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ROMANCES PSICANAL

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FU~DAÇÂO GETULIO VARGAS 
I~STITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICOSSOCIAIS 
CENTRO DE POS-GRADUAÇÃO DI PSICOLOGIA 
ROMANCES PSICANALrTICOS E A CULTURA DA PSlCAN~ISE: 
FATO EM FICÇAO 
MARISA DOS SANTOS VIAL~E 
FGV/ISOP/CPGP 
Praia de Botafogo, 190, sala 1108 
Rio de Janeiro - Brasil 
AGRADECIMENTOS 
Ao Professor Luiz Felipe Baêta Neves Flores, pela su-
gestão criativa e orientações deste trabalho. 
Ao Professor Celso Pereira de sã, por suas sugestões 
calmas, amizade leal, confiança e orientação final. 
Ao Professor Franco Lo Presti Seminério, pelo estÍmu-
lo e constante generosidade. 
Às amigas do grupo de estudo, pela oportunidade de com 
partilhar dificuldades e apaziguar anseios. 
Aos funcionários do CPGP/ISOP e IESAE: sOlidariedade. 
Agradecimento particular a Débora , por sua datilografia entu -
siasmada e cuidadosa. A ErcÍlia,por sua impassível revisão. A 
Jonaedson, um apoio tenso num momento difícil. 
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e 
Tecnológico - CNPq, pelo fornecimento de bolsa para a realiza -
ção dessa pesquisa. 
A todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para 
a realização deste trabalho. 
:. 
" 
11 
RESUMO 
Este trabalho constitui o estudo de romances de ps! 
canálise considerados objeto do que já se convencionou denomi-
nar cultura da psicanálise. 
A análise desses romances permitiu o estabelecimen-
to de correlações entre a divulgação massiva da psicanálise e 
algumas das formas pelas quais esta é socialmente representa-
da: as formações discursivas extraídas das narrativas mostra-
ram a relação existente entre esses textos e o macrocontexto 
cultural. 
Assim, foi possível demonstrar que as formações ima 
ginárias apresentadas nos textos e a representação social da 
psicanálise correspondem a diferentes níveis desta mesma "cul-
tura da psicanálise". 
iii 
SUMMARY 
This paper consists on a study of psychoanalisis 
noveIs. Such noveIs are considered objects of what has abuady 
been determined to call "the culture of psychoanalisis". 
The analysis of these noveIs provided the 
establishment of correlations betiween the massive spread of 
psychoanalisis and some of the ways by which it is socially 
represented: the discursive formsts taken out of the 
narratives showeu the relation that existes among these 
texts and the cultural macrocontext. 
Thus. it was possible to show that the imaginary 
formations presented in the texts and the social representations 
of psychoanalisis. correspond to different leveIs of the sarne 
"culture of psychoanalisis". 
iv 
INTRODUÇAO 
o objetivo deste trabalho é identificar e analisar 
'noçoes concernentes à psicanálise encontradas em narrativas 
ficcionais, mais especificamente, em algumas narrativas que 
participam do que se pode denominar "li teratura de massa ou de 
mercado." (Sodré, 1985) 
Parte-se do pressuposto de que existe um tipo de na! 
rativa ficcional destinada ao grande público, que pretende 
por suas próprias características, estar aproximada da narra-
tiva psicanalítica, sendo mesmo denominada "romance psicanali 
tico". Haveria, portanto, algo explorável em literatura de 
mercado - um gênero psicanalítico, assim caracterizável por 
possuírem essas narrativas conteúdos provenientes da psicaná-
lise, ou seja, a psicanálise seria apropriada como o filão 
dessas narrativas. Enfim, a veiculação muito particular de no 
ções, conceitos e idéias da psicanálise e idéias sobre a psi-
canálise, neste gênero narrativo, constitui um "espaço psica-
nalítico" na literatura. E o objetivo desta dissertação é ex-
plorar um recorte desse espaço. 
Se o "romance psicanalítico" se apropria de conteú 
dos da psicanálise, esses mesmos conteúdos, divulgados nessas 
narrativas, difundem valores sobre a psicanálise (independen-
temente de corresponderem ou não à psicanálise stricto sensu) 
2 
- sendo passíveis de serem diversamente apreendidos. 
A difusão de idéias da psicanálise e sobre a psic~ 
nálise que decorre destas narrativas participa do que se pode 
denominar "cultura da psicanálise. Segundo Figueira (1985, 
p. 7): 
"Uma cultura psicanalltica (seja ela ameri-
cana~ francesa~ brasileira~ etc.) pode ser 
definida e pro tanto analisada~ de modos di 
Versos (como 'ideologia' ~ 'visão de mundo' ~ 
'sistema de representações' etc.)~ e arti-
culada à sociedade como um todo (ou a elas 
ses e segmentos sociais) segundo diferen = 
tes perspectivas teóricas. Sabe-seI ainda~ 
que uma cultura psicanalltica mantém uma 
relaçâo complexa com instituições e têcni-
cas de poder~ inspirando-as e por elas se~ 
do ampliada e difundida~ através de proce~ 
sos que já foram chamados 'modernização' ~ 
'disciplinação persuasiva' ~ 'neutralização' 
e 'apolitização' etc." (grifo nosso) 
As narrativas ficcionais de psicanálise podem ser 
incluídas nesta cultura da psicanálise porque são também "ins 
piradas" por ela~ difundem idéias da psicanálise (ainda que 
refratariamente) ~ e permitem a apreensão de valores sobre es-
ta, ou seja, contribuem para a formação de representações so-
bre a psicanálise, que se encontram no imaginário social. 
Para este trabalho foram escolhidos quatro textos 
básicos a partir dos quais a análise será desenvolvida. A es-
colha, explicada a seguir, abrigou um critério geral: textos 
que desenvolvessem em seus enredos a descrição de problemas 
emocionais ou de distúrbios psíquicos analisáveis ã luz da 
3 
psicanálise. 
o primeiro texto é Nunca lhe prometi um jardim de 
rosas (1974), escolhido por ser um dos mais conhecidos nesse 
gênero e grande sucesso de vendagem, tendo sido, inclusive, a 
base para a criação do roteiro de um filme que recebeu o mes-
mo nome do romance. 
A segunda narrativa é Bem-vindo silêncio, (1988) e~ 
colhido por tratar-se de obra de produção recente, e poder ser 
tomada como parâmetro de contra posição ao trabalho anterior. 
o terceiro é a Vida-intima de uma esquizofrênica , 
(1972) selecionado porque trata diretamente da esquizofrenia 
e porque contém uma visão sobre a psicanálise que difere da-
quelas existentes nos dois trabalhos anteriormente menciona -
dos. 
o quarto eúltimo texto é o livro de contos A hora 
de cinqUenta minutos, (1972) escolhido porque oferece diver-
sas nuanças sobre a psicanálise, vez que se constitui de cin-
co estórias diferentes. 
As análises serao feitas sobre textos traduzidos , 
e nao sobre originais, fato que nao inviabiliza o trabalho 
já que este se refere à análise de narrativas em função da di 
fusão da psicanálise, e as traduções escolhidas são as que ch~ 
gam ao grande público e possibilitam a existência do genero 
literário escolhido, que é, no nosso contexto editorial, am-
4 
pIamente dominado pela literatura estrangeira. 
Os textos escolhidos estão intitulados como "roman 
ces psicanalíticos" e fonnamuma série editorial que pertence 
ao que já se denominou gênero psicanalítico na literatura de 
mercado. Para que textos possam ser classificados como perte~ 
centes a um gênero é preciso que estejam submetidos a um con-
junto de coerçoes comuns. Entende-se, neste trabalho, que 
uma análise de textos genericamente organizados deve observar 
esse "conjunto de coerções", atentando para o sentidos possí-
veis de serem apreendidos nessa intertextualidade, que permi-
tam relacioná-los ao macro-contexto da cultura. 
O método utilizado consistiu numa primeira e "dis-
tanciada" leitura dos textos indicados seguida da execução de 
um trabalho descritivo-antropológico, o qual possibilitou a 
identificação de idéias-chave que orientaram a análise dos 
textos. 
Esse procedimento permitiu recortar categorizações 
dessas narrativas e reordená-1as de duas formas: sintagmática 
e paradigmática. O procedimento inicial, que permitiu a iden-
tificação de idéias-chave, foi o mesmo que permitiu estabele-
cer sintagmas narrativos. E, conforme ensina Barthes (1984) , 
"é lógico começar o trabalho pelo recorte sintagmático, poisé ele, em princípio, que fornece as unidades que se devem tam 
bém classificar em paradigmas." 
6 
Aplica-se, neste trabalho, o conceito de sintagma 
tanto a aspectos 1ingUísticos quanto narrato1ógicos, tal como 
é definido por Reis et a1ii (1988, p. 292): 
"O te~mo sintagma i utilizado em lingU{stica 
pa~a designa~ um conjunto de unidades suces 
sivas., linea~mente dispostas ao longo de uma 
extensão tempo~al., combinadas segundo ~e­
g~as de co-oco~~ência. Em na~~atologia., a 
exp~essão sintagma designa o p~óp~io discu~ 
so na~~ativo., o conjunto a~ticulado e se-
qUencialmente ordenado de enunciados que 
vinculam a história. Trata-se de uma expre~ 
sao que não delimita rigorosamente uma ex-
tensão., já que pode ser utilizada para re-
ferir o discurso na sua globalidade ou ape-
nas uma parcela desse discurso. A leitura 
linear de um texto na~rativo implica sempre 
um 'itinerário' ao longo does) sintagma (s) 
narrativo(s) que perfaz(em) a estrutura de 
superf{cie." 
A partir dos sintagmas narrativos de um desses ro-
mances e do próprio discurso dessa narrativa, identificou- se 
um conjunto de unidades sucessivas co-ocorrentes - o encadea-
mento: "doença", "tratamento", "cura", "a presença do psicot~ 
rapeuta", "a existência do doente". Nos termos de uma análise 
semiótica, dir-se-ia que a partir da mensagem foi possível a 
identificação de códigos que, nesses romances psicanalíticos, 
pelo seu próprio genero, se caracterizam pela simplicidade. 
Os aspectos paradigmáticos ou (sistêmicos) sao a-
queles que apresentam as várias formas pelas quais esses mes-
mos temas podem ser apresentados - por exemplo, a ordenação 
horizontal de todas as formas de cura apresentada em cada uma 
7 
das narrativas. O estabelecimento dessas variações ou paradi& 
mas permite que se efetuem contraposições intertextuais, e 
formam parte da conclusão deste trabalho. 
Além das decodificações dos "tratamentos psicanali 
ticos" narrados, identificaram-se aspectos informativos -pro-
prios do gênero literário e que estão explícita e implicita -
mente expostos nas narrativas: através da presença de expres-
sões conceituais próprias da psicanálise, ou através da cons-
trução narratológica de simulacros terapêuticos. 
As decodificações e os aspectos informativos des-
critos estão no nível dos conteúdos narrados, ou seja, rela -
cionam-se a história ou a fábula narrativa (Reis e alii, 1988). 
