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EílSAIOS JE ?SICAílÁLISE E SAÚJE menTAL FrVVlCISCO ?AES 3A.YU:TO  memória de César Rodrigues Can,pos, sempre presente. Á presença de Maria Igneti se111Pre viva. editor Wellert BeHort capa projeto gréflco e diagramação Fernanda Moraes revisão produção Neyse de Castro Sanguinetto Silvano Moreira Paes Barreto, Francisco Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental / Francisco Paes Barreto. Belo Horizonte. Scriptum Livros, 201 O. 336p. 1. Psicanálise. li. Saúde Mental. ISBN 978-85-89044-30-1 CDU: 616.89 COO: 616.8917 Livraria e Editora Scriptum Rua Fernandes Tourinho, 99 Savassi I Belo Horizonte I MG 1311 3223-1789 E-mail: scriptum@scriptum.com.br Prefácio 11 Apresentação 21 Capitulo I PSICANÁLISE E MEDICINA O corpo na psicossomática 25 Notas sobre a história da medicina 37 Anorexia e buli.mia: de que se trata? 45 A Dora do NlAB (Fragmentos de um caso de bulinúa) 49 O que quer uma mulher histérica? (Sobre um caso de infertilidade) 55 O que é o pai? (Sobre a reprodução assistida) 63 Mediàna e consumo 67 Capitulo II PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA Apresentação de paciente: o agalma de uma experiência 73 Agudo/crônico: uma dicotomia que pesa sobre nossas cabeças 77 O automatismo mental de Clérambault 81 A catatonia de Kahlbaum e a hebcfrenia de Hecker 85 Doenças mentais e genética 91 A monocultura e a paisagem (O psicofármaco para a psiquiatria e para a psicanálise) 95 A psicanálise e os medicamentos antipsicóticos 107 Impertinências (Em que condições o psicanalista sugere o \L'\O de antidepressivo?) 115 A transferência aumenta a serotonina cerebral? 117 Depressão e bipolaridade: antecedentes e perspectivas 123 Loucura e cidadania: A nova regra e as exceções 131 A loucura dos normais 137 Como vejo a psiquiatria hoje (Entre as aves e as feras) 143 Capítulo III PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL A psicanálise aplicada à saúde mental (Uma contribuição ao tema da prática lacaniana nas instituições) 163 A lei simbólica e a lei insensata (Uma introdução à teoria do supereu) 197 A lei insensata e a bárbara-cena 207 A urgência subjetiva na saúde mental 215 Obsessão 223 Pânico (Elementos para uma leitura psicanalítica) 227 O tema é devoração 235 Por falar cm suicídio 239 Psicanálise e Yiolência urbana 243 A angústia na psicose (Introdução ao tema e exemplos clínicos) 251 Um ponto de vista sobre os nossos CERSAMs (Por uma utopia feita para durar) 261 A clínica da passagem ao ato (Acling out, passagem ao ato, agitação) 267 Transferência e psicose 297 O manancial do amanhã eterno (Sobre o tempo e o tratamento psicanalítico - wna introdução) 305 O tratamento psicanalítico de uma criança (Com wna única intervenção) 315 Um ponto de vista (discordante) sobre o CPCT 321 Da antipsiquiatria à antissaúde mental 327 PREFÁCIO Os Ensaios de psicanálise e de salide mental constituem uma demonstração da abertura do psicanalista de orientação lacaniana às inúmeras variações que se impõem à sua prática, impelidas pela presença incontestável de novas configurações psicopatológicas do sofrimento hwnano. Por meio de um vasto material clinico, e 1riundo do trabalho de supervisão clinica, em diversos serviços ligados à área da saúde mental, o autor aponta que as mudanças que se processam no envoltório formal do sintoma ocasionam varia çôes necessárias à prática atual do psicanalista. Com efeito, uma tal abertura à multiplicidade das novas formas dos sintomas e do mal estar contemporâneo acarreta transformações, não apenas nos meios com os quais o analista impulsiona sua condução, como é o caso da transferência e da interpretação -, mas na própria concep ção dos resultados obtidos no tratamento desses sintomas. No essencial, considera-se, ao longo das páginas desses ensaios, que os resultados terapêuticos visados dependem da definição da natureza e do funcionamento do que é, para a psicanálise, um sintoma. A esse propósito, mostra-se bastante sugestivo o emprego da forma interrogativa no título de um desses ensaios, a saber: Anorex-ia e bulimia: de que se trata? Para a medicina e, particularmente, para a psiquiatria, tais sintomas consistem na alteração da forma-função da norma alimentar; para a psicanálise, afirma o autor, ''nàíJ é disso que se traia, pois, é um sintoma de algo que se passa em outro nível"'. Ao conceber a finalidade da cura como wna restituição da "perda involuntária da faculdade normativa'� a clinica médico-psiquiátrica se encaminha para uma orientação em que prevalece o princípio da "red11çàfJ ou supressão dos sintomas'ª. A canse- 11 quência maior dessa visada clínica do sintoma confundido com o patológico, com o transtorno da forma-função, é a de que ele se apresenta em contraposição à norma cultural ou social e, portanto, supõe um horizonte da cura marcado pelo crivo da adaptação social. Ao contrário, no terreno da psicanálise, a anorexia tem sua fonte principal na econonúa do gozo que envolve o corpo e, nesses termos, configura-se como um sintoma do feminino. Como se refere o texto citado acima, trata-se de uma 'Jorma de refeição do feminino que conduz a um gozy a11to-erritico ". Ou ainda, 'à anorixica caça as curoas do feminino e o seu ten-eno de caça é o espelho cruel, espelho que escancara a falta fálica, visível aos olhos'•. Conclui-se, assim, que se o olhar do Outro desempenha um papel verdadeiramente crucial, antes de se alimentar, a anorexia mobiliza a questão do olhar. Evidentemente que sob esse ponto de vista a finalidade do trata mento psicanalítico do sintoma anoréxico coloca-se para além de uma simples retificação da recusa do alimento. Por consequência, torna-se óbvio que a maneira como a psicanálise antevê sua aplicação à terapêutica do sintoma anoréxico supõe a presença do HJais-além do terapêutico, pelo menos do terapêutico concebido segundo os termos de uma restituição da norma-função da atividade alimentar. Esse mais-além do tera pêutico se manifesta, no âmbito do tratamento da anorexia, pela virtude do manejo, por parte do analista, do fora do sentido inerente a esse novo sintoma que se traduz por um modo de gozo particular. Logo, nada deste manejo se confunde com o que se dissenúna como terapêutico pela medicina que, como confirma Jacques Lacan, é a busca incessante do "restabelecimento de 11m estado anterior e primário•�. Aliás, o próprio Lacan se mostra pouco otimista quanto à eficácia e o alcance dessa concepção usual da terapêutica, ao lançar um desafio à clínica médica, quanto às chances desta levar às últimas consequências o princípio do primum non nocere, ou seja, antes de mais nada não prejudicar ou, ainda, não dar um remédio pior qne a 12 doençd'. Ele mesmo concebe esse axioma da prática médica como uma abstração fútil, uma vez que não é possível determinar, a priori, que a prescrição, por exemplo, de um fármaco não cause nenhum dano ao doente. É certo que, no contexto dessa discussão sobre a especificidade da prática psicanalítica, há uma explicitação do modo como a descoberta de Sigmund Freud radicaliza o horizonte médico do terapêutico, pois, para ele, ninguém conhece anteci padamente o que é terapêutico para um sujeito. Postula-se, assim, um indecidível lógico1, que o horizonte clinico da medicina, calcado no método científico, ambiciona com todos os seus recursos suplantar, tendo em vista que, segundo ela, não há limites para o que se visa terapeutizar. Ao reafirmar que o terapêutico se caracteriza pela presença inexorável desse indecidível lógico, a psicanálise responde a essa ausência de um programa pré estabelecido dos resultados terapêuticos a se obter, com o chamado primado da prática. Em outros termos, o primum para a psicanálise, não é de forma alguma o terapêutico que, como se sabe, institui-se por acréscimo -, mas a própria direção do tratamento, cujo foco decisivo é a inclusão do sujeito do inconsciente. Assim, se o tratamento e seus meios,como é o caso da transferência e da interpretação, são da ordem do necessário, seus efeitos, inclusive, os efeitos terapêuticos, tomados como indecidíveis lógicos, devem, portanto, ser considerados como contingentes. Sob a abrangência deste princípio do mais-além do tera pêutico, o psiquiatra, psicanalista de orientação lacaniana e clinico renomado, Francisco Paes Barreto expõe, com originalidade e consistência conceitua!, o essencial de sua apreensão do que é a aplicação da psicanálise à atualidade do mal-estar da civilização. Como o leitor poderá constatar, movido por esse princípio, o livro envolve a discussão de um ponto crucial do que dá sustentação à presença da psicanálise no mundo contemporâneo, que é a sua aplicação em domínios discursivos, como é o caso da medicina, da psiquiatria e da saúde mental -, nos quais se destaca, a forma 13 acelerada e extensa, em que se consuma, neles, a urusçao dos efeitos do discurso da ciência. É claro que essa presença àpenas se afirmará de modo consistente ao se levar em conta o alcance e a eficácia da psicanálise no âmbito dos novos impasses e dos desafios que a civilização do gozo coloca para a prática do psicanalista. Por outro lado, o autor não recua diante do aspecto notório, em nossos ambientes clinico-institucionais, de que os excessos da aplicação da psicanálise à terapêutica impelem um novo equilibrio entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada. Algumas de suas elaborações traduzem o contexto, muitas vezes polêmico e divergente, dessa discussão, ao expor que esse excesso traz consigo o risco de comprometer o que se constitui como o apanágio essen cial da psicanálise pura que é a formação do analista. Se a psica nálise pura se define como a sua forma mais acabada é porque ela encarna a própria natureza do que é o ato analítico, ou seja: a passagem de sujeito analisante à psicanalista. Concentrar o foco da psicanálise no cuidado terapêutico, sem