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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO – 8º PERÍODO COMPÊNDIO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL Daniel Leão Souza Fernanda Rodrigues Guimarães Andrade Junia Castro Bernardes Rezende Pedro Brandão e Souza Belo Horizonte Maio de 2010 1. Leiam o livro: “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg ou vejam o filme: “Sombras de Goya”, de Milos Forman. Após, apreciem o sistema judicial de apreciação da verdade e, com fundamento, na realidade da sociedade punitiva atual apontem sobrevivências ou persistências no processo penal brasileiro da atualidade. - Pai de Inés: “ Você foi intimada pelo Santo Ofício? Você faz idéia do que pode ser”? - Inés: “Não”. Sem saber a razão de sua intimação, Inés comparece então ao Santo Ofício, onde é levada a uma sala escura em que se encontra uma pequena mesa de madeira com três cadeiras de um lado e uma de outro. Após um tempo, entram três membros da Igreja encapuzados e vestindo longas túnicas. Os que se sentam nas extremidades da mesa têm uma expressão sóbria, imutável. Enquanto aquele que se coloca ao centro, e que será o único a falar durante todo o interrogatório, passa uma impressão de tranqüilidade, e com uma gentileza quase amigável se dirige à menina e lhe convida a se sentar: - Inquisidor: “Temos apenas algumas perguntas a lhe fazer e esperamos que as responda com a verdade”. - Inés: “Sim, eu o farei”. (...) - Inquisidor: “Serviram-lhe porco”? - Inés: “Sim, mas eu não comi”. - Inquisidor: “Por que não”? - Inés: “Eu não gosto de porco”. - Inquisidor: “Você pode jurar pela Santa Cruz que diz a verdade”? - Inés: Sobre o porco”? - Inquisidor: “Então, pode”? - Inés: “Eu juro pelas chagas de Jesus que eu estou dizendo a verdade”. - Inquisidor: “E suponho que não fará objeções a que seja-lhe dada a chance de provar”. - Inés: “Não, eu ficaria grata. Como gostaria que eu provasse”. Inés é então submetida à tortura em frente ao seu inquisidor e dois outros membros do clero que a observam, sem expressar qualquer emoção, enquanto continuam sua busca pela “verdade real”. A deixam nua, amarram suas mãos atrás de suas costas com uma corda e a puxam de modo com que fique içada do chão e todo o peso de seu corpo seja sustentado por seus braços que não podem se mover. Com perfeição técnica os “defensores da fé” repetem diversas vezes a técnica confessional, imprimindo à interrogada uma dor capaz de criar realidades irreais sem verter nem mesmo uma gota de sangue. - Inquisidor: “A senhorita disse a verdade”? - Inés: “Sim, eu disse”! - Inquisidor: “Temos motivo para suspeitar o contrário”. - Inés: “Por quê”? - Inquisidor: “Suspeitamos que tenha evitado o porco por ser uma judaizante”. - Inés: “Uma o quê”? - Inquisidor: “A senhorita é”? - Inés: “Que é isso”? - Inquisidor: “Pratica os ritos judaicos”? - Inés: “Não, eu não faço isso”! - Inquisidor: “Se tem algo a confessar, confesse agora”. - Inés: “Mas eu ... O que quer que eu confesse”? - Inquisidor: “A verdade”. - Inés: “Mas eu já disse”! Recomeçam então o processo de tortura. A dor e o desespero são evidentes na face de Inés, que com dificuldade se dirige a seu inquisidor: - Inés: Diga-me qual é a verdade! Diga-me qual é a verdade”!1 A passagem acima citada, presente no filme “As Sombras de Goya”, demonstra como se dava a investigação acerca de um possível crime no Sistema Inquisitorial Moderno realizado pela Igreja Católica durante a Idade Média. A fase inquisitorial iniciou-se no final do século XII e início do século XIII com os Concílios de Verona e Latrão e foi finalizada apenas quando os Tribunais do Santo Ofício foram extintos em Portugal e na Espanha nos anos 1821 e 1834, respectivamente. A Inquisição começou mais branda (se é que se pode usar tal adjetivo para caracterizar este sistema) e se tornou mais perversa com o passar do tempo. A chamada Inquisição Medieval, em geral subordinada ao poder político, era itinerante e tinha como principal função o fortalecimento do papado. À medida que este sistema se tornava mais difundido, foram editadas Bulas Papais que o normatizavam, sobretudo a Bula Ad Extirpanda, e manuais que possibilitaram a aplicação prática do “sistema jurídico- canônico” recém criado, sendo “Directorium Inquisitorum” (1937) e “Malleus Maleficarum” (1489) os mais importantes destes. “As duas principais obras das Inquisições (romano-germânica e espanhola) forneceram as chaves de leitura que instrumentalizaram procedimentos baseados em denúncias anônimas e vagas, em estruturas probatórias centradas na confissão e na busca da ‘verdade material’, bem 1 Fime: “As Sombras de Goya”, Milos Forma. EUA: 2006 como na prisão processual como regra- um suspeito podia ser preso a qualquer momento, sem saber o que se queria dele. Nunca ficava conhecendo o nome de quem o acusou, nem lhe era comunicado o motivo da prisão, nem o lugar em que havia cometido o crime de que era acusado, nem com quem havia pecado”.2 Já na Segunda Fase da Inquisição, denominada Moderna, não se tinham mais as Visitações do Santo Ofício, que eram itinerantes, e sim os fixos Tribunais do Santo Ofício. Neste período, coexistiam três jurisdições penais: a central, na qual atuavam os juízes do rei, a locais, tendo em vista a necessidade de se impor a “justiça” nas diversas regiões do reinado, e a eclesiástica, responsável pelo julgamento de questões relevantes para a Igreja. A Inquisição, agora rigidamente sistematizada, estava sob o Poder Estatal, que em contrapartida a apoiava, legitimava-a e lhe dava enorme grau de autonomia para ditar suas próprias normas e institutos. Assim, enquanto a legitimação para o “sistema penal religioso” advinha do Estado, este se fortalecia com o respeito e medo imposto por aquele. Pode-se dizer então, que o sistema inquisitorial surgiu “no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de ‘doutrinas heréticas’. Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo já conheceu e conhece”.3 A estrutura inquisitorial inicia a lógica do direito penal de periculosidade, no qual todos eram suspeitos e qualquer conduta podia ser um indício de crime. Neste contexto e seguindo as orientações do “Malleus Maleficarum”, considerado por alguns autores o primeiro modelo integrado de criminalística com direito penal e processual penal4, não existia no processo penal a presunção da inocência, o contraditório ou a ampla defesa; as denúncias eram públicas e podiam ser realizadas por qualquer pessoa, que teriam, inclusive, sigilo quanto à sua identidade, mesmo em relação ao acusado. O inquisidor, que poderia ser aquele que realizou a imputação, era também responsável pela “defesa” (em real, inexistente), pela produção de provas e era ainda, o julgador. O processo era sigiloso, o que contribuía para fomentar a liberdade de ação dos juízes- inquisidores, e escrito, impossibilitando ao réu de acompanhar seu próprio julgamento. A insuficiência de provas não auxiliava na absolvição do suspeito, uma vez que elas deveriam mostrar de maneira incontroversa a sua inocência (o que era praticamente impossível) ou apenas confirmar a imputação realizada pelo inquisidor/juiz/defensor. A prova suprema do sistema inquisitorial era a confissão, demonstração evidente da “verdade real”. E para se chegar a esta reconstrução dos fatos era permitida, e muitas vezes incentivada, a tortura. Os juízes deviam se valer dos meios legais (ou seja, a tortura em que não fosse vertido sangue) para fazer com que o acusado confessasse seu crime. Com o fomento de tal prática, aumentaram gradativamente as condenações por heresia, dada a facilidade de fazer comque um suspeito submetido às dores e angústias da tortura confessasse um crime cometido ou que jamais existiu. Leciona Cordero sobre este método de produção de prova: “o instrumento inquisitório desenvolve um teorema 2 CARVALHO, Salo de, Revista à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. p. 38, e citação de NOVINSKY, A Inquisição, p. 58-59. 3 COUTINHO, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. 4 ZAFFARONI, BATISTA, SLOKAR E ALAGIA, Direito Penal Brasileiro. p. 511. óbvio: culpado ou não, o indiciado é detentor das verdades históricas, tenha cometido ou não o fato; nos dois casos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respectivas memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questões seriam liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre em sua cabeça. Os juízos tornaram- se psicoscopia”.5 Assim, o acusado, ao invés de ser um sujeito de direito, era um mero objeto de investigação, que detinha a verdade material, e que deveria, a qualquer custo, expor os acontecimentos (muitas vezes não ocorridos) para que figurassem no papel, e concluíssem o processo penal, caracterizado por um excessivo formalismo gráfico e por uma perversa noção de justiça em nome de Deus. No filme “As Sombras de Goya”, Inés, após ser torturada, confessa ser praticante de ritos judaicos, apesar de nunca tê-los praticado. É depois deixada em um calabouço escuro e sujo, onde ficou acorrentada junto a diversos outros acusados, que também haviam sido submetidos ao “interrogatório”, para esperar seu julgamento, que até a dissolução da Inquisição espanhola pelas ordens de Napoleão (após 15 anos de sua prisão) não ocorreu. Os pais de Inés, ricos comerciantes, não conseguiam notícias de sua filha depois de sua apresentação ao Santo Ofício. Por isso, com o intermédio do artista Francisco Goya, entraram em contato com um padre de importante posição hierárquica dentro do tribunal do Santo Ofício. Este padre, Lorenzo, informou-lhes que Inés deveria aguardar seu julgamento, pois havia confessado o crime pelo qual havia sido acusada. O irmão da menina pergunta a Lorenzo se ela havia sido torturada e ele responde que sim, que ela havia sido submetida ao Interrogatório. O pai então, revoltado, escreve um termo no qual Lorenzo afirma ser o filho de um chipanzé com um orangotango e pede que este o assine. Diante da negativa do padre, o pai, com a ajuda de seus serventes e de seus filhos, tortura-o da mesma maneira em que sua filha havia sido torturada e o instiga a assinar o documento que havia escrito. Após alguns minutos de submissão ao “Interrogatório” realizado pelo pai de Inés, Lorenzo assina o absurdo documento, demonstrando a deturpação do método de confissão mediante tortura. Diante da ameaça de que este termo se torne público, Lorenzo requer ao Bispo, autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício, que aceite a vultosa doação oferecida pelo pai de Inés e que permita que ela retorne à sua casa. -Bispo: “Ela foi submetida ao Interrogatório”? - Lorenzo: “Sim, padre, ela foi submetida ao Interrogatório”. - Bispo: “Aceitaremos esse magnânimo presente com a mais humilde gratidão. Também mandaremos gravar o nome do doador no convento para celebrizar sua generosidade eternamente. Quanto à filha, rogo a Deus que lhe conceda Sua misericórdia mas soltá-la iria contra os princípios da nossa fé, pois sugeriria que a Igreja duvida do valor do interrogatório”. 5 CORDERO, Guida alla Procedura Penale. p. 48. O pai de Inés, após perceber que Lorenzo seria incapaz de interceder pela liberação de sua filha, vai ao rei e mostra o documento assinado pelo padre, alegando a impossibilidade de se valorar a confissão obtida com tortura, como fazia o tribunal eclesiástico. O rei se diverte com a declaração de que o padre seria um macaco e diz que tomará as medidas cabíveis. O documento é então entregue ao Bispo, que depois de constatar que Lorenzo havia fugido, realiza a queima pública de uma pintura de sua imagem, declarando que o padre havia sido “contaminado por forças demoníacas” e devia ser perseguido, e não modifica em nenhuma medida o sistema inquisitorial vigente. Quinze anos após esses acontecimentos, a Espanha (onde se passa todo o filme) é invadida pela França, agora sob o comando de Napoleão. Com base na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o Tribunal do Santo Ofício é dissolvido, seus membros são presos e submetidos a julgamento. Lorenzo é agora promotor e será ele a promover a acusação, pública e oral, contra o Bispo. Utilizando-se do mesmo discurso de perseguição feito pela Igreja, falando, porém, em nome da dignidade humana, e não da supremacia de Deus, afirma o ex-padre, permanente acusador que se adéqua ao modelo inquisitorial: - “Eu estou aqui para servir aos ideais da grande Revolução Francesa! Eles me abriram os olhos como abriram os olhos dos cegos do mundo inteiro porque eles são irresistíveis. Eles são lógicos, são justos, universais. Todos os homens nascem livres. Todos têm os mesmos direitos, e aqueles que se recusam a ver a luz da liberdade não terão misericórdia. Não haverá liberdade para os inimigos da liberdade! Padre Gregorio, não tome isto pessoalmente, no entanto, o senhor é a encarnação do fanatismo cego e do nepotismo. É o instrumento pelo qual uns poucos mantiveram muitos acorrentados. É o exemplo do que há de pior na Espanha, e por isso será julgado pelos seus feitos”. Os seis julgadores senteciam por unanimidade o padre à penal capital. Este, porém, nunca sofreu os efeitos da condenação, uma vez que pouco depois a Inglaterra expulsou os franceses do território espanhol e restituiu à Igreja