorância, o que se toma 
por ciência e sente prazer em seu nada. Tudo isto poderia 
resumir-se em poucas palavras: a supremacia dos 
Brâhmanes mantém a ortodoxia doutrinal; a rebelião dos 
Kshatriyas conduz à heterodoxia; mas com a dominação 
das castas inferiores. entramos na noite intelectual, e é ela 
a que domina atualmente no Ocidente, que por outra pane 
ameaça estendendo suas próprias trevas sobre o mundo 
inteiro. 
49 
Seremos reprovados possivelmente por falar como 
se houvesse castas em toda pane, e o estender 
indevidamente a toda organização social denominações 
que não convêm propriamente mais que à Índia; e, 
entretanto, posto que tais denominações designam, em 
suma, funções que necessariamente se encontram em toda 
sociedade, não pensamos que tal extensão seja abusiva. É 
certo que a casta não somente é uma função, que também 
é, e acima de tudo, o que, na natureza dos indivíduos 
humanos, os faz aptos para desempenhar essa função 
preferencialmente a qualquer outra; mas tais diferenças 
de natureza e de aptidões existem também em todo lugar 
onde haja homens. A diferença entre uma sociedade em 
que há castas, no verdadeiro sentido da palavra. e outra 
em que não as há. consiste em que na primeira se dá uma 
normal correspondência entre a natureza dos indivíduos e 
as funções exercidas por eles, com a única reserva dos 
enganos de aplicação que, em todo caso, não são senão 
exceções, enquanto que, na segunda, esta 
correspondência não existe, ou, ao menos, não se 
encontra mais que acidentalmente; e este último caso é o 
que se produz quando a organização social carece de base 
tradicional (10). Nos casos nonnais sempre há algo 
comparável à instituição das castas, com as devidas 
modificações requeridas pelas condições próprias a tal ou 
qual povo; mas a organização que encontramos na Índia é 
a que representa o tipo mais completo, enquanto 
aplicação da doutrina metafísica à ordem humana, e esta 
única razão bastaria em suma para justificar a linguagem 
que adotamos preferentemente a toda outra que 
50 
tivéssemos podido tirar de instituições que tenham, por 
sua forma mais especializada, um campo de aplicação 
muito mais limitado e, em conseqüência, não possam 
oferecer as mesmas possibilidades para a expressão de 
cenas verdades da ordem completamente geral (11). Há, 
por outra parte, outra razão, que, sendo mais contingente, 
nem por isso é desprezível. e é esta: é muito notório que a 
organização social da Idade Média ocidental estava 
exatamente calcada sobre a divisão das castas, 
correspondendo o clero aos Brâhmanes, a nobreza aos 
Kshatriyas, o terceiro estado aos Vaishyas e os servos aos 
Shúdras; não se tratava de castas em toda a acepção da 
palavra, mas esta coincidência, que com segurança não 
tem nada de fortuito, permite efetuar bem facilmente uma 
transposição de tennos para passar de um ao outro de 
ambos os casos; e esta observação encontrará sua 
aplicação nos exemplos históricos que consideraremos a 
seguir. 
51 
Notas 
(1) Segundo a douuina hindu, os três termos "Verdade, 
Conhecimen10. Infinito" estão idemificados no Princípio Supremo: é 
o sentido da fórmula Satyam Jnânam Anantam Brahma. 
(2) Na Índia, o conhecimento (l'idyâ). segundo seu objeto ou seu 
domínio, distingue-se em "supremo" (parâ) e "não supremo" (aparâ). 
(3) "A Crise do Mundo Moderno". cap. Ili. 
(4) O centro imóvel é a imagem do princípio imutável. e tomamos 
aqui o movimento para simbolizar a mudança em geral. do que não é 
mais que uma espécie particular. 
(5) Pelo contrário. o conhecimento "físico" não é mais que o 
conhecimento das leis da mudança. leis que somente são o reflexo 
dos princípios transcendentes na natureza: esta. integralmente, não é 
mais que o domínio da mudança; por outra parte. o latim natura e o 
grego physis expressam ambos a idéia de "devir". 
(6) Por isso, a palavra melek. que significa "rei" em hebraico e em 
árabe, tem ao mesmo tempo, e inclusive em primeiro lugar. o sentido 
de "enviado". 
(7) Ta-hio, 1• parte, tradução de P. Couvreur. 
(8) Em particular. o fato de conceder uma importância preponderante 
às considerações de ordem econômica, que é um caráter muito 
patente de nossa época, pode ser considerado como um sinal da 
dominação dos Vaisliyas. cujo equi\'a]ente aproximado está 
representado no mundo ocidental pela burguesia; e efetivamente é 
esta a que domina depois da Revolução. 