considerar o cerne de seus prinápios clínicos, acarreta justamente a retenção da própria potência que encerra o ato analítico no tocante à formação. Efetua se, assim, no âmbito da prática analítica, uma inversão que faz da aplicação à terapêutica um astro da psicanálise, enquanto que a psicanálise pura torna-se um mero satélite ou um ator coadjuvante. Ainda surpreendente, nesta concepção dos alcances e limites da psicanálise aplicada é mostrar que essa inversão se processa, como se viu antes, nos moldes da adaptação social. isto é, sob os auspícios das demandas do mestre contemporâneo endereçada à psicanálise•. Nesse sentido, é possível extrair da leitura do livro a distinção necessária entre a psicanálise aplicada e os usos da psicanálise submetidos à avalanche das demandas determinadas pelo movimento da sociedade contemporânea. Depreende-se, assim, a orientação de que não se deve confundir a prática da psicanálise aplicada com esses usos degradados da psicanálise. É o que justifica o ponto de vista de que a proposição do reequilibrio não implica a supressão da psicanálise aplicada. · 14 Considera-se ainda que essa distinção entre uma forma de saber puro e sua aplicação tem um lugar importante no campo Ja ciência matemática. No fundo, o propósito de entender um resultado, um conceito para um campo de aplicação determinado constitui uma motivação que, desde seus primórdios, assume um lugar importante no âmbito da matemática. A esse respeito, a leitura do texto do matemático G. H. Hardy, Em defesa de um matemático, é bastante esclarecedora e exemplar. Segundo o autor, a distinção entre a matemática pura e a matemática aplicada não deve ser concebida sob o prisma das chamadas "utilidades sodais'11• Faz-se necessário romper com a ideia de "que seria nalllral supor que existe 11ma grande diferença de 11ti/idade entre a matemática pura e a matemática aplicada •u. Para ele, ''se o conhedmento ,ítil é aq11ele que agora 011 num f11lllro pniximo, tem boa probabilidade de contribuir para o corrjorto material da h11manidade, deixando de lado a simples satisfação intelecllla4 então a maior parte da matemática é inútiJ''ll. Essa satisfação apenas se obtém porque a realidade com a qual o matemático lida não é uma realidade qualquer, mas, a "realidade da malemática"12• E isto serve tanto para a matemática pura como para a aplicada. Sob a ótica de Hardy, ambas estão referidas à realidade matemática e são, portanto, matemáticas de verdade. Segundo seus próprios termos, ''existem dstas matemáticas. Existe a matemática de verdade dos matemático.s de vmiaáe e existe o que se de.signa, por falta de uma palavra melhor, de matemática trivial"º. Desta elaboração no domínio próprio da matemática se depreende uma conclusão capital, para a discussão sobre a psicanálise aplicada, pois, segundo essa ótica, não se deveria confundir a psicanálise aplicada à tera pêutica com a aplicação da psicanálise. Propõe-se que o aprofundamento da discussão desta tese pode se aclarar por meio do tratamento inovador que o binômio intensão/extensão recebeu no ensino de Lacan. A referência maior é a Proposição de 011t11bro:. ''Eu me apoiarei nos dois momentos da jrmçào do que cham�i, respectivamente, de psicanálise em extensão, 011 sefa, llldo o que resume a frmção de nossa Escola no mundo como presenlificadora da 15 psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou sqa a didática, como não fazendo n1ms do q11e preparar operadoru para ela. '14 Por consequência, se de wn lado a extensão é o que presentifica a psicanálise no mundo, de outro lado, a intensão é o que se denomina a didática. No final desse mesmo escrito, ele explicita que o em prego desse binômio exige um certo rigor que se exprime pela topologia do plano projetivo. Em consonância com essa figura topológica, afirma-se que "é no prriprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior q11e traramos como hiáncia da psicanálise em intensão". 15 É nítido que uma tal definição estabelece uma relação de continuidade entre a extensão e a intensão em psicanálise. O plano projetivo é uma figura topológica que consiste em introduzir um afivdamento interior sobre o traçado de wn círculo. O grande círculo se apresenta, aqui, designado nos termos da psicanálise em extensão, e o círculo interior nos termos da psicanálise em in tensão. Porém, dizer que não há oposição entre esses dois campos não atinge ainda o cerne do problema que, em minha opinião, é decisivo para o próprio destino futuro da psicanálise. É preciso saber aquilatar o alcance efetivo do que vem a ser essa incidência, sobre a psicanálise em extensão, do campo da intensão. Essa incidência não se processa por algo que, antecipadamente, já existe de forma acabada e definitiva. Na verdade, aquilo que se situa do lado da intensão é uma hiância. Ao propugnar que há uma hiância do lado da intensão é-se levado a admitir que não há uma definição predicativa do psicanalista. Se o psicanalista não existe, fica evidente que o aspecto essencial recai sobre o que se constrói do lado da extensão. Isto que se constrói está submetido a um princípio de verificação da hiância inerente à psicanálise em intensão. Tal como no dispositivo do passe - algumas vezes referido ao longo do livro - trata-se de uma verificação que se instaura pelo viés do testemunho do 11m a 11111. É isto que a experiência do passe tem por dever colocar em prática. Verifica-se, com base nos testemunhos de analisantes que se · 16 11 1rn:1ram analistas, que o resultado de um tratamento não é da 1 ,rdcm de uma idenàficação a uma definição predicativa do psicanalista. Trata-se, assim, de mostrar que apenas há psicanalista 11111 por un,. Tudo aquilo que consiste no emprego conceituai da 11rr iculaçào entre a intensão e a extensão converge para uma recusa 1 ll' toda e qualquer padronização da figura do psicanalista. Em definitivo, o um por nm da extensão verifica a ausência de padronização do psicanalista na intensão.Como na matemática, conclui-se que o que se verifica na aplicação da psicanálise é o essencial da realidade da psicanálise, l"xpressa pela existência singular de um analista. Nesse sentido, a tarefa principal da formação analítica é colocar-se a serviço da relação solitária que cada candidato a tomar-se psicanalista mantém com a causa da experiência do inconsciente. Isto implica ir contra a tendência de reduzir os dispositivos de formação, em ícones do mutualismo que, como se refere J.-A. Miller, estariam fadados a tornarem-se verdadeiros ''aparelhos de crmlra-solidíio'••. Isto quer dizer que o equilibrio entre a psicanálise pura e aplicada como o fator essencial da existência da psicanálise no mundo é o caráter inseparável entre o tratamento e a formação psicanalítica. Cabe à psicanálise ir também contra os ventos que sopram nos campos da psiquiatria e da saúde mental em que a formação se vê impregnada pelo "emprego maciço de modelo.r de mpacitaçào sin,plórios e pobres 'tr1. Para cada profissional da saúde mental formado é exigido transformar-se em "um ator que tem seu papel cimmscrito e deve ser pragmático, segundo uma ótica de resultados objetiváveis e de mrto prazo. " Impõe-se o perfil de um profissional que executa tarefas que ''seg11em uma rotina Illjócante e infernal.· nada 111ai.r �l!,llal a 11n1 dia do que outro dia. Tudo o que fage a esse rito reverbera como um de.rpropósito. O que se espera é quantidade, quantidade, nada mais do que a q11a11tidade"'1• É inegável que a formação do profissional de saúde em geral, nos dias de hoje, esteja calcada nos métodos e nos procedimentos que emanam do discurso da ciência. O ensino na 17 área da saúde, na época contemporânea, realiza-se no solo epistêmico em que prevalece "o 1miversal, a objetividade, a estatística, a nom,atiz.ação, a evidência e o resultado'� Institui-se, nesse contexto a distinção entre a psicanálise e os métodos da ciência, pois, a primeira, como propõe o autor, 'Jilia-se na longa e femnda tradição do racionalista qNe leva em conta a sNbjetividade como fundamental e i"edutivel'". A psicanálise coloca-se como uma modalidade discursiva que, em suma, interroga o impacto dos efeitos da ciência sobre a civilização do gozo. É preciso, portanto, levar a sério o fio que, a meu ver, alinhava e responde o essencial dos questiona mentos que a série de ensaios que compõe este livro, nos incita na forma de uma indagação: "é possível Nma abertura para a interlocução com um dismrso em qNe prevalece o sing11/ar, a SNbjetividade, a estrulllra lógica, o caso a caso, a aNlentiddade e a história?'• Proceder a transformação desta pergunta numa aposta que serve de bússola para a prática do psicanalista é o desafio que o autor do livro provoca, de uma maneira ímpar, no leitor que chamou para si o gosto da leitura desses ensaios sobre o "retomo à clínica'ª. jésNS Santiago Professor da Universidade Federal de Minas Gerais AME - Analista Membro da Escola Brasikira de Psicanálise · 1e Notas l HARRETO, F. P., Anorexia e buliqiia: de que se trata?, p. 45. 2 lbid., p. 45 . . l BARRETO, F. P., A monocultura e a paisagem, p. 97. 4 lbid., p. 46. � LACAN, J (1969) . Proposição de 9 de ourubro de 1 967, ln: Outros I :unios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 251 . 6 Jbid., p. 251 . 7 Jbid., p. 251 . 8 Mil.LER, J.-A. (2008). Choses m jinesse. Curso. Paris. (Inédito), aula de 1 2/1 1 /2008. 9 HARDY, G. H. (2000). Em defesa de um matemático, São Paulo: Martins Fontes, p. 128. lO lbid., p. 1 14. 11 lbid., p. 126. 12 lbid., p. 1 15. 13 lbid., p. 129. 14 LACAN, J (1969). Proposição de outubro, ln: 011/ros Esmtos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 251 . lS Ibid. p. 261 . 16 MILLER, J.-A. (2008), Furumpsy: Entrctiens d'actualité, n. 33, 1 6/ 12/2008. 17 BARRETO, F. P., Da ancipsiquiatria à antissaúde mental, p. 332 lS Ibid., 332. 19 BARRETO, F. P. Notas sobre a história da medicina, p. 43. 