o poderio sobre a justiça penal eclesiástica. O Bispo assumiu então a função de acusador e julgador, e de acordo com a estrutura processual penal presente em certos aspectos até a atualidade, ou seja, a estrutura inquisitorial, condenou Lorenzo à morte. Com o surgimento do humanismo cívico, da Ilustração e do Renascimento, o Sistema Inquisitorial entra em declínio. O conceito de direitos humanos se espalha para todos os ramos do direito, que no século XIX começa a ser estudado como ciência, ou seja, fruto da razão, desvinculado da Igreja e da fé. Contudo, a separação entre direito e moral não acabou com a lógica inquisitorial presente no sistema penal e processual penal do Ocidente. “O sistema inquisitório confessional foi substituído por um modelo laicizado de idêntica natureza autoritária, obstaculizando o desenvolvimento e consolidação do sistema acusatório”.6 Atualmente, a maior parte dos países democráticos adotam modelos processuais penais acusatórios. Entretanto, dentre estes é exceção possuir um sistema puramente acusatório, sem resquícios do autoritarismo advindo do processo inquisitório. A. O PROCESSO PENAL BRASILEIRO NA ATUALIDADE A maior parte da doutrina considera que o processo penal brasileiro na atualidade possui natureza mista, ou seja, é um sistema acusatório com traços e aspectos do sistema inquisitório. No entanto, há doutrinadores que não incluem o inquérito policial no processo e por isso alegam ser o sistema processual penal nacional somente acusatório, e não misto. Nesse sentido o Procurador Eugênio Pacelli de Oliveira: “No que se refere à fase investigativa, convém lembrar que a definição de um sistema processual há de limitar-se ao exame do processo, isto é, da atuação do juiz no curso do processo. E porque, decididamente, inquérito policial não é processo, misto não será o sistema processual, ao menos sob tal fundamentação”. 7 Entretanto ainda que se leve em consideração a exclusão do inquérito policial do processo, o que para nós seria um excesso de formalismo e uso de conceitos rígidos como forma de amenizar as mazelas presente em nosso sistema,tal classificação não procede, uma vez que também em relação à fase judicial estão presentes em nossa legislação, dispositivos de evidente caráter inquisitório, como o art. 156 do CPP, sobre o qual dissertaremos à frente. O Código de Processo Penal brasileiro foi editado em 1941 sob a inspiração da legislação processual italiana da década de 1930, período em que a Itália se encontrava sob o regime fascista. Por isso, não é surpreendente que o CPP brasileiro tenha um aspecto fortemente autoritário, principalmente em sua redação original. O princípio fundamental do Código era a presunção de culpalidade, o que coadunava com os ensinamentos de grande parte da doutrina da época, bem representada pelo italiano Manzini, que dizia ser ilógica a existência de uma ação penal contra quem seria presumidamente inocente. Pacelli de Oliveira aponta como sendo as mais relevantes características do originário CPP: 1) a potencial e virtual culpa do acusado, 2) a prevalência da segurança pública em relação à liberdade individual, 3) a alegação da busca da verdade real como legitimadora para práticas abusivas e autoritárias por parte das autoridades públicas, 4) a realização do interrogatório do réu em ritmo inquisitivo, sem a intervenção das partes, e exclusivamente como meio de prova, e não de defesa.8 Com o passar dos anos, a mudança do contexto histórico, os horrores vistos nas guerras, nos campos de concentração e nos regimes comunistas, mostraram a necessidade de se proteger o indivíduo acusado contra outros indivíduos e contra o poder Estatal. Os diversos ramos do Direito, incluindo o Direito Processual Penal, foram então sendo modificados para se adequar à nova concepção de justiça. Neste novo sistema, o processo inquisitorial se mostrava completamente inadequado e o 6 CARVALHO, Salo de, Revista à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. p 1. 7 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 13ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 12. 8 Idem. p. 6. processo acusatório passou a ser incorporado pela legislação nacional. O modelo acusatório é caracterizado pela distinção entre os órgãos de acusação, defesa (que deve ser técnica) e julgamento. Além disso, nesse sistema, o processo se inicia somente com o oferecimento da acusação (não pelo julgador, Princípio da Inércia), e se desenvolve através do contraditório e da ampla defesa, sob os auspícios de um juiz natural e imparcial (o que não significa um juiz neutro, já que é impossível não ser influenciado pela realidade, costumes e contexto histórico no qual se está inserido). Dentro do sistema acusatório não se busca a qualquer custo a “verdade real”. A verdade judicial é sempre uma verdade processual e não é do réu o ônus da prova, e sim do órgão acusador, no Brasil, o Ministério Público. Ademais, a decisão do juiz deve ser sempre fundamentada, possibilitando à parte sua impugnação, caso julgue necessário. Deve-se mencionar ainda, que no sistema acusatório estão presentes o direito ao silêncio (art. 5º, LXII CF/88), que não deve ser valorado positiva ou negativamente e o direito a não auto-incriminação. Na década de 1970, o CPP brasileiro passou por inúmeras alterações, e relevantes mudanças foram realizadas, como a flexibilização de regras restritivas do direito à liberdade. Foi feito, inclusive, o projeto de um novo Código de Processo Penal, que, entretanto, jamais foi aprovado. É em 1988, contudo, com a edição da Constituição da República, que o processo penal no Brasil é radicalmente alterado. A nova Constituição se baseia nas garantias individuais e na defesa da dignidade da pessoa humana. E ao contrário do CPP, que presume a culpabilidade do acusado, a Constituição de 1988 afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). Em razão da hierarquia de normas, diversos dispositivos do Código de Processo Penal deixaram de viger por não terem sido recepcionados pelo Diploma Superior. Ainda assim, atualmente são aplicados inúmeros dispositivos de clara natureza inquisitória, que vão de encontro com os princípios norte do nosso sistema constitucional. Examinemos agora alguns dos artigos do CPP de natureza inquisitória e que são aplicados na praxe forense: O art. 5º, II do citado diploma permite que o inquérito policial nos crimes de ação pública seja iniciado por requerimento da autoridade judiciária. Permissão esta contrária ao sistema acusatório, no qual o juiz, pelo princípio da inércia, só pode atuar após ser provocado. O juiz não deve atuar na fase do inquérito policial (“a não ser para praticar atos de natureza jurisdicionais que tenham por fim assegurar direitos fundamentais não relacionados, diretamente, com o fato em apuração”)9, por isso mesmo não pode possuir a prerrogativa de ordenar o seu início. Deveria o juiz ter a possibilidade de comunicar o possível fato criminoso ao Ministério Público, como prevê do art. 40 do CPP, que então requisitaria a abertura do inquérito policial se julgasse cabível. Também permitindo a atuação do juiz na fase do inquérito policial, tem-se o art. 10, parágrafo terceiro, que permite ao magistrado impor prazo para a realização de 9 HAMILTON, Sergio Demoro, A Ortodoxia do Sistema Acusatório no Processo Penal Brasileiro: Uma Falácia, in HTTP://amperj.org.br/associados/dalla/artigos41.htm diligências necessárias para elucidar o inquérito pela autoridade policial, o que se mostra incoerente, uma vez que, se para quem é o responsável pela investigação tais providências se mostram difíceis, impossível ao juiz, que ao menos teoricamente estaria afastado da fase inquisitiva, saber o tempo necessário para que elas sejam realizadas. E ainda o art.13, II, que permite que o juiz requisite diligências à autoridade policial. Talvez seja este o dispositivo de maior afronta ao sistema acusatório na fase do inquérito policial. Ao juiz não cabe investigar e ao conceder a ele a possibilidade de requerer diligências nessa fase, permite-se que o juiz imagine situações que podem ter ocorrido e então busque uma forma de prová-las. Isto significa dar ao julgador poder que tinha o inquisidor na Idade Média, ou seja, a busca da confirmação de um fato que pensa ser existente. O art. 127 do CPP dispõe que o juiz, de ofício, pode ordenar o seqüestro de bens, mesmo antes de oferecida a denúncia ou a queixa. Ora, se o seqüestro se mostra necessário, não cabe ao juiz fazê-lo antes de iniciado a fase judicial sem o requerimento do ofendido ou do Ministério Público, por consubstanciar ofensa direta e explicita ao devido processo legal e aos demais princípios garantidores presentes na Constituição Federal. De todas as previsões de natureza inquisitória presentes no CPP, as que permitem ao juiz a iniciativa de prova são provavelmente aquelas de demonstram maior contradição com o modelo processual acusatório. Diz o art. 156: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, a realização de diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante”. O inciso II do art. 156 não nos parece desarrazoado uma vez que a iniciativa probatória do juiz está restrita à necessidade de esclarecimento de dúvidas surgidas a partir das provas produzidas pelas partes no processo. Já o inciso I é de transparente caráter inquisitório. Mostra-se novamente presente na legislação a autorização para queo juiz busque a dita verdade real, ou seja, a verdade que pensa ser real. Como poderá o juiz saber qual a prova necessária? Se as provas presentes no processo não o permitem condenar o réu, deveria o juiz concluir pela necessária absolvição e não buscar uma forma de confirmar a culpa que pensa existir. Na mesma esteira, encontram-se também os artigos 168, 209, 234 e 242, todos do CPP. Vale lembrar a lição de Hamilton: “Nunca o juiz, ainda que supletivamente, poderá intervir para buscar prova que incumbia ao querelante produzir. Nos casos de exclusividade da ação privada, a atuação do juiz só se dará em favor do querelado, quando este, não importa a razão, deixe de produzir prova que eventualmente, possa beneficiá-lo. Justifica-se tal atuar em razão do princípio do favor libertatis”10. O requerimento de provas de ofício em favor do réu não está em desacordo com o modelo acusatório e justifica-se pela desigualdade de partes existente no processo penal. Diferentemente do que o ocorre no processo civil, no processo penal a relação é desigual tendo em vista que de um pólo da relação tem-se o acusado e do outro o Estado, e não um outro indivíduo.11 Na legislação esparsa também estão presentes diversas previsões contrárias ao sistema acusatório. A Lei do Crime Organizado (9034/95) e a Lei da Interceptação Telefônica (9296/96) permitem ao juiz, de ofício, determinar a realização de diligências na fase do inquérito policial. A Lei de Falências (Decreto-lei 7661/45) prevê um inquérito presidido pelo juiz, absurdo que nas palavras de Sergio Demoro Hamilton, é um “velho ranço inquisitorial, mais uma vez, a fazer tabula rasa do sistema acusatório”. Cumpre dizer que o legislador nacional não se mostra totalmente alheio às anomalias presentes em nosso sistema processual e vem recentemente promovendo reformas para retificar algumas das falhas presentes. Merece congratulação a Lei 11689/08 ao modificar o art. 474 do CPP permitindo ao acusado submetido ao tribunal do júri não comparecer aos procedimentos judiciais se considerar que assim que lhe será mais vantajoso. E ao estabelecer no art. 384 do CPP que somente ao Ministério Público cabe aditar a denúncia. Entretanto, como não raro acontece no Brasil, no mesmo período em que são editadas normas que fazem com que o Direito nacional caminhe para frente (como deveria ser o processo de acordo com sua etimologia), são também editadas normas que o fazem caminhar para trás. Dessa forma, vale mencionar que o desarrazoado art. 156 já comentado, que permite ao juiz tutelar a qualidade da investigação, é novidade trazida pela Lei 11690/08. O Processo Penal brasileiro e o inquérito policial, considerando-se ou não que o segundo está incluído no primeiro, devem sofrer uma reforma radical com o objetivo de fazer com que qualquer resquício do sistema inquisitorial seja eliminado. Em nome da dignidade da pessoa humana, em sua concretude e não apenas como retórica, forma em que muitas vezes esse princípio foi utilizado no curso da história, o Direito deve formular e extinguir normas com o objetivo de definitivamente acabar com a supressão das liberdades individuais para assegurar a “segurança pública”. Deve-se exterminar qualquer resquício, ainda que brando, da reação diabólica existente entre o inquisidor e o acusado. “Há uma coisa apenas que excita os animais mais do que o prazer: é a dor. Sob tortura tu vives como sob o efeito de ervas que produzem alucinações. Tudo o que ouviste contar, tudo que leste, volta à tua mente como se fosses transportado, não ao céu mas ao inferno. Sob tortura dizes não apenas o que quer o inquisidor, mas também aquilo que imaginas possa lhe dar prazer, porque se estabelece uma 10 Idem. p. 14 11 relação (esta sim, realmente diabólica) entre tu e ele”. (Umberto Eco) 2. Leiam o inteiro teor do AI 762146 RG / PR – PARANÁ/REPERCUSSÃO GERAL AGRAVO DE