(9) Esta atitude dos Kshalriyas rebeldes poderia ser caracterizada 
exatamente pela denominação de "luciferismo", que não deve ser 
52 
confundido com o "satanismo", embora sem dúvida entre um e outro 
exista certa conexão: o "\uciferismo" é a repul~ ao reconhecimento 
de uma autoridade superior; o "satanismo" é a inversão das relações 
normais e da ordem hierárquica; e este é freqüentemente uma 
conseqüência daquele, assim como Lúcifer se converteu em Satã 
depois de sua queda. 
(10) Quase não há necessidade de assinalar que as "classes" sociais. 
tal como se as entende hoje no Ocidente. não têm nada em comum 
com as verdadeiras castas. e não são mais que uma espécie de 
falsificação sem valor nem alcance. ao não estarem absolutamente 
fundadassobre a diferença das possibilidades implícitas na natureza 
dos indivíduos. 
(11) A razão pela qual é dessa forma consiste em que a doutrina 
hindu é. entre as doutrinas tradicionais que subsistiram até nossos 
dias. a que parece derivar mais diretamente da tradição primitiva; 
mas este é um ponto sobre o qual não vamos insistir aqui. 
Capítulo IV: NATUREZA 
RESPECTIVA DOS BRÂHMANES E 
DOS KSHATRIYAS 
Sabedoria e força. tais são os atributos respeclivos 
dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou, caso se prefira, da 
autoridade espiritual e do poder temporal; é interessante 
notar que, entre os antigos egípcio~. o símbolo da 
Esfinge. num de seus significados. reunia precisamente 
estes dois atributos considerados segundo suas relações 
normais. De fato, a cabeça humana pode ser considerada 
como representando a sabedoria. e o corpo de leão, a 
força; a cabeça é a autoridade espiritual que dirige. e o 
corpo é o poder temporal que atua. É. além disso. digno 
de assinalar que a Esfinge sempre está representada em 
repouso, tomando-se aqui o poder temporal no estado de 
"não ação" em seu princípio espiritual. no qual está 
contido "eminentemente", quer dizer, apenas como 
possibilidade de ação, ou. melhor dizendo. no princípio 
divino que unifica o espiritual e o temporal, estando além 
de sua distinção, e sendo a fonte comum da qual ambos 
procedem, embora o primeiro diretamente e o segundo de 
maneira indireta e por mediação do primeiro. Noutro 
lugar encontramos um símbolo verbal que. por sua 
constituição hieroglífica, é um exato equivalente daquele: 
é o nome dos Druidas, que se lê dru-vid, no qual a 
primeira raiz significa a força, e a !->egunda a sabedoria 
(1); e a reunião de ambos os atributos ne~se nome, como 
a dos dois elementos da Esfinge num só ser, além de 
54 
indicar que a realeza está implicitamente contida no 
sacerdócio, é sem dúvida uma lembrança da longínqua 
época em que os dois poderes estavam ainda unidos, em 
estado de indistinção primitivo, em seu princípio comum 
e supremo (2). 
Já consagramos um estudo especial a este 
princípio supremo dos dois poderes (3); indicávamos 
então como, de visível que era a princípio, fez-se 
invisível e se ocultou. retirando-se do "mundo exterior" 
na medida em que este se afastava de seu estado 
primitivo, o que necessariamente devia conduzir à 
aparente divisão de ambos os poderes. Demonstramos 
também como esse princípio se encontra, sob nomes e 
símbolos diversos, em todas as tradições, e como aparece 
especialmente na tradição judaico-cristã nas figuras de 
Melquisedeque e dos Reis Magos. Recordaremos apenas 
que, no Cristianismo, o reconhecimento deste princípio 
único subsiste sempre, ao menos teoricamente, e se 
afinna pela consideração das duas funções sacerdotal e 
real como inseparáveis na própria pessoa de Cristo. 