Contudo, as narrativas decompõem-se, metodologicamente, em 
história e discurso, que é o plano da expressão dos con-
teúdos. Umberto Eco (1979) utiliza o conceito de enredo refe-
rindo-se i história tal corno é contada, e acrescenta que num 
texto narrativo o enredo identifica-se com as estruturas dis-
cursivas que, uma vez atualizadas pelo leitor, permitem-lhe 
formular macroproposições discursivas. - ~ 
~ .. 
Reis et alii (1988), a propósito da definição do 
conceito de discurso, afirmam a possibilidade de se estabele-
cer um elo de ligação entre a acepçao narratológica de discur 
so - plano da expressão dos conteúdos narrados (ou história) 
- e a concepção benvenistiana de discurso, porque 
------~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-----------------------------
"o discurso narrativo ~ o produto do ato de 
enunciação de um narrador e dirige-se, ex-
plicita ou implicitamente, a um narratório, 
termo necessário de recepção da mensagem 
narrativa." (p. 27) 
8 
Partindo-se dessa relação, pretendeu-se ainda, ne~ 
te trabalho, proceder-se à apreensão de possíveis sentidos 
(ideológicos) referentes à psicanálise. Por meio da análise 
de enunciados, cujos sujeitos de enunciação sao as persona 
gens, procurar-se-á efetuar análise dos discursos dessas nar-
rativas ficcionais. 
No entanto, para que um texto exiba sua ideologia 
e preciso que ele seja também investido de juízos de valor p~ 
lo leitor (Eco, 1979). O objetivo desta dissertação - a análi 
se de "romances de psicanálise" - depende, para sua produção, 
em grande medida, do trabalho de leitura. Esta nunca é "neu -
tra" , pela própria recorrência que qualquer leitor faz a sua 
competência (informações provenientes de outros textos), afim 
de preencher os vãos inerentes a qualquer texto. 
As leituras procedidas para a execuçao deste traba 
lho também não o são - certamente foram preenchidos os vaos 
desses textos por leituras anteriores. Por outro lado, a e-
xecução deste trabalho resultou num outro preenchimento na 
aquisição de um texto para formulações posteriores. 
9 
I - ANALISE DE INTERPRETAÇAO DE NARRATIVAS 
l-NUNCA LHE PROMETI UM JARDIM DE ROSAS 
A sinopse desse romance apresenta Nunca lhe prome-
ti um j ardi'1l de rosas da seguinte forma: 
"O relato da experi~ncia de uma adolescente 
que aos 16 anos - após um longo processo 
de sofrimento e progressiva alienação men-
tal - foi internada num Hospital Psiquiá -
trico durante tr~s anos ~ feito de modo e-
mocionante por Hannah Green. 
Nunca lhe prometi um jardim de rosas cons-
tituiu, hã alguns anos, um best-seller de 
grande sucesso nos pa{ses de lingua ingle-
sa. Discorre sobre a vida dessa jovem psi-
cótica, dissecada atrav~s do tratamento psi 
coterápico. Hannah Green leva o leitor a 
vivenciar os mundos de Deborah, ricos, con 
flitantes e·apaixonantes. 
O mundo exterior, figurado por sua familia, 
do qual se sente impossibilitada de parti-
cipar, devido aos conflitos oriundos do re 
lacionamentos baseados em velhos esquemas 
carregados de preconceitos. Seu mundo inte~ 
rior, que ~ povoado de seres cósmicos, e8= 
petaculares e ~randiosos, onde ela se ref~ 
gia, opondo-o aquela realidade dif{cil de I 
viver. O conflito entre esses dois mundos 
e a paulatina fuga de Deborah para o últi-
mo ~ um dos quadros mais fascinantes do li 
vro. 
Hannah Green, magistralmente, nos põe em 
contato com um terceiro mundo, o do Hospi-
tal Psiquiátrico e seus habitantes. O biza!:.. 
ro dos encontros, a complexidade dos rela-· 
cionamentos, o impacto das descobertas nes. 
se ambiente aparentemente morto; o univer-
so limltrofe do mundo dos 'sãos'e dos 'in-
sanos'; o aspecto ao mesmo tempo punitivo 
e consolador desse terceiro mundo nos fami 
~iariza aom as dimensões humanas~ que em ne-
nhum momento são neg~igenaiadas~ mesmo sem a 
promessa de um Jardim de rosas." 
10 
Essa narrativa envolve, pois, três temáticas: a vi 
da interna da personagem psicótica, seus delírios - (o reino 
de Yr e seus personagens); o mundo externo da jovem psicótica, 
figurado pelos conflitos com seus familiares e suas inadapta-
ção aos valores desses; e a experiência de Deborah Bloch du-
rante sua internação em hospital psiquiátrico. Neste, Deborah 
é tratada de sua esquizofrenia. Aí, dá-se, também, o acompa -
nhamento psicanalítico realizado pela personagem daDra. Fried, 
mediante o qual a cura se realiza. Esta personagem, Dra. Fried, 
é a narradora da história, mais especificamente. é a narrado-
ra homodiegética.* Este aspecto é importante. e deve serobser 
vado. Como mostra Reis et alii (1988), 
*"De acordo com a terminologia proposta por Genette (1972m p. 
252 e segs.) o narrador homodiegetico ê a entidade que vei-
cula informações advindas da sua própria experiência diege-
tica, quer isto dizer que, tendo vivido a história como per-
sonagem, o narrador retirou daí as informações de que care-
ce para construir o seu relato, assim se distinguindo donar 
rador heterodiegetico, na medida em que este último não dis 
põe de um conhecimento direto. Por outro lado, embora fun ~ 
cionalmente se assemelha ao narrador auto-diegetico, o nar-
rador homodiegetico difere dele por ter participado na his-
tória não como protagonista, mas como figura cujo destaque 
pode ir da posição de simples testemunha imparcial a perso-
nagem secundária estreitamente solidária com a central." 
(Reis et. alii, 1988). 
.~ 
-- -------------------------------------------------
"A narrativa instaurada pelo narrador homo-
diegético suscita leituras interessadas no 
recursos a códigos temporais e de focaliza 
ção ativados emtal situação narrativa ~ 
Mas, além disso, a análise do discurso nar 
rativo de um narrador homodiegético valori 
zará também os termos em que se configura 
a imagem do protagonista, a partir de um 
critério de observação genericamente teste 
munhal e exterior, da{ que assuma, neste 
caso, um especial destaque a análise dos 
registros da subjetividade (registros do 
discurso), na medida em que nesses se pro-
jetam ju{zos que o narrador homodiegético 
perfi lha. Aquilo que para o narrador auto-
diegético é confronto de imagens de um su-
jeito (ele próprio) em devir, pode compli-
car-se, no caso do narrador homodiegético, 
o que estará em causa, então será um con-
fronto de personalidade cujo devir é tam -
bém o de uma relação interpessoal com inci 
dências mais ou menos profundas no campo i 
deológico." (Reis et alii, 1988, p. l24) 
11 
Em relação à presente ficção, a conseqUência desse 
estatuto da narradora é exatamente o destaque dado aos regis-
tros de subjetividade que implica maior aproximação do regis-
tro psicanalítico. Esta ficção está repleta de inferências s~ 
bre a subjetividade das personagens, constituintes tanto das 
descrições literárias, quanto das "interpretações psicanalíti 
cas". Observe-se o seguinte exemplo: 
"( ... ) Reinou um si lêncio intranqUi lo e, sem 
saber por que, Deborah encarou provocativ~ 
mente Linda, 'a autoridade psicológica' da 
Ala, que já havia lido tudo sobre o assun-
to e vivia distribuindo jargões como quem 
distribui moedas, afirmações de uma levia~ 
dade temerária, em suma, fugia à dor envol 
vendo-a em palavras pomposas e eruditas. 
Linda, apavorada com o olhar e a definição 
da antagonista, investiu furiosamente: Ri-
d{culo. Rid{culo. você está apenas raciona 
Zizando o seu pr5prio sistema de defesa." 
(p. 243~ grifo nosso). 
12 
Ou, ainda, estes outros, nos quais a narradora descreve os 
pais da jovem esqui zofrênica. Vej a-se que essas descrições co!. 
respondem, simul taneamente, à atribuição de s ignificados psic~ 
lógicos aos comportamentos ou ações das personagens. As des-
crições estão imbuídas de interpretações dessas subjetivida -
des: 
"( ... ) Dos tr~s o pai parecia o mais cansa 
do ( ... ). Voc~ sabe~ não sabe~ que eu nãõ 
tinha a menor noção de como educar uma cri 
ança~ do que significa ser um pai. Defen= 
dia-se e sua defesa era em parte uma a-
gressão ( ... )." (p. 7" grifo nosso) 
"( ... ) Dos dois~ eZa era a mais anaZltica. 
Antecipava-se às coisas ( ... ) enquanto o 
marido se deixava guiar~ não s5 por como-
dismo~ mas também porque geraZmente era 
eZa quem tinha razão. NaqueZe momento se~ 
tia-se confuso e s5. Deixou-a entregue a 
seus pZanos e especuZação~ incZusive por 
que era assim que eZa se consoZava ..• " 
(p. 7~ grifo nosso) 
"( ... ) As discuss5es entre eZe e Esther" 
que sempre escamoteavam a questao cruciaZ~ 
invariaveZmente terminavam num cZima mudo 
de rancor e acusação ... " (p. 25~grifo 
nOS80) • 
Os trechos acima demonstram, ainda, que essas des-
crições das personagens, além de formular interpretações so-
bre suas subjetividades, exprimem outra idéia cara à Psicana-
lise, a de que a essência cio fenômeno psíquico não correspon-
de necessariamente à aparência das ações, ou melhor as expre~ 
sões não correspondem sempre às intenções. Estão presentes 
13 
tanto nas subjetividades das personagens, quanto nas suas in-
ter-relações, marcas de antagonismo e ambigUidade, tal como 
mostram esses trechos, nos quais estão cescritas açoes e sen-
timentos do pai de Deborah, após sua internação: 
"( ... ) Meu Deus~ como ri essa noite. H~ s~­
culos nao me divertia tanto! Calou-se. pen 
sativo - Puxa! Serâ que foi mesmo h~ tantã 
tempo? Anos? 
- Sim - disse ela (mae) - foi h~ muito tem 
po. 
- Então talvez seja verdade que ela estava 
( ... ) infeliz. 
- Doente - emendou Esther 
fo ---nõ$Sõ) • 
" (p. 27~ gri 
"( ... ) Vamos esperar mais um pouco Jacob. 
Esther sabia~ contudo~ que esse 'esperar -
um-pouco' era mais uma das portas por onde 
ele se esquivava discretamente dos proble-
mas. Ou seja: feche os olhos e pronto! Tu-
do volta a correr as mil maravilhas •.. " 
(p. lJ6). 
Em suma, o que se observa; que em toda a narrati-
va, o romance está imiscuído de explicações psicanalíticas.T~ 
dos os sintagmas próprios ao genero - a doença, suas causas, 
o tratamento, a cura e as personagens estão claramente referi 
dos ao registro psicanalítico, imprimindo-lhe, finalmente, um 
sentido que pode ser depreendido da sua leitura - o de que a 
esquizofrenia; tratável pela psicanálise. Esse sentido, que 
vai se ordenando atrav;s de muitas enunciações diluídas por 
toda a narrativa e que correspondem a id;ias provenientes da 
psicanálise; permitem, pelo modo como são apresentadas, a for 
14 
mulação de valores sobre a Psicanálise. Essas enunciações se-
rão aqui apresentadas numa nova disposição, a fim de se expor 
mais claramente as concepções de Psicanálise existentes neste 
romance. 
