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Barreto, F - 2010 - Ensaios de psicanalise e saúde mental

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EílSAIOS JE 
?SICAílÁLISE E 
SAÚJE menTAL 
FrVVlCISCO ?AES 3A.YU:TO 
 memória de César Rodrigues Can,pos, 
sempre presente. 
Á presença de Maria Igneti 
se111Pre viva. 
editor 
Wellert BeHort 
capa projeto gréflco e diagramação 
Fernanda Moraes 
revisão 
produção 
Neyse de Castro Sanguinetto 
Silvano Moreira 
Paes Barreto, Francisco 
Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental / Francisco 
Paes Barreto. 
Belo Horizonte. Scriptum Livros, 201 O. 
336p. 
1. Psicanálise. li. Saúde Mental. 
ISBN 978-85-89044-30-1 
CDU: 616.89 
COO: 616.8917 
Livraria e Editora Scriptum 
Rua Fernandes Tourinho, 99 
Savassi I Belo Horizonte I MG 
1311 3223-1789 
E-mail: scriptum@scriptum.com.br 
Prefácio 11 
Apresentação 21 
Capitulo I 
PSICANÁLISE E MEDICINA 
O corpo na psicossomática 25 
Notas sobre a história da medicina 37 
Anorexia e buli.mia: de que se trata? 45 
A Dora do NlAB 
(Fragmentos de um caso de bulinúa) 49 
O que quer uma mulher histérica? 
(Sobre um caso de infertilidade) 55 
O que é o pai? 
(Sobre a reprodução assistida) 63 
Mediàna e consumo 67 
Capitulo II 
PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA 
Apresentação de paciente: o agalma de uma experiência 73 
Agudo/crônico: uma dicotomia que pesa sobre nossas cabeças 77 
O automatismo mental de Clérambault 81 
A catatonia de Kahlbaum e a hebcfrenia de Hecker 85 
Doenças mentais e genética 91 
A monocultura e a paisagem 
(O psicofármaco para a psiquiatria e para a psicanálise) 95 
A psicanálise e os medicamentos antipsicóticos 107 
Impertinências 
(Em que condições o psicanalista sugere o \L'\O de antidepressivo?) 115 
A transferência aumenta a serotonina cerebral? 117 
Depressão e bipolaridade: antecedentes e perspectivas 123 
Loucura e cidadania: 
A nova regra e as exceções 131 
A loucura dos normais 137 
Como vejo a psiquiatria hoje 
(Entre as aves e as feras) 143 
Capítulo III 
PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL 
A psicanálise aplicada à saúde mental 
(Uma contribuição ao tema da prática lacaniana nas instituições) 163 
A lei simbólica e a lei insensata 
(Uma introdução à teoria do supereu) 197 
A lei insensata e a bárbara-cena 207 
A urgência subjetiva na saúde mental 215 
Obsessão 223 
Pânico 
(Elementos para uma leitura psicanalítica) 227 
O tema é devoração 235 
Por falar cm suicídio 239 
Psicanálise e Yiolência urbana 243 
A angústia na psicose 
(Introdução ao tema e exemplos clínicos) 251 
Um ponto de vista sobre os nossos CERSAMs 
(Por uma utopia feita para durar) 261 
A clínica da passagem ao ato 
(Acling out, passagem ao ato, agitação) 267 
Transferência e psicose 297 
O manancial do amanhã eterno 
(Sobre o tempo e o tratamento psicanalítico - wna introdução) 305 
O tratamento psicanalítico de uma criança 
(Com wna única intervenção) 315 
Um ponto de vista (discordante) sobre o CPCT 321 
Da antipsiquiatria à antissaúde mental 327 
PREFÁCIO 
Os Ensaios de psicanálise e de salide mental constituem uma 
demonstração da abertura do psicanalista de orientação lacaniana 
às inúmeras variações que se impõem à sua prática, impelidas pela 
presença incontestável de novas configurações psicopatológicas do 
sofrimento hwnano. Por meio de um vasto material clinico, 
e 1riundo do trabalho de supervisão clinica, em diversos serviços 
ligados à área da saúde mental, o autor aponta que as mudanças que 
se processam no envoltório formal do sintoma ocasionam varia­
çôes necessárias à prática atual do psicanalista. Com efeito, uma tal 
abertura à multiplicidade das novas formas dos sintomas e do mal­
estar contemporâneo acarreta transformações, não apenas nos 
meios com os quais o analista impulsiona sua condução, como é o 
caso da transferência e da interpretação -, mas na própria concep­
ção dos resultados obtidos no tratamento desses sintomas. No 
essencial, considera-se, ao longo das páginas desses ensaios, que os 
resultados terapêuticos visados dependem da definição da natureza 
e do funcionamento do que é, para a psicanálise, um sintoma. 
A esse propósito, mostra-se bastante sugestivo o 
emprego da forma interrogativa no título de um desses ensaios, a 
saber: Anorex-ia e bulimia: de que se trata? Para a medicina e, 
particularmente, para a psiquiatria, tais sintomas consistem na 
alteração da forma-função da norma alimentar; para a psicanálise, 
afirma o autor, ''nàíJ é disso que se traia, pois, é um sintoma de algo que se 
passa em outro nível"'. Ao conceber a finalidade da cura como wna 
restituição da "perda involuntária da faculdade normativa'� a clinica 
médico-psiquiátrica se encaminha para uma orientação em que 
prevalece o princípio da "red11çàfJ ou supressão dos sintomas'ª. A canse-
11 
quência maior dessa visada clínica do sintoma confundido com o 
patológico, com o transtorno da forma-função, é a de que ele se 
apresenta em contraposição à norma cultural ou social e, portanto, 
supõe um horizonte da cura marcado pelo crivo da adaptação 
social. 
Ao contrário, no terreno da psicanálise, a anorexia tem 
sua fonte principal na econonúa do gozo que envolve o corpo e, 
nesses termos, configura-se como um sintoma do feminino. Como 
se refere o texto citado acima, trata-se de uma 'Jorma de refeição do 
feminino que conduz a um gozy a11to-erritico ". Ou ainda, 'à anorixica caça 
as curoas do feminino e o seu ten-eno de caça é o espelho cruel, espelho que 
escancara a falta fálica, visível aos olhos'•. Conclui-se, assim, que se o 
olhar do Outro desempenha um papel verdadeiramente crucial, 
antes de se alimentar, a anorexia mobiliza a questão do olhar. 
Evidentemente que sob esse ponto de vista a finalidade do trata­
mento psicanalítico do sintoma anoréxico coloca-se para além de 
uma simples retificação da recusa do alimento. 
Por consequência, torna-se óbvio que a maneira como a 
psicanálise antevê sua aplicação à terapêutica do sintoma anoréxico 
supõe a presença do HJais-além do terapêutico, pelo menos do 
terapêutico concebido segundo os termos de uma restituição da 
norma-função da atividade alimentar. Esse mais-além do tera­
pêutico se manifesta, no âmbito do tratamento da anorexia, pela 
virtude do manejo, por parte do analista, do fora do sentido inerente 
a esse novo sintoma que se traduz por um modo de gozo 
particular. Logo, nada deste manejo se confunde com o que se 
dissenúna como terapêutico pela medicina que, como confirma 
Jacques Lacan, é a busca incessante do "restabelecimento de 11m estado 
anterior e primário•�. 
Aliás, o próprio Lacan se mostra pouco otimista quanto 
à eficácia e o alcance dessa concepção usual da terapêutica, ao 
lançar um desafio à clínica médica, quanto às chances desta levar às 
últimas consequências o princípio do primum non nocere, ou seja, antes 
de mais nada não prejudicar ou, ainda, não dar um remédio pior qne a 
12 
doençd'. Ele mesmo concebe esse axioma da prática médica como 
uma abstração fútil, uma vez que não é possível determinar, a priori, 
que a prescrição, por exemplo, de um fármaco não cause nenhum 
dano ao doente. 
É certo que, no contexto dessa discussão sobre a 
especificidade da prática psicanalítica, há uma explicitação do 
modo como a descoberta de Sigmund Freud radicaliza o horizonte 
médico do terapêutico, pois, para ele, ninguém conhece anteci­
padamente o que é terapêutico para um sujeito. Postula-se, assim, 
um indecidível lógico1, que o horizonte clinico da medicina, calcado no 
método científico, ambiciona com todos os seus recursos 
suplantar, tendo em vista que, segundo ela, não há limites para o 
que se visa terapeutizar. Ao reafirmar que o terapêutico se 
caracteriza pela presença inexorável desse indecidível lógico, a 
psicanálise responde a essa ausência de um programa pré­
estabelecido dos resultados terapêuticos a se obter, com o chamado 
primado da prática. Em outros termos, o primum para a psicanálise, 
não é de forma alguma o terapêutico que, como se sabe, institui-se 
por acréscimo -, mas a própria direção do tratamento, cujo foco 
decisivo é a inclusão do sujeito do inconsciente. Assim, se o 
tratamento e seus meios,como é o caso da transferência e da 
interpretação, são da ordem do necessário, seus efeitos, inclusive, 
os efeitos terapêuticos, tomados como indecidíveis lógicos, devem, 
portanto, ser considerados como contingentes. 
Sob a abrangência deste princípio do mais-além do tera­
pêutico, o psiquiatra, psicanalista de orientação lacaniana e clinico 
renomado, Francisco Paes Barreto expõe, com originalidade e 
consistência conceitua!, o essencial de sua apreensão do que é a 
aplicação da psicanálise à atualidade do mal-estar da civilização. 
Como o leitor poderá constatar, movido por esse princípio, o livro 
envolve a discussão de um ponto crucial do que dá sustentação à 
presença da psicanálise no mundo contemporâneo, que é a sua 
aplicação em domínios discursivos, como é o caso da medicina, da 
psiquiatria e da saúde mental -, nos quais se destaca, a forma 
13 
acelerada e extensa, em que se consuma, neles, a urusçao dos 
efeitos do discurso da ciência. É claro que essa presença àpenas se 
afirmará de modo consistente ao se levar em conta o alcance e a 
eficácia da psicanálise no âmbito dos novos impasses e dos desafios 
que a civilização do gozo coloca para a prática do psicanalista. 
Por outro lado, o autor não recua diante do aspecto notório, 
em nossos ambientes clinico-institucionais, de que os excessos da 
aplicação da psicanálise à terapêutica impelem um novo equilibrio 
entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada. Algumas de suas 
elaborações traduzem o contexto, muitas vezes polêmico e 
divergente, dessa discussão, ao expor que esse excesso traz consigo 
o risco de comprometer o que se constitui como o apanágio essen­
cial da psicanálise pura que é a formação do analista. Se a psica­
nálise pura se define como a sua forma mais acabada é porque ela 
encarna a própria natureza do que é o ato analítico, ou seja: a 
passagem de sujeito analisante à psicanalista. Concentrar o foco da 
psicanálise no cuidado terapêutico, sem considerar o cerne de seus 
prinápios clínicos, acarreta justamente a retenção da própria 
potência que encerra o ato analítico no tocante à formação. Efetua­
se, assim, no âmbito da prática analítica, uma inversão que faz da 
aplicação à terapêutica um astro da psicanálise, enquanto que a 
psicanálise pura torna-se um mero satélite ou um ator coadjuvante. 