INSTRUMENTO/Relator(a): Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 03/09/2009 (disponível no site: www.stf.jus.br). Respondam: houve ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e do estado de inocência? O Agravo de Instrumento 762146 que teve como relator o Ministro Cezar Peluso, e julgou que o recurso que versa sobre a imposição de efeitos de sentença penal condenatória à transação penal como de repercussão geral não é propriamente o objeto de analise quanto à ofensa ou não dos princípios do devido processo legal, do contraditório e do estado de inocência. No caso em tela é importante analisar se o acórdão do TJPR que tece analise quanto efeitos da sentença homologatória da transação penal realizada no 2º Juizado Especial Criminal de Londrina representa ofensa aos supracitados princípios. O instituto da transação penal encontra guarida constitucional no art. 98, I da Constituição da República, que dispõe: “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;” (grifo nosso) Posteriormente foi regulado pela lei 9.099 de 1995, que em seu art. 76 estabeleceu que: “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.” Todavia, a partir da criação deste instituto, alguns questionamentos foram trazidos pela doutrina, e em alguns pontos enfrentados pela jurisprudência, relacionados à natureza do mesmo. Teria a sentença que homologa a transação penal status equivalente ao da sentença condenatória e por conseqüência os efeitos relacionados a esta (como o previsto no art. 91 do Código Penal), ou a decisão que venha a homologá- la teria efeitos apenas declaratórios. O acórdão da Turma Recursal do Paraná, referente ao caso em tela, que julgou apelação de Luis Carlos de Almeida quanto à impossibilidade de restituição dos bens que constituem instrumento ou produto do crime no caso de transação penal, adotou a http://www.stf.jus.br/ posição de considerá-la como de natureza condenatória ainda que sumária ou imprópria e com os efeitos inerentes de uma sentença condenatória. Deve-se observar então se o conferimento de tais efeitos à sentença que homologa a transação penal representa ofensa ou não ao principio do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Antes de uma analise mais aprofundado da questão, cumpre uma breve analise acerca dos princípios acima elencados. I. PRINCIPIOS i. Principio do Devido Processo Legal Historicamente computa-se o nascimento de tal principio à Carta Magna em seu capitulo 39 em 1215, como reação às políticas perpetradas pelo Rei João Sem Terra na Inglaterra. Desde então muito se produziu e se desenvolveu em torno de tal principio. O devido processo legal é o principio que orienta todo o arcabouço jurídico processual, dentro da perspectiva procedimental a clausula do devido processo legal, garante ao cidadão, diante do Estado que as normas existentes e legitimas sejam aplicadas e asseguradas pelos órgãos públicos. Alem disso, possui também aspecto material (doutrina desenvolvido principalmente nos E.U.A) que impede que as normas materialmente ilegítimas ou injustas sejam elaboradas, exercidas ou aplicadas12.. Tal principio está enunciado como clausula pétrea na Constituição em seu art. 5º , LIV, que dispõe: “LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” Como denota Manoel Gonçalves Ferreira Filho faz parte da analise de devido processo legal “que as normas aplicadas quanto ao objeto do litígio não sejam desarrazoadas e portanto implicitamente injustas”. Importante ressaltar que com o passar dos anos tornou-se necessário esmiuçar aspectos mais específicos do que deve ser um processo justo. Assim, outros princípios ao longo dos anos foram ganhando autonomia e características mais especificas, ainda que se note em muitos deles grande relação de interdependência. É o caso, por exemplo, dos princípios da ampla defesa e do contraditório. I.2 Principio do Contraditório O principio do contraditório faz parte da rede garantista que advêm do devido processo legal e não se resume à simples participação das partes autora e ré no processo, mas está muito ligado à idéia de “paridade de armas” das partes dentro de um processo13. Deve-se observar se as partes durante o processo têm oportunidades de 12FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Codigo de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2004. p. 15 13 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 32. resposta com mesma intensidade e extensão. A idéia de dialética é parte indissociável de sua compreensão, . Está enunciado na Constituição Federal, também no art. 5º, inciso LV: “V - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” Alem disso, a própria Convenção Americana de Direitos Humanos enfatiza tal princípio em seu art. 8º, dispondo também sobre o principio da ampla defesa: “Artigo 8º - Garantias judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;” A jurisprudência em diversas oportunidades teceu considerações acerca do principio, destacando sua importância fundamental dentro do sistema jurídico pátrio, em especial no direito processual penal. “O principio do contraditório pressupõe a igualdade das partes e se revela na dialética da atividade probatória e das manifestações processuais, em relação às quais deve haver necessidade de informação e possibilidade de reação. O seu limite atinge todos os pontos de fato ou de direito que, durante o desenvolvimento da causa, se mostrem relevantes para o seu deslinde”14 Por fim, cabe observar que o principio do contraditório deve ser exercido de maneira plena dentro da perspectiva do sistema acusatório, podendo ser restringido em dadas situações de procedimentos inquisitivos15 I.3 Principio da Ampla Defesa O principio da ampla defesa está relacionado de maneira muito forte com o principio do contraditório. A alegação fica clara pela própria maneira como costumam ser tratados em conjunto pelo legislador, como se pode observar nos diplomas legais supracitados. Todavia ainda que pareça obvia a alegação, deve-se observar que não se tratam de princípios idênticos. Enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o principio da ampla defesa vai alem, impondo a realização efetiva dessa participação. Sendo assim, vem a se manifestar por meio da autodefesa, da defesa efetiva e por qualquer meio de prova capaz de demonstrar a inocência do acusado.16 Segundo o Superior Tribunal de Justiça: “O principio do contraditório enseja contradizer fatos e alegações da acusação. O direito de defesa, por seu turno, dá a oportunidade de deduzir considerações, relativas à situação jurídica do réu”17. Ao tratar da Ampla Defesa o Supremo Tribunal Federal coloca ainda que esta significa “dar ao réu todas as oportunidades e meios que a lei lhe propicia para defender-se”18 Feita breve analise acerca dos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa, volta-se para a analise do caso em tela, mais especificamente dos efeitos inerentes à sentença que homologa a transação penal, e de sua conformidade ou não com os princípios acima elencados. B. SENTENÇA QUE HOMOLOGA A TRANSAÇÃO PENAL II.1 Efeitos da Sentença que Homologa a Transação Penal A discussão em torno dos efeitos da sentença que homologa a transação penal é uma das mais controversas dentro do Direito Processual Penal atualmente, e apresenta posições bem diversificadas tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial. 14 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SAO PAULO. 