Em primeiro lugar, a esquizofrenia da paciente 
demonstrada pela exposição na narrativa de um laudo-simula 
cro. Este, além de tornar verossímil a ficção, ao descrever o 
-e 
comportamento da paciente, descreve, também, sobre a esquizo-
frenia. Veja-se em seguida: 
"Blau, Deborah F., l6 anos, Hosp. Prev. 
nenhu., Diagnóstiao iniaial: esquizo -
frenia. 
l. Teste - Os testes evidenaiam um quoaiente 
de inteligênaia (l40-l50; elevado, embora 
oaorram distorções nas amostragens resul-
tantes da doença. Varias questões mal in-
terpretadas, de maneira exaessivamentes~ 
jetiva. Reação inteiramente subjetiva ã 
entrevista e testes. Os testes de persona 
lidade revelaram aomportamento tipiaamen= 
te esquizofrêniao, aom aomponentes aompul 
sivos e masoquistas. 
2. Entrevista (iniaial; - De inlaio, a paai-
ente pareaia bem orientada e lógiaa nos 
seus pensamentos, mas aom o desenrolar da 
entrevista, a lógiaa aomeçou a ruir, ela 
passou a demonstrar extrema ansiedade di-
ante de tudo que pudesse ser interpretado 
aomo aorreção ou arltiaa. Fez o que pôde 
para impressionar o entrevistador aom sua 
perspiaáaia, utilizando-a aomo uma formi-
dável defesa. Em três oaasiões diferentes, 
riu inoportunamente: a primeira, quando 
dealarou que a hospitalização resultara de 
uma tentativa de suialdio; as duas outras, 
por oaasião de perguntas relativas à data 
do mês. À medida que prosseguia a entre -
vista, sua atitude foi mudando. Começou a 
falar alto, aitando episódios aasuais de 
sua vida que considerava responsáveis por 
sua doença. Mencionou uma oFeração aos 
cinco anos de idade~ cujos efeitos foram 
traumáticos~ uma babá cruel~ etc. Os inci 
dentes não tinham relação er.tre si~ nem 
se inclu{am em qualquer padrão. Subitamen 
te~ em meio à narrativa de um acontecimen 
to~ a paciente avançou~ dizendo em tom a= 
cusador: ' Eu diss e a verdade sobre essas 
coisas~ e agora~ vai me ajudar?' Conside-
ramos melhor encerrar a entrevista. 
3. História familiar - Nasceu em Chicago ~ 
Illinois~ outubro de 1932. Amamentada até 
o oitavo mês. Uma irmã~ Susan~ nascida em 
193? Pai~ Jacob Blau~ contador~ cuja fa-
m{lia emigrou da Polônia em 19l3. Parto 
normal. Aos cinco anos de idade a pacien-
te sofreu duas operações para extipar um 
tumor no aparelho urinário. Dificuldade fi 
nanceiras obrigaram a fam{lia a se mudar-
para a casa dos avós~ nos suburbios de 
Chicago. A situação melhorou~ mas o pai 
adoeceu; úlcera e hipertensão. Em 1942 a 
guerra forçou-os a mudar para a cidade. A 
paciente não se ambientou~ tendo sido ri-
dicularizada pelos colegas de escola. Pu-
berdade fisicamente normal. Aos le anos ~ 
contudo~ a paciente tentou suic{dio. Ha 
antecedentes de hipocondria na fam{lia ~ 
mas exceto o tumor~ a saúde tem sido boa." 
(p. le/l?). 
15 
Além disso, a esquizofrênica se caracteriza por e~ 
tar imersa num mundo próprio ao qual é preciso ter acesso pa-
ra tratá-la. Disso pode-se depreender que o esquizofrênico se 
caracteriza por possuir um texto particular. Veja-se o segui~ 
te: 
"( ... ) as linguagens~os códigos~ os sacrif{-
cios não passavam de expediente que ela mani 
pulava para sobreviver num mur.do anárquico e 
opressivo •.. ".(p. le?) 
16 
A esquizofrenia se caracteriza, então, pelo compo! 
tamento manifesto da personagem, e este corresponde aos sint~ 
mas da doença. Veja-se nessa outra passagem uma descrição de 
sintomas da esquizofrenia: 
"r ... ) Antes do incidente Deborah apresenta-
va um comportamento mórbido e siLencioso ~ 
ou então, mórbido e satirico~ um rosto inva 
riaveLmente inexpressivo~ maneiras sarcásti 
cas e superiores. Eram sintomas inegâveis da 
grave doença mentaL. Comportava-se~ atual -
mente, como todas as pacientes da Ala D, ou 
seJa~ estava 'maluca' ... " rp. 203~ grigo 
nosso). 
Esses sintomas, no entanto, nao sao a doença. Essa 
idéia é várias vezes repetida na narrativa, inclusive como o 
motivo pelo qual a terapia psicanalítica se justifica como a 
mais adequada, tal como esta enunciada nesse trecho: 
Ou, ainda, 
E, aqui, 
"( •.. ) No entanto, há um outro aspecto que 
você parece admitir, a doença e os sintomas 
são coisas distintas~ ainda que se confun -
dam freqUentemente. você não concorda que~ 
embora os sintomas estejam intimamente rela 
cionados â doen a e in luam or Vezes sobre 
ela, nao se trata a mesma coisa? Concor o." 
rp. lOl, grifo nosso). 
"Por favor, doutor~ os meus sintomas nao sao 
a minha doença." rp. l?3). 
"2 importante que fique alaro que os sinto-
mas não são a doença - disse a doutora. 
Tais sintomas re resentam de esas~ ~ormas 
dela se proteger. Aare item ou nao~ a doen 
ç~ ê o üniao solo firme de que Deborah dis 
poe. 2 este solo ... " (p. ll6~ grifo nossoT. 
"( ... ) Os sintomas~ a doença e os segredos 
têm muitas razões de ser. As partes e faae 
tas se emaranham~ fortaleaendo-se mutuamen 
te ( ... )" (p. 2l2) 
17 
1: di to ainda que as causas da doença, na narra ti va, 
sao complexas, e por isso o tratamento consiste na busca de 
causas pessoais ou verdades pessoais. Vê-se isso enunciado no 
trecho seguinte no qual a Dra. Fried é argUida pela mãe de 
Deborah sobre quais as causas da doença: 
"( ... ) Sabe todos esses dias não paramos de 
pensar em aomo e por que isso aaonteaeu 
Ela reaebeu tanto amor. Disseram-me que es 
sas doen as são aausadas elo assado e p~ 
la infanaia da pessoa. Por isso to os es-
ses dias não paramos de pensar sobre o pas 
sado. Eu proaurei~ Jaaob proaurou~ e toda 
a fam{lia pensou e espeaulou~ e ainda as-
sim não aonseguimos enaontrar qualquer ra-
zão. Não existe uma aausa~ entende~ e é i~ 
so que nos assusta. 
- As aausas são tão vastas que é imposs{ -
vel peraebe-las de imediato~ difiailmente 
ahegaremos a aompreendê-las em toda a sua 
aomplexidade. Podemos~ isso~ sim~ aontar 
nossas verdades pessoais e loaalizar aau 
sas pessoais ... " (p. 33~ grifo nosso). 
A esquizofrenia possui, então, causas complexas. 
Essa complexidade, ver-se-á a seguir, implica que as causas 
não são necessariamente nem hereditárias nem adquiridas: 
"( ... ) Estou pensando na diferença que h~ 
entre a m~ conduta e a felonia ( ... ). O 
prisioneiro se declara culpado, recusan-
do a setença de que não é portador de ne 
nhum mal grave, e agora aceita o veredia 
to de culpado por loucura em primeiro 
grau. 
- Em segundo grau, talvez - corrigiu a 
doutora sorrindo, 
nem 
preme 
18 
E, ainda, implica que o desenvolvimento da esquiz~ 
frenia depende das experiências vivenciadas pelo individuo e 
do desenvolvimento e estruturação de seu psiquismo, conforme 
informam os seguintes trechos: 
"- Minha mãe lhe contou tudo respondeu 
Deborah asperamente, das altas e gélidas 
regiões de seu reino. 
Ainda aqui. 
- Sua mãe contou o que ela lhe deu 1 
o que você recebeu, o que ela viu, 
o que voce viu. 
nao -nao 
Falou por exemplo daquele tumor ... " (p • 
45). 
"- Eu me pergunto se nao h~ um padrão de 
conduta ( ... ) - disse a Dra. Fried - vo-
cê expõe um segredo a nossos olhos, de-
pois fica tão apavorada que foge para se 
esconder em pânico ou em seu mundo miste 
rioso ... " (p. 6Z). 
E, finalmente: 
"( ..• ) Tinha nOVe anos ( ... ). No entanto~ 
desde aqueZe ano ( ... ) aZguma coisa ( .•. ) 
começou a funcionar maZ neZa. Da{ em di-
ante foi como se ela mantivesse a cabeça 
baixa já esperando peZas bofetadas. 
- Esperando pelas bofetadas ( ... ) repe -
tiu a doutora~ pensativa. E então veio a 
época~ isso depois~ a época em que ela 
mesma começou a providenciar as pancadas. 
- Esther voltou-se para a doutora: 
- t isso que é a doença? 
- Um sintoma talvez ( ..• )." (p. 42) 
19 
Uma conseqUência dessas idéias expostas é que o 
tratamento psicanalítico está justificado na narrativa, ou se 
ja, o tratamento consiste na busca de causas pessoais, e des-
sa reconstrução resulta a cura. Esse processo de "contar ver-
dades pessoais e localizar causas pessoais" consiste, ainda, 
na revisão do passado e da infância da doente. Veja-se isso, 
neste exemplo: 
"( ... ) Muito interessante! - dis8e Purii. 
- Agorq~ de duas uma: ou eu estou Zouca~ 
ou voce construiu essa história inteiri-
nha aos cinco anos~ no dia em que entrou 
e viu o bebê no berço~ odiando-o o 8ufi-
ciente para desejar matã-Zo ( ... ). 
- Não é poss{veZ~ eu me Zembro ( •.• ). 
- A vergonha que~ segundo você, seus pais 
sentiam todos esses anos ê uma inven ão 
o seu sentimento e cuZpa por ter dese-
jado a morte de Suzy ( ... )." (p. 223). 
E, ainda aqui: 
"( ... ) Os pensamento 'de Deborah recuaram no 
tempo até aquele fat{dico quarto: viu-se 
aos cinco anos olhando~ junto ao pai~ a ir 
mazinha. Seus olhos estaVam no n{vel dos 
nós dos dedos da mãe de le. Por causa do cor 
tinado do berço~ precisou se erguer na po~ 
ta dos pés e espreitar a borda. Nem sequer 
toquei nela ... - murmurou abismada - nem 
sequer toquei nela ... " (p. 224). 
"( ... ) Deborah est~ sendo instada a 
( ... ) todos esses anos de vivência 
conheceu como realidade e aceitar 
são do mundo". (p. ll6) 
anular 
do que 
outra ver 
20 
Para descobrir as verdades pessoais de Deborah, a 
doutora procura penetrar no mundo imaginário da esquizofrêni-
ca, que para ela, é real. A doença é aqui entendida corno urna 
ficção da doente. A idéia provém da Psicanálise - o delírio co 
mo ficção, e também está presente na narrativa de: A vida Ín-
timida de urna esquizofrênica. 