Ainda surpreendente, nesta concepção dos alcances e 
limites da psicanálise aplicada é mostrar que essa inversão se 
processa, como se viu antes, nos moldes da adaptação social. isto 
é, sob os auspícios das demandas do mestre contemporâneo 
endereçada à psicanálise•. Nesse sentido, é possível extrair da leitura 
do livro a distinção necessária entre a psicanálise aplicada e os usos 
da psicanálise submetidos à avalanche das demandas determinadas 
pelo movimento da sociedade contemporânea. Depreende-se, 
assim, a orientação de que não se deve confundir a prática da 
psicanálise aplicada com esses usos degradados da psicanálise. É o 
que justifica o ponto de vista de que a proposição do reequilibrio 
não implica a supressão da psicanálise aplicada. 
· 14 
Considera-se ainda que essa distinção entre uma forma 
de saber puro e sua aplicação tem um lugar importante no campo 
Ja ciência matemática. No fundo, o propósito de entender um 
resultado, um conceito para um campo de aplicação determinado 
constitui uma motivação que, desde seus primórdios, assume um 
lugar importante no âmbito da matemática. A esse respeito, a 
leitura do texto do matemático G. H. Hardy, Em defesa de um 
matemático, é bastante esclarecedora e exemplar. Segundo o autor, a 
distinção entre a matemática pura e a matemática aplicada não deve 
ser concebida sob o prisma das chamadas "utilidades sodais'11• Faz-se 
necessário romper com a ideia de "que seria nalllral supor que existe 
11ma grande diferença de 11ti/idade entre a matemática pura e a matemática 
aplicada •u. Para ele, ''se o conhedmento ,ítil é aq11ele que agora 011 num f11lllro 
pniximo, tem boa probabilidade de contribuir para o corrjorto material da 
h11manidade, deixando de lado a simples satisfação intelecllla4 então a maior 
parte da matemática é inútiJ''ll. 
Essa satisfação apenas se obtém porque a realidade com 
a qual o matemático lida não é uma realidade qualquer, mas, a 
"realidade da malemática"12• E isto serve tanto para a matemática pura 
como para a aplicada. Sob a ótica de Hardy, ambas estão referidas 
à realidade matemática e são, portanto, matemáticas de verdade. 
Segundo seus próprios termos, ''existem dstas matemáticas. Existe a 
matemática de verdade dos matemático.s de vmiaáe e existe o que se de.signa, 
por falta de uma palavra melhor, de matemática trivial"º. Desta elaboração 
no domínio próprio da matemática se depreende uma conclusão 
capital, para a discussão sobre a psicanálise aplicada, pois, segundo 
essa ótica, não se deveria confundir a psicanálise aplicada à tera­
pêutica com a aplicação da psicanálise. 
Propõe-se que o aprofundamento da discussão desta tese 
pode se aclarar por meio do tratamento inovador que o binômio 
intensão/extensão recebeu no ensino de Lacan. A referência maior 
é a Proposição de 011t11bro:. ''Eu me apoiarei nos dois momentos da jrmçào do 
que cham�i, respectivamente, de psicanálise em extensão, 011 sefa, llldo o que 
resume a frmção de nossa Escola no mundo como presenlificadora da 
15 
psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou sqa a didática, como não 
fazendo n1ms do q11e preparar operadoru para ela. '14 Por consequência, se 
de wn lado a extensão é o que presentifica a psicanálise no mundo, 
de outro lado, a intensão é o que se denomina a didática. 
No final desse mesmo escrito, ele explicita que o em­
prego desse binômio exige um certo rigor que se exprime pela 
topologia do plano projetivo. Em consonância com essa figura 
topológica, afirma-se que "é no prriprio horizonte da psicanálise em 
extensão que se ata o círculo interior q11e traramos como hiáncia da psicanálise 
em intensão". 15 É nítido que uma tal definição estabelece uma relação 
de continuidade entre a extensão e a intensão em psicanálise. O 
plano projetivo é uma figura topológica que consiste em introduzir 
um afivdamento interior sobre o traçado de wn círculo. O grande 
círculo se apresenta, aqui, designado nos termos da psicanálise em 
extensão, e o círculo interior nos termos da psicanálise em in­
tensão. 
Porém, dizer que não há oposição entre esses dois 
campos não atinge ainda o cerne do problema que, em minha 
opinião, é decisivo para o próprio destino futuro da psicanálise. É 
preciso saber aquilatar o alcance efetivo do que vem a ser essa 
incidência, sobre a psicanálise em extensão, do campo da intensão. 
Essa incidência não se processa por algo que, antecipadamente, já 
existe de forma acabada e definitiva. Na verdade, aquilo que se 
situa do lado da intensão é uma hiância. Ao propugnar que há uma 
hiância do lado da intensão é-se levado a admitir que não há uma 
definição predicativa do psicanalista. 
Se o psicanalista não existe, fica evidente que o aspecto 
essencial recai sobre o que se constrói do lado da extensão. Isto que 
se constrói está submetido a um princípio de verificação da hiância 
inerente à psicanálise em intensão. Tal como no dispositivo do 
passe - algumas vezes referido ao longo do livro - trata-se de uma 
verificação que se instaura pelo viés do testemunho do 11m a 11111. É 
isto que a experiência do passe tem por dever colocar em prática. 
Verifica-se, com base nos testemunhos de analisantes que se 
· 16 
11 1rn:1ram analistas, que o resultado de um tratamento não é da 
1 ,rdcm de uma idenàficação a uma definição predicativa do 
psicanalista. Trata-se, assim, de mostrar que apenas há psicanalista 
11111 por un,. Tudo aquilo que consiste no emprego conceituai da 
11rr iculaçào entre a intensão e a extensão converge para uma recusa 
1 ll' toda e qualquer padronização da figura do psicanalista. Em 
definitivo, o um por nm da extensão verifica a ausência de 
padronização do psicanalista na intensão.Como na matemática, conclui-se que o que se verifica na 
aplicação da psicanálise é o essencial da realidade da psicanálise, 
l"xpressa pela existência singular de um analista. Nesse sentido, a 
tarefa principal da formação analítica é colocar-se a serviço da 
relação solitária que cada candidato a tomar-se psicanalista mantém 
com a causa da experiência do inconsciente. Isto implica ir contra 
a tendência de reduzir os dispositivos de formação, em ícones do 
mutualismo que, como se refere J.-A. Miller, estariam fadados a 
tornarem-se verdadeiros ''aparelhos de crmlra-solidíio'••. 
Isto quer dizer que o equilibrio entre a psicanálise pura e 
aplicada como o fator essencial da existência da psicanálise no 
mundo é o caráter inseparável entre o tratamento e a formação 
psicanalítica. Cabe à psicanálise ir também contra os ventos que 
sopram nos campos da psiquiatria e da saúde mental em que a 
formação se vê impregnada pelo "emprego maciço de modelo.r de 
mpacitaçào sin,plórios e pobres 'tr1. Para cada profissional da saúde 
mental formado é exigido transformar-se em "um ator que tem seu 
papel cimmscrito e deve ser pragmático, segundo uma ótica de resultados 
objetiváveis e de mrto prazo. " Impõe-se o perfil de um profissional que 
executa tarefas que ''seg11em uma rotina Illjócante e infernal.· nada 111ai.r 
�l!,llal a 11n1 dia do que outro dia. Tudo o que fage a esse rito reverbera como um 
de.rpropósito. O que se espera é quantidade, quantidade, nada mais do que a 
q11a11tidade"'1• 
É inegável que a formação do profissional de saúde em 
geral, nos dias de hoje, esteja calcada nos métodos e nos 
procedimentos que emanam do discurso da ciência. O ensino na 
17 
área da saúde, na época contemporânea, realiza-se no solo 
epistêmico em que prevalece "o 1miversal, a objetividade, a estatística, a 
nom,atiz.ação, a evidência e o resultado'� Institui-se, nesse contexto a 
distinção entre a psicanálise e os métodos da ciência, pois, a 
primeira, como propõe o autor, 'Jilia-se na longa e femnda tradição do 
racionalista qNe leva em conta a sNbjetividade como fundamental e 
i"edutivel'". A psicanálise coloca-se como uma modalidade 
discursiva que, em suma, interroga o impacto dos efeitos da ciência 
sobre a civilização do gozo. É preciso, portanto, levar a sério o fio 
que, a meu ver, alinhava e responde o essencial dos questiona­
mentos que a série de ensaios que compõe este livro, nos incita na 
forma de uma indagação: "é possível Nma abertura para a interlocução com 
um dismrso em qNe prevalece o sing11/ar, a SNbjetividade, a estrulllra lógica, o 
caso a caso, a aNlentiddade e a história?'• Proceder a transformação 
desta pergunta numa aposta que serve de bússola para a prática do 
psicanalista é o desafio que o autor do livro provoca, de uma 
maneira ímpar, no leitor que chamou para si o gosto da leitura 
desses ensaios sobre o "retomo à clínica'ª. 
jésNS Santiago 
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais 
AME - Analista Membro da Escola Brasikira de Psicanálise 
· 1e 
Notas 
l HARRETO, F. P., Anorexia e buliqiia: de que se trata?, p. 45. 
2 lbid., p. 45 . 
. l BARRETO, F. P., A monocultura e a paisagem, p. 97. 
4 lbid., p. 46. 
� LACAN, J (1969) . Proposição de 9 de ourubro de 1 967, ln: Outros 
I :unios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 251 . 
6 Jbid., p. 251 . 
7 Jbid., p. 251 . 
8 Mil.LER, J.-A. (2008). Choses m jinesse. Curso. Paris. (Inédito), aula de 
1 2/1 1 /2008. 
9 HARDY, G. H. (2000). Em defesa de um matemático, São Paulo: 
Martins Fontes, p. 128. 
lO lbid., p. 1 14. 
11 lbid., p. 126. 
12 lbid., p. 1 15. 
13 lbid., p. 129. 
14 LACAN, J (1969). Proposição de outubro, ln: 011/ros Esmtos. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, p. 251 . 
lS Ibid. p. 261 . 
16 MILLER, J.-A. (2008), Furumpsy: Entrctiens d'actualité, n. 33, 
1 6/ 12/2008. 
17 BARRETO, F. P., Da ancipsiquiatria à antissaúde mental, p. 332 
lS Ibid., 332. 
19 BARRETO, F. P. Notas sobre a história da medicina, p. 43. 
20 BARRETO, F. P. Notas sobre a história da medicina, p. 43. 
21 BARRETO, E P. Como vejo a psiquiatria hoje: entre as aves e as feras 
hoje, p. 1 58. 