1ª Câmara Criminal. Agravo 276.239-3/0-00 – Rel. Jarbas Mazzoni, 29.11.1999. 15 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.17 16 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 35. 17 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 6ª Turma. RHC 3242 – Rel. Vicente Cernicchiaro, 07.12.1993. 18 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC – Rel. Moreira Alves – RT 688/385 Para Ada Pellegrini19 e Lucas Pimentel de Oliveira trata-se de sentença homologatória de transação penal com eficácia de título executivo. Para Paulo de Tarso Brandão, Damásio de Jesus trata-se de sentença meramente declaratória. Já Cezar Bitencourt afirma ser essa decisão uma sentença declaratória constitutiva20. O Superior Tribunal de Justiça ao analisar a questão tomou posição favorável à natureza condenatória de tal sentença: “A sentença homologatória da transação penal gera eficácia de coisa julgada material, impedindo a instauração da ação penal no caso de descumprimento da pena alternativa aceita pelo autor do fato. Assim, tendo a sentença homologatória da transação penal natureza condenatória, o descumprimento da pena de multa aplicada pelo Juizado Especial Criminal deve receber o mesmo tratamento pelo Juizado Criminal Comum, aplicando-se o art. 51 do CP com a redação dada pela Lei nº 9.268/96. Após a vigência da referida Lei, a pena de multa passou a ser considerada tão- somente dívida de valor, sendo revogadas as hipóteses de conversão em pena privativa de liberdade ou restrição de direitos. Logo, a pena de multa não cumprida no prazo legal deve ser inscrita na dívida ativa da Fazenda Pública.”21 Nesse mesmo sentido dispõe decisão do Superior Tribunal de Justiça, (inclusive citada no acórdão prolatado pelo TJPR, alvo de analise desta dissertação). “A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória gera a coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo feito pelo autor do fato a instauração de ação penal”.22 Ainda que exista mais de uma manifestação da jurisprudência de tribunais superiores apontado para a natureza condenatória de tal sentença seria pretensioso afirmar que a questãoencontra-se pacificada. Tal proposição pode ser demonstrada justamente pela ampla divergência manifestada por parte de respeitados nomes da doutrina pátria. Independentemente da corrente que se adote, no caso em tela é necessário que se analise as conseqüências que teriam o conferimento de uma ou outra natureza. E, mais do que isso, se a inclusão da previsão legal do art. 91 do Código Penal dentre elas, ofenderia princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. 19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Juizados Especiais Criminais. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais, São Paulo: Saraiva, 2003. p 20. 21 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 194.637-SP. Rel. José de Arnaldo Fonseca, 20.04.1999. 22 SUPERIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 223.315-SP. Rel. Fernando Golçaves, 23.10.2001. II.2 Aplicação do art. 91 do Código Penal em casos de Sentença que Homologam a Transação Penal Dispõe o art. 91 do Código Penal: “Art. 91 - São efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. Retomando a discussão do tópico anterior, dentro da perspectiva de que a decisão que homologa transação penal não representa sentença condenatória, fica claro que não incidiriam sob a mesma os efeitos previstos no art. 91, que se refere expressamente a efeitos da condenação. Todavia, se partirmos da perspectiva que a coloca com natureza condenatória, é indispensável que seja feita uma analise mais profunda acerca da extensão dos efeitos dessa natureza condenatória, e quanto à aplicação ou não do art. 91 do Codigo Penal no rol de tais efeitos. Deve-se observar que o instituto da transação penal representa termo consensual entre autor do fato e Ministério Público em que se impõem determinadas penas restritivas de direito ou multa. Contudo, não há espaço para discussão em tal procedimento acerca da culpabilidade ou não, comprovação dos fatos ocorridos, analise de provas, etc. Com tal afirmação não se busca questionar, neste momento, a legitimidade do instituto da transação penal em si (que nos parece inclusive ser legitimo - visto que acolhido pela própria Constituição Federal, e por constituir um direito subjetivo do réu (ponto também controverso), que deve no momento de sua escolha estar assessorado por um advogado, dentro de um procedimento próprio estabelecido pela lei 9.099 de 199523, que visa evitar que seja aplicada pena restritiva de liberdade em hipóteses de cometimento de delitos de menor potencial lesivo). Contudo, ao pretender estender os efeitos decorrentes da sentença homologatória e em ultima instancia da própria transação àqueles presentes em uma sentença 23 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.269 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art91 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art91 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art91 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art91 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/1980-1988/L7209.htm#art91 condenatória “ordinária”, isto é, fruto de processo regular que culmina em sentença prolatada pelo juiz, acaba-se por ofender princípios do contraditório, da ampla defesa e por conseguinte do próprio devido processo legal. Isto porque, não há nem mesmo averiguação quanto a incidência ou não do crime, tornando-se abusivo impor o recolhimento do instrumento que tenha sido usado para o mesmo. Alem disso, o argumento mais substancial, no caso em tela, refere-se ao fato do art. 91 não fazer parte do acordo celebrado entre autor do fato e Ministério Público e posteriormente homologado pelo juiz de Direito. Fica clara a diferenciação da extensão