Observe-se os seguintes trechos: 
"(o •• ) Não tenho d~vida de que para voci ~ 
ele existe (reino de Ir - mundo imagin~rio 
da doente)~ ( ... )." (p. lal); 
"( ... ) - ( •.. ) Em matéria de decepção sou es 
pecialista~ sabe. Inclusive~ um dos meus 
nomes em Ir é A Eterna Decepcionada. 
- ( ... ) Pergunto-me também se eles não de-
cepcionaram voci apenas para se sujeitarem 
à própria visão que voci formou do mundo. 
( ... ) Deborah estava visivelmente exausta 
de todas aquelas coisas~ que sinceramente 
acreditava explicar suas motivações. Uma 
linguagem secreta que camuflava uma ainda 
mais secreta. Um mundo que dissimulava ou-
tro mundo. Sintomas que resguardavam sinto 
mas muito mais densos ( ... )." (p. 65) -
21 
A narrativa mostra que o mundo imaginário da doen-
te possui correspondência com o mundo real dessa, por exemplo 
- o grande coletor, síntese de todas as imagens de professo -
res, parentes, todos que se reunissem para julgar e atormen -
tar Deborah; o Censor, aquele que se interpunha entre suas a-
ções e palavras. A psicanalista busca descobrir as verdades 
pessoais de Deborah, penetrando em seu mundo imaginário, a 
fim de trazê-la de volta à realidade, ou à sanidade. A mensa-
gem, é, portanto, que a loucura é igualável à ficção. Pode-se 
extrair o que foi dito dos seguintes trechos. No primeiro, o 
ingresso e a familiaridade da doutora com o mundo imaginário 
de Deborah: 
"( ... ) Eu me pergunto se n50 h~ um padr50 
( ... ) disse a Dra. Fried - você expõe um 
segredo a nossos olhos~ depois fica t50 
apavorada que foge para se esoonder no 
pânico ou em seu mundo misterioso - ~i 
Yr ou ali. 
- Pare com esses trocadilhos - zangou-
se Deborah~ e ambas riram( ... )." (p. 6l) 
Este outro expoe, através da enunciação de Deborah 
sobre a "realidade" de seu "mundo fictício", e ainda o porque 
de consistir o tratamento psicanalítico no ingresso no mundo 
do doente: 
"Bem ... - suas idiias oomo que sa[ram a 
luz do sol. - Porque sou louoa! No momen 
to em que vooê admitiu que eu estava do~ 
ente~ ou seja~ admitiu que eu estava do-
ente e que mereoia fioar internada num ho!!... 
pital~ provou-me que eu era mais 's5' do 
que imaginava. Sabe~ mais s5 quer dizer 
mais forte. 
- Olhe~ todos esses anos eu soube que esta-
va doente~ mas ninguém admitia isso. 
- Exigiram de voaê que desaonfiasse até mes-
mo da realidade que lhe era mais próxima~ e 
que voaê disaernia de forma alar{ssima. Não 
é para menos que o doente mental tolera tão 
pouao as mentiras ( ... )." (p. l58). 
22 
De acordo com a narrativa, o tratamento psicanalí-
tico compreende a substituição gradativa da doença pela saú -
de. Este é o trabalho dessa psicanalista, sendo também o motl 
vo segundo o qual, dentro desse ponto de vista, os tratamentos 
medicamentosos efetivamente não curam: 
"( ... ) Os sintomas~ as doenças e os segredos 
têm muitas razões de ser. As partes e faae-
tas se emaranham e se sustentam umas às ou-
tras~ fortaleaendo-se mutuamente. Se não fos 
se assim~ bastaria apliaar uma injeçãozinha 
dessa ou daquela droga~ ou então uma breve 
hipnose~ e exalamar: 'Louaura~ desapareça!' 
e pronto~ voaê estava aurada "(p. llB) 
A propósito de outros tratamentos. duas outras pe! 
sonagens apresentadas são actantes da função psicoterapêutica 
- um psiquiatra e um psicólogo. A passagem dessas duas perso-
nagens demarca uma diferenciação entre o ponto de vista psic~ ... 
nalítico, o psicológico e o psiquiátrico. através de enuncia-
ções relativas às diferentes concepções sobre a natureza da 
doença e sobre a forma de tratá-la. Pode-se ler 
de diferenças nessas duas passagens: 
afirmações 
"( ... ) Voltou a se aonaentrar nos fatos e 
nos números. Um relatório semelhante levará 
a~ aerta vez~ a aomentar aom o psiaólogo do 
E, ainda: 
HospitaL: - ALgum dia precisamos descobir 
um teste que também nos mostre onde está 
a saüde. 
o psicóLogo respondeu que poderiam saber 
isso por meio do hipnotismo~ do ametil e 
do pen to ta L. 
- Discordo - retrucou a Dra. Fried - Essa 
força que se mantém oculta é um segredo 
profundo demais. Mas no fundo~ no fundo ~ 
~ ~o 10d "( 1) e nossa un~ca av~a a... p. v7 • 
"Deborah persistiu na sessao seguinte e na 
seguinte e na seguinte~ mas as reações au 
tomáticas e inexpressivas do médico acabã 
ram fazendo com que e la se fechasse num mu 
tismo denso como a noite. Ele procuravã 
de todos os modos convencê-la de que o 11' 
era uma linguagem elaborada por ela mesm~ 
e nao uma dádiva enviada pelos deuses. Es 
miuçou as primeiras palavras citadas por 
Deborah para demonstrar que se compunham 
de fragmentos do latim~ francês e alemao~ 
e que qua lquer criança de nove ou de z anos 
de idade poderia formulá-las se quisesse. 
Analisou a estrutura das sentenças~ procu 
rando levá-la a admitir que~ com rartssi= 
mas exceções~ reproduziam a estrutura do 
inglês~ o idioma no qual foi educada des-
de pequena. A tática era engenhosa~ deta-
lhada~ brilhante por vezes~ e Deborah te-
ve freqilentemente que concordar com ele 
" (p. l73). 
23 
Em contrapartida a essas idéias de tratamento ex-
postas, a terapia psicanalítica da Dra. Fried busca recordar 
para resgatar na memória elementos para a reconstrução da sa-
nidade, porque segundo ela enuncia, 
"( ... ) as recordações nao perdem suas for-
ças originais~ mas depois de recalcá- las 
anos e anos seguidos~ acabam adquirindo um 
peso quase insuportáve l." (p. ) 
24 
A comprovaçao dessa verdade é exemplificada quando Deborah re 
lembra que um de seus deuses imaginários - Anterabae - cores-
pondia à gravura de Satã de Paradise Lost, de Milton. 
Sobre as diferenças entre os tratamentos, está im-
plícito na narrativa que a tentativa do psiquiatra que busca 
tratar da esquizofrenia apelando para os aspectos cognitivos 
do doente esta fadada à falência. O esquizofrênico nao sofre 
de incapacidade intelectual, idéia também divulgada em A vida 
íntima de uma esquizofrênica. Veja-se essa idéia explicitameg 
te enunciada nos seguintes parágrafos: 
"- Se eu sou aapaz de aprender essas aoisas 
( ••• J pergun tou Deborah~ ( ... J aapaz de ler 
e aprender~ por que a vida aontinua tão 
obsaura? 
Car la a fi tou~ sorrindo aomp laaen te. Deborah~ 
quem foi que lhe disse que aprender fatos~ 
teorias ou l{nguas tem alguma aoisa a Ver 
aom a gente entender a si mesma? Entender 
o que voaê tem de espea{fiao e distinto das 
outras pessoas ... 
- Quer dizer então que a pessoa pode apre~ 
der~ aprender e aontinuar esquizofrêniaa ? 
" (p. l28-9J 
Essa capacidade adquirida por Deborah de "entender 
o que tem de específico e distinto das outras pessoas" é pro-
duto, nessa ficção, do trabalho do psicanalista; ou, ainda, o 
"entendimento de si mesmo" resulta do trabalho que está no 
registro do psicanalítico. Além dessa, outras características 
da esquizofrenia são expostas no romance de Hannah Green. Re-
2S 
ferem-se ao estigma, à vivência de liberdade na loucura, à a-
guda percepção dos sentimentos do outro pelo esquizofrênico . 
Sobre o processo da doença, encontram-se na narrativa proposi 
ções referentes ao desenvolvimento da loucura, enquanto .. defesa 
as fases da doença - o aprofundamento que obj eti va a cura, a fa-
se de recaída, a crise súbi ta como antecedente à cura; e ainda: 
às diferenças entre os loucos - doente-doente e os doentes 
sãos; referente aos traços que fazem com que uns tenham mais 
disponibilidade e/ou chances que outros de se curarem. 
As relações familiares também sao relacionadas a 
doença nessa narrativa, analisando-se a influência de familia 
res sobre o doente à luz de explicações psicanalíticas. Eles 
podem impedir ou permitir que o doente se cure: 
"( ... ) 'Meus pais viram muito mais 6dio do 
que amor~ e ainda assim permitiram que 
eu fioasse mesmo sem haver qualquer si-
nal de progresso e por muito tempo' 
Jamais exi iram ue e la se reou erasse a 
ra restaurar o prest~gio a fam~lia. 
( ... ) No final das oontas~ foi liberdade 
o que e les me deram. Os de Carmem não lhe 
deram sequer uma ohanoe~ ao passo que os 
meus •.. " (p. 24l) 
"( ... ) Muitos pais afirmavam - frequente-
mente oom sinoeridade - que queriam aju-
da para seus fi lhos ~ e no fina l aoabavam 
mostrando que havia todo um esquema mon-
tado~ em segredo~ oonsoiente ou inoonsoi 
entemente~ e que inevitavelmente redunda 
ria na ru{na de seus filhos. Isso porque 
a independênoia de uma oriança represen-
ta uma ameaça inadmiss{vel quando o equi 
l{brio dos pais é preoário ( ..• )". -
(p. 32). 
"( ... ) o ressentimento aom a hospitalizaç50 
de Deborah masaarava~ na realidade~ seu or-
gulho ferido de imigrante ( ... )" (p. 26) 
26 
As relações familiares podem influir sobre o desen 
volvimento da doença e, conforme informa a narrativa, por ve-
zes durante anos. Veja-se esses trechos: 
"( ... ) Estou aontando isso porque quero que 
voaê entenda que é imposslvel tentar refa-
zer o mundo para proteger as pessoas que 
amamos ( ... )." (p. 42) 
"( ... ) A Dra. Pried aompreendeu que Esther 
aonseguira superar a sujeiç50 para aom o 
pai. Tornara-se uma mulher forte~ segura e 
até mesmo dominadora. A determinaç50 que 
lhe permitia aonquistar todos os inimigos 
de Deborah~ prejudiaando ao invés de aju -
dá-la~ poderia ser a determinaç50 salvado-
ra agora ( ... )." (p. l8?) 