19 
Apresentação 
Nos últimos dez anos, tive a oportunidade de trabalhar 
rnmo supervisor clínico de vários serviços ligados, de alguma 
fc ,rma, à área da saúde mental: 
1. O NAPS Casa Verde do Hospital do Instituto de 
Previdência dos Servidores do Estado de l\1inas Gerais - IPSEMG 
(Jc junho de 1999 a junho de 2001 ) . 
2. O CERSAM (CAPS, NAPS) Noroeste, da Secretaria de 
Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte (de fevereiro de 2000 a 
fevereiro de 2001) . 
3. A Coordenadoria de Psicologia do Hospital das 
Clínicas da lJFMG (de fevereiro de 2001 a dezembro de 2004). 
4. O CERSAM Barreiro, da Secretaria de Saúde da 
Prt:feitura Municipal de Belo Horizonte (de agosto de 2001 a maio 
de 2005). 
5. O CERSAM Leste, da Secretaria de Saúdt: da 
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (de setembro de 2002 a 
maio de 2005) . 
6. O Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia 
(NIAB), do Hospital das Clínicas da UFMG (de março de 2005 a 
dezembro de 2006). 
7. O Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes 
Violentos (NAVCV), da Secretaria Especial de Direitos Humanos 
em parceria com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social 
e Esportes (de fevereiro de 2005 a junho de 2008). 
No exercício de minha função, a principal referência foi 
a psicanálise de orientação lacaniana, vocação que cultivei na 
21 
Escola Brasileira de Psicanálise e no Instituto de Psicanálise e 
Saúde Mental de Minas Gerais. 
A supervisão foi um desafio que exigiu de mim, 
sobretudo, uma constante passagem da experiência à formali"!ação. 
O que reúno, nesse livro, são ensaios surgidos a partir desse 
trabalho, e que vieram a se somar a outras inquietações minhas. 
O mérito de uma coletânea é o de revelar melhor o 
contexto em que um ensaio é produzido. Um texto ao lado de 
outro é algo diferente da soma dos dois. E o que, a meu ver, 
justifica o livro. 
Frandsro Pae.r Ba"s/o 
22 
Capítulo I 
PSICANÁLISE 
E 
MEDICINA 
O CORPO NA PSICOSSOMÁTICA' 
Em seu artigo Psicanálise e Medicina, Lacan comenta que.. 
quando se considera a história da medicina, constata-se que o 
�randc médico, o médico padrão, era um homem de prestígio e 
autoridade. O que acontece entre médico e paciente, ilustrado 
"!-:' ,ra pelo aforisma de Balint - o médico, ao receitar, receita a si 
1 1n'1prio - sempre aconteceu: assim, por exemplo, o imperador Marco 
Aurélio convocava Galeno para que esse lhe vertesse com suas 
prúprias mãos a tcriaga (xarope que se presumia eficaz contra 
picadas de animais peçonhentos). Foi o próprio Galeno quem es­
rrcveu em seu tratado que o bom médico é também um filósofo.2 
A entrada da medicina em sua fase científica. contudo, 
produz rápida mudança na função do médico e em seu perso­
nagem. Com Bichat, a clínica funda-se na anatomia patológica. e 
n >m Claude Bernard a exigência experimental alcança a medicina, 
l"Stabelecendo as bases científicas em termos fisiológicos. A relação 
médica com a saúde modifica-se, numa evolução que vai culminar 
situando o corpo na expectativa de ser inteiramente fotografado, 
radioi.,>Tafado, calibrado, diagramado e condicionado. E também na 
produção de número infinito de agentes terapêuticos novos, que 
são colocados à disposição do público. Desenvolvimento científico 
llUC inaugura e põe, cada vez mais em primeiro plano, um novo 
direito do homem à saúde, que se motiva já em organização mun­
dial. É nesse contexto que o médico deve responder a algo que se 
chama a demanda. 
Lacan observa que nem sempre o que o paciente de­
manda do médico é a cura. As vezes, ele desafia o médico a retirá­
lo de sua condição de enfermo - o que implica estar ligado à ideia 
25 
de conservá-la. Outras vezes, demanda do médico que o autentique 
como enfermo. Ou ainda, demanda que lhe preserve em sua 
enfermidade. Além do mais, não é necessário ser psicanalista, 
sequer médico, para saber que, quando alguém demanda algo, isso 
não éidêntico, e às vezes é inclusive diametralmente oposto, àquilo 
que se deseja. Introduz-se, assim, a estrutura da falha que existe 
entre a demanda e o desejo. 
A noção de falha é retomada, logo em seguida, como 
falha epistemos.romática, para definir o efeito do progresso da ciência 
sobre a relação da mediána com o corpo. Dizendo em poucas 
palavras em que consiste esta falha: um corpo é algo que está feito 
para gozar, gozar de si próprio; ora, a dimensão do gozo está 
completamente excluída do que foi denominado relação episte­
mossomática. A ciência não é incapaz de saber de quê pode, mas 
da, tal como o sujeito que ela fabrica, não pode saber o que quer.' 
A falha epistemossomática, portanto, é a que se verifica entre o 
corpo considerado como um sistema homeostático, em sua pura 
presença animal - corpo-máquina estabelecido pela ciência médica 
- e o organismo desejante e gozoso. 
É exatamente nesta falha, assim situada por Lacan, que 
se introduz toda uma série de teorias psicossomáticas, algumas das 
quais procurarei apontar. A psicossomática já conheceu períodos 
de entusiasmo e de descrédito. Tanto da parte dos médicos como 
da parte dos psicanalistas houve, nwna certa época - o auge foram 
os anos 60 - uma expectativa recíproca por certo exagerada. Como 
resultado sobreveio, de parte a parte, cepticismo e arrefecimento. 
Sem dúvida, tivemos muito "falatório estéril", termos de Lacan, 
mas, certamente, seria um despropósito afirmar que tanto trabalho 
resultou em nada. Tentemos então, pdo menos, organizar um 
pouco a casa, fazendo um retrospecto de tais concepções, inicial­
mente dos pós-freudianos e, finalmente, de Lacan. 
26 
011 pós-freudianos 
( ,'roddeck 
Um dos pioneiros na abordagem psicanalítica dos 
problemas da medicina orgânica, Groddeck estabeleceu a 
identidade imaginária entre processos somáticos e psíquicos, a 
partir da qual tentou interpretar os processos fisiopatológicos 
através da aplicação de instrumentos conceituais psicanalíticos. 
C :hi:gou, por esse caminho, a resultados extravagantes, tal como 
"interpretar" a febre de uma enfermidade infecciosa como "signo" 
Jc excitação sexual. ou a congestão de determinado órgão como 
"signo" de ereção deslocada, ou ainda o câncer como satisfação 
substitutiva de desejo recalcado de ter filhos, e assim por diante. Na 
mesma linha, outro autor, Garma, via na úlcera péptica a projeção 
Jo seio materno na mucosa do estômago. Nesse delírio, chegou-se 
a supor que todas as enfermidades seriam psiquicamente deter­
minadas. Tal atitude estende a todos os processos orgânicos o que 
foi estabelecido por Freud para a histeria de conversão: a víscera 
afetada expressaria uma significação inconsciente. Tal enfoque 
psicossomático é talvez o mais antigo na psicanálise, e na atua­
lidade está abandonado por completo. 
Alexander 
A investigação psicossomática de Alexander distingue os 
sintomas de conversão histérica das respostas vegetativas às emo­
ções. O sintoma histérico seria uma expressão simbólica (des­
locada) de um conteúdo emocional definido, mecanismo restrito ao 
sistema neuromuscular voluntário ou ao sistema perceptivo. O 
sintoma neurovegetativo não é uma expressão substitutiva da 
emoção, mas, sim, o seu concomitante fisiológico normal. A 
27 
natureza patológica da condição ocorre quando, diante de conflitos 
não resolvidos, as respostas vegetativas tornam-se crônicas. 
Inspirando-se nos trabalhos fisiológicos de Cannon, 
Alexander admite certa especificidade nos fenômenos psicosso­
máticos. Não haveria relação simbólica entre conflito e lesão, mas 
a cada estado emocional corresponderia uma resposta fisiológica 
característica, que em si mesma não seria patológica, mas integrante 
do estado emocional. Tomando como base, por exemplo, a 
conduta agressiva, Alexander supõe três fases: 1. A fase conceituai, 
com a preparação do ataque na fantasia, sua organização e 
visualização mental. 2. A preparação vegetativa do corpo com 
mudanças do metabolismo e da circulação. J. A fase neuro­
muscular, com a consumação do ato agressivo. O impulso hostil, 
contudo, devido a conflitos pode ser detido ou inibido. Se o 
processo detém-se na primeira fase, sobrevém a enxaqueca; na 
segunda fase, a hipertensão arterial, e na terceira fase, a artrite 
reumatoide. 4 
A complacência somática 
Uma terceira posição inclui pós-freudianos que recha­
çam toda e qualquer especificidade do fenômeno psicossomático. 
Ou seja: não haveria nenhuma relação entre a natureza do conflito 
e a natureza da lesão. Esta concepção aceita só um componente do 
conceito freudiano de conversão histérica, a saber, a complacência 
somática. A natureza do distúrbio vegetativo depende inteiramente 
de fatores constitucionais ou de uma vulnerabilidade previamente 
adquirida pelo órgão afetado. Cada enfermo tem um ou mais órgãos 
de choqne onde a lesão se manifesta sem nenhuma especificidade. 
28 
l .11can 
Passarei agora às contribuições da psicanálise de orien-
111�·áo lacaniana à psicossomática, que serão apresentadas sob a 
I« ,rma de sinopse ou introdução, visando despertar o interesse dos 
1 111e têm condição de investigar o tema. 
, \'rp//rarào entre s'!}eito e corpo 
Situarei de imediato uma observação. Na perspectiva laca­
niana, a psicossomática nada tem a ver com concepções holísticas. 
11uc pregam uma unidade fundamental entre os dois aspectos. Para 
da, muito pelo contrário, entre o sujeito e o corpo existe uma sepa­
ração fundamental. O sujeito é alguém de quem se fala antes que ele 
I" ,ssa falar, é alguém de quem se fala inclusive antes mesmo dele 
nascer. Antes de ter um corpo, portanto, o sujeito já existe na fala de 
�cus antecessores, e mesmo depois de sua morte, ele continua sus­
lentado pela dimensão significante, ultrapassando, por conseguinte, 
;1 temporalidade do corpo. É exatamente isto qut: permite dizer: "Eu 
lenho um corpo", ou seja: tomar nosso corpo como atributo e não 
como nosso ser. Como sujeitos do significante estamos separados de 
nosso corpo, podemos prescindir dele.5 
Psicossomática ou psico-somática? Durante algum 
tempo houve hesitação quanto à forma de escrever. Na verdade, 
não se tratava apenas de problema de ortografia, mas de interrogar 
sobre a continuidade ou sobre a descontinuidade dos dois registros. 
No enfoque lacaniano, não há no fenômeno psicossomático nada 
da onlt:m de wn salto do psíquico para o somático; ele se situa fora 
das construções neuróticas, estando a linha divisória constituída 
pelo narcisismo. Entre o psíquico e o somático existe descon-
1 inuidade, e as relações psicossomáticas se situam no limite das 
elaborações conceituais da psicanálise: elas estão no nível do real.' 