20 BARRETO, F. P. Notas sobre a história da medicina, p. 43. 21 BARRETO, E P. Como vejo a psiquiatria hoje: entre as aves e as feras hoje, p. 1 58. 19 Apresentação Nos últimos dez anos, tive a oportunidade de trabalhar rnmo supervisor clínico de vários serviços ligados, de alguma fc ,rma, à área da saúde mental: 1. O NAPS Casa Verde do Hospital do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de l\1inas Gerais - IPSEMG (Jc junho de 1999 a junho de 2001 ) . 2. O CERSAM (CAPS, NAPS) Noroeste, da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte (de fevereiro de 2000 a fevereiro de 2001) . 3. A Coordenadoria de Psicologia do Hospital das Clínicas da lJFMG (de fevereiro de 2001 a dezembro de 2004). 4. O CERSAM Barreiro, da Secretaria de Saúde da Prt:feitura Municipal de Belo Horizonte (de agosto de 2001 a maio de 2005). 5. O CERSAM Leste, da Secretaria de Saúdt: da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (de setembro de 2002 a maio de 2005) . 6. O Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB), do Hospital das Clínicas da UFMG (de março de 2005 a dezembro de 2006). 7. O Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos (NAVCV), da Secretaria Especial de Direitos Humanos em parceria com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Esportes (de fevereiro de 2005 a junho de 2008). No exercício de minha função, a principal referência foi a psicanálise de orientação lacaniana, vocação que cultivei na 21 Escola Brasileira de Psicanálise e no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. A supervisão foi um desafio que exigiu de mim, sobretudo, uma constante passagem da experiência à formali"!ação. O que reúno, nesse livro, são ensaios surgidos a partir desse trabalho, e que vieram a se somar a outras inquietações minhas. O mérito de uma coletânea é o de revelar melhor o contexto em que um ensaio é produzido. Um texto ao lado de outro é algo diferente da soma dos dois. E o que, a meu ver, justifica o livro. Frandsro Pae.r Ba"s/o 22 Capítulo I PSICANÁLISE E MEDICINA O CORPO NA PSICOSSOMÁTICA' Em seu artigo Psicanálise e Medicina, Lacan comenta que.. quando se considera a história da medicina, constata-se que o �randc médico, o médico padrão, era um homem de prestígio e autoridade. O que acontece entre médico e paciente, ilustrado "!-:' ,ra pelo aforisma de Balint - o médico, ao receitar, receita a si 1 1n'1prio - sempre aconteceu: assim, por exemplo, o imperador Marco Aurélio convocava Galeno para que esse lhe vertesse com suas prúprias mãos a tcriaga (xarope que se presumia eficaz contra picadas de animais peçonhentos). Foi o próprio Galeno quem es rrcveu em seu tratado que o bom médico é também um filósofo.2 A entrada da medicina em sua fase científica. contudo, produz rápida mudança na função do médico e em seu perso nagem. Com Bichat, a clínica funda-se na anatomia patológica. e n >m Claude Bernard a exigência experimental alcança a medicina, l"Stabelecendo as bases científicas em termos fisiológicos. A relação médica com a saúde modifica-se, numa evolução que vai culminar situando o corpo na expectativa de ser inteiramente fotografado, radioi.,>Tafado, calibrado, diagramado e condicionado. E também na produção de número infinito de agentes terapêuticos novos, que são colocados à disposição do público. Desenvolvimento científico llUC inaugura e põe, cada vez mais em primeiro plano, um novo direito do homem à saúde, que se motiva já em organização mun dial. É nesse contexto que o médico deve responder a algo que se chama a demanda. Lacan observa que nem sempre o que o paciente de manda do médico é a cura. As vezes, ele desafia o médico a retirá lo de sua condição de enfermo - o que implica estar ligado à ideia 25 de conservá-la. Outras vezes, demanda do médico que o autentique como enfermo. Ou ainda, demanda que lhe preserve em sua enfermidade. Além do mais, não é necessário ser psicanalista, sequer médico, para saber que, quando alguém demanda algo, isso não éidêntico, e às vezes é inclusive diametralmente oposto, àquilo que se deseja. Introduz-se, assim, a estrutura da falha que existe entre a demanda e o desejo. A noção de falha é retomada, logo em seguida, como falha epistemos.romática, para definir o efeito do progresso da ciência sobre a relação da mediána com o corpo. Dizendo em poucas palavras em que consiste esta falha: um corpo é algo que está feito para gozar, gozar de si próprio; ora, a dimensão do gozo está completamente excluída do que foi denominado relação episte mossomática. A ciência não é incapaz de saber de quê pode, mas da, tal como o sujeito que ela fabrica, não pode saber o que quer.' A falha epistemossomática, portanto, é a que se verifica entre o corpo considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal - corpo-máquina estabelecido pela ciência médica - e o organismo desejante e gozoso. É exatamente nesta falha, assim situada por Lacan, que se introduz toda uma série de teorias psicossomáticas, algumas das quais procurarei apontar. A psicossomática já conheceu períodos de entusiasmo e de descrédito. Tanto da parte dos médicos como da parte dos psicanalistas houve, nwna certa época - o auge foram os anos 60 - uma expectativa recíproca por certo exagerada. Como resultado sobreveio, de parte a parte, cepticismo e arrefecimento. Sem dúvida, tivemos muito "falatório estéril", termos de Lacan, mas, certamente, seria um despropósito afirmar que tanto trabalho resultou em nada. Tentemos então, pdo menos, organizar um pouco a casa, fazendo um retrospecto de tais concepções, inicial mente dos pós-freudianos e, finalmente, de Lacan. 26 011 pós-freudianos ( ,'roddeck Um dos pioneiros na abordagem psicanalítica dos problemas da medicina orgânica, Groddeck estabeleceu a identidade imaginária entre processos somáticos e psíquicos, a partir da qual tentou interpretar os processos fisiopatológicos através da aplicação de instrumentos conceituais psicanalíticos. C :hi:gou, por esse caminho, a resultados extravagantes, tal como "interpretar" a febre de uma enfermidade infecciosa como "signo" Jc excitação sexual. ou a congestão de determinado órgão como "signo" de ereção deslocada, ou ainda o câncer como satisfação substitutiva de desejo recalcado de ter filhos, e assim por diante. Na mesma linha, outro autor, Garma, via na úlcera péptica a projeção Jo seio materno na mucosa do estômago. Nesse delírio, chegou-se a supor que todas as enfermidades seriam psiquicamente deter minadas. Tal atitude estende a todos os processos orgânicos o que foi estabelecido por Freud para a histeria de conversão: a víscera afetada expressaria uma significação inconsciente. Tal enfoque psicossomático é talvez o mais antigo na psicanálise, e na atua lidade está abandonado por completo. Alexander A investigação psicossomática de Alexander distingue os sintomas de conversão histérica das respostas vegetativas às emo ções. O sintoma histérico seria uma expressão simbólica (des locada) de um conteúdo emocional definido, mecanismo restrito ao sistema neuromuscular voluntário ou ao sistema perceptivo. O sintoma neurovegetativo não é uma expressão substitutiva da emoção, mas, sim, o seu concomitante fisiológico normal. A 27 natureza patológica da condição ocorre quando, diante de conflitos não resolvidos, as respostas vegetativas tornam-se crônicas. Inspirando-se nos trabalhos fisiológicos de Cannon, Alexander admite certa especificidade nos fenômenos psicosso máticos. Não haveria relação simbólica entre conflito e lesão, mas a cada estado emocional corresponderia uma resposta fisiológica característica, que em si mesma não seria patológica, mas integrante do estado emocional. Tomando como base, por exemplo, a conduta agressiva, Alexander supõe três fases: 1. A fase conceituai, com a preparação do ataque na fantasia, sua organização e visualização mental. 2. A preparação vegetativa do corpo com mudanças do metabolismo e da circulação. J. A fase neuro muscular, com a consumação do ato agressivo. O impulso hostil, contudo, devido a conflitos pode ser detido ou inibido. Se o processo detém-se na primeira fase, sobrevém a enxaqueca; na segunda fase, a hipertensão arterial, e na terceira fase, a artrite reumatoide. 4 A complacência somática Uma terceira posição inclui pós-freudianos que recha çam toda e qualquer especificidade do fenômeno psicossomático. Ou seja: não haveria nenhuma relação entre a natureza do conflito e a natureza da lesão. Esta concepção aceita só um componente do conceito freudiano de conversão histérica, a saber, a complacência somática. A natureza do distúrbio vegetativo depende inteiramente de fatores constitucionais ou de uma vulnerabilidade previamente adquirida pelo órgão afetado. Cada enfermo tem um ou mais órgãos de choqne onde a lesão se manifesta sem nenhuma especificidade. 28 l .11can Passarei agora às contribuições da psicanálise de orien- 111�·áo lacaniana à psicossomática, que serão apresentadas sob a I« ,rma de sinopse ou introdução, visando despertar o interesse dos 1 111e têm condição de investigar o tema. , \'rp//rarào entre s'!}eito e corpo Situarei de imediato uma observação. Na perspectiva laca niana, a psicossomática nada tem a ver com concepções holísticas. 