"Quantas vezes~ naquela mesma sala~ pais~ 
maridos ou esposas~ no último minuto~ re-
jeitavam aom repugnânaia a pavorosa reali-
dade da doença. ( ... ) Era medo~ ou uma jus 
ta impress50 negativa ou - aqueZe gr50 ht= 
brido de aiúme e ódio que sempre os impedia 
de interromper a Zonga suaess50 de misérias 
uma geraçao apôs a sua ( ... )." (p. l Z~ gri 
fo nosso) 
Finalmente, a cura se efetua quando Deborah adqui-re uma compreensão dinâmica entre as suas vivências subjeti -
vas e objetivas. Para a terapia psicanalítica, conforme se de 
preende do texto, a doença decorre de causas complexas, e a 
cura advém da compreensão dessa dinâmica, através da reconsti 
tuição da história da vida psíquica e da vida externa da doen 
te. As chamadas causas complexas, nessa narrativa, incluem 
-- ----~~----------------------------------... 
desde aspectos pessoais, aos familiares e sociais, tal 
mostram as seguintes transcrições: 
"( ... ) Graças aqueLes meses de terapia 
Deborah começou a perceb er que havia mui-
tas razões para o horror que o mundo Lhe 
inspirava. A sombra do avo~ o poderoso~ 
soberano da dinastia projetava-se ainda 
sobre todos da fam{Lia. Lembra-se niti-
damente de sua voz famiLiar instando: a 
segunda da cLasse não basta~ você tem 
que ser a primeira! ( ... ). ( ... ) Ou en-
tão - Quando a machucarem nunca chore . 
Ria! Não permita em hip5tese aLguma que 
eLes vejam que conseguiram atingi-La" 
(p. ZOL/2) 
~ 
"Deborah~ cresceu numa epoca e num ambi-
ente em que os judeus americanos conti-
nuavam acossados ( ... ) a medida que o 
poderio de Hitler ia se expandindo pela 
Europa~ ( ... ) Deborah lembrava-se de ter 
encontrado várias vezes a mansão dos 
BLau salpicada de tinta~ ( ... ) ou rat'?,s 
mortos ( ... ) Conheceu de perto esse 0-
dio anti-semi tia e chegou mesmo a ser 
agredida ( ... ). O avô~ no entanto~ ( ... ) 
t inveja. Os mais capazes e espertos são 
sempre invejados. Caminha de cabeça er-
guida~ e se a agredirem não dê o braço 
a torcer ( ... ) em seguida~ com palavras 
cheias de 5dio: ( ... ) Você ainda vai 
l h e s dar um a b o a L i ç ã o (...)". ( p • l O 2 ) 
"A lição que ela tinha que dar consistia 
em exibir uma postura que seduzisse e 
impressionasse as pessoas: sua precoci-
dade. Os resuLtados pareciam confirmar 
as paLavras do velho ... Durante muito 
tempo~ enquanto vigorou a trégua armada 
contra o mundo~ Deborah usuo sua sagaci 
dade cáustica para maraviLhar e esterre 
cer os aduLtos. No entanto~ esta preco~ 
cidade jamais iLudiu as crianças de sua 
idade. Percebiam o que acontecia com 
eLa~ e sábias~ partiam imediatamente pa 
ra uma posição de ataque." (p. l02/3)-
27 
como 
"Portanto~ voc~ se constitula num soLo dos 
mais proplcios para que a semente de Yr 
germinasse~ concLuiu a doutora. As decep-
ções com o mundo dos aduLtos. O abismo e-
xistente entre as pretensões do seu avo e 
o mundo que a cercava." 
28 
Além dos enunciados transcritos correspondentes a 
concepçoes da Psicanálise, também se encontram na narrativa 
termos e tópicos próprios desta, tais como: recalque, senti -
mento de culpa, mecanismos de defesa; há um sonho e sua inter 
pretação; e a questão da sexualidade infantil. A Psicanálise 
constituiu, nessa ficção, o tema fundamental de construção do 
enredo. 
A narrativa possui duas heroínas: a psicanalista 
e a doente. A psicanalista representa a salvadora e 
fiel. Deborah, a doente, é a heroína que não desiste 
amiga 
diante 
das dificuldades. Ela ainda se empenha e se compromete total-
mente na aventura de seu tratamento. A relação de ambas reme-
te ao tema de heróis aliados, tal como D. Quixote e seu fiel 
escudeiro. 
- --------------------------------------------. 
29 
2 - BEM-VINDO SILENCIO 
A segunda ficção que será analisada é Bem-vindo si 
lêncio. Entretanto, para se iniciar a análise faz-se necessá-
rio um breve relato da narrativa. Escolheu-se transcrever a 
própria sinopse apresentada na ficção corno forma ideal, neste 
caso, por expor aspectos gerais sobre a narrativa que 
explorados no curso da análise. A sinopse é a seguinte: 
"Bem-vindo silêncio" 
Carol S. North 
serao 
Esta é a surpreendente estória de urna mulher, da 
sua viagem às profundezas da doença mental e o retorno à sani 
dade - a uma vida feliz e a sua carreira. 
Carol North era ainda bem pequena quando os sinto-
mas da esquizofrenia começaram a se manifestar. Ela 
sempre escutando vozes e tendo visões. 
estava 
O seu relato desses fenômenos é um dos mais inten-
sos e convincentes. Apesar de doente, Carol North foi excelen 
te aluna no colégio e na universidade, conseguiu até mesmo in 
gressar numa das melhores escolas de medicina do país. Mas a 
inexorável luta diária contra o persistente desligamento da 
30 
realidade era extenuante e ela começou a sofrer colapsos e a 
ter impulsos suicidas. Desentendeu-se com a família e afastou-
se dos amigos, inclusive de um dedicado namorado. Esteve hos-
pitalizada devido à doença e os seus relatos do tratamento r~ 
cebido no hospital são pungentes e chocantes. Medicada com 
drogas em altas doses, ela padeceu com os terríveis efeitos 
colaterais, e o tratamento psiquiátrico que recebeu nao foi 
eficaz. Porém teve a sorte de encontrar, finalmente, um psi-
quiatra competente e sensível que compreendeu o seu empenho 
em se tornar médica e que trabalhou com esta forte motivação 
na tentativa de mantê-la bem. As pressões sofridas diante dos 
estudos que tinha que enfrentar na faculdade acabaram tornan-
do-se insuportáveis e, depois de mais algumas tentativas de 
suicídio, seu médico adotou medidas mais drásticas. Carol foi 
inscrita num programa experimental de tratamento de diálise , 
o mesmo aplicado aos pacientes com insuficiêncial renal. Cu-
-rou-se, literalmente, da noite para o dia. E, o que e mais 
incrível, voltou à faculdade e hoje e psiquiatra. 
Esta história envolvente e, por fim. triunfante da 
luta corajosa para vencer a doença mental interessará àqueles 
que já tiveram lido Nunca lhe prometi um jardim de rosas ou 
11m dancing as Fast as 1 cano t uma história que servirá de 
estímulo para aqueles que sabem o que é lutar diante de difi-
culdades esmagadoras. 
31 
Nesta sinopse sao apresentados dos dois conteúdos 
que, entremeados, constituem a narrativa: a história da doen-
ça (seu desenvolvimento, tratamento, cura); e a história de 
vida da personagem protagonista - família, amores, estudos 
sendo este último aspecto o mais especificamente explorado na 
narrativa. 
Esses dois conteúdos organizam o plano das estrut~ 
ras narrativas, podendo ser ainda denominados história ou fá-
bula, e referem-se ao esquema fundamental na narração. Partin 
do-se desses conteúdos, é possível a formulação, numa primei-
ra leitura, da seguinte macroproposição: =B~e~m~-_v~l~·n~d~o __ ~S~l~·~lê~n~c~i~o 
conta a história de uma doente - cuja doença, esquizofrenia, 
é incurável, - que é também estudante de medicina. 
Esses conteúdos, atualizados (pelo leitor), permi-
tem macroproposições mais profundas, formuláveis no nível das 
estruturas discursivas, nível que corresponde ao enredo ou 
discurso, e no qual se dão as expressões daqueles conteúdos 
(a história tal como é contada). Aqui, dir-se-ia que Bem-vin-
do silêncio conta a história de uma estudante de medicina que 
se cura de uma doença incurável. 
Sobre esta macroproposição discursiva, podem-se for 
mular outras que sintetizam partes inteiras do discurso, tal 
como a sinopse citada, e que se organizam ao nível das estru-
turas actanciais ou ideológicas. Por aqui, pode-se dizer que 
Bem-vindo silêncio conta como uma estudante de medicina conse 
guiu se formar, vindo a ser psiquiatra, apesar de ter passado 
parte de seu curso sofrendo de uma doença incurável. 
Da leitura cooperativa empreendida para esta análi 
se (níveis actancial e ideológico), entendeu-se que Bem-vindo 
silêncio é, também, uma narrativa que se constitui sobre a 
oscilação entre dois tipos básicos de tratamento: os que atri 
buem causas de natureza psíquica à esquizofrenia, e outros 
que a entendem como conseqUente de causas orgânicas. 
Isso foi inferido a partir da observação de que e~ 
ta ficção não apresenta nenhum personagem especificamente ca-
racterizado como um psicanalista, como ocorre nas três outras 
(ainda que Bem-vindo silêncio também participe da série-roman 
ce e psicanálise). Foi possível, então,reconhecer um mesmo 
papel actancial ou função narrativa (Eco, 1979), que é desem-
penhado por vários personagens. Estes ocupam na narrativa um 
"lugar", que é o do psicoterapeuta. Assim, existe um só "lu-
gar" (função actancial) por onde passam vários personagens 
(actores) e que sao também sujeitos de enunciações (Reis, 1988). 
Ver-se-á, então, se alternarem num mesmo papel actancial dife 
rentes formações discursivas (Orlandi, 1988), referentes a va 
rias modalidades de tratamento psicoterapêutico, que serão po~ 
teriormente citadas. 
Apenas dois desses atores sao descritos com carac-
terÍsticas que os remetem ã ordem do psicanalítico, embora não 
sejam identificados como psicanalistas. 
--~---~----~----~------
o primeiro desses atores, Dr. Falmouth, é 
descrito pela protagonista: 
"( ... ) Dr. Falmouth chegara para o seu traba-
lho diário. Atravessou a sala de estar a pas 
sos largos~ importante~ a caminho do posto 
médico~ o jaleco branco adejando magn{fico a 
trás. Para mim~ ele parecia distinto~ inatin 
g{vel l freudiano. Depois de verificar o meu 
prontuãrio~ tornou a aparecer e me guiou até 
a sua sala para uma sessão de terapia. Lá~ 
ele fez várias anotações cuidando de não me 
deixar ver o que escrevia. 
Como foi sua infância? - perguntou~ acarici-
ando a barba." (p. lOl-2~ grifo nosso) 
33 
assim 
Observe-se que o médico nao é descrito como distin 
to, inatingível e, além disso, freudiano, mas sim que este 
; 
e 
tão distinto e inatingível quanto um freudiano, conforme o e-
nunciado da protagonista (e narradora autodiegética l ). 