29 
Sintoma histérico e FPS 
Prosseguirei orientando-me, a partir de agora, por meio 
da oposição entre sintoma histérico e fenômeno psicossomático 
(FPS) . O sintoma histérico, embora implique o corpo, tem valor de 
mensagem do sujeito dirigida ao Outro do significante, ao Outro 
do desejo, mensagem que se faz enigma a ser decifrado. E o FPS? 
Nesse caso, não se trataria de mensagem dirigida ao Outro do 
significante, e muito menos ao lugar do Outro que pode ser 
ocupado por um sujeito. O que estaria em jogo seria o corpo como 
Outro; ou seja, teríamos aqui, em operação, aquela definição de 
Lacan: "O corpo é o Outro". Haveria, no FPS, uma escrita no 
corpo, a lesão como uma inscrição no corpo. V árias palavras são 
utilizadas na tentativa de nomear a escrita em jogo neste caso: S, 
absoluto, assinatura, traço unário, nome próprio, sinete, selo, 
marca, escarificação.7 Constelação de termos que denuncia a 
dificuldade de traduzir de modo teoricamente satisfatório o efeito 
psicossomático. 
Vou preferir urna expresão cara a Lacan: o FPS seria um 
hieroglifo no deserto. Quer.dizer, uma escrita enigmática e em que não 
há apdo ao Outro. É a razão pela qual o paciente que padece do 
problema não tem demanda de análise. 
Que condição estaria associada a essa escrita no corpo? 
O que determinaria esse caminhocomo uma possibilidade? Ao que 
tudo indica, na dinâmica psicossomática, a metáfora paterna não 
funcionaria corretamente. Uma falha na função paterna intituiria o 
FPS. Uma falta de intervalo entre S1 e S2; uma gelificação, uma 
solidificação da primeira dupla de significantes, condição que se 
denomina holófrase, e que estaria presente na psicossomática, na 
debilidade e na psicose. 8 
A questão de fundo do FPS, então, seria esta: a metáfora 
paterna funcionaria em certos sítios do discurso e não em outros. 
Em momentos específicos, provocaria desencadeamento no corpo. 
Em casos extremos, poderia acarretar a morte do sujeito. Por outro 
30 
l,11 11 1, a aglutinação S,S2 que se verifica na holófrase poderia 
l 1 1 11d1 1nar como novo significante, como S2, voltando então numa 
• ,u lt•in significante clássica.' É o que explicaria as remissões comuns 
1 lt'�Mcs casos. 
Sintoma FPS 
Fala ···--··-···················· ·········-················ Escrita 
Dialética ........................ .......... ................. Inércia 
Substituição .............. ...... . ..................... Identificação 
Inconsciente ..................... ············-········--··- Corpo 
Cadeia significante ............... .................... S, , Holófrase 
Para decifrar ............ ........ .................. Para não ser lido 
Signo ............................ ....................... Assinatura10 
( ) .l!.ºZº espedftco do FP S 
Na sua Conftrinda em Genebra sobre o sintoma, Lacan 
fornece três indicações precisas sobre o FPS. 1ª. De que ele está, 
cm seu fundamento, profundamente arraigado no imaginário. 2ª. 
1 )e que o corpo deixa a escrever algo da ordem do número. 3ª. De 
lJUC há um gozo específico em sua fixação (ftxierungj1 Situam-se, 
desse modo, os três registros: o enraizamento no imaginário; o 
Nimbólico, com o corpo funcionando como superficie de inscrição; 
e o real, pela cifração do gozo por meio do número. 
Haveria um gozo específico do FPS? Lembramos, antes 
de mais nada, que o gozo inclui o prazer e o desprazer; o sofrimento 
de um sintoma, por exemplo, é uma forma de satisfação pulsional. 
Para responder à pergunta, é preciso estabelecer a distinção entre 
corpo e organismo. Em seu texto Posição tÚJ I nconsdente, l..acan 
assinala que os limites de um organismo alcançam mais longe do 
lJUe os limites de um corpo.12 Parece que a referência inicial é 
Aristóteles, para o qual o organismo é o corpo instrumentalizado 
pela alma; para Aristóteles, corpo + alma = organismo. Em Lacan, 
31 
o organismo teria como fórmula wn corpo completado, ou seja, o 
corpo mais o órgão não corporificado que é a própria libido: corpo 
+ libido = organismo. Isto é válido particularmente para o sintoma 
histérico: a libido como um órgão incorpóreo e extracorpo. Ora, 
sabemos que a libido freudiana é wn dos nomes do gozo. 
O que haveria no FPS? Precisamente isto: a libido não 
mais seria um órgão incorpóreo, a libido se tornaria corporificada. 
Esta hipótese - da lesão como libido corporificada - não deve, 
todavia, ser estendida para todas as docnças.13 
Na prática, o que muda com essas colocações? Primeiro: 
o FPS deve ser abordado pela revelação do gozo específico que há 
em sua fixação, embora se verifique, aqui, um paradoxo: quando a 
palavra gozo adquirir um sentido para o sujeito, ele já não é mais 
um psicossomático. Segundo: delineia-se a tarefa de transformar o 
FPS cm sintoma, fazendo com que o Outro em questão não seja 
somente o corpo próprio, e convertendo-o em questão sobre o 
desejo. 
Mais uma vez, não há regra geral, é preciso considerar os 
casos um a um. Mesmo porque existem aqui dois agravantes. 
Primeiro: o sujeito psicossomático (se é que há um sujeito, neste 
caso) não demanda tratamento analitico. Segundo: wna viragem 
neste sentido não está isenta de complicaçôes, que podem ser 
sérias. 
Termino minhas considerações com um comentário: se, 
num primeiro tempo, a investigação psicossomática exibiu 
entusiasmo insustentável, e se, num segundo tempo, veio a rebote 
um descrédito generalizado, é possível descortinar, hoje, alguns 
balizamentos seguros, e um campo aberto à investigação. 
32 
lt,"mplos clínicos 
, ,1,ro I 
Cetina estava há cerca de dois anos em análise, quando me 
tn ,uxe o rdato que se segue. "Hoje, vou falar de assunto sobre o qual 
nunca falei: as minhas crises de herpes (e aponta para um herpes 
lubial). É um problema por demais incômodo, muito doloroso e 
muito feio. Lá em casa, eu tenho herpes, minha irmã tem herpes e 
minha mãe tem herpes. É uma marca registrada das mulheres da 
lumília". 
Ciuo 2 
Há algum tempo fui procurado por uma jovem senhora, 
que havia sido encaminhada por seu gastrentcrologista. Danida 
entrou abatida em minha sala1 sentou-se e disse: "Eu estou com 
11:íusea há vários dias. O Dr. G. fez todos os exames para descobrir 
11 causa, mas, nada encontrou. E o problema só se agrava. Ele 
pensou em hospitalização e me deu um ultimato: só não faria isso 
se cu consultasse um psicanalista. E indicou seu nome". Perguntei­
lht'. o que achou da indicação. Ela respondeu-me secamente: "Na 
verdade, eu não gosto de psicanálise. Pelo que eu sei, o que a 
psicanálise faz é trocar uma doença por outra. Eu vim somente 
porque o meu médico insistiu". 
- Ele insistiu, mas VOCÊ veio! 
Ela não teve como discordar da minha pontuação. 
Perguntou-me se eu poderia fazer alguma coisa por ela. Respondi-lhe 
l(UC tentaria, desde que contasse com sua colaboração. Ela concor­
dou, e <le fato colaborou, trazendo um relato fluente e espontâneo. 
O sintoma (náusea) começou assim que retornou, com o 
marido, de um cruzeiro pelo Caribe. O marido era um homem de 
33 
quem gostava, a quem admirava e com quem se sentia segura. Seu 
casamento, no entanto, era cercado de uma certa formalidade; uma 
relação respeitosa, mas pouco romântica. Cada um se interessava 
mais por sua profissão do que pela vida conjugal. Ela acreditava 
que sua escolha tinha a ver com seu pai. Sua história com ele 
apresentava dois momentos radicalmente distintos. No primeiro, um 
homem rico e poderoso, que lhe proporcionou wna inf"ancia suntuosa. 
Lembrava-se, com destaque, dos passeios de iate, um iate tão 
grande que mais se parecia wn navio, avançando mar adentro. Uma 
época de sonhos. O segundo momento veio com a falência do pai, 
com as dificuldades financeiras de toda sorte. E o que foi pior: seu 
pai faliu também como sujeito; a partir daí, nunca mais se reergueu. 
É nesse contexto que via o marido como wn "porto seguro". 
Na adolescência, fugindo do ambiente familiar pesado, 
mudou-se para os Estados Unidos, participando de programa de 
intercâmbio cultural. Antes disso, já falava fluentemente o inglês: 
havia recebido educação bilingüe. Nos EUA, desenvolveu "paixão 
platônica" por seu "irmão" americano, e notou, da parte dele, certa 
correspondência. Poucos dias antes de regressar ao Brasil, resol­
veram se declarar; trocaram beijos, fizeram promessas, mas com a 
viagem houve wn corte, e a distância silenciou aquela relação. 
Retomando o tema do cruzeiro no Caribe, contou que, 
numa das ilhas paradisíacas, receberam a visita de seus "pais" e de 
seu "irmão" americano. Dias antes do acontecimento, ela pensou: 
paixão e tesão, ainda ficava por conta da lembrança do irmão 
americano, com seu ar aventureiro de quem sabia viver a vida. 
Durante a visita, notou que, também da parte dele, algo muito forte 
também estava presente. Valeria a pena o risco? Retornou do 
passeio, retomou sua vida, seu trabalho, até que, pouco tempo 
depois, o sintoma começou de forma implacável De forma irônica, 
comentou: "O meu drama amoroso, doutor, é um drama bilingüe". 
Neste momento, interpretei: 
- O seu sintoma é náusea. Podemos separar essa 
palavra em duas: NAU e SEA. O que você acha disso? 
34 
Ela sorriu e respondeu: "Não há o que contestar" ... 
Foram dez sessões em duas semanas, com urna sessão 
il i�rh1. Na segunda-feira da terceira semana, ela assim se expressou: 
"I )esdc o final da últimaentrevista minha náusea sumiu, e sei que não 
1111us voltará. Era isso o que eu queria, o senhor foi brilhante e agradeço­
lhe pela ajuda. Como havia dito, não pretendo fazer uma psicanálise". 
Por mais que, levado pelo meu desejo de analista, eu 
111 mderasse que ainda havia muito que percorrer, ela preferiu 
11ccrtar as contas comigo e ir embora. No fundo, eu concordei com 
da: a psicanálise troca uma doença por outra, ou, em termos mais 
precisos, troca um sintoma por outro. Mas esperava que, a partir 
desse bom encontro, ela um dia, talvez, voltasse. Mas, não voltou. 