11uc pregam uma unidade fundamental entre os dois aspectos. Para da, muito pelo contrário, entre o sujeito e o corpo existe uma sepa ração fundamental. O sujeito é alguém de quem se fala antes que ele I" ,ssa falar, é alguém de quem se fala inclusive antes mesmo dele nascer. Antes de ter um corpo, portanto, o sujeito já existe na fala de �cus antecessores, e mesmo depois de sua morte, ele continua sus lentado pela dimensão significante, ultrapassando, por conseguinte, ;1 temporalidade do corpo. É exatamente isto qut: permite dizer: "Eu lenho um corpo", ou seja: tomar nosso corpo como atributo e não como nosso ser. Como sujeitos do significante estamos separados de nosso corpo, podemos prescindir dele.5 Psicossomática ou psico-somática? Durante algum tempo houve hesitação quanto à forma de escrever. Na verdade, não se tratava apenas de problema de ortografia, mas de interrogar sobre a continuidade ou sobre a descontinuidade dos dois registros. No enfoque lacaniano, não há no fenômeno psicossomático nada da onlt:m de wn salto do psíquico para o somático; ele se situa fora das construções neuróticas, estando a linha divisória constituída pelo narcisismo. Entre o psíquico e o somático existe descon- 1 inuidade, e as relações psicossomáticas se situam no limite das elaborações conceituais da psicanálise: elas estão no nível do real.' 29 Sintoma histérico e FPS Prosseguirei orientando-me, a partir de agora, por meio da oposição entre sintoma histérico e fenômeno psicossomático (FPS) . O sintoma histérico, embora implique o corpo, tem valor de mensagem do sujeito dirigida ao Outro do significante, ao Outro do desejo, mensagem que se faz enigma a ser decifrado. E o FPS? Nesse caso, não se trataria de mensagem dirigida ao Outro do significante, e muito menos ao lugar do Outro que pode ser ocupado por um sujeito. O que estaria em jogo seria o corpo como Outro; ou seja, teríamos aqui, em operação, aquela definição de Lacan: "O corpo é o Outro". Haveria, no FPS, uma escrita no corpo, a lesão como uma inscrição no corpo. V árias palavras são utilizadas na tentativa de nomear a escrita em jogo neste caso: S, absoluto, assinatura, traço unário, nome próprio, sinete, selo, marca, escarificação.7 Constelação de termos que denuncia a dificuldade de traduzir de modo teoricamente satisfatório o efeito psicossomático. Vou preferir urna expresão cara a Lacan: o FPS seria um hieroglifo no deserto. Quer.dizer, uma escrita enigmática e em que não há apdo ao Outro. É a razão pela qual o paciente que padece do problema não tem demanda de análise. Que condição estaria associada a essa escrita no corpo? O que determinaria esse caminhocomo uma possibilidade? Ao que tudo indica, na dinâmica psicossomática, a metáfora paterna não funcionaria corretamente. Uma falha na função paterna intituiria o FPS. Uma falta de intervalo entre S1 e S2; uma gelificação, uma solidificação da primeira dupla de significantes, condição que se denomina holófrase, e que estaria presente na psicossomática, na debilidade e na psicose. 8 A questão de fundo do FPS, então, seria esta: a metáfora paterna funcionaria em certos sítios do discurso e não em outros. Em momentos específicos, provocaria desencadeamento no corpo. Em casos extremos, poderia acarretar a morte do sujeito. Por outro 30 l,11 11 1, a aglutinação S,S2 que se verifica na holófrase poderia l 1 1 11d1 1nar como novo significante, como S2, voltando então numa • ,u lt•in significante clássica.' É o que explicaria as remissões comuns 1 lt'�Mcs casos. Sintoma FPS Fala ···--··-···················· ·········-················ Escrita Dialética ........................ .......... ................. Inércia Substituição .............. ...... . ..................... Identificação Inconsciente ..................... ············-········--··- Corpo Cadeia significante ............... .................... S, , Holófrase Para decifrar ............ ........ .................. Para não ser lido Signo ............................ ....................... Assinatura10 ( ) .l!.ºZº espedftco do FP S Na sua Conftrinda em Genebra sobre o sintoma, Lacan fornece três indicações precisas sobre o FPS. 1ª. De que ele está, cm seu fundamento, profundamente arraigado no imaginário. 2ª. 1 )e que o corpo deixa a escrever algo da ordem do número. 3ª. De lJUC há um gozo específico em sua fixação (ftxierungj1 Situam-se, desse modo, os três registros: o enraizamento no imaginário; o Nimbólico, com o corpo funcionando como superficie de inscrição; e o real, pela cifração do gozo por meio do número. Haveria um gozo específico do FPS? Lembramos, antes de mais nada, que o gozo inclui o prazer e o desprazer; o sofrimento de um sintoma, por exemplo, é uma forma de satisfação pulsional. Para responder à pergunta, é preciso estabelecer a distinção entre corpo e organismo. Em seu texto Posição tÚJ I nconsdente, l..acan assinala que os limites de um organismo alcançam mais longe do lJUe os limites de um corpo.12 Parece que a referência inicial é Aristóteles, para o qual o organismo é o corpo instrumentalizado pela alma; para Aristóteles, corpo + alma = organismo. Em Lacan, 31 o organismo teria como fórmula wn corpo completado, ou seja, o corpo mais o órgão não corporificado que é a própria libido: corpo + libido = organismo. Isto é válido particularmente para o sintoma histérico: a libido como um órgão incorpóreo e extracorpo. Ora, sabemos que a libido freudiana é wn dos nomes do gozo. O que haveria no FPS? Precisamente isto: a libido não mais seria um órgão incorpóreo, a libido se tornaria corporificada. Esta hipótese - da lesão como libido corporificada - não deve, todavia, ser estendida para todas as docnças.13 Na prática, o que muda com essas colocações? Primeiro: o FPS deve ser abordado pela revelação do gozo específico que há em sua fixação, embora se verifique, aqui, um paradoxo: quando a palavra gozo adquirir um sentido para o sujeito, ele já não é mais um psicossomático. Segundo: delineia-se a tarefa de transformar o FPS cm sintoma, fazendo com que o Outro em questão não seja somente o corpo próprio, e convertendo-o em questão sobre o desejo. Mais uma vez, não há regra geral, é preciso considerar os casos um a um. Mesmo porque existem aqui dois agravantes. Primeiro: o sujeito psicossomático (se é que há um sujeito, neste caso) não demanda tratamento analitico. Segundo: wna viragem neste sentido não está isenta de complicaçôes, que podem ser sérias. Termino minhas considerações com um comentário: se, num primeiro tempo, a investigação psicossomática exibiu entusiasmo insustentável, e se, num segundo tempo, veio a rebote um descrédito generalizado, é possível descortinar, hoje, alguns balizamentos seguros, e um campo aberto à investigação. 32 lt,"mplos clínicos , ,1,ro I Cetina estava há cerca de dois anos em análise, quando me tn ,uxe o rdato que se segue. "Hoje, vou falar de assunto sobre o qual nunca falei: as minhas crises de herpes (e aponta para um herpes lubial). É um problema por demais incômodo, muito doloroso e muito feio. Lá em casa, eu tenho herpes, minha irmã tem herpes e minha mãe tem herpes. É uma marca registrada das mulheres da lumília". Ciuo 2 Há algum tempo fui procurado por uma jovem senhora, que havia sido encaminhada por seu gastrentcrologista. Danida entrou abatida em minha sala1 sentou-se e disse: "Eu estou com 11:íusea há vários dias. O Dr. G. fez todos os exames para descobrir 11 causa, mas, nada encontrou. E o problema só se agrava. Ele pensou em hospitalização e me deu um ultimato: só não faria isso se cu consultasse um psicanalista. E indicou seu nome". Perguntei lht'. o que achou da indicação. Ela respondeu-me secamente: "Na verdade, eu não gosto de psicanálise. Pelo que eu sei, o que a psicanálise faz é trocar uma doença por outra. Eu vim somente porque o meu médico insistiu". - Ele insistiu, mas VOCÊ veio! Ela não teve como discordar da minha pontuação. Perguntou-me se eu poderia fazer alguma coisa por ela. Respondi-lhe l(UC tentaria, desde que contasse com sua colaboração. Ela concor dou, e <le fato colaborou, trazendo um relato fluente e espontâneo. O sintoma (náusea) começou assim que retornou, com o marido, de um cruzeiro pelo Caribe. O marido era um homem de 33 quem gostava, a quem admirava e com quem se sentia segura. Seu casamento, no entanto, era cercado de uma certa formalidade; uma relação respeitosa, mas pouco romântica. Cada um se interessava mais por sua profissão do que pela vida conjugal. Ela acreditava que sua escolha tinha a ver com seu pai. Sua história com ele apresentava dois momentos radicalmente distintos. No primeiro, um homem rico e poderoso, que lhe proporcionou wna inf"ancia suntuosa. Lembrava-se, com destaque, dos passeios de iate, um iate tão grande que mais se parecia wn navio, avançando mar adentro. Uma época de sonhos. O segundo momento veio com a falência do pai, com as dificuldades financeiras de toda sorte. E o que foi pior: seu pai faliu também como sujeito; a partir daí, nunca mais se reergueu. É nesse contexto que via o marido como wn "porto seguro". Na adolescência, fugindo do ambiente familiar pesado, mudou-se para os Estados Unidos, participando de programa de intercâmbio cultural. Antes disso, já falava fluentemente o inglês: havia recebido educação bilingüe. Nos EUA, desenvolveu "paixão platônica" por seu "irmão" americano, e notou, da parte dele, certa correspondência. Poucos dias antes de regressar ao Brasil, resol veram se declarar; trocaram beijos, fizeram promessas, mas com a viagem houve wn corte, e a distância silenciou aquela relação. Retomando o tema do cruzeiro no Caribe, contou que, numa das ilhas paradisíacas, receberam a visita de seus "pais" e de seu "irmão" americano. Dias antes do acontecimento, ela pensou: paixão e tesão, ainda ficava por conta da lembrança do irmão americano, com seu ar aventureiro de quem sabia viver a vida. Durante a visita, notou que, também da parte dele, algo muito forte também estava presente. Valeria a pena o risco? Retornou do passeio, retomou sua vida, seu trabalho, até que, pouco tempo depois, o sintoma começou de forma implacável De forma irônica, comentou: "O meu drama amoroso, doutor, é um drama bilingüe". Neste momento, interpretei: - O seu sintoma é náusea. Podemos separar essa palavra em duas: NAU e SEA. O que você acha disso? 