O interesse manifestado diretamente pIa infância de 
Carol é um elemento do enunciado que indica uma relação entre 
ser freudiano e se interessar pela infância: tanto é indicatl 
vo de que os freudianos se interessam por essa, quanto que, ao 
se interessar, deve ser freudiano. 
l"A expressão narrador autodiegético introduzida nos estudos 
narratológicos por Genette (1972, p. 251 e segs.), designa 
a entidade responsável por uma situação ou atitude narrati-
va específica: aquela em que o narrador da história relata 
as suas próprias experiências como personagem central dessa 
história ( ••• ) a análise de um discurso narrativo de um nar 
rador autodiegêtico tenderá normalmente a subordinar as ques 
tões enunciadas a uma questão central: a configuração (ideõ 
lógica, ética, etc.) da entidade que protagoniza a dupla a~ 
ventura: de ser herói da história e responsável pela sua 
narração." (Reis, et alii, 1988) 
---------------- ----- ----
34 
Numa outra passagem semelhante a esta, oDr. Falmouth 
(já apresentado como freudiano), conforme o enunciado da pro-
tagonista, interessa-se excessivamente por questões relativas 
a sexo: 
"( ... ) Parece que as perguntas sobre sexo as-
sustam você - Dr. Falmouth falou da platéia. 
Mostrava-se bastante satisfeito consigo mes-
mo por ter sugerido a associação. 
Revirei os olhos, tentando entender as impli 
cações psicológicas da sua observação. 
- Quando pergunto sobre sexo, voce parece as 
sustada. Estou certo? 
Sacudi os ombros. Eu não pensava assim. Ele 
sabia todas as conjecturas a respeito do se-
xo/ até mesmo as conjecturas sobre as conjec 
turas. (p. l03) 
Ou, ainda aqui: 
"Uma força externa assumira o controle do meu 
polegar? Ou era algum impulso sexual vil, o-
culto nas profundezas do meu próprio subcons 
ciente manifestando~se nesses movimentos in= 
controláveis? Dr. Falmouth ia se deliciar com 
isto. Por que a minha ansiedade se expressa-
va através do meu polegar? Por que não pelo 
dedão do pé, estômago ou mesmo dor de cabeça 
- numa cefaléia de tensão muscular ou dor na 
nuca? Qual era a importância sexual do pole-
gar? Resolvi não contar para o Dr. Falmouth 
achei que não ia conseguir enfrentar o cons-
trangimento de ter que ouvir a interpretação 
freudiana dos espasmos do meu polegar ... " 
(p. lO 7, grifo nosso) 
As múltiplas indagações da narradora- protagonista 
sobre o "por que" do espasmo estar localizado no polegar, e nao 
em qualquer outro membro do corpo, ironizam um freudismo orto 
doxo, ou pseudo-ortodoxo, que se caracterizaria também, pela 
3S 
busca excessiva de explicação ou interpretação freudiana, tal 
como é dito pela personagem. 
A ironia dessa crítica se concretiza posteriormen-
te quando os espasmos sao diagnosticados como efeitos colate-
rais de medicação antipsicótica (acatisia). E, ainda, quando 
o método psicanalítico do médico for combinado ao método de 
modificação comportamental, sendo este rotulado pela protago-
nista como cruel e desumano. 
Os enunciados críticos da personagem sobre este mé 
di co freudiano dirigem-se a sua pseudo-ortodoxia, tal 
nesta passagem: 
"Meus pais criticaram o Dr. Falmouth tamb~m. 
Mamãe s e queixou de que na en trevis ta que ti 
veram ele se limitou a ficar sentado fuman= 
do misteriosamente o seu cachimbo~ acarici-
ando a barba~ fazendo anotações na pranche-
ta~ evitando falar qualquer coisa~ sem res-
ponder nenhuma das suas perguntas preocupa-
das a respeito de como ele me ajudaria ou 
como e quando eu ficaria boa. 
Ele parece não ter calor humano - mamãe dis 
se. t uma pessoa insens{vel." (p. llZ) 
como 
Nesse trecho, pode-se ler, nao só a crítica ã pse~ 
do-ortodoxia do Dr. Falmouth, mas também vê-lo sendo descrito 
como alguém que fica sentado fumando "misteriosamente" seu ca 
chimbo sem emiti~ nenhuma ~alavra, limitando-se a fazer anota 
çoes, ou seja, gestos que podem ser identificados comOesterió 
tipos de gestos"freudianos" ou psicanalístico. 
36 
As críticas se concretizam num trecho posterior em 
que a protagonista será tratada por outro médico, que é des -
crito como o negativo do Dr. Falmouth. 
"Pode me chamar de Paul - disse. Todos os 
pacientes me tratam assim. 
Descobri que não era diflcil falar com 
ele, e que parecia compreender quase tu-
do o que eu dizia. Não murmurava 'hum' ou 
rabiscava numa prancheta." (p. l34) 
o Dr. Falmouth, primeiro "freudiano" que aparece 
na narrativa, é um médico mau. O tratamento se encerra com o 
médico suspendendo os privilégios (perda de quarto particular, 
proibição de saída, etc.) da paciente que ele julgava histérl 
ca, e com a paciente fingindo não sofrer de acatisia para con 
seguir ter alta hospitalar e para se livrar do médico que 
desistira de tratá-la. A paciente fingia, então cooperar 
o método, quando estava de fato representando se submeter 
seu poder, pois o médico não queria mais tratá-la apenas 
com 
ao 
im-
por sua autoridade. Por todos esses enunciados, conclui-seque 
o Dr. Falmouth era um mau médico e, como era freudiano, repr~ 
senta, afinal, o mau freudiano. 
O segundo ator, que também é apresentado com cara~ 
terísticas que o aproximam de um estereótipo de psicanalista, 
é o médico que efetuaria o último tratamento, denominado Dr. 
Hemingway. Será este que, enfim, curará a protagonista, vale~ 
do-se de todos os tratamentos possíveis, inclusive da diálise, 
com o que realizará a cura. Como este personagem é também a-
-------------------------------------., 
37 
- . presentado na narrativa como semelhante ao proprlo Freud, sen 
do suas açoes e relação com a protagonista descritos explici-
tamente como bons; pode-se dizer que o Dr. Hemingway represeg 
ta o bom freudiano. 
Ele é assim apresentado pela protagonista: 
"Olhei melhor para o Dr. Hemingway e vacilei. 
O cara era igualzinho ao Freud. Aparentava 
uns cinqUenta anos, com a barba e os cabelos 
completamente brancos. Usava óculos redondos 
de aro metálico que davam o toque final ao 
ar professoral do terno impecável de lã xa-
drez ... " (p. 218-9) 
Embora este personagem seja descrito "como idênti-
co a Freud", ele também não é denominado psicanalista. Embora 
encontrem-se neste contexto da narrativa - (tratamento com o 
Dr. Hemingway) - enunciados que remetem a apropriações de i-
déias da psicanálise. Como neste trecho de uma relatório (um 
simulacro) de acompanhamento do médico: 
"( ... ) Discutimos a interpretaçãodisso exte~ 
samente e a minha conclusao final é que este 
é o tipo de fenômeno que ela apresenta quan-
do se encontra sob estresse e as tensões so-
ciais dentro do hospital levaram-na a enten-
der que as pessoas estão lendo seus pensamen 
tos. Colo uei isto num contexto de uma es é= 
cie de sens~bili a e ou e uma certa timi ez 
e constran imento em re la ao aos outros e ue 
se manifesta esta forma. Ela nao concor ou 
totalmente mas esta disposta a considerar o~ 
tras in terpre tações." (p. 225, grifo nosso) 
38 
Tem-se, nesta passagem, a utilização de uma idéia 
proveniente da psicanálise - a interpretação, e um relato (gri 
fado) demonstrativo do que e uma interpretação. 
Um outro exemplo encontra-se no trecho que se se-
gue e refere-se a um diálogo entre esse médico e a protagoni~ 
ta; aparece já no final da narrativa, durante o processo de 
sessões de diálise: 
"J5 temendo a pr6iima sess50, fui para casa 
exausta e cal na cama. 
Naquela noite tive um pesadelo terrtve~ no 
qual sonhei que havia morrido. Acordei de 
repente. Consegui, depois de uma hora, con 
vencer-me de que ainda estava viva, quenãõ 
tinha realmente morrido. Senti medo de dor 
mir novamente. 
No dia seguinte, comentei o que tinha acon 
tecido com o Dr. Hemingway. 
zes, 
cia. 
sou muito dado a simbolismo - ele me 
- mas se fosse, interpretaria o seu 
Ele n50 me falou que considerava o meu so-
nho um indtcio de que eu estaria experimen 
tando mudanças significantes no meu estado 
psiqui5trico por causa da di5lise. "(.292) 
Pode-se observar neste trecho enunciado uma inter-
pretação de sonho e, implicitamente, que a interpretação de 
sonhos refere-se ã ordem dos símbolos, ou melhor, refere-se ã 
subjetividade da experiência, e não a realidade desta, confor 
39 
me demonstra o último parágrafo. A interpretação nao se refe-
re imediatamente ao fato real mas à experiência subjetiva. 
Interpretação, sonho, sexo, infância, culpabilida-
de sao elementos da psicanálise que estão presentes nesta na! 
rativa. Observe-se que a Psicanálise apresentaja (ou divulgaia) 
nesta narrativa corresponde ao modelo de uma psicanálise medi 
calizada. Mas, como foi dito anteriormente, esta função actag 
cial, do psicoterapêutico, que nesta narrativa engloba o psi-
canalítico, aparece em outras passagens, e refere-se a várias 
modalidades psicoterápicas: terapia comportamental, terapia 
de apoio, análise transacional, entrevistas psiquiátricas, a-
plicação de teste psicológico, etc., que enunciam críticas e 
ironias a esses tratamentos. 
meira: 
Citaremos duas dessas como exemplo. Veja-se a pri-
"Gilbert~ psicoterapeuta cl{nico~ assumiu o 
meu tratamento. Contei a Gilbert tudo so-
bre a maldade da minha mãe e como ela esta 
va aos poucos destruindo a minha mente 
GiZbert se aZiou a mim, contra a minha mãe, 
uma técnica terapêutica para me ajudar a 
fortalecer o ego. 
Quando os meus pais vieram me visitar~ ele 
teve uma sessão com eles. 
- Qua 1 é o prob lema de Caro l? papai pergun-
tou. 
- Os srs. sabem ( ... ) o mesmo de sempre~ 
não gostamos de rotular as pessoas~ mas já 
que estão insistindo e o diagnóstico dela 
é tão claro~ vou lhes dizer: ela tem esqui 
zofrenia. E muita. (p. Z38) -
-- o que provoca isto? mamae perguntou 3 como 
já tinha perguntado a outros médicos no pas 
sado. Ouvi dizer que pode ser uma anormali= 
dade qulmica no cérebro. 
- Isto é bobagem 3 sra. North. Mais 
na sua famllia tem esquizofrenia? 
- Não. 
alguém 
- Veja 3 esta é a prova. Sua doença não é ge 
nética. Sr. e Sra. North 3 não há 3 em absolu 
t0 3 nada quimicamente errados com sua fi= 
lha. Todos os testes de laboratório que fi-
zemos estão normais 3 exceto uma ligeira al-
teração no traçado das suas ondas cerebrais. 
- O que o Senhor está querendo nos 
mamãe perguntou. 
dizer? 
- Carol está se fazendo doente é ela 
que está provocando tudo isto. Ela se tor -
nou psicótica. Desta forma ela pode fugir à 
dor da realidade~ Acho que ela pode contro-
lar a psicose e e por isso que estou aqui pa 
ra ajudá-la a aprender como fazer isto. Ela 
precisa ter coragem para enfrentar. 