( :rlfllrt1fários 
Consideremos, agora, os dois fragmentos clínicos. No 
primeiro caso, o de Cetina, o herpes aparece como fenômeno 
11Micossomático: inscrição identificatória no corpo, marca registrada 
d11s mulheres da família. Tal como as marcas que se inscrevem no 
rorpo do gado, para registrar a sua pertença. 
No segundo caso, o de Daniela, a náusea revelou-se um 
�intoma histérico, embora não houvesse, no caso, urna verdadeira 
1k•manda de análise; apenas, uma demanda terapêutica, ou seja, 
uma demanda exclusiva de levantamento do sintoma. A conclusão 
de: que se tratava de sintoma histérico pode ser fundamentada a 
partir dos seguintes argumentos. 1°. A náusea pode ser, retroa­
i ivamente, caracterizada como mensagem cifrada dirigida ao Outro, 
l' cuja decifração proporcionou a sua remissão. 2°. O sintoma esta­
va cm total consonância com sua história, pleno de sentido, ao 
contrário do fenômeno psicossomático, que não é para ser lido. 3°. 
C > sintoma de Daniela apresenta, claramente, um sentido gozado 
(jrJHis-sens), do qual ela nada quer saber (não gosta de psicanalistas); 
diferente do herpes de Celina, que fica como um ponto de gozo no 
35 
corpo, como um retorno localizado do gozo ao corpo, impossível 
de ser decifrado ou de produzir efeito de sentido. 
Notas 
1 Apresentado no II Congrwo Mineiro de Medidna Psicossomática, realizado 
em Belo Horizonte, em 2 de maio de 1999, e publicado no Correio (revista 
da Hscola Brasileira de Psicanálise), nº 35, outubro de 2001 , pp. 28-37. 
2 Lacan,J. (1 985) Psicoanálisis y medicina (1966). ln: lnlervendonesy Textos 
(p. 87). Buenos Aires: Manancial. 
3 Idem, ibidem (p. 92). 
4 Alexander, F. & Szasz, T.S. (1962) EI enfoque psicossomatico en 
medicina. ln: Psiquialrío Dinâmica (pp. 327). Buenos Aires: Paidos. 
5 Solcr, C. (1994) EI cuerpo en la ensenanza de Lacan. ln: listndios � 
Psicossomática (p. 100), GoraUi, v: o�. Buenos Aires: Atuei CAP, 2 ed. 
6 Lacan, J. (1985) O Seminário. Livro 2. O eu na teoria de Frend e na técnica da 
psit:análise (1954-55)(p. 127). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 
7 l'\liller, J.-A. (1987) Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. 
ln: Psicosson,álica e Prit:análise (pp. 95-96), IVartel, R org. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editor, 1987. 
8 Lacan, J. (1 979) O Seminário. Lii'TO 1 1 (1964 ). Os qnatro conceitos 
Jimdon1enlais da p1icanálise (p. 225). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 
9 Guir, J. (1987) Fenômenos psicossomáticos e função paterna. ln: 
Psicossomática e Psicanálise (p. 48). IY�RJEL, R o,g. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editor. 
lO Dewambrechies-La Sagna, C. Des lésions sensibles à la parole. ln: 
Quarto. Bruxelas: Revue de l'Ecole de la Cause frcudienne, 59:37-39, 
março de 1 996, p. 39. 
11 Lacan, J. (1 988) Conferencia en Ginebra sobre el sintoma (1975). ln: 
lntervenciones y Textor 2 (pp. 139-140). Buenos Aires: Manancial, 1988. 
12 Lacan, J. (1 998) Posição do inconsciente (1 964). ln: Elcritos (p. 862). Rio 
de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 
13 Miller, J.-A. (1 987) Algumas reflexões sobre o fenômeno 
psicossomático. Op. cit., pp. 95-96. 
36 
NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA MEDICINA' 
É com grande satisfação que participo da recepção aos 
rnlouros de 2008 da Faculdade de Medicina da UFMG. Com 
rareza é um momento especial na vida de vocês, e inevita-
1Tlmcnte isso me faz lembrar que, um dia, foi um momento 
,·�pl·cial também na minha vida. Sou da turma de formandos de 
1 %5, até hoje muito unida. Todas as sextas-feiras há os que se 
n·úncm num restaurante. Pelo menos uma vez por ano, na data da 
lormatura, um grupo maior se reencontra em alguma cidade 
uprazível. E um pequeno jornal circula entre nós com regularidade, 
11'1 rendo chegado ao número 50. Não faz muito tempo publiquei 
1 wk· uma crônica: O dia mair feliz do minha vida. Pois bem, O dia mais 
1 diz da minha vida foi aquele em que fiquei sabendo que havia sido 
,,provado no vestibular de medicina da UFMG. De fato, a minha 
\'ida nunca mais foi a mesma. Houve, claramente, um antes e um 
depois. 
Creio que ainda é assim, embora de maneira menos 
pn ,nunciada, menos marcante do que no meu tempo. Nos dias 
111 uais, outras batalhas vocês terão pela frente, como a da resi­
dência médica, que a minha época não havia ou não era tão difícil. 
Ultrapassado o umbral do vestibular, vivi nesta Faculdade 
11m período importantíssimo da minha história. Mais do que wna 
escola de medicina, foi para mim uma escola de vida. Aqui conheci 
�rande parte dos meus melhores professores e dos meus melhores 
amigos. Razão pela qual considero este lugar a minha segunda casa. 
l ·'.spero que tenham uma sorte semelhante. 
O nosso tema será, como não poderia deixar de ser, a 
medicina. Que considerações eu poderia trazer para jovens que 
37 
estão começando seus estudos médicos? E que proposições? Farei 
uma abordagem duplamente histórica. Ou seja, levarei em conta a 
história da medicina. Mas, sem dúvida, a leitura que dela farei, terá 
muito a ver com a minha própria história, com a minha trajetória 
profissional. 
A medicina é uma prática social multirnilenar. Nos 
primeiros tempos, o médico e o sacerdote constituíam um só 
personagem, que apelava para poderes divinos, nos templos que 
recebiam os enfermos. Por mais que as coisas tenham evoluído, 
ainda hoje curas são atribuídas a influências sobrenaturais e 
ministros religiosos operam o milagre de restituir a saúde. 
Mesmo com a separação entre a função médica e a 
sacerdotal, a cultura continuou reservando para o médico um papel 
que ultrapassava muito o alivio das doenças. Atribuía-se a ele um 
poder pessoal inespedfico e um saber sobre a vida saudável, sobre 
o bem-viver. Dimensão ética, que fazia do ato terapêutico uma 
intervenção que incidia não apenas sobre o corpo, mas sobre a 
história do sujeito. A expressão mrador talvez reflita o período. 
Somente a partir da primeira metade do século XX pode­
se falar de uma medicina com bases científicas. Fica, então, a 
pergunta instigadora: em quê se baseava o poder curativo da 
medicina pré-científica? 
É preciso atenção para o seguinte aspecto: o simples fato 
de fazer tal pergunta já é muito importante. Num só tempo, ela 
lança uma dúvida e traz uma afirmação: existe algo de terapêutico 
na medicina que não se apoia em bases científicas convencionais. 
Com efeito, além de Hipócrates, tivemos grandes nomes 
nesse longo período: Celso, Galena, Avicena, Averróis, Paracelso, 
etc. Em termos estritamente científicos, muito pouco do que eles 
propuseram prevaleceu. Torna-se necessário, assim, deslindar a 
influência que tais personagens exerciam. 
Em seu artigo Psicanálise e Medicina, Lacan comenta que, 
quando se considera a história da medicina, constata-se que o 
grande médico, o médico padrão, era um homem de prestígio e 
38 
,11 1 toridade. O que acontece entre médico e paciente, ilustrado 
••�nrn pelo aforisma de Balint - o médico, ao receitar, receita a si 
1 •rc'1prio - sempre aconteceu: assim, por exemplo, o imperador 
M II rco Aurélio convocava Galeno para que esse lhe venesse com 
""11� próprias mãos a ceriaga (xarope que se presumia eficaz contra 
p1rndas de animais peçonhentos). Foi o próprio Galeno quem 
t•Mrrcveu em seu tratado que o bom médico é também um filósofo.2 
" ' , · l/1aixo de Deus, o médico". Expressão doquente. Quando o médico 
,. 1:olocado nesse lugar, o seu poder de influência sobre o paciente 
torna-se evidente. Vamos encontrarum modo de demonstrá-lo nas 
lrn11úricas experiências de Charcot, que, por meio do hipnotismo, 
fez aparecer ou desaparecer os sintomas histéricos de suas 
p11cientes. Ou seja, sintomas podem aparecer ou desaparecer pela 
influência de um sujeito sobre outro sujeito. 
Abaixo de Deus, o médico é colocado no lugar de um pai 
idealizado, onipotente: é o que Freud chamou de transferência. A 
transferência, portanto, além dos agentes fisicos ou químicos, está 
no cerne da ação terapêutica do médico. 
É de fundamental irnportáncia verificar o que aconteceu 
depois que a medicina se introduziu no método científico. A 
transição teve início no fim do século XVIII e foi concluída na 
primeira metade do século XX. Didaticamente, podem-se distin­
�ir nela três etapas: 
1. A criação do métodtJ clínico, por Pinel e Cabanis, que 
permitiu caracterizar as doenças por meio de signos. 3 
2. O método clinico é enraizado na anatomia patológica, 
constituindo-se o método anátomo-rlínico; o patológico passa a ser 
identificado no rúvel do órgão (Morgaru"). no nível do tecido 
(Bichat) e no nível da célula (Virchow). 
3. O normal e o patológico passam a ser caracterizados 
cm termos fisiológicos; trabalho que começou com os estudos de 
Claude Bernard sobre as constantes do meio interno e atingiu seus 
contornos definitivos com as formulações de Canon sobre a 
homeostase. • 
39 
A entrada da medicina em sua fase científica produz 
rápida mudança na função do médico e em seu personagem. 
Considerarei dois aspectos dessa transformação. 
Em primeiro lugar: criou-se uma nova concepção de 
corpo, numa evolução que caminha para situá-lo na expectativa de 
ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e 
condicionado. O corpo passou a ser considerado como um sistema 
homeostático, em sua pura presença animal, o que já foi chamado 
com justeza de corpo-máq11ina. A medicina sabe cada vez mais sobre 
partes cada vez menores desse corpo-máquina, cujas leis e 
funcionamento vêm sendo desvendados de forma minuciosa e 
precisa. No final do século XX, o progresso exponencial dos re­
cursos tecnológicos permitiu uma dissecção virtual in vivo, que, 
além do mais, mudou o recorte do corpo. Houve wna fragmen­
tação, um estilhaçamento produzido pelo discurso científico. O 
avanço do conhecimento foi tamanho, que só cabe a cada um o 
estudo e o domínio de um pequeno fragmento desse corpo. 