34 Ela sorriu e respondeu: "Não há o que contestar" ... Foram dez sessões em duas semanas, com urna sessão il i�rh1. Na segunda-feira da terceira semana, ela assim se expressou: "I )esdc o final da últimaentrevista minha náusea sumiu, e sei que não 1111us voltará. Era isso o que eu queria, o senhor foi brilhante e agradeço lhe pela ajuda. Como havia dito, não pretendo fazer uma psicanálise". Por mais que, levado pelo meu desejo de analista, eu 111 mderasse que ainda havia muito que percorrer, ela preferiu 11ccrtar as contas comigo e ir embora. No fundo, eu concordei com da: a psicanálise troca uma doença por outra, ou, em termos mais precisos, troca um sintoma por outro. Mas esperava que, a partir desse bom encontro, ela um dia, talvez, voltasse. Mas, não voltou. ( :rlfllrt1fários Consideremos, agora, os dois fragmentos clínicos. No primeiro caso, o de Cetina, o herpes aparece como fenômeno 11Micossomático: inscrição identificatória no corpo, marca registrada d11s mulheres da família. Tal como as marcas que se inscrevem no rorpo do gado, para registrar a sua pertença. No segundo caso, o de Daniela, a náusea revelou-se um �intoma histérico, embora não houvesse, no caso, urna verdadeira 1k•manda de análise; apenas, uma demanda terapêutica, ou seja, uma demanda exclusiva de levantamento do sintoma. A conclusão de: que se tratava de sintoma histérico pode ser fundamentada a partir dos seguintes argumentos. 1°. A náusea pode ser, retroa i ivamente, caracterizada como mensagem cifrada dirigida ao Outro, l' cuja decifração proporcionou a sua remissão. 2°. O sintoma esta va cm total consonância com sua história, pleno de sentido, ao contrário do fenômeno psicossomático, que não é para ser lido. 3°. C > sintoma de Daniela apresenta, claramente, um sentido gozado (jrJHis-sens), do qual ela nada quer saber (não gosta de psicanalistas); diferente do herpes de Celina, que fica como um ponto de gozo no 35 corpo, como um retorno localizado do gozo ao corpo, impossível de ser decifrado ou de produzir efeito de sentido. Notas 1 Apresentado no II Congrwo Mineiro de Medidna Psicossomática, realizado em Belo Horizonte, em 2 de maio de 1999, e publicado no Correio (revista da Hscola Brasileira de Psicanálise), nº 35, outubro de 2001 , pp. 28-37. 2 Lacan,J. (1 985) Psicoanálisis y medicina (1966). ln: lnlervendonesy Textos (p. 87). Buenos Aires: Manancial. 3 Idem, ibidem (p. 92). 4 Alexander, F. & Szasz, T.S. (1962) EI enfoque psicossomatico en medicina. ln: Psiquialrío Dinâmica (pp. 327). Buenos Aires: Paidos. 5 Solcr, C. (1994) EI cuerpo en la ensenanza de Lacan. ln: listndios � Psicossomática (p. 100), GoraUi, v: o�. Buenos Aires: Atuei CAP, 2 ed. 6 Lacan, J. (1985) O Seminário. Livro 2. O eu na teoria de Frend e na técnica da psit:análise (1954-55)(p. 127). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 7 l'\liller, J.-A. (1987) Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. ln: Psicosson,álica e Prit:análise (pp. 95-96), IVartel, R org. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. 8 Lacan, J. (1 979) O Seminário. Lii'TO 1 1 (1964 ). Os qnatro conceitos Jimdon1enlais da p1icanálise (p. 225). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 9 Guir, J. (1987) Fenômenos psicossomáticos e função paterna. ln: Psicossomática e Psicanálise (p. 48). IY�RJEL, R o,g. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. lO Dewambrechies-La Sagna, C. Des lésions sensibles à la parole. ln: Quarto. Bruxelas: Revue de l'Ecole de la Cause frcudienne, 59:37-39, março de 1 996, p. 39. 11 Lacan, J. (1 988) Conferencia en Ginebra sobre el sintoma (1975). ln: lntervenciones y Textor 2 (pp. 139-140). Buenos Aires: Manancial, 1988. 12 Lacan, J. (1 998) Posição do inconsciente (1 964). ln: Elcritos (p. 862). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 13 Miller, J.-A. (1 987) Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. Op. cit., pp. 95-96. 36 NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA MEDICINA' É com grande satisfação que participo da recepção aos rnlouros de 2008 da Faculdade de Medicina da UFMG. Com rareza é um momento especial na vida de vocês, e inevita- 1Tlmcnte isso me faz lembrar que, um dia, foi um momento ,·�pl·cial também na minha vida. Sou da turma de formandos de 1 %5, até hoje muito unida. Todas as sextas-feiras há os que se n·úncm num restaurante. Pelo menos uma vez por ano, na data da lormatura, um grupo maior se reencontra em alguma cidade uprazível. E um pequeno jornal circula entre nós com regularidade, 11'1 rendo chegado ao número 50. Não faz muito tempo publiquei 1 wk· uma crônica: O dia mair feliz do minha vida. Pois bem, O dia mais 1 diz da minha vida foi aquele em que fiquei sabendo que havia sido ,,provado no vestibular de medicina da UFMG. De fato, a minha \'ida nunca mais foi a mesma. Houve, claramente, um antes e um depois. Creio que ainda é assim, embora de maneira menos pn ,nunciada, menos marcante do que no meu tempo. Nos dias 111 uais, outras batalhas vocês terão pela frente, como a da resi dência médica, que a minha época não havia ou não era tão difícil. Ultrapassado o umbral do vestibular, vivi nesta Faculdade 11m período importantíssimo da minha história. Mais do que wna escola de medicina, foi para mim uma escola de vida. Aqui conheci �rande parte dos meus melhores professores e dos meus melhores amigos. Razão pela qual considero este lugar a minha segunda casa. l ·'.spero que tenham uma sorte semelhante. O nosso tema será, como não poderia deixar de ser, a medicina. Que considerações eu poderia trazer para jovens que 37 estão começando seus estudos médicos? E que proposições? Farei uma abordagem duplamente histórica. Ou seja, levarei em conta a história da medicina. Mas, sem dúvida, a leitura que dela farei, terá muito a ver com a minha própria história, com a minha trajetória profissional. A medicina é uma prática social multirnilenar. Nos primeiros tempos, o médico e o sacerdote constituíam um só personagem, que apelava para poderes divinos, nos templos que recebiam os enfermos. Por mais que as coisas tenham evoluído, ainda hoje curas são atribuídas a influências sobrenaturais e ministros religiosos operam o milagre de restituir a saúde. Mesmo com a separação entre a função médica e a sacerdotal, a cultura continuou reservando para o médico um papel que ultrapassava muito o alivio das doenças. Atribuía-se a ele um poder pessoal inespedfico e um saber sobre a vida saudável, sobre o bem-viver. Dimensão ética, que fazia do ato terapêutico uma intervenção que incidia não apenas sobre o corpo, mas sobre a história do sujeito. A expressão mrador talvez reflita o período. Somente a partir da primeira metade do século XX pode se falar de uma medicina com bases científicas. Fica, então, a pergunta instigadora: em quê se baseava o poder curativo da medicina pré-científica? É preciso atenção para o seguinte aspecto: o simples fato de fazer tal pergunta já é muito importante. Num só tempo, ela lança uma dúvida e traz uma afirmação: existe algo de terapêutico na medicina que não se apoia em bases científicas convencionais. Com efeito, além de Hipócrates, tivemos grandes nomes nesse longo período: Celso, Galena, Avicena, Averróis, Paracelso, etc. Em termos estritamente científicos, muito pouco do que eles propuseram prevaleceu. Torna-se necessário, assim, deslindar a influência que tais personagens exerciam. Em seu artigo Psicanálise e Medicina, Lacan comenta que, quando se considera a história da medicina, constata-se que o grande médico, o médico padrão, era um homem de prestígio e 38 ,11 1 toridade. O que acontece entre médico e paciente, ilustrado ••�nrn pelo aforisma de Balint - o médico, ao receitar, receita a si 1 •rc'1prio - sempre aconteceu: assim, por exemplo, o imperador M II rco Aurélio convocava Galeno para que esse lhe venesse com ""11� próprias mãos a ceriaga (xarope que se presumia eficaz contra p1rndas de animais peçonhentos). Foi o próprio Galeno quem t•Mrrcveu em seu tratado que o bom médico é também um filósofo.2 " ' , · l/1aixo de Deus, o médico". Expressão doquente. Quando o médico ,. 1:olocado nesse lugar, o seu poder de influência sobre o paciente torna-se evidente. Vamos encontrarum modo de demonstrá-lo nas lrn11úricas experiências de Charcot, que, por meio do hipnotismo, fez aparecer ou desaparecer os sintomas histéricos de suas p11cientes. Ou seja, sintomas podem aparecer ou desaparecer pela influência de um sujeito sobre outro sujeito. Abaixo de Deus, o médico é colocado no lugar de um pai idealizado, onipotente: é o que Freud chamou de transferência. A transferência, portanto, além dos agentes fisicos ou químicos, está no cerne da ação terapêutica do médico. É de fundamental irnportáncia verificar o que aconteceu depois que a medicina se introduziu no método científico. A transição teve início no fim do século XVIII e foi concluída na primeira metade do século XX. Didaticamente, podem-se distin �ir nela três etapas: 1. A criação do métodtJ clínico, por Pinel e Cabanis, que permitiu caracterizar as doenças por meio de signos. 3 2. O método clinico é enraizado na anatomia patológica, constituindo-se o método anátomo-rlínico; o patológico passa a ser identificado no rúvel do órgão (Morgaru"). no nível do tecido (Bichat) e no nível da célula (Virchow). 