- O senhor quer dizer que ela pode sair dis-
so quando quiser? 
- Exatamente. 
- Entã0 3 o que a impede? 
Uma longa pausa. 
- A senhora. 
- O quê? 
Gilberto achou a oportunidade perfeita para 
aplicar ao meu caso os conceitos tradicio -
nais sobre as origens psicodinâmicas da es-
quizofrenia 3 conforme descritas nos livros 
de psicologia." (p. l38-9J 
40 
Esta outra passagem diz respeito ã análise transa-
cional e também a uma das muitas medicações citadas na narra-
tiva como modernidade eficaz no tratamento da esquizofrenia. 
Dr. Allen Continuou: 
"- O seu problema ~ que dentro de voei exis-
te uma menininha assustada. A sua criança 
está muito abatida. 
Reconheci imediatamente os termos da análi-
se transacional. Naquela ~poca~ a AT era um 
tipo de psicoterapia relativamente novo e 
popular~ melhor conhecido atrav~s de livros 
como Cames people play e Eu estou ok~ voei 
está Ok. Na AT explica-se tudo pelas transa 
ções cruzadas dos estados psicológicos dõ 
Pai~ do adulto e da criança. Todo comporta-
mento anormal ~ resultado dos jogos das pes 
soas nos seus diferentes estados. -
Continua Dr. Allen: 
- Seus pais a ensinaram a se sentir não ok 
e destru{ram a sua capacidade de pensar pa-
ra o resto da vida. colocá-la em situações 
conflitantes fazia parte de seus próprios jo 
gos e transações caóticas. Eles fisgaram ã 
sua Criança não OK e a rejeitaram ... e a 
sua reação foi enlouquecer. Agora~ Carol~ de 
pende de voei assumir a responsabilidade de 
ficar boa. Voei pode colaborar comigo se de 
cidir deixar que eu a ajude. 
E tirou da carteira uma velha fotografia 
sua. 
Estava com os cabelos despenteados~ parecia 
um hippie. 
- Já fui doente como voei - declarou - mas 
melhorei tomando megavitaminas e deixando de 
lado todos os meus jogos." (P.256/?) 
41 
Além das várias modalidades de tratamento psicote-
rapêutico, esta ficção apresenta ainda urna lista de medicamen 
tos citados corno indicados para a esquizofrenia e que consti-
tuem a dosagem informativa que caracteriza este gênero de fic-
ção científica: Megavitaminas; Haldol, Congitem para combater 
42 
os efeitos colaterais do Hald01, Valium, ~eleri1 Encontram-
se ainda diversos simulacros de relatórios médico-psiquiátri-
cos (também encontráveis noutras narrativas), corno o deste e-
xemplo: 
"A paciente parece bastante tranqaila~ respon 
de às perguntas com um certo grau de distúr= 
bio de pensamento~ e tem dificuldade em al-
cançar o seu objetivo. Parece um tanto confu 
sa acerca de seus processos mentais e do que 
está acontecendo~ e do significado que vê em 
várias coisas. 
Não há esforço para fa lar ~ nem fuga de idéias. 
Parece estar preocupada e sóbria. Ocasional-
mente~ as suas respostas são um tanto demora 
das. Ela parece ter alguma percepção da sua 
doença~ porém muito prejudicada. O racioct -
nio também parece prejudicado. Impressão:pro 
vável doença esquizofreniforme. O histórico 
de um episódio agudo~ alguns anos atrás~ com 
um pertodo posterior de saúde relativamente 
boa~ poderia confirmar isto~ embora não se 
descarte a possibilidade de uma doença manta 
co-depressiva." (-a. 19lJ 
t 
A ficção informa ainda sobre outras doenças psi 
quiátricas, corno nesta última frase do diagnóstico- simulacro 
citado: mania e depressão, histeria, esquizofrenia paranóide, 
catatonia, hebefrenia. A ficção informa: serem essas doenças 
psiquiátricas. que sao apenas 14 os diagnósticos básicos em 
psiquiatria, e que estes são a pedra angular do tratamento. 
A narrativa expoe ainda enunciados críticos em re-
lação a diagnósticos e tratamentos inadequados. 
43 
A esquizofrenia é definida como uma doença incurá-
vel Cp. 16), de causas desconhecidas, sendo uma das possíveis 
causas, conforme enuncia uma das personagens médicas Cp. 18). 
a manifestação clínica de uma variedade de falhas bioquímicas 
ou imunológicas. 
A narrativa informa ainda: 
-que o doente esquizofrênico é estimagtiza-
do~ "uma vez esquizofrênico sempre esquizo -
frenico;" 
- que os sintomas da esquizofrenia são deZ{-
rios, aZucinações auditivas, distúrbios de 
pensamento e preju{zo dos nexos afetivos; 
- sobre aspectos de procedimento diagnósti -
co, por exempZo: 
"-Tyrone sorria~ embora para nada em particu-
Zar. EZe sorria apenas~ um esgar sem sentido. 
preju{zo dos nexos afetivos~ anotei: um sin-
toma manuaL 
- Sr. Corbeth~ o senhor sabe onde está? per-
guntei. Era importante estabeZecer se o paci 
ente se encontrava ou não desorientado. EZe 
era considerado 'tripZo orientado' se soubes 
se (Z) quem era~ (2) onde estava e (J) o dia. 
Os esquizofrênicos costumam estar orientados, 
o que faciZita distingui-Zos dos pa~ientes 
com Zesão cerebraZ (p. 22)." 
- sobre o Índice de pessoas atingidas pela doença: 
"Linda oZhou_espantada para o prontuário que 
tinha nas maos: 
- Esquizofrênicos? você tem muitos aqui? 
- EZes são comuns que nem baratas - eZe res-
pondeu - um por cento da popuZação é atingi-
do, o que representa mais de dois miZhões de 
esquizofrênicos vivendo nos Estados Unidos . 
A cada ano um miZ novos casos são diagnósti 
cados." (p. Z6) -
Importa notar que este aspecto - o índice de pes-
soas atingidas - também está presente noutras narrativas. Tan 
to informa o leitor sobre a doença como visa seduzi-lo por 
sua curiosidade e por seu temor. 
A narrativa leva a crer que as psicoterapias nao 
efetuam curas nos tratamentos da esquizofrenia. Tal se pode 
observar pelo curso, desfecho e através dos enunciados de al-
guns trechos, como neste exemplo, em que está implícita uma 
observação contrária a respeito desses tratamentos: 
"Linda aoZoaou sua valise e prontu~rio sobre 
a mesa e aruzou os braços: 
- Mas ... o senhor não pode falar aom eles 
ou fazer alguma outra aoisa? 
- Claro que falamos aom eles - Dr. Hajara 
sorriu. 
- Eles preaisam de ajuda para enfrentar os 
problemas que surgem em suas vidas~ aausa -
dos pela doença. Mas aonversar apenas não 
os aura da esquizofrenia. t uma doença arô-
niaa~ e estas pessoas passam um per{odo aon 
sir~vel de suas vidas tranaadas em institui 
ções." (p. l7) 
E ainda, nestes, onde estão explícitos nos enunciados qual o 
papel da psicoterapia no tratamento da esquizofrenia: 
"Paul me disse que eu deveria fiaar mais tem 
po em tratamento. Insinuou que~ desaobrindo 
os meus aonflitos profundamente entranhados 
e aonversando aomigo para me ajudar a resol 
vê-los~ ele poderia me fazer fiaar boa." -
(p. l37J. 
"Rabbit me ajudou a explorar a realidade dos 
meus delí.rios 
( ... ) Os seus objetivos eram mais modestos, 
tais como me ajudar na minha adaptação a 
uma doença crônica e manter-me em funciona-
mento no mais alto ní.vel possí.vel. Entre as 
consultas com Paul, Rabbit me mantinha fun-
cionando. Entre as consultas com Rabbit 
Paul me mantinha funcionando." (p. l36) 
45 
Mas, além disso. a narrativa faz referência à n~ 
tureza psicológica dos fenômenos de esquizofrenia da protago-
nista, corno nas "explicações" expostas neste enunciado 
narradora - protagonista: 
"Ninguim no mundo poderia compreender o que 
eu passava, principalmente meus pais. Minha 
mãe acreditava que não deví.amos ficar insis 
tindo nos nossos problemas, e que as outras 
pessoas não gostavam de ouvir falar sobre 
eles. Lembrando-me disso, não achei conveni 
ente conversar sobre eles dentro ou fora de 
casa. A minha famí.lia evitava comunicar- se 
a respeito de questões pessoais, e isto au-
mentava a minha sensação de distanciamento 
( ... ) Na nossa famí.lia, nunca soubemos fa-
lar sobre os nossos sentimentos. (p. 219 , 
grifo nosso). 
pela 
Esta expressa0 sensaçao de distanciamento, aqui ex 
plicada pela protogonista, percorre toda a narrativa e apare-
ce corno indicativa do início das crises psicóticas da person~ 
gemo 
Outras explicações de natureza psicológica atraves 
sam a ficção, sendo que a mais relevante diz respeito à ques-
tão da perda da identidade. O romance psicanalítico, enquanto 
46 
gênero de ficção científica, se caracteriza por efetuar críti 
cas sociais (Sodrê, 1978). Esta crítica, espeficamente no ro-
mance psicanalítico, recai sobre as questões do conflito en-
tre o indivíduo e a sociedade, e ainda sobre a perda da iden-
tidade e suas conseqUências, sendo o medo e a curiosidade a 
respeito dessa perda de identidade aquilo que deve seduzir o 
leitor. A esquizofrenia, neste sentido, ê um tema adequado 
por tratar dessa perda ou por permitir explorar o medo dessa 
perda. 
Um exemplo claro sobre esta questão encontra- se 
nestas passagens: 
Ou ainda: 
"Eu n50 sabia mais quem eu era. Antes, pens~ 
va em mim como uma estudante de medicina 
Mas n50 estava mais na faculdade. Havia me 
identificado como a namorada de Bruce. Ago-
ra ele havia me deixado para trás. Eu esta-
va vivendo no limbo." (p. 276, grifo nosso). 
( ... ) conforme prometeu, Bruce foi à coorde 
naç50 pedir a minha caixa de volta. N50 con 
seguiu. O máximo que arranjou foi queme dea 
sem uma caixa com uma etiqueta dizendo: 'Ser 
viço de datilografia para os alunos do se-
gundo ano'. 
- t a mesma coisa - Bruce disse. Mas n50 
era. N50 estaria mais em contato com as no-
vidades porque n50 receberia mais correspon 
dência de rotina da escola. Mais importante 
ainda, a caixa de correç50 era o slmbolo do 
lugar que eu ocupava e perdê-la foi um gol-
pe terrlvel na minha identidade. Fora redu-
zida a um serviço de datilografia para os 
alunos do segundo ano." (p. 2BO.l, grifo 
nosso). 