Em segundo lugar: muito distante daquele personagem 
da era pré-científica, o médico de hoje caminha para tornar-se, se 
já não se tornou, um técnico. Cada vez mais, é um especialista, num 
sistema que se equilibra criando o lugar do generalista. Eu disse 
generalista, que é diferente de clínico geral. A diferença está na 
eliminação do clínico. Com efeito, estaríamos num tempo em que 
não haveria mais lugar para a clínica? Em que a tecnologia teria 
estabelecido um acesso direto ao substrato anatômico ou fisio­
lógico, dispensando qualquer mediação? É uma pergunta. 
O médico-técnico não tem por tarefa apenas corrigir as 
imperfeições decorrentes das doenças; exige-se dele, também, 
que se dedique aos aperfeiçoamentos. Não hasta a restitutio ad 
integrt1m, pois Deus, ou a natureza, criou o homem e a mulher 
como seres normalmente feios e defeituosos, sendo preciso 
corrigir as aberrações congênitas de cada um e da espécie. A ética 
do médico de outrora ficou deslocada pela estética do médico de 
hoje. 
40 
Duas grandes mudanças, portanto: a restrição do 
, ,1g111 1 ismo ao corpo biológico, ou ao corpo-máquina, e a trans­
l 1 1nnaçào da figura do médico, que tende, cada vez mais, a tornar­
, , , 11111 técnico. Há algo comum nessas duas evoluções, que é a 
, ·,-dllsào da subjetividade do examinado e do examinador. O que é, 
1 ,. ,r sinal, uma das condições do discurso científico. 
A evolução que está sendo considerada apresenta nítidas 
va11 1agens. O saber médico desenvolveu-se de forma exponencial, 
1 1 1 1 último século; muito mais do que nos dois milênios anteriores. 
1 :, , , poder de cura da medicina aumentou de maneira correspon-
1 kntc, traduzindo-se na produção de número infinito de agentes 
l l·rapêuticos novos, que são colocados à disposição do público. 
1 >cscnvol�;menco científico que inaugura e põe, cada vez mais em 
primeiro plano, um novo direito do homem à saúde, que se motiva 
j;í cm organização mundial. Mas - é preciso considerar-se - há um 
preço a ser pago por isso. Algo ficou de fora com esse progresso. 
Lacan observa que nem sempre o que o paciente 
demanda do médico é a cura. Às vezes, ele desafia o médico a 
retirá-lo de sua condição de enfermo - o que implica estar ligado à 
ideia de conservá-la. Outras vezes, demanda explicitamente do 
médico que o autentique como enfermo. Ou ainda, demanda que 
lhe preserve em sua enfermidade. Além do mais, não é necessário 
ser psicanalista, sequer médico, para saber que, quando alguém 
demanda algo, isso não é idêntico, e às vezes é inclusive 
diametralmente oposto, àquilo que se deseja. Introduz-se, assim, a 
estrutura da falha que existe entre aquilo que se demanda e aquilo 
4ue verdadeiramente se deseja. 
A noção de falha pode ser retomada para definir o efeito 
do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. 
Em outras palavras: quanto mais a medicina científica avança, mais 
ela ganha, numa certa perspectiva, e mais ela perde, em outra 
perspectiva. Dizendo em poucas palavras em que consiste esta 
falha: quando se toma por objeto o corpo-máquina, fica de fora a 
dimensão do desejo e do gozo: É o que Lacan chamou de falha 
41 
epistemossomática. A falha epistemossomática, portanto, é a que se 
verifica entre o corpo considerado como um sistema homeostático, 
em sua pura presença animal - corpo biológico estabelecido pela 
ciência médica - e o organismo desejante e gozoso. 
Ora, não foi por acaso que o nascimento da psicanálise 
coincidiu exatamente com o ingresso da medicina na era científica. 
O campo freudiano é, precisamente, o campo do desejo e do gozo. 
A psicanálise trabalha, por conseguinte, com aquilo que a medicina 
deixou à parte na sua evolução. Por outro lado, se o médico de hoje 
desconhece a transferência, o psicanalista faz dela a mola 
propulsara do seu tratamento. O psicanalista é o herdeiro do poder 
terapêutico da transferência, embora faça dela um uso inteiramente 
diferente daquele que faziam os médicos antigos. É por esse 
motivo que Lacan chamou a psicanálise de a última flor da 
medicina. 
O psicanalista, como o médico de outrora, admite o 
argumento da autoridade, quer dizer, admite o saber que lhe vem 
como atribuição. Existe, entretanto, diferença fundamental: o 
psicanalista faz semblante de saber, joga a farsa de saber, mas sabe 
que, no fundo, o saber não lhe pertence, ele sabe que não sabe, ele 
sabe que o saber sobre o sintoma que lhe é suposto nada mais é, 
afinal, do que o saber inconsciente do próprio paciente. O psica­
nalista, então, devolve esse saber sob a forma de interpretação. 
Na tentativa de reparar a falha epistemossomática uma 
série de teorias psicossomáticas tem sido introduzida. A 
psicossomática já conheceu períodos de entusiasmo e de des­
crédito. Tanto da parte dos médicos como da parte dos psica­
nalistas houve, nwna certa época - o auge foram os anos 60 - uma 
expectativa recíproca por certo exagerada. Como resultado sobre­
veio, de parte a parte, cepticismo e arrefecimento. Sem dúvida, 
tivemos muito "falatório estéril", mas seria um despropósito 
afirmar que tanto trabalho resultou em nada. 
Na perspectiva lacaniana, a psicossomática não é uma 
teoria ou um saber que vise à completude, não é um holismo. Todo 
. 42 
M1hcr é parcial, incompleto, ainda que resulte de uma reunião de 
i 1 1�l'iplinas. A psicossomática seria, melhor dizendo, uma interface, 
1 1 1 1rn interlocução. 
A formação do profissional de saúde, nos dias de hoje, 
,·n t ií fundamentada no discurso cienáfico e não há como fugir a 
1�11, 1. O discurso cienáfico visa ao saber absoluto, pretende-se auto­Muliciente e a exclusão da subjetividade é premissa da qual não abre 
111110. 
Entretanto, é preciso avaliar que existe uma longa e 
fecunda tradição racionalista que leva em conta a subjetividade 
r, 11110 fundamental e irredutível. Por outro lado, nem todos aqueles 
11uc sustentam o discurso científico são fechados a essa 
11' 1ssibilidade. 
A proposta, então seria a seguinte. O ensino na área da 
�aúde, na época contemporânea, está sendo realizado num 
contexto epistêmico onde prevalece o universal, a objetividade, a 
estatística, a normatização, a evidência e o resultado. Seria possível 
uma abertura para a interlocução com um discurso onde prevalece 
11 singular, a subjetividade, a estrutura lógica, o caso a caso, a 
autenticidade e a história? 
Mais do que uma proposta é uma aposta. 
Notas 
1 Palestra na recepção aos calouros da Faculdade de Medicina da UFMG, 
cm 08 de agosto de 2008. 
2 Lacan,J. (1 985) Pnroanálisisy medicina (1966). ln: Interoe11rionesy Textos (p. 
8 7). Buenos Aires: Manantial. 
l Foucault, M. (1 987) O Nascimenlo da Clínka. Rio de Janeiro: Forense­
Universitiria, pp. 1 26-1 29. 
4 Canguilhem, G. (1990) O normal e o patológfao (c. V). 3" ed. Rio de Janeiro: 
forense-Universitária. 
5 Lacan, J. (1985), op. cit, ( p. 92). 
43 
ANOREXIA E BULIMIA: 
DE QUE SE TRATA?1 
Para a condução dos casos, é fundamental a conepção do 
llUC seja a anorexia e a bulimia, já que existem diferentes abor­
dagens do tema. Para a medicina e para a psiquiatria, por exemplo, 
são transtornos alimentares. Para a psicanálise, definitivamente, não 
é disso que se trata. O transtorno alimentar é sintoma, é conse­
l.Jllência de algo que se passa cm outro nível. De que se trata? 
Pode-se começar com a pergunta: quando se come, o que 
é que verdadeiramente se come? Os humanos, os seres falantes, são 
marcados pela palavra, e "a palavra é a morte da coisa", segundo 
fórmula de Hegel que Lacan tanto preza. Isso quer dizer, por 
exemplo, que para o ser falante a palavra vem antes do alimento e, 
frequentemente, no lugar do alimento. "Quero wna picanha ao 
ponto" ou "sou vegetariano": antes de comer comida, comem-se 
palavras. A questão, porém, pode ir mais longe. "Vocês vão ter que 
me engolir", disse, certa feita, Zagalo, quando considerado wn 
osso duro de roer. Já um outro fulano é rido como um abacaxi com 
caroço, o sicrano come pé de frango e arrota peru e o beltrano 
escarrou no prato que comeu. No campo amoroso, temos aquela 
que paquera um pão, ou aquele corteja wna uva .. . 
Expressões que deixam claro: no reino das palavras, o 
nome dos alimentos pode enredar as vicissitudes do amor, do 
desejo e do gozo. E é exatamente aqui que se tece a trama da 
anorexia e da bulimia. Nosso convidado, Fabián Schejtman, referiu-se 
ao neologismo amorexia, que traduz bem a questão. 
O tema é complexo, mas serão possíveis algumas apro­
ximações. 
45 
A psicanálise nos ensina que o seio materno é o primeiro 
objeto. Objeto de amor, de desejo, de gozo, de necessidade ali­
mentar. Intrincação que, por si só, é sugestiva. Quando o que está 
em jogo é a pulsão, devem ser consideradas algumas possibilidades: 
1. A parte tomada pelo todo (o seio da mãe tomado 
como a mãe). 
2. O objeto da necessidade tomado como objeto da 
pulsão (o alimento, depois de há muito satisfazer a fome, continua 
a ser consumido) . 
3. O objeto da pulsão tomado como objeto da 
necessidade (o empuxo destrutivo como fantasia de devoração). 
4. A voz ativa substituída pela voz passiva (o empuxo de 
engolir ou devorar como medo de ser engolido ou devorado). 
São possibilidades que se passam no nível inconsciente, é 
claro, e que cabe ao tratamento psicanalítico desvelar. 
É importante considerar, por outro lado, a pressão do 
discurso capitalista para um movimento infinito de consumo de 
objetos inventados pela ciência. E o que é mais: ao contrário das 
barreiras contra o gozo existentes no tempo de Freud, repre­
sentadas pelo recalque e pelo supereu paterno, o que há hoje é um 
imperativo de satisfação, um imperativo de gozo, emblemático do 
supereu materno. Passa-se do proibido para o obrigatório. 
Lacan resume tudo isso com uma só palavra: o impe­
rativo "Goza!" Trazendo para o campo que está sendo consi­
derado, o imperativo seria: "Come!" A questão é que o discurso 
capitalista tem outras exigências. Dentro do culto ao imaginário do 
corpo, ele dita: "Sê bela!" Acontece que, ser bela, segundo o 
modelo de beleza difundido pela mídia, é ser magra. Podemos, 
então, assim , reswnir o que se ordena: "Come e sê magra!" É nesse 
mundo que a anorexia está se tornando uma epidemia. 