3. O normal e o patológico passam a ser caracterizados cm termos fisiológicos; trabalho que começou com os estudos de Claude Bernard sobre as constantes do meio interno e atingiu seus contornos definitivos com as formulações de Canon sobre a homeostase. • 39 A entrada da medicina em sua fase científica produz rápida mudança na função do médico e em seu personagem. Considerarei dois aspectos dessa transformação. Em primeiro lugar: criou-se uma nova concepção de corpo, numa evolução que caminha para situá-lo na expectativa de ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e condicionado. O corpo passou a ser considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal, o que já foi chamado com justeza de corpo-máq11ina. A medicina sabe cada vez mais sobre partes cada vez menores desse corpo-máquina, cujas leis e funcionamento vêm sendo desvendados de forma minuciosa e precisa. No final do século XX, o progresso exponencial dos re cursos tecnológicos permitiu uma dissecção virtual in vivo, que, além do mais, mudou o recorte do corpo. Houve wna fragmen tação, um estilhaçamento produzido pelo discurso científico. O avanço do conhecimento foi tamanho, que só cabe a cada um o estudo e o domínio de um pequeno fragmento desse corpo. Em segundo lugar: muito distante daquele personagem da era pré-científica, o médico de hoje caminha para tornar-se, se já não se tornou, um técnico. Cada vez mais, é um especialista, num sistema que se equilibra criando o lugar do generalista. Eu disse generalista, que é diferente de clínico geral. A diferença está na eliminação do clínico. Com efeito, estaríamos num tempo em que não haveria mais lugar para a clínica? Em que a tecnologia teria estabelecido um acesso direto ao substrato anatômico ou fisio lógico, dispensando qualquer mediação? É uma pergunta. O médico-técnico não tem por tarefa apenas corrigir as imperfeições decorrentes das doenças; exige-se dele, também, que se dedique aos aperfeiçoamentos. Não hasta a restitutio ad integrt1m, pois Deus, ou a natureza, criou o homem e a mulher como seres normalmente feios e defeituosos, sendo preciso corrigir as aberrações congênitas de cada um e da espécie. A ética do médico de outrora ficou deslocada pela estética do médico de hoje. 40 Duas grandes mudanças, portanto: a restrição do , ,1g111 1 ismo ao corpo biológico, ou ao corpo-máquina, e a trans l 1 1nnaçào da figura do médico, que tende, cada vez mais, a tornar , , , 11111 técnico. Há algo comum nessas duas evoluções, que é a , ·,-dllsào da subjetividade do examinado e do examinador. O que é, 1 ,. ,r sinal, uma das condições do discurso científico. A evolução que está sendo considerada apresenta nítidas va11 1agens. O saber médico desenvolveu-se de forma exponencial, 1 1 1 1 último século; muito mais do que nos dois milênios anteriores. 1 :, , , poder de cura da medicina aumentou de maneira correspon- 1 kntc, traduzindo-se na produção de número infinito de agentes l l·rapêuticos novos, que são colocados à disposição do público. 1 >cscnvol�;menco científico que inaugura e põe, cada vez mais em primeiro plano, um novo direito do homem à saúde, que se motiva j;í cm organização mundial. Mas - é preciso considerar-se - há um preço a ser pago por isso. Algo ficou de fora com esse progresso. Lacan observa que nem sempre o que o paciente demanda do médico é a cura. Às vezes, ele desafia o médico a retirá-lo de sua condição de enfermo - o que implica estar ligado à ideia de conservá-la. Outras vezes, demanda explicitamente do médico que o autentique como enfermo. Ou ainda, demanda que lhe preserve em sua enfermidade. Além do mais, não é necessário ser psicanalista, sequer médico, para saber que, quando alguém demanda algo, isso não é idêntico, e às vezes é inclusive diametralmente oposto, àquilo que se deseja. Introduz-se, assim, a estrutura da falha que existe entre aquilo que se demanda e aquilo 4ue verdadeiramente se deseja. A noção de falha pode ser retomada para definir o efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Em outras palavras: quanto mais a medicina científica avança, mais ela ganha, numa certa perspectiva, e mais ela perde, em outra perspectiva. Dizendo em poucas palavras em que consiste esta falha: quando se toma por objeto o corpo-máquina, fica de fora a dimensão do desejo e do gozo: É o que Lacan chamou de falha 41 epistemossomática. A falha epistemossomática, portanto, é a que se verifica entre o corpo considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal - corpo biológico estabelecido pela ciência médica - e o organismo desejante e gozoso. Ora, não foi por acaso que o nascimento da psicanálise coincidiu exatamente com o ingresso da medicina na era científica. O campo freudiano é, precisamente, o campo do desejo e do gozo. A psicanálise trabalha, por conseguinte, com aquilo que a medicina deixou à parte na sua evolução. Por outro lado, se o médico de hoje desconhece a transferência, o psicanalista faz dela a mola propulsara do seu tratamento. O psicanalista é o herdeiro do poder terapêutico da transferência, embora faça dela um uso inteiramente diferente daquele que faziam os médicos antigos. É por esse motivo que Lacan chamou a psicanálise de a última flor da medicina. O psicanalista, como o médico de outrora, admite o argumento da autoridade, quer dizer, admite o saber que lhe vem como atribuição. Existe, entretanto, diferença fundamental: o psicanalista faz semblante de saber, joga a farsa de saber, mas sabe que, no fundo, o saber não lhe pertence, ele sabe que não sabe, ele sabe que o saber sobre o sintoma que lhe é suposto nada mais é, afinal, do que o saber inconsciente do próprio paciente. O psica nalista, então, devolve esse saber sob a forma de interpretação. Na tentativa de reparar a falha epistemossomática uma série de teorias psicossomáticas tem sido introduzida. A psicossomática já conheceu períodos de entusiasmo e de des crédito. Tanto da parte dos médicos como da parte dos psica nalistas houve, nwna certa época - o auge foram os anos 60 - uma expectativa recíproca por certo exagerada. Como resultado sobre veio, de parte a parte, cepticismo e arrefecimento. Sem dúvida, tivemos muito "falatório estéril", mas seria um despropósito afirmar que tanto trabalho resultou em nada. Na perspectiva lacaniana, a psicossomática não é uma teoria ou um saber que vise à completude, não é um holismo. Todo . 42 M1hcr é parcial, incompleto, ainda que resulte de uma reunião de i 1 1�l'iplinas. A psicossomática seria, melhor dizendo, uma interface, 1 1 1 1rn interlocução. A formação do profissional de saúde, nos dias de hoje, ,·n t ií fundamentada no discurso cienáfico e não há como fugir a 1�11, 1. O discurso cienáfico visa ao saber absoluto, pretende-se autoMuliciente e a exclusão da subjetividade é premissa da qual não abre 111110. Entretanto, é preciso avaliar que existe uma longa e fecunda tradição racionalista que leva em conta a subjetividade r, 11110 fundamental e irredutível. Por outro lado, nem todos aqueles 11uc sustentam o discurso científico são fechados a essa 11' 1ssibilidade. A proposta, então seria a seguinte. O ensino na área da �aúde, na época contemporânea, está sendo realizado num contexto epistêmico onde prevalece o universal, a objetividade, a estatística, a normatização, a evidência e o resultado. Seria possível uma abertura para a interlocução com um discurso onde prevalece 11 singular, a subjetividade, a estrutura lógica, o caso a caso, a autenticidade e a história? Mais do que uma proposta é uma aposta. Notas 1 Palestra na recepção aos calouros da Faculdade de Medicina da UFMG, cm 08 de agosto de 2008. 2 Lacan,J. (1 985) Pnroanálisisy medicina (1966). ln: Interoe11rionesy Textos (p. 8 7). Buenos Aires: Manantial. l Foucault, M. (1 987) O Nascimenlo da Clínka. Rio de Janeiro: Forense Universitiria, pp. 1 26-1 29. 4 Canguilhem, G. (1990) O normal e o patológfao (c. V). 3" ed. Rio de Janeiro: forense-Universitária. 5 Lacan, J. (1985), op. cit, ( p. 92). 43 ANOREXIA E BULIMIA: DE QUE SE TRATA?1 Para a condução dos casos, é fundamental a conepção do llUC seja a anorexia e a bulimia, já que existem diferentes abor dagens do tema. Para a medicina e para a psiquiatria, por exemplo, são transtornos alimentares. Para a psicanálise, definitivamente, não é disso que se trata. O transtorno alimentar é sintoma, é conse l.Jllência de algo que se passa cm outro nível. De que se trata? Pode-se começar com a pergunta: quando se come, o que é que verdadeiramente se come? Os humanos, os seres falantes, são marcados pela palavra, e "a palavra é a morte da coisa", segundo fórmula de Hegel que Lacan tanto preza. Isso quer dizer, por exemplo, que para o ser falante a palavra vem antes do alimento e, frequentemente, no lugar do alimento. "Quero wna picanha ao ponto" ou "sou vegetariano": antes de comer comida, comem-se palavras. A questão, porém, pode ir mais longe. "Vocês vão ter que me engolir", disse, certa feita, Zagalo, quando considerado wn osso duro de roer. Já um outro fulano é rido como um abacaxi com caroço, o sicrano come pé de frango e arrota peru e o beltrano escarrou no prato que comeu. No campo amoroso, temos aquela que paquera um pão, ou aquele corteja wna uva .. . Expressões que deixam claro: no reino das palavras, o nome dos alimentos pode enredar as vicissitudes do amor, do desejo e do gozo. E é exatamente aqui que se tece a trama da anorexia e da bulimia. Nosso convidado, Fabián Schejtman, referiu-se ao neologismo amorexia, que traduz bem a questão. O tema é complexo, mas serão possíveis algumas apro ximações. 45 A psicanálise nos ensina que o seio materno é o primeiro objeto. Objeto de amor, de desejo, de gozo, de necessidade ali mentar. Intrincação que, por si só, é sugestiva. Quando o que está em jogo é a pulsão, devem ser consideradas algumas possibilidades: 1. A parte tomada pelo todo (o seio da mãe tomado como a mãe). 2. O objeto da necessidade tomado como objeto da pulsão (o alimento, depois de há muito satisfazer a fome, continua a ser consumido) . 3. O objeto da pulsão tomado como objeto da necessidade (o empuxo destrutivo como fantasia de devoração). 