47 
A recuperaçao dessa identidade perdida, ou melhor, 
a conquista final de uma nova identidade pela protagonista, a 
de médica psiquiatra, demonstra bem a relevância dessa ques -
tão neste gênero romanesco. E aponta para os aspectos míticos 
(Sodré, 1985 ) da heroína desta ficção. O sofrimento desta he 
roÍna é um verdadeiro calvário. Seu sofrimento é duplo: tanto 
sofre em conseqUência da esquizofrenia, quanto pelas perdas 
decorrentes desta. Em contrapartida, sua vitória também é du-
pla: ao final, cura-se e alcança seu objetivo: formar-se em 
medicina. A perseguição desse objetivo em meio à adversidade 
do sofrimento de uma doença grave é a marca dessa heroísmo. A 
heroína martirizada alcança finalmente a salvação. O seu fei-
to é duplamente heróico: consegue não só a aquisição de uma 
identidade - a de médica - mas a grande façanha de adquiri-la 
mediante a mudança de sua condição - transforma-se de doente 
esquizofrênica em médica psiquiatra, adquirindo simultaneame~ 
te os direitos e os deveres de quem deve, pode e sabe como c~ 
raro Esta médica saberá, melhor que outros, ajudar seus paci-
entes por já ter sido também doente. O sofrimento dessa he-
roína e a sua própria redenção. 
48 
3 - A VIDA fNTIMA DE UMA ESQUIZOFRENICA 
Esta narrativa se desenvolve em torno de dois te-
mas: o tratamento e a cura de uma esquizofrenia paranóide e 
as relações profissionais competitivas vividas pela protago -
nista e apontadas como fator desencadeante da doença, confor-
me enuncia este trecho da introdução: 
"Os cap{tulos referentes as duas firmas co-
merciais nas quais trabalhei foram camufla 
dos~ no máximo poss{vel~ sem destruir de 
nenhuma forma a essência do ambiente emo -
cional que permeava ambas. Nao tenho dese-
jo algum de embaraçar as pessoas com quem 
trabalhei ou as companhias que me emprega-
ram. Não há~ na verdade~ nada surpreenden-
te ou incomum no ambiente desses dois es-
critórios. Ambos são t{picos do cenário a-
tual. E a esquizofrenia tambem." (p. 9 .J 
grifo nosso). 
Esta ficção atribui a desintegração da personalid~ 
de da protagonista a sua excessiva rigidez. ã falta de capac! 
dade para se adaptar aos ambientes competitivos, em suma, a 
não saber competir e nao se ajustar bem a uma dada comunidade. 
A história dessa esquizofrenia - os delírios, alucinações (e 
as personagens destes) é uma metáfora da história profissio-
nal da protagonista. A esquizofrenia é, então, descrita comoa ficção de um mundo real possível da protagonista. A narrati 
va iguala os conteúdos da própria ficção aos delírios da es-
quizofrenia narrada - as alucinações e suas personagens meta-
forizam o mundo real e psíquico da protagonista. A mensagem 
49 
desses conteúdos visam fazer crer à personagem Ce também ao 
leitor), conforme é enunciado: "que a gente nunca é derrotada 
até sair da jogada e que sempre há uma possibilidade de ven-
cer, se se enfrentar a situação e lutar." Cp. 128) 
A ficção também enuncia que a adaptação produz mu-
danças em quem se ajusta. "A gente nao se ajusta a coisa alg~ 
ma sem mudar de forma", e as conseqUências desse tipo de aju~ 
te "podem ser danosas". Vejamos ainda este outro trecho: 
"Na verdade~ se voci ainda est~ na terra dos 
Operadores Gancho e se evoZui até o est~gio 
em que compete peZas mesmas coisas que os 
Operadores Gancho procuram~ suas escoZhas 
são poucas. Voci pode tornar-se: (Z) um ou-
tro Operador Gancho; (2) um Baco de neurose 
cheio de doenças PSicoBsom~ticas de preocu-
pação; (3) um psicótico que foge do confZi-
to." (p. Z5?) 
A questão da identidade, tema-chave das ficções 
científicas psicanalíticas, é aqui significada por perda de 
integridade em busca de aceitação, que é fator possível de de 
sencadear a esquizofrenia. 
Nesta ficção, a cura da protagonista dá-se espont! 
neamente, e so e possível com sua fuga da comunidade. Durante 
a doença, a protagonista percorre os EUA viajando. A esquizo-
-frenia - diz-se aqui - e uma viagem com volta, desde que o eg 
fermo consiga fugir da comunidade repressora, escapando ainda 
de ser internado e "recuperado", e de ser posteriormente es-
tigmatizado. 
50 
As críticas a esta ficção dirigem-se ã sociedade 
competitiva e repressora e aos tratamentos psiquiátricos que 
consistem, conforme a narrativa, em recuperar o indivíduo, ou 
traze-lo ao estágio anterior ã doença. 
o texto busca seduzir o leitor apelando para a sua 
curiosidade e temores, informando com dados estatísticos ala! 
mistas que os índices de indivíduos atingidos pela esquizofr~ 
nia aumentam cada vez mais, embora a causa da doença nao te-
nha sido descoberta e esteja longe de vir a ser. Cp. 4) 
Nesta narrativa, várias sao as causas arroladas co 
mo desencadeantes da esquizofrenia, a sua própria está expos-
ta neste trecho: 
"Quando ninguim sabe a resposta qualquer um 
tem o priviligio de fazer suposições. Mi-
nha suposição i que o indiv{duo que vai fi 
car esquizofrênico i como eu o descrevi ; 
sem coragem adequada~ que aprende a divi -
dir ele mesmo para ser aceito por si e pe-
lo ambiente. Desconfio de que a substância 
qu{mica estranha na corrente sangU{nea i 
um resu ltado ~ não a causa do cisma." (p. l52) 
A loucura é enunciada como liberdade. O texto ori-
ginariamente publicado na década de 60 incorpora críticas ao 
modelo psiquiátrico e também valores considerados libertários 
no período - a fuga de uma comunidade para outra. Nesta fic -
ção, a protagonista viaja para a Califórnia enquanto 
se encontra esquizofrênica. 
,.....----------------------------------~~----~-
51 
Ainda nesta ficção, a cura da protagonista efe-
tua-se com o axuílio de um psicanalista, que é apresentado 
nao como o responsável, mas como o que permite que esta cura 
se realize. Veja-se esta passagem: 
"( ... ) Ele admitiu francamente não ter nada a 
ver com a minha recuperação dos sintomas prin 
cipais~ e eu duvido muft{ssimo que ele tives~ 
se muito a ver com o fato de eu ter sido ca-
paz de reassumir a vida normal~ logo depois. 
Mas os valores que ele possu{a foram extrema 
mente importantes para m~m. Foi c~paz de re= 
conhecer que a recuperaçao espontanea era le 
gitima e fornecer o que eu inconscientemente 
buscava (00.)." (p. l24-S) 
o psicanalista é comparado ao psiquiatra. Embora o 
psicanalista não seja preparado para tratar de esquizofrêni -
cos, segundo a narrativa o psicanalista se sobrepõe ao psi 
quiatra pelos seus valores - ou seja, sua própria concepçao 
teórica sobre o psiquismo humano. Pode-se ler isto, enunciado 
no seguinte trecho: 
"( ... ) Para um psicanalista como o Dr. Donner~ o 
psiquismo inconsciente é um instrumento ter-
r{vel~ capaz de tudo. Não equipado para tra-
tar de esquizofrênicos e não familiarizado 
com as técnicas psiquiátricas~ simplesmente 
transferia seu respeito para o psiquismo in~ 
consciente como instrumento quando me tratou. 
Minhas vozes tinham dado a entender que a re 
cuperação estava por perto; o analista ouvia 
e colocara sua fé onde estava acostumado na 
linguagem tortuosa do inconsciente ... 
. . 
cer o fato de que uma recuperação espontânea 
estava a caminho e a incapacidade do psiquia 
tra para reconhecer a mesma coisa é digna de 
enfase. Nos dias precedentes a cessação das 
vozes, meu pré-consciente se conscientizou 
claramente de que as vozes cessariam e, quan 
do cessassem, a mente ficaria no vácuo por 
algum tempo e o organismo, conseqUentemente, 
precisaria de orientação externa . .. " (p. l23, 
grifo nosso) 
52 
A narrativa descreve a "personalidade"'" desse psic! 
nalista e informa que este se afasta de um estereótipo. Apro-
tagonista conta que o Dr. Donner era diferente do seu estereó 
tipo de um psicanalista. O enunciado, por um lado, busca tor-
nar verossímil o psicanalista dessa ficção, ou seja, diferen-
te do estereótipo da protagonista; por outro, o estereótipo 
da protagonista é também um arquétipo do psicanalista, seme-
lhante àquele citado em Bem vindo silêncio. Observe-se o se-
guinte trecho: 
"O Dr. Donner me surpreendia. Sempre imagina-
ra que os psicanalistas apresentavam uma fa-
chada calma e serena a seus acientes, um ba 
luarte contra o qual to as as emoçoes po e -
riam se uebrar sem deixar marcas. O w. Donner 
era impac~ente, sens~vel, agita o." (p. l3 , 
grifo nosso). 
Um capítulo inteiro dessa ficção intitula-se "O 
freudiano" e refere-se, obviamente, ao psicanalista. A carac-
terística básica do freudiano que se enuncia aí é a importân-
cia dada ao sexo: 
"Lembrei-lhe imediatamente de que prometera 
explorar a causa do meu colapso mental e o 
analista balançou a cabeça e mergulhou di-
reto ... Era simples. As psicoses, na opi-
nião dele, eram conseqOencia da vida se-
xual inadequada, principalmente na Amêrica. 
O analista era francês. Perguntei-lhe o que 
causava a esquizofrenia na França ... "(p.92) 
S3 
Esta narrativa, corno em Bem-vindo silêncio, induz 
a considerar que a importância dada à sexualidade pelos freu-
dianos é excessiva; ou ainda, mostra essa característica do 
que é o freudiano valendo-se da ironia: 
"r ... ) Certo, houvera outros assuntos pelos 
quais meu inconsciente não se interessara 
em particular. Não discutira meus amigos , 
nem minha fam{lia, dinheiro ou casamento 
( ... ). Preocupara-se apenas com o mundo dos 
Operadores. 
( ... ) 'Possivelmente meu inaonsciente é uni 
lateral', disse eu. O analista me olhou ra 
pidamente e expliquei. Meu inconsciente era 
provavelmente com uma sô idêia. O comentá-
rio o irritou. Parecia que esse era exata-
mente o problema. Todas as mentes inconsci 
entes eram unilaterais. Sô aontinham sexo 
( ... ) . 
( ••• ) O analista, além de francês, era 
freudiano. 
( ••• ) Os freudianos, conclui mais tarde, ti 
nham muito em comum com os pequenos cultos 
religiosos ( ... ). Para o analista, qual-
quer colapso na maquinaria mental ou ema -
cional só poderia ter uma causa. Uma vida 
sexual inadequada ... " (p. 192-3, grifo nos 
so). (p. 92/3) 
Ainda nesse capítulo encontram-se várias concep-
çoes ideológicas cujo sujeito de enunciação ora é o psicana -
lista, ora a protagonista, e que se referem à questão do com-
54 
portamento sexual de homens e mulheres e a questão da assump-
ção de papéis profissionais femininos; questões que trazem a 
marca da época em que foi produzida a narrativa. Alguns des-
ses enunciados sao os seguintes: 
"Discutimos minha vida sexual. N50 era sufi 
cientemente plena. Perguntei ao analista co 
mo uma vida sexual

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