destes efeitos quando se observa que a transação penal não importa na caracterização de reincidência nem consta de anotações criminais, registrando-se a aplicação da penalidade apenas com vistas a impedir que o autor do fato, no período de 5 (cinco) anos, se veja novamente alcançado pela medida benéfica Nesse sentido ensina Julio Fabrini Mirabete: Por disposição expressa, a sentença homologatória da transação não tem os efeitos civis (art. 76, parágrafo 6º), como previsto para a sentença penal condenatória (art. 91, I, do Código Penal, art. 63 do Código de Processo Penal). Fica excluída, também, a possibilidade de invocação do art. 584, III, do Código de Processo Civil, que considera como título executivo judicial a sentença homologatória de transação. Assim, a vítima e os demais interessados deverão propor ação de conhecimento no juízo cível para obter a reparação dos danos e outros efeitos civis. Sendo genérico o dispositivo, ao se referir a 'efeitos civis', também não gera a sentença homologatória da transação a perda dos instrumentos ou produto do crime (art. 91, 'a' e 'b', do Código Penal). Também se pode afirmar que, tratando-se de sentença condenatória imprópria, não causa a sentença os efeitos civis e administrativos previstos no art. 92, do Código Penal, eventualmente aplicáveis ao autor da infração de menor potencial ofensivo, mesmo porque tais efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença (art. 92, parágrafo único, do Código Penal)."24 Tal posição é corroborada pela própria jurisprudência, conforme decisão do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, ao estabelecer que: "A sentença homologatória de transação penal não pode ter o efeito de condenação do artigo 91, II 'a', porque não cabe interpretação extensiva contra o réu. Ademais, a sentença não pode ir além do que foi acordado pelas partes. (impedir a restituição de arma apreendida)" C. CONCLUSÃO Independentemente da natureza que se coloque para a sentença que homologa a transação penal, a negativa de restituição de bens apreendidos no caso de transação penal constitui ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. 24 MIRABETTE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 75. Para tanto, basta analise aprofundada dos princípios acima enunciados. Diante de tal situação não se estabelece a possibilidade de ampla defesa, nem de contraditório pelo autor do fato, uma vez que com a transação opera-se extinção da punibilidade, e não há espaço para discussão acerca da culpabilidade ou não do autor. Alem disso, ofende-se o devido processo legal em sentido amplo por não haver previsão especifica quanto a tal efeito condenatório, que não consta inclusive no próprio termo estabelecido entre autor e Ministério Público. 3. . Apreciem os problemas relativos ao moderno garantismo e à mitigação das garantias individuais processuais – os casos de quebra de sigilo de dados na internet, em bibliotecas etc. na persecução ao terrorismo e à lavagem de capitais. “… e tratar de compreender que o imenso organismo era inatacável…Se alguém, no lugar em que lhe cabia estar, mudava algo por sua conta, teria tão-somente removido o chão sob os seus próprios pés e se desnucaria, enquanto o grandioso organismo facilmente poderia se ressarcir em outra parte – posto que tudo estava relacionado – da ferida sofrida em algum ponto”. (Franz Kafka, O Processo).O garantismo consiste no conjunto de direitos e garantias de cunho processual que resguardam o indivíduo contra as arbitrariedades, excessos e abusos do jus puniendi estatal. No magistério de Aury Celso Lima Lopes Junior, O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir a plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc. O objeto primordial da tutela não será somente a salvaguarda dos interesses da coletividade, mas também a tutela da liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetiva parte do processo.25 O autor identifica cinco princípios básicos sobre os quais se assenta o garantismo: (i) jurisdicionalidade – a aplicação da pena tem como pressuposto o processo penal, realizado por juiz natural que satisfaça os requisitos de independência e 25 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima Lopes. A Instrumentalidade Garantista do Processo Penal. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/17011/public/17011- 17012-1-PB.htm. Acesso em: 27 de abril de 2010. imparcialidade; (ii) inderrogabilidade do juízo; (iii) separação das atividades de julgar e acusar; (iv) presunção de inocência; (v) contraditório e ampla defesa.26 Atualmente, assiste-se a verdadeiro atentado ao garantismo. Esta tendência, que se assemelha à reprodução, na realidade fática, de todas as violações retratadas por Kafka, no clássico da literatura ocidental O Processo, verifica-se de forma particularmente clara na persecução ao terrorismo e à lavagem de capitais. Passa-se, agora, a análise pormenorizada de cada uma destas situações. No tocante às estratégias de repreensão ao terrorismo, concentrar-se-á em três vertentes, quais sejam: (i) a adoção do Ato Patriótico pelo governo norte-americano; (ii) a flexibilização da proibição da tortura e de outras modalidades de maus-tratos; (iii) e, o desrespeito ao devido processo legal pelo Ato das Comissões Militares (Military Commission Act) de 2006 e pela prática de blacklisting no Conselho de Segurança. Ressalve-se que outros aspectos são igualmente dignos de atenção. Porém, devido às limitações da presente proposta pedagógica, decidimos nos ater à questão de forma abrangente, apresentando apenas os seus contornos principais. Para tanto, as aludidas vertentes mostram-se suficientes. Importa observar, outrossim, que tomamos os Estados Unidos como referência, por ter este país se apresentado como o baluarte da luta internacional contra o terrorismo. Quanto ao crime de lavagem de capitais, realizar-se-á análise dos dispositivos da Lei 9.613/98, à luz dos direitos e garantias fundamentais consagradas pela Constituição da República Federativa do Brasil (CF). D. O GARANTISMO PROCESSUAL NA PERSECUÇÃO AO TERRORISMO ii. O Ato Patriótico O Ato Patriótico, submetido ao Senado dos Estados Unidos em 24 de outubro de 2001, objetiva, como esclarece a sua ementa, “deter e punir atos terroristas nos Estados Unidos e em todo o mundo, expandir mecanismos investigativos para o cumprimento da lei, entre outros propósitos”.27 Para tanto, estabelece uma série de medidas excepcionais, que, provavelmente não seriam admitidas em outras circunstâncias, por contrariarem o espírito democrático de que tanto se orgulha a sociedade norte-americana. Sem 26 Ibidem. 