4. A voz ativa substituída pela voz passiva (o empuxo de engolir ou devorar como medo de ser engolido ou devorado). São possibilidades que se passam no nível inconsciente, é claro, e que cabe ao tratamento psicanalítico desvelar. É importante considerar, por outro lado, a pressão do discurso capitalista para um movimento infinito de consumo de objetos inventados pela ciência. E o que é mais: ao contrário das barreiras contra o gozo existentes no tempo de Freud, repre sentadas pelo recalque e pelo supereu paterno, o que há hoje é um imperativo de satisfação, um imperativo de gozo, emblemático do supereu materno. Passa-se do proibido para o obrigatório. Lacan resume tudo isso com uma só palavra: o impe rativo "Goza!" Trazendo para o campo que está sendo consi derado, o imperativo seria: "Come!" A questão é que o discurso capitalista tem outras exigências. Dentro do culto ao imaginário do corpo, ele dita: "Sê bela!" Acontece que, ser bela, segundo o modelo de beleza difundido pela mídia, é ser magra. Podemos, então, assim , reswnir o que se ordena: "Come e sê magra!" É nesse mundo que a anorexia está se tornando uma epidemia. A anorexia é um sintoma do feminino. Mais precisa mente, uma forma de rejeição do feminino, que conduz a um gozo auto-erótico. A anoréxica caça as curvas do feminino, e o seu terreno de caça é o espelho cruel. Espelho que escancara a falta · 46 l illln, visível aos olhos. Na anorexia, o olhar do Outro desempenha l'"Pd verdadeiramente crucial. Antes de ser alimentar, é questão do 1 1 ll rnr. A anorexia, como novo sintoma, coloca em cena o corpo rm Jctrimento da palavra, não possuindo valor de mensagem nem �,· prestando a interpretação. Pierre Naveau ressalta que a anorexia r a bulimia, embora não sejam mensagens cifradas, estão rdacionadas com o impossível de dizer, com aquilo que a psica- 111ilise denomina objeto a. A chave da dialética entre anorexia e hulimia é a relação com o impossível de dizer. Não se trata de uma ,�nsàu entre dizer e não dizer, mas entre nada dizer e t11do dizer, que KC traduziria em termos . de romer nada e 011 comer /11do. Na bulimia, haveria três momentos: comer tudo, olhar-se no espelho e vomitar, m-1uência que se impõe de modo implacável e cruel O vômito da hulímica corresponderia à expulsão do objeto, do qual a anoréxica não consegue se diferenciar. Lacan chama a atenção para um aspecto crucial: se, por um lado, há o significante do masculino, ou seja, o falo, por outro lado, não há significante do feminino. A não existência do significante da mulher é a forclusão fisiológica do ser falante, sendo 1 , feminino uma metáfora da falha em dizer. Abordarei a distinção anorexia-bulimia com outros termos. Se a anorexia põe em evidência a questão do desejo, a bulimia põe em evidência a questão do gozo. O desejo é por excelência da ordem da insatisfação. Só se deseja aquilo que está em falta. A língua portuguesa é bastante esclarecedora a esse respeito. Satisfazer o desejo é matar o desejo. Quanto a isso, a anoréxica leva ao extremo a ideia de insatisfação <lo desejo como modo de preservá-lo. Já o gozo é, por excelência, da ordem da satisfação. O gozo é a satisfação da pulsão. Por esse motivo, o comer fNdo da bulímica evidencia a questão do gozo. Não se deve, porém confundir gozo com prazer. O gozo é uma satisfação que está além do princípio do prazer. 47 Desejo e gozo são, portanto, antinômicos, existindo entre eles uma tensão. O que regula a relação do desejo com o gozo é o significante fálico. Utilizarei uma metáfora para situar a questão: uma comparação entre o falo e a comporta de uma represa. Pode se perguntar: a comporta serve para reter a água ou para liberá-la? Ora, serve para ambas as coisas. Tal é o falo no que se refere à questão da satisfação: em parte retém, em parte libera. Outra metáfora é a garrafa de uísque cheia até a metade. Na perspectiva do desejo está metade vazia, na perspectiva do gozo está metade cheia. No caso da anorexia e da bulimia é como se tivéssemos uma comporta que só funcionasse nos extremos: retendo toda a água ou liberando toda ela. Nota 1 Comentário apresentado em mesa redonda da I Jornada do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB), do Hospital das Clínicas da UFMG, realizada em Belo Horizonte, em 30 e 3 1 de maio de 2008, sobre o tema Anorexia e b11/in1ia: de que se trata? 4B A DORA DO NIAB' (FRAGMENTOS DE UM CASO DE BUUMIA) '41nopse da história clínica ( 1 >e autoria de Chafia Américo Farah)Recebo Clara, de 27 anos, a pedido de sua psiquiatra, no r'Júd,o de Investigação de Anorexia e B11/imia (N/AB), do Hospital das ( /iniras da UFMG. Inicialmente me diz que se sente desanimada 1 111m começar tudo de novo, pois já havia passado por muitos profissionais. "Meu primeiro tratamento durou mais ou menos um 111,0. O psiquiatra me deu o diagnóstico de Transtorno de Persona- 1 idade Borderline, Anorexia e Síndrome do Pânico ... Você também ,1cha que tenho isso?" Aos poucos, traz dados sobre sua história. "Sou bulírnica , bde os meus 1 5 anos. Fui molestada pelo meu padrasto e vivi isso sozinha. Minha mãe não acreditou em mim. Ela separou-se do meu pai logo depois que eu nasci: ele fugiu com meu irmão e só 11pareceu oito anos depois. Não valia muito; era traficante, tinha problemas com a polícia. Minha mãe não sabia disso quando se casaram; tinha 17 anos e era apaixonada por ele. Casou-se nova mente quando eu tinha um ano. Desse casamento vieram mais dois lilhos. Meu padrasto ensinou-me a chamá-lo de pai. Era dezenove anos mais velho do que minha mãe. Era wna pessoa muito boa, ajudou muito minha mãe e a família dela. Um santo!" Quando o padrasto passou num concurso público para advogado, mudaram-se para o interior de .Minas. Relata que dos 1 O aos 14 anos sofreu abuso sexual: "Ele mexia no meu corpo .. . 49 naquela época não contei para minha mãe, mas tentava dizer que tinha algo errado, pedindo para ir embora dali, que não queria morar mais ali ... " "Ele ficava se insinuando para ITlllil, falando da minha bunda, do meu peito . . . Na sala de televisão ele mexia comigo debaixo das cobertas. Eu fingia que estava dormindo, para não ter que contar pra minha mãe. O fA._ era maravilhoso para todo mundo. Eu tinha muito medo de contar e prejudicar minha família, meus irmãos . . . ''. E continua dizendo: "Então passei a fazer tudo o que não podia . . . era a única forma de agredir o h,.. Passei a comprar tudo com o dinheiro dele, sem limite, inclusive comida. Cheguei a pesar 80 kg com 1 5 anos". Depois de ser expulsa da escola, mudou-se para Belo Horizonte, com a mãe e um irmão mais velho. Tinha 16 anos. O padrasto ficou no interior com os dois filhos. Nessa época brigava muito com a mãe, com agressões tisicas mútuas, fugas de casa e tentativa de cortar o pulso. Decidiu ser freira: "porque eu tinha horror a homem!... Meu pai sumiu, meu padrasto abusava de mim e meus irmãos só sabiam brigar comigo". Conversava com as madres do colégio, contou sua história para uma delas, foi orientada a dizer tudo para sua mãe. Quando a freira marcou uma reunião com sua mãe, ela nunca mais voltou. "Foi aí que conheci o Rodolfo, o grande amor da minha vida". Após um mês de namoro, perdeu a virgindade e engravidou se. "Para mim foi a coisa mais importante da minha vida! Ele também queria muito aquele filho . . . queria casar comigo". Voltou a estudar, foi trabalhar com o pai, parou de usar drogas, pensando no futuro e em sustentar o filho. No quarto mês de gestação, descobriu que a criança tinha grave má-formação. Apesar do aconselhamento dos médicos, optou por não interromper e levar a gravidez complicada até o final. O parto foi difícil. O recém-nascido faleceu horas após, no colo do Rodolfo. Clara relata que o namorado "desestruturou. Tive que ser forte porque ele pirou. .. voltou a usar drogas, largou os · 50 1·M 11dos • . . " Seis meses depois, terminou com o Rodolfo, passou a p,·ns:u em morrer. Seguindo as orientações de wn padre, resolveu contar p11ra a mãe sobre o comportamento do padrasto. Recebeu wn tapa i l 11 mãe. "Ela me perguntou se só porque a minha vida estava 1b1ruída, eu queria destruir a dela também ... Me chamou de men- 1 1rosa e me perguntou se eu queria aparecer". Nessa época quem lhe ajudou foi o padrasto: "Ele era hom, mas era homem . . . Eu o amei como pai. Quando morreu, eu d10rci muito. E o perdoei no caixão, mas não consigo me perdoar. Se cu tivesse falado a verdade, contado para minha mãe, nada disso 1c:ria acontecido". Conheceu o atual marido wn ano após o nascimento do neném. "Eu não gostava dele, mas ele era perfeito: mais velho, formado, como minha familia queria. Passei a gostar dele. Com wn 1mo <le namoro, engravidei-me dele". Três dias antes do casamento, perdeu a criança. A familia do marido não queria que ele (não) se rasasse com 'aquela puta'. Clara. está casada há cinco anos. O marido é wn advo gado de 40 anos. Depois que ele passou nwn concurso público, mudaram-se para o interior de Minas. Clara detesta a cidade. Deixou wn emprego do qual gostava muito para ir para lá. "Cheguei a ser gerente, mesmo sem ter o segundo grau". Sobre o marido: "Acho que me casei com A II. Nunca vi parecer tanto: frio, calculista. É bom para os outros. E é bom l(Uando eu estou doente. Fico doente para ter a atenção dele. No geral ele é frio e distante. Fica me questionando se eu não tive culpa na história com meu padrasto". "Quando vomito estou me agre dindo por alguma coisa que não sei. Bulimia serve para colocar as coisas pra fora, aquilo que está machucando. Estou vivendo o luto. Estou enterrando 11, meu pai verdadeiro, meus filhos, meu marido. .. tudo o que me fez sofrer. Só não estou enterrando minha mãe". Há wn mês voltou para BH acompanhando o marido que veio fazer um curso. Aproveita para reaver seu emprego. Faz 51 entrevistas e é admitida como vendedora. Diz que "nunca mais vai morar no interior". Comentário psicanalítico (De autoria de Francisco Paes Ba"elo) No caso clinico relatado, eu não teria dúvidas quanto ao diagnóstico de histeria. Passarei a fundamentar meu juízo. A razão principal é que temos aí um Édipo muito bem caracterizado. Se estivéssemos diante de uma estrutura psic<'>tica, isso não aconteceria , não teríamos de modo tão evidente os impasses da dialética do desejo. Vamos ao Édipo, que, para Lacan, é diferente do Édipo para Freud. O freudiano é de três, o lacaniano é de quatro. Há, portanto, uma passagem do três para o quatro. A primeira vez que Lacan formalizou isso foi numa leitura que fez do Homem dos Ratos. Os quatro, então, eram: o homem dos ratos, o coronel substituto do pai, a dama rica, a dama pobre. Mas, foi no caso Dora que Lacan levou ao ápice a leitura do Édipo como um quadrado, e não como um triângulo. O quarteto era o seguinte: Dora, o pai, o Sr. K. e a Sra. K. Lacan disse que eles fizeram um verdadeiro ballet a quatro. Eu quase que chamaria esse caso de a Dora do NIAR. É muito nítido o quadrado nesse caso e vou tentar representá-lo da maneira mais clara possível. Clara Pai RodoHo Mãe Padrasto Marido · 52 Os quatro pontos são: Clara, a mãe, o pai e o padrasto. ' l , · tnos um quadrado e, com as diagonais, vários triângulos , , l iptanos. Vou adicionar mais dois nomes: em continuação com o 1 , , 1 1 , Rodolfo, namorado que é uma metonímia do pai, e no lugar do 1 •,11 I ras to, o marido de Clara, que é uma metonimia do padrasto. Ou ,, • 1 ; 1 : o c..iue ela fala da mãe sobre o pai é algo paralelo ao que fala de ,,1 1·111 relação ao Rodolfo. E o que fala sobre o padrasto é paralelo .,, , 11uc fala sobre o marido. Chamou o padrasto de A. e o marido , 11· i\ 1 1 . É impressionante a reprodução, a repetição. Um psiquiatra l it, 1h'1gico aqui, certamente falaria: "Puxa, como a genética é forte". 