A anorexia é um sintoma do feminino. Mais precisa­
mente, uma forma de rejeição do feminino, que conduz a um gozo 
auto-erótico. A anoréxica caça as curvas do feminino, e o seu 
terreno de caça é o espelho cruel. Espelho que escancara a falta 
· 46 
l illln, visível aos olhos. Na anorexia, o olhar do Outro desempenha 
l'"Pd verdadeiramente crucial. Antes de ser alimentar, é questão do 
1 1 ll rnr. 
A anorexia, como novo sintoma, coloca em cena o corpo 
rm Jctrimento da palavra, não possuindo valor de mensagem nem 
�,· prestando a interpretação. Pierre Naveau ressalta que a anorexia 
r a bulimia, embora não sejam mensagens cifradas, estão 
rdacionadas com o impossível de dizer, com aquilo que a psica-
111ilise denomina objeto a. A chave da dialética entre anorexia e 
hulimia é a relação com o impossível de dizer. Não se trata de uma 
,�nsàu entre dizer e não dizer, mas entre nada dizer e t11do dizer, que 
KC traduziria em termos . de romer nada e 011 comer /11do. Na bulimia, 
haveria três momentos: comer tudo, olhar-se no espelho e vomitar, 
m-1uência que se impõe de modo implacável e cruel O vômito da 
hulímica corresponderia à expulsão do objeto, do qual a anoréxica 
não consegue se diferenciar. 
Lacan chama a atenção para um aspecto crucial: se, por 
um lado, há o significante do masculino, ou seja, o falo, por outro 
lado, não há significante do feminino. A não existência do 
significante da mulher é a forclusão fisiológica do ser falante, sendo 
1 , feminino uma metáfora da falha em dizer. 
Abordarei a distinção anorexia-bulimia com outros termos. 
Se a anorexia põe em evidência a questão do desejo, a 
bulimia põe em evidência a questão do gozo. 
O desejo é por excelência da ordem da insatisfação. Só se 
deseja aquilo que está em falta. A língua portuguesa é bastante 
esclarecedora a esse respeito. Satisfazer o desejo é matar o desejo. 
Quanto a isso, a anoréxica leva ao extremo a ideia de insatisfação 
<lo desejo como modo de preservá-lo. 
Já o gozo é, por excelência, da ordem da satisfação. O 
gozo é a satisfação da pulsão. Por esse motivo, o comer fNdo da 
bulímica evidencia a questão do gozo. Não se deve, porém 
confundir gozo com prazer. O gozo é uma satisfação que está além 
do princípio do prazer. 
47 
Desejo e gozo são, portanto, antinômicos, existindo 
entre eles uma tensão. 
O que regula a relação do desejo com o gozo é o 
significante fálico. Utilizarei uma metáfora para situar a questão: 
uma comparação entre o falo e a comporta de uma represa. Pode­
se perguntar: a comporta serve para reter a água ou para liberá-la? 
Ora, serve para ambas as coisas. Tal é o falo no que se refere à 
questão da satisfação: em parte retém, em parte libera. Outra 
metáfora é a garrafa de uísque cheia até a metade. Na perspectiva 
do desejo está metade vazia, na perspectiva do gozo está metade 
cheia. 
No caso da anorexia e da bulimia é como se tivéssemos 
uma comporta que só funcionasse nos extremos: retendo toda a 
água ou liberando toda ela. 
Nota 
1 Comentário apresentado em mesa redonda da I Jornada do Núcleo de 
Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB), do Hospital das Clínicas da 
UFMG, realizada em Belo Horizonte, em 30 e 3 1 de maio de 2008, sobre 
o tema Anorexia e b11/in1ia: de que se trata? 
4B 
A DORA DO NIAB' 
(FRAGMENTOS DE UM CASO DE BUUMIA) 
'41nopse da história clínica 
( 1 >e autoria de Chafia Américo Farah)Recebo Clara, de 27 anos, a pedido de sua psiquiatra, no 
r'Júd,o de Investigação de Anorexia e B11/imia (N/AB), do Hospital das 
( /iniras da UFMG. Inicialmente me diz que se sente desanimada 
1 111m começar tudo de novo, pois já havia passado por muitos 
profissionais. "Meu primeiro tratamento durou mais ou menos um 
111,0. O psiquiatra me deu o diagnóstico de Transtorno de Persona-
1 idade Borderline, Anorexia e Síndrome do Pânico ... Você também 
,1cha que tenho isso?" 
Aos poucos, traz dados sobre sua história. "Sou bulírnica 
, bde os meus 1 5 anos. Fui molestada pelo meu padrasto e vivi isso 
sozinha. Minha mãe não acreditou em mim. Ela separou-se do meu 
pai logo depois que eu nasci: ele fugiu com meu irmão e só 
11pareceu oito anos depois. Não valia muito; era traficante, tinha 
problemas com a polícia. Minha mãe não sabia disso quando se 
casaram; tinha 17 anos e era apaixonada por ele. Casou-se nova­
mente quando eu tinha um ano. Desse casamento vieram mais dois 
lilhos. Meu padrasto ensinou-me a chamá-lo de pai. Era dezenove 
anos mais velho do que minha mãe. Era wna pessoa muito boa, 
ajudou muito minha mãe e a família dela. Um santo!" 
Quando o padrasto passou num concurso público para 
advogado, mudaram-se para o interior de .Minas. Relata que dos 1 O 
aos 14 anos sofreu abuso sexual: "Ele mexia no meu corpo .. . 
49 
naquela época não contei para minha mãe, mas tentava dizer que 
tinha algo errado, pedindo para ir embora dali, que não queria 
morar mais ali ... " "Ele ficava se insinuando para ITlllil, falando da 
minha bunda, do meu peito . . . Na sala de televisão ele mexia comigo 
debaixo das cobertas. Eu fingia que estava dormindo, para não ter 
que contar pra minha mãe. O fA._ era maravilhoso para todo mundo. 
Eu tinha muito medo de contar e prejudicar minha família, meus 
irmãos . . . ''. 
E continua dizendo: "Então passei a fazer tudo o que 
não podia . . . era a única forma de agredir o h,.. Passei a comprar 
tudo com o dinheiro dele, sem limite, inclusive comida. Cheguei a 
pesar 80 kg com 1 5 anos". Depois de ser expulsa da escola, 
mudou-se para Belo Horizonte, com a mãe e um irmão mais velho. 
Tinha 16 anos. O padrasto ficou no interior com os dois filhos. 
Nessa época brigava muito com a mãe, com agressões tisicas 
mútuas, fugas de casa e tentativa de cortar o pulso. 
Decidiu ser freira: "porque eu tinha horror a homem!... 
Meu pai sumiu, meu padrasto abusava de mim e meus irmãos só 
sabiam brigar comigo". Conversava com as madres do colégio, 
contou sua história para uma delas, foi orientada a dizer tudo para 
sua mãe. Quando a freira marcou uma reunião com sua mãe, ela 
nunca mais voltou. 
"Foi aí que conheci o Rodolfo, o grande amor da minha 
vida". Após um mês de namoro, perdeu a virgindade e engravidou­
se. "Para mim foi a coisa mais importante da minha vida! Ele 
também queria muito aquele filho . . . queria casar comigo". Voltou a 
estudar, foi trabalhar com o pai, parou de usar drogas, pensando no 
futuro e em sustentar o filho. 
No quarto mês de gestação, descobriu que a criança tinha 
grave má-formação. Apesar do aconselhamento dos médicos, 
optou por não interromper e levar a gravidez complicada até o 
final. O parto foi difícil. O recém-nascido faleceu horas após, no 
colo do Rodolfo. Clara relata que o namorado "desestruturou. Tive 
que ser forte porque ele pirou. .. voltou a usar drogas, largou os 
· 50 
1·M 11dos • . . " Seis meses depois, terminou com o Rodolfo, passou a 
p,·ns:u em morrer. 
Seguindo as orientações de wn padre, resolveu contar 
p11ra a mãe sobre o comportamento do padrasto. Recebeu wn tapa 
i l 11 mãe. "Ela me perguntou se só porque a minha vida estava 
1b1ruída, eu queria destruir a dela também ... Me chamou de men-
1 1rosa e me perguntou se eu queria aparecer". 
Nessa época quem lhe ajudou foi o padrasto: "Ele era 
hom, mas era homem . . . Eu o amei como pai. Quando morreu, eu 
d10rci muito. E o perdoei no caixão, mas não consigo me perdoar. 
Se cu tivesse falado a verdade, contado para minha mãe, nada disso 
1c:ria acontecido". 
Conheceu o atual marido wn ano após o nascimento do 
neném. "Eu não gostava dele, mas ele era perfeito: mais velho, 
formado, como minha familia queria. Passei a gostar dele. Com wn 
1mo <le namoro, engravidei-me dele". Três dias antes do casamento, 
perdeu a criança. A familia do marido não queria que ele (não) se 
rasasse com 'aquela puta'. 
Clara. está casada há cinco anos. O marido é wn advo­
gado de 40 anos. Depois que ele passou nwn concurso público, 
mudaram-se para o interior de Minas. Clara detesta a cidade. 
Deixou wn emprego do qual gostava muito para ir para lá. 
"Cheguei a ser gerente, mesmo sem ter o segundo grau". 
Sobre o marido: "Acho que me casei com A II. Nunca vi 
parecer tanto: frio, calculista. É bom para os outros. E é bom 
l(Uando eu estou doente. Fico doente para ter a atenção dele. No 
geral ele é frio e distante. Fica me questionando se eu não tive culpa 
na história com meu padrasto". "Quando vomito estou me agre­
dindo por alguma coisa que não sei. Bulimia serve para colocar as 
coisas pra fora, aquilo que está machucando. Estou vivendo o luto. 
Estou enterrando 11, meu pai verdadeiro, meus filhos, meu marido. .. 
tudo o que me fez sofrer. Só não estou enterrando minha mãe". 
Há wn mês voltou para BH acompanhando o marido 
que veio fazer um curso. Aproveita para reaver seu emprego. Faz 
51 
entrevistas e é admitida como vendedora. Diz que "nunca mais vai 
morar no interior". 
Comentário psicanalítico 
(De autoria de Francisco Paes Ba"elo) 
No caso clinico relatado, eu não teria dúvidas quanto ao 
diagnóstico de histeria. Passarei a fundamentar meu juízo. 
A razão principal é que temos aí um Édipo muito bem 
caracterizado. Se estivéssemos diante de uma estrutura psic<'>tica, 
isso não aconteceria , não teríamos de modo tão evidente os 
impasses da dialética do desejo. Vamos ao Édipo, que, para Lacan, 
é diferente do Édipo para Freud. O freudiano é de três, o lacaniano 
é de quatro. Há, portanto, uma passagem do três para o quatro. A 
primeira vez que Lacan formalizou isso foi numa leitura que fez do 
Homem dos Ratos. Os quatro, então, eram: o homem dos ratos, o 
coronel substituto do pai, a dama rica, a dama pobre. Mas, foi no 
caso Dora que Lacan levou ao ápice a leitura do Édipo como um 
quadrado, e não como um triângulo. O quarteto era o seguinte: 
Dora, o pai, o Sr. K. e a Sra. K. Lacan disse que eles fizeram um 
verdadeiro ballet a quatro. Eu quase que chamaria esse caso de a 
Dora do NIAR. É muito nítido o quadrado nesse caso e vou tentar 
representá-lo da maneira mais clara possível. 