Desde certo ponto de vista, por outra parte, ambas as 
funções. referentes assim a seu princípio, podem ser 
consideradas como sendo de certo modo complementares, 
logo, embora a segunda, para falar a verdade, possua seu 
princípio imediato na primeira, há não obstante entre elas, 
em sua própria distinção, uma espécie de correlação. Em 
outras palavras, do momento em que o sacerdócio não 
implica, de maneira habitual, no exercício efetivo da 
realeza, é preciso que os representantes respectivos do 
sacerdócio e da realeza extraiam seu poder de uma fonte 
comum. que está "além das castas"; a diferença 
hierárquica que existe entre elas consiste em que o 
sacerdócio recebe seu poder diretamente desta fonte, com 
a qual está em contato imediato por sua própria natureza, 
enquanto que a realeza. em razão do caráter mais exterior 
e propriamente terrestre de sua função, só pode receber o 
seu apenas por mediação do sacerdócio. Este, de fato, 
desempenha verdadeiramente o papel de "mediador" 
entre o Céu e a Terra; e não é casual que a plenitude do 
sacerdócio tenha recebido, nas tradições ocidentais, o 
nome simbólico de "pontificado". pois, tal e como disse 
São Bernardo, "o Pontífice, como o indica a etimologia 
de seu nome, é uma espécie de ponte entre Deus e o 
homem" (4). Se for possível então remontar-se à origem 
primitiva de ambos os poderes, sacerdotal e real. é no 
"mundo celestial" onde é preciso buscá-lo; isto. além do 
mais. pode ser interpretado real e simbolicamente, 
simultaneamente (5); mas esta questão é [uma] daquelas 
cujo desenvolvimento transbordaria o limite do presente 
estudo e. se tivennos devotado uma breve visão de 
conjunto, é porque não vamos poder evitar, no que se 
segue, aludir às vezes a esta fonte comum dos dois 
poderes. 
Retomando o que foi o ponto de partida desta 
digressão, é evidente que os atributos de sabedoria e de 
força se referem respecti,vamente ao conhecimento e à 
ação; por outra pane, na lndia, ainda se diz. em conexão 
com o mesmo ponto de vista, que o Brâhmane é o tipo 
56 
dos seres estáveis, e que o Kshatriya é o tipo dos seres 
mutáveis (6); em outros termos, na ordem social. que 
além do mais está em perfeita correspondência com a 
ordem cósmica, o primeiro representa o elemento 
imutável, e o segundo o elemento móvel. Aqui ainda, a 
imutabilidade é a do conhecimento, que por outra pane 
está representado sensivelmente pela postura imóvel do 
homem em meditação; a mobilidade, por sua parte, é 
aquela que é inerente à ação, devido ao caráter transitório 
e momentâneo desta. Enfim, a natureza própria do 
Brâhmane e a do Kshatriya se distinguem 
fundamentalmente pelo predomínio de um guna 
diferente; como em outro lugar explicamos (7), a doutrina 
hindu considera três gunas, qualidades constitutivas dos 
seres em todos seus estados de manifestação: sattwa, a 
conformidade à pura essência do Ser universal, que se 
identifica com a luz inteligível ou com o conhecimento, e 
é representado como uma tendência a'icendente; rajas, o 
impulso expansivo, segundo o qual o ser se desenvolve 
num determinado estado e, de certo modo, num nível 
determinado da existência; finalmente, ramas, a 
obscuridão, assimilado à ignorância, e representado como 
uma tendência descendente. Os gunas estão em perfeito 
equilíbrio na indiferenciação primitiva. e toda 
manifestação representa uma ruptura deste equilíbrio; 
estes três elementos estão em todos os seres. mas em 
proporções diversas. que determinam as respectivas 
tendências de tais seres. Na natureza do Brâhmane 
predomina sauwa, orientando-o para os estados supra-
humanos; na do Kshatriya, rajas, que tende à realização 
57 
das possibilidades compreendidas no estado humano (8). 
Ao predonúnio de sattwa corresponde o da 
intelectualidade; ao de rajas, o que, a falta de um tenno 
mais adequado, podemos chamar a sentimentalidade; e 
esta é outra justificação do anterionnente mencionado, 
que o Kshatriya não está feito para o puro conhecimento: 
a via que lhe convém é a via à que poderia denominar-se 
"devocional", se nos é permitido empregar tal tenno para 
significar, bastante imperfeitamente por sinal, a palavra 
sânscrita bhakti, ou seja, a via que toma como ponto de 
partida um elemento da ordem emotiva; e, embora esta 
via se ache também fora das formas propriamente 
religiosas, o papel do elemento emotivo não está em parte 
alguma tão desenvolvido como nestas. onde afeta com 
um colorido especial à expressão da doutrina toda inteira. 
Esta última observação permite advertir a 
verdadeira razão de ser destas formas religiosas: convêm 
particularmente às raças cujas aptidões estão, de maneira 
geral, dirigidas, sobretudo, à ação, quer dizer, àquelas 
que, consideradas coletivamente, têm nelas um 
predomínio de elementos "rajásicos", característicos da 
natureza dos Kshatriyas. Este caso é o do mundo 
ocidental e, por isso, como já em outro lugar assinalamos 
(9), diz-se na Índia que, se o Ocidente retornasse a um 
estado nonnal e possuísse de novo uma organização 
social regular, encontrar-se-iam muitos Kshatriyas, mas 
poucos Brâhmanes; também por isso a religião, entendida 
em seu sentido mais estrito, é algo

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