1 1 111 místico, diria: "Estava escrito". Mas, nós ficamos com a 1 •�iranálisc, com o que ela chama de herança simbólica. O DNA da hnança simbólica é o Nome-do-Pai. E o pai na histeria é , ·�t ruturalmente impotente. Impotência que pode ser lida de duas 1 1 11111ciras. Primeiro, o pai relapso, pai fugidio, ausente. Ou então, 1m i sc<lutor, cuja presença não é capaz de suscitar o que nós drnmamos de lei simbólica. Pai que não é eficaz como agente da rnstraçào e que, pelo contrário, se apresenta como pai sedutor. l';tnto assim que, enquanto a obsessão se mostra como uma neurose que apresenta uma hipertrofiado social, a histeria se rnracteriza por certa rebeldia. Uma falha do recalque está presente 1·, na época contemporânea, com o declínio do pai, isso se acentua, u ponto de poder-se dizer de uma &agilização da metáfora paterna. ( :ada vez mais, a histérica passa ao ato. Enquanto que o obsessivo procura eternizar o tempo de compreender, a histérica antecipa o momento de concluir, passando ao ato. Para terminar, algo sobre a parte mais difícil: a direção do tratamento. Para tanto, é indispensável uma chave de leitura do rnso, que nos dê um aspecto considerado crucial. É possível que, diante de um mesmo caso, se encontrem chaves de leituras diferentes. Direi qual é a minha para este caso. Se o chamei de Dora do Nl./1B, o risco maior é o de errar como Freud errou, tendo como i:onsequência o abandono do tratamento. Freud errou quando interpretou o enarnoramento de Dora pelo Sr. K., sendo que o 53 aspecto principal era o enamoramento de Dora pela Sra. K. A grande questão de uma histérica é saber o que é uma mulher. Freud identificou seu erro e formulou o célebre princípio: na histeria, cherchez la femme, procurai a mulher. Dora dá uma bofetada no Sr. K. quando ele deprecia a Sra. K. No caso, quem dá a bofetada é a mãe. Eis a minha chave de leitura: o enamoramento de Clara por sua mãe. Clara tenta repeti la numa busca identificatória. Aproxima-se da mãe e, no seu percurso, tenta ser mãe. Mesmo quando pensa em abandonar os homens e sair de casa é para ser madre. Os irmãos e a mãe não querem que ela volte. Está enterrando o pai, o padrasto, o marido, só não está enterrando sua mãe, seu porto seguro. Representando o Édipo por um materna, fil DM ou seja, o Desejo da Mãe metaforizado pelo Nome-do-Pai, pode se dizer que, no caso, a barra está fragilizada. Clara tenta sempre voltar-se para a mãe, ou repeti-la. Esta identificação idealizada e enrijecida é a questão principal a ser trabalhada nesse tratamento. De várias maneiras possíveis procurar apontá-la, desconstruí-la, dialetizá-la. A identificação holofrásica com a mãe é um aspecto importante nos casos de anorexia e bulimia. Nota 1 Intervenções na Sessão Médico-Psicanalítica (apresentação de frag mento de caso clínico, comentário médico e comentário psicanalítico, seguidos de franqueamento da palavra) do Núcleo de Investigação em Psicanálise e Medicina do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em novembro de 2005 . . 54 O QUE QUER UMA MULHER HISTÉRICA? (SOBRE UM CASO DE INFERTILIDADE)' Pr11gmentos do caso clinico ( l >c autoria de Simone Macedo Pinheiro)2 Certo dia, aos 1 5 anos de idade, Ivone não saiu da cama. Tinha acordado com a calcinha toda suja de sangue. Susto. Ficou • 111icta. O pai chamou para ir à aula e disse que não ia porciue estava rnm dor de barriga. Foi até o rio, lavou a calcinha, vestiu e logo •·�tava com sangue de novo. Na casa faziam a higiene no rio. Não r lnham banheiro nem fossa. Voltou para a cama, até que chegou 1 1 11111 prima e disse que isso ia passar e ensinou a fazer e a usar a 1, 111lhinha de pano. Ivone vivia livre, mas era ingênua. Quando passava um 11\'iiio peclia para mandar um neném para eles. Não sabia de 1-(rnvidez, barriga. Mostra-se saudosista em relação ao passado, rnmo sendo a única época em que se sentiu feliz. "Fui amada demais pelo meu pai, acho que esse foi o problema; se tivesse me 1 l illlo umas varadas . . . ". A mãe era seca, mas cuidava bem da alimentação, das 1·1 1upns. "Nossa vida era simples, mas tudo muito limpo". A mãe acha l iohngem ela ter filho. Filho só dá trabalho, diz ela. O pai, quando l ,d,ia umas, dizia que a mãe não gostava de sexo ... Desde a morte do pni (quando tinha 23 anos), cuida da mãe de forma exclusiva. Ivone é paciente do Hospital das Clínicas da UFMG t lt"sde junho de 1989, quando, noiva, funcionária de fábrica de 55 sapatos, aos 3 t anos, é atendida pela 1 ª vez para tratar de dermatite crônica, astenia generalizada, dor em membros inferiores e pés inchados, sintomas de uma menopausa precoce provocada pela retirada de ambos os ovários, aos 26 anos (oofocectomia bilateral, com diagnóstico de endometriose). Está agora com 45 anos. Mudou-se para a cidade com aproximadamente 1 8 anos, casou-se depois dos 30, após sete anos de noivado e está em trabalho analítico há um ano. Em abril de 1999, aos 40 anos, casada, passa pelo criterioso processo c..le seleção do programa gratu ito de ovodoação no Departamento de Repro dução Humana do HC-UFMG. Após fracasso da 2" tentativa de fertilização in vitro é cncaminhac..la pelo médico responsável do Laboratório de Reprodução Humana do HC, para atendimento na psiquiatria e posteriormente na psicologia. Segundo o prontuário médico a paci ente foi encaminhada para "avaliação neuropsicológica e acom panhamento psicoterápico. Ansiedade generalizada". Estava com 45 anos. Apresentava-se deprimida diante do fracasso da segunda tentativa de inseminação artificial, com choro constante, perda de vontade de fazer as atividades cotidianas. Diz ela: " ... depois que a minha inseminação não deu certo, tudo acabou . . . Da primeira vez eu fiquei de carna um mês ... ". Relata sonhos diversos com o tema da maternidade: passar por uma vaca com bezerro, branca e brava; cuidar e dar banho em criança, sempre menina e de até três anos. "Mas, às vezes, a criança se afoga". Quando fez a retirada dos dois ovários, o médico avisou que não poderia mais ter filhos: "Pedi a ele para não contar para ninguém que perdi uma parte do meu corpo. É horrível pensar que não sou toda perfeitinha". Em dezembro de 2002, fez uma terceira inseminação, dessa vez particular, fora do HC. Houve fecundação do óvulo, pela primeira vez, mas a gravidez teve de ser interrompida. Gravidez 56 1 1 1h1iria que culminou num quadro grave de hemorragia, cirurgia de 1 1q.:ência, com risco de morte e retirada da trompa esquerda. O 1 1 1é-dico descobriu também que ela tem urna aderência nessa região . .'\pesar do risco de morte, ela não dá importância. "Não consigo l lrnr sem o meu neném". A perda dos ovários é vivida como uma mutilação. 1 •:sconde dos parentes e amigos a sua real situação. Para ela o 11 1 :iri<lo não sabe que retirou os ovários. Identifica-se com pessoas � lluem falta um pedaço do corpo: braço, perna, pessoas cegas, mas n 11ncnta: "a diferença no meu caso é que ninbruém vê". Pensa em adoção para agradar o marido, mas rejeita a ideia como resultado da relação com a irmã adotiva: "rejeição porc.iue ela era tratada igual filha; ciúme por ter que dividir o amor dos pais". Acha que o que está sofrendo hoje é castigo porque em uma das inúmeras brigas com essa irmã falou, só para vingar: "mesmo que Deus não possa me dar filhos, não vou adotar. A pior roisa é filho adotado". Com o início dos procedimentos médicos para o lrntarnento da infertilidade, é invadida por fantasias de gravidez. No período preparatório das tentativas de inseminação descreve uma sensação de plenitude. Só de tomar antibióticos, hormônios e outras medicações, já vive, fantasiosamente, a sensação da gravidez, antes mesmo da colocação dos óvulos. Imagina a barriga crescendo, planeja datas. "Quando eu tomo os remédios do Dr. R. eu fico alegre, me sinto uma adolescente .. . ". Em casa guarda vestidos de gravidez e tem enxoval para recém nascido, completo. O marido faz coleção de carrinhos de criança e quer um filho, mas só serve se for do sexo masculino e branco. Justifica para a esposa, que é branca e de cabelos louros oxigenados: "passar por humilhação, por ser de cor, já chega eu". Ao ser selecionada para o atendimento no Banco de Óvulos do HC, ninguém teria dúvida de que aquela mulher queria ter um filho a qualquer preço. Mas, com qual demanda? Tristeza e fantasias com a gravidez vêm sendo subs tituídas por outros temas de seu cotidiano: as limitações vividas 57 após a retirada dos ovários; as dificuldades de relacionamento com
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