Clara Pai RodoHo 
Mãe Padrasto Marido 
· 52 
Os quatro pontos são: Clara, a mãe, o pai e o padrasto. 
' l , · tnos um quadrado e, com as diagonais, vários triângulos 
, , l iptanos. Vou adicionar mais dois nomes: em continuação com o 
1 , , 1 1 , Rodolfo, namorado que é uma metonímia do pai, e no lugar do 
1 •,11 I ras to, o marido de Clara, que é uma metonimia do padrasto. Ou 
,, • 1 ; 1 : o c..iue ela fala da mãe sobre o pai é algo paralelo ao que fala de 
,,1 1·111 relação ao Rodolfo. E o que fala sobre o padrasto é paralelo 
.,, , 11uc fala sobre o marido. Chamou o padrasto de A. e o marido 
, 11· i\ 1 1 . É impressionante a reprodução, a repetição. Um psiquiatra 
l it, 1h'1gico aqui, certamente falaria: "Puxa, como a genética é forte". 
1 1 111 místico, diria: "Estava escrito". Mas, nós ficamos com a 
1 •�iranálisc, com o que ela chama de herança simbólica. O DNA da 
hnança simbólica é o Nome-do-Pai. E o pai na histeria é 
, ·�t ruturalmente impotente. Impotência que pode ser lida de duas 
1 1 11111ciras. Primeiro, o pai relapso, pai fugidio, ausente. Ou então, 
1m i sc<lutor, cuja presença não é capaz de suscitar o que nós 
drnmamos de lei simbólica. Pai que não é eficaz como agente da 
rnstraçào e que, pelo contrário, se apresenta como pai sedutor. 
l';tnto assim que, enquanto a obsessão se mostra como uma 
neurose que apresenta uma hipertrofiado social, a histeria se 
rnracteriza por certa rebeldia. Uma falha do recalque está presente 
1·, na época contemporânea, com o declínio do pai, isso se acentua, 
u ponto de poder-se dizer de uma &agilização da metáfora paterna. 
( :ada vez mais, a histérica passa ao ato. Enquanto que o obsessivo 
procura eternizar o tempo de compreender, a histérica antecipa o 
momento de concluir, passando ao ato. 
Para terminar, algo sobre a parte mais difícil: a direção do 
tratamento. Para tanto, é indispensável uma chave de leitura do 
rnso, que nos dê um aspecto considerado crucial. É possível que, 
diante de um mesmo caso, se encontrem chaves de leituras 
diferentes. Direi qual é a minha para este caso. Se o chamei de Dora 
do Nl./1B, o risco maior é o de errar como Freud errou, tendo como 
i:onsequência o abandono do tratamento. Freud errou quando 
interpretou o enarnoramento de Dora pelo Sr. K., sendo que o 
53 
aspecto principal era o enamoramento de Dora pela Sra. K. A 
grande questão de uma histérica é saber o que é uma mulher. Freud 
identificou seu erro e formulou o célebre princípio: na histeria, 
cherchez la femme, procurai a mulher. 
Dora dá uma bofetada no Sr. K. quando ele deprecia a 
Sra. K. No caso, quem dá a bofetada é a mãe. Eis a minha chave de 
leitura: o enamoramento de Clara por sua mãe. Clara tenta repeti­
la numa busca identificatória. Aproxima-se da mãe e, no seu 
percurso, tenta ser mãe. Mesmo quando pensa em abandonar os 
homens e sair de casa é para ser madre. Os irmãos e a mãe não 
querem que ela volte. Está enterrando o pai, o padrasto, o marido, 
só não está enterrando sua mãe, seu porto seguro. 
Representando o Édipo por um materna, 
fil 
DM 
ou seja, o Desejo da Mãe metaforizado pelo Nome-do-Pai, pode­
se dizer que, no caso, a barra está fragilizada. Clara tenta sempre 
voltar-se para a mãe, ou repeti-la. Esta identificação idealizada e 
enrijecida é a questão principal a ser trabalhada nesse tratamento. 
De várias maneiras possíveis procurar apontá-la, desconstruí-la, 
dialetizá-la. A identificação holofrásica com a mãe é um aspecto 
importante nos casos de anorexia e bulimia. 
Nota 
1 Intervenções na Sessão Médico-Psicanalítica (apresentação de frag­
mento de caso clínico, comentário médico e comentário psicanalítico, 
seguidos de franqueamento da palavra) do Núcleo de Investigação em 
Psicanálise e Medicina do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de 
Minas Gerais, em novembro de 2005 . 
. 54 
O QUE QUER UMA MULHER HISTÉRICA? 
(SOBRE UM CASO DE INFERTILIDADE)' 
Pr11gmentos do caso clinico 
( l >c autoria de Simone Macedo Pinheiro)2 
Certo dia, aos 1 5 anos de idade, Ivone não saiu da cama. 
Tinha acordado com a calcinha toda suja de sangue. Susto. Ficou 
• 111icta. O pai chamou para ir à aula e disse que não ia porciue estava 
rnm dor de barriga. Foi até o rio, lavou a calcinha, vestiu e logo 
•·�tava com sangue de novo. Na casa faziam a higiene no rio. Não 
r lnham banheiro nem fossa. Voltou para a cama, até que chegou 
1 1 11111 prima e disse que isso ia passar e ensinou a fazer e a usar a 
1, 111lhinha de pano. 
Ivone vivia livre, mas era ingênua. Quando passava um 
11\'iiio peclia para mandar um neném para eles. Não sabia de 
1-(rnvidez, barriga. Mostra-se saudosista em relação ao passado, 
rnmo sendo a única época em que se sentiu feliz. "Fui amada 
demais pelo meu pai, acho que esse foi o problema; se tivesse me 
1 l illlo umas varadas . . . ". 
A mãe era seca, mas cuidava bem da alimentação, das 
1·1 1upns. "Nossa vida era simples, mas tudo muito limpo". A mãe acha 
l iohngem ela ter filho. Filho só dá trabalho, diz ela. O pai, quando 
l ,d,ia umas, dizia que a mãe não gostava de sexo ... Desde a morte do 
pni (quando tinha 23 anos), cuida da mãe de forma exclusiva. 
Ivone é paciente do Hospital das Clínicas da UFMG 
t lt"sde junho de 1989, quando, noiva, funcionária de fábrica de 
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sapatos, aos 3 t anos, é atendida pela 1 ª vez para tratar de dermatite 
crônica, astenia generalizada, dor em membros inferiores e pés 
inchados, sintomas de uma menopausa precoce provocada pela 
retirada de ambos os ovários, aos 26 anos (oofocectomia bilateral, 
com diagnóstico de endometriose). 
Está agora com 45 anos. Mudou-se para a cidade com 
aproximadamente 1 8 anos, casou-se depois dos 30, após sete anos 
de noivado e está em trabalho analítico há um ano. Em abril de 
1999, aos 40 anos, casada, passa pelo criterioso processo c..le seleção 
do programa gratu ito de ovodoação no Departamento de Repro­
dução Humana do HC-UFMG. 
Após fracasso da 2" tentativa de fertilização in vitro é 
cncaminhac..la pelo médico responsável do Laboratório de 
Reprodução Humana do HC, para atendimento na psiquiatria e 
posteriormente na psicologia. Segundo o prontuário médico a paci­
ente foi encaminhada para "avaliação neuropsicológica e acom­
panhamento psicoterápico. Ansiedade generalizada". Estava com 
45 anos. 
Apresentava-se deprimida diante do fracasso da segunda 
tentativa de inseminação artificial, com choro constante, perda de 
vontade de fazer as atividades cotidianas. Diz ela: " ... depois que a 
minha inseminação não deu certo, tudo acabou . . . Da primeira vez 
eu fiquei de carna um mês ... ". 
Relata sonhos diversos com o tema da maternidade: 
passar por uma vaca com bezerro, branca e brava; cuidar e dar 
banho em criança, sempre menina e de até três anos. "Mas, às 
vezes, a criança se afoga". 
Quando fez a retirada dos dois ovários, o médico avisou 
que não poderia mais ter filhos: "Pedi a ele para não contar para 
ninguém que perdi uma parte do meu corpo. É horrível pensar que 
não sou toda perfeitinha". 
Em dezembro de 2002, fez uma terceira inseminação, 
dessa vez particular, fora do HC. Houve fecundação do óvulo, pela 
primeira vez, mas a gravidez teve de ser interrompida. Gravidez 
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1 1 1h1iria que culminou num quadro grave de hemorragia, cirurgia de 
1 1q.:ência, com risco de morte e retirada da trompa esquerda. O 
1 1 1é-dico descobriu também que ela tem urna aderência nessa região . 
.'\pesar do risco de morte, ela não dá importância. "Não consigo 
l lrnr sem o meu neném". 
A perda dos ovários é vivida como uma mutilação. 
1 •:sconde dos parentes e amigos a sua real situação. Para ela o 
11 1 :iri<lo não sabe que retirou os ovários. Identifica-se com pessoas 
� lluem falta um pedaço do corpo: braço, perna, pessoas cegas, mas 
n 11ncnta: "a diferença no meu caso é que ninbruém vê". 
Pensa em adoção para agradar o marido, mas rejeita a 
ideia como resultado da relação com a irmã adotiva: "rejeição 
porc.iue ela era tratada igual filha; ciúme por ter que dividir o amor 
dos pais". Acha que o que está sofrendo hoje é castigo porque em 
uma das inúmeras brigas com essa irmã falou, só para vingar: 
"mesmo que Deus não possa me dar filhos, não vou adotar. A pior 
roisa é filho adotado". 
Com o início dos procedimentos médicos para o 
lrntarnento da infertilidade, é invadida por fantasias de gravidez. 
No período preparatório das tentativas de inseminação descreve 
uma sensação de plenitude. Só de tomar antibióticos, hormônios e 
outras medicações, já vive, fantasiosamente, a sensação da gravidez, 
antes mesmo da colocação dos óvulos. Imagina a barriga crescendo, 
planeja datas. "Quando eu tomo os remédios do Dr. R. eu fico alegre, 
me sinto uma adolescente .. . ". Em casa guarda vestidos de gravidez 
e tem enxoval para recém nascido, completo. O marido faz coleção 
de carrinhos de criança e quer um filho, mas só serve se for do sexo 
masculino e branco. Justifica para a esposa, que é branca e de 
cabelos louros oxigenados: "passar por humilhação, por ser de cor, 
já chega eu". Ao ser selecionada para o atendimento no Banco de 
Óvulos do HC, ninguém teria dúvida de que aquela mulher queria 
ter um filho a qualquer preço. Mas, com qual demanda? 
Tristeza e fantasias com a gravidez vêm sendo subs­
tituídas por outros temas de seu cotidiano: as limitações vividas 
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após a retirada dos ovários; as dificuldades de relacionamento com

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