27 H. R. 3162. Disponível em: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgi-bin/getdoc.cgi? dbname=107_cong_bills&docid=f:h3162enr.txt.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010 (tradução livre). pretender realizar estudo pormenorizado das referidas medidas, os títulos do Ato Patriótico são esclarecedores quanto aos seus contornos: título I – expandindo a segurança doméstica contra o terrorismo; título II – procedimentos de vigilância ampliada; título V – removendo obstáculos à investigação do terrorismo; título VIII – fortalecendo as leis penais contra o terrorismo; título IX – inteligência melhorada. Igualmente reveladores são os títulos de alguns dispositivos elencados pelo diploma em tela, dos quais destacam-se: seção 105 – expansão da Iniciativa da Força Tarefa Nacional contra Crimes Eletrônicos; seção 201 – autoridade para interceptar comunicações telegráficas, orais e eletrônicas relativas ao terrorismo; seção 202 – autoridade para interceptar comunicações telegráficas, orais e eletrônicas relativas a fraude informática e ofensas abusivas; seção 209 – apreensão de mensagens de voz conforme mandado; seção 217 – interceptação de comunicações de transgressores de informática. Tais determinações foram recentemente acompanhadas da exigência de que os servidores de internet forneçam todos os registros de IP e que as bibliotecas disponibilizem o histórico das obras consultadas por seus usuários. Destarte, sob a justificativa de perseguir, de forma mais eficiente, a consecução de seus objetivos e, notadamente, do combate ao terrorismo, o Ato Patriótico elimina, como obstáculos indesejáveis, direitos e garantias fundamentais de ordem constitucional, como a intimidade, a privacidade e a liberdade de expressão. Esclareça-se que não se está aqui a sustentar que tais direitos devem ser compreendidos em termos absolutos. Ao contrário, admitem exceções, quando sopesados com outros direitos e princípios fundamentais, no caso concreto. O que suscita estranhamento e preocupação no Ato Patriótico é o fato de que, apropriando-se de discurso embasado na segurança nacional e na defesa do interesse público e bem- estar coletivo, justifica genérica e abstratamente restrições ilegítimas a direitos de todos os cidadãos norte-americanos, mesmo daqueles que nunca estiveram envolvidos em práticas terroristas. Além de maléfica em si mesma, a flexibilização em abstrato de direitos e garantias fundamentais se encontra na origem de problemas mais amplos e graves. Isso porque pode ser utilizada para legitimar violações a outros direitos, contrariamente ao que determina o princípio da proibição do retrocesso, para o qual os direitos historicamente conquistados se incorporam automaticamente ao patrimônio jurídico de seus titulares, não podendo ser alvo de quaisquer medidas tendentes a anulá-los, revogá- los ou aniquilá-los. A título de ilustração, a quebra de sigilo de dados na Internet, efetuada para investigar e reprimir atos terroristas, pode passar a ser aceita em outros contextos, e antes que se perceba a proteção à intimidade e à privacidade é definitivamente banida do cyber espaço. Da mesma maneira, o acesso das autoridades competentes a livros locados em bibliotecas públicas, inicialmente um elemento da política anti-terrorismo, pode ser logo generalizado. Rapidamente, até mesmo os livros didáticos utilizados por crianças para pesquisas escolares, e as obras literárias pegas por senhoras aposentadas para entreter suas horas vagas, poderão ser registrados nas bases de dados do governo. A partir daí, já não é tão difícil resignar-se a interceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário, instalação de câmaras de vigilância em espaços públicos – enfim, à recriação do programa Big Brother no âmbito da sociedade. Ressalte-se que estes novos mecanismos de controle podemser explorados pelos órgãos que compõem o aparato punitivo estatal para obterem provas de condutas criminosas e enrobustecerem a acusação e as penas aplicadas. Trata-se de releitura de todo o sistema processual penal, desenvolvido em torno da pessoa do acusado e assentado em princípios como a não auto-incriminação e a vedação a utilização de provas produzidas por meios condenados pela moral, a ordem pública, os bons costumes e as normas jurídicas. Aliás, a proibição de provas ilícitas já tem sido flexibilizada nos Estados Unidos e na Alemanha. A Suprema Corte dos EUA – defensora da doutrina dos “frutos da árvore envenenada” (fruits of the poisonous tree), que veda as provas ilícitas por derivação – passou a admitir as provas que, apesar de ilícitas, poderiam ser obtidas no curso das investigações regulares. Já a Corte Constitucional da Alemanha adota a teoria da proporcionalidade, segundo a qual as provas ilícitas podem ser aceitas, desde que haja interesse público a esse respeito. O pior é que os cidadãos muitas vezes não se encontram em condições de se oporem a este movimento. Sensibilizados pelo discurso oficial, atemorizados com o terrorismo e outras ameaças, aceitam e apóiam todas as iniciativas aptas a fazer frente a elas. O que lhes importa é que os “bandidos” sejam detidos e que as suas vidas e de suas famílias sejam resguardadas, ainda que, para isso, a dignidade da pessoa humana tenha que ser desrespeitada. Para concluir, pode-se questionar a compatibilidade entre o Ato Patriótico e o devido processo legal. Este, em sua dimensão material ou substantiva, orienta a produção normativa, a fim de assegurar a observância de direitos fundamentais, como o trinômio vida-liberdade-propriedade, privacidade, intimidade, personalidade e família.28 Como se propõe a sacrificar estes direitos e garantias, em nome de um suposto interesse maior de segurança nacional, o Ato Patriótico contraria o devido processo legal. Deve-se atentar para que a lógica do Ato Patriótico não se reproduza no Brasil, onde já se observa maior rigor na repreensão ao terrorismo. A título de exemplo, observe-se que o artigo 5º, inciso XLIII da CF o define como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, assim como o faz o artigo 2º da Lei 8.072/90. O artigo 83, inciso V, do Código Penal, por sua vez, impõe requisitos mais severos para a concessão do livramento condicional àquele que o haja perpetrado. Já a Lei Complementar 105/2001, em seu artigo 1º, § 4º, admite expressamente a quebra de sigilo bancário no tocante aos crimes de terrorismo. Todavia, antes que sequer se cogite de aplicar estes artigos e de punir o terrorismo como crime, no Brasil, é necessário tipificá-lo, conforme todos os requisitos do princípio da legalidade – v.g. clareza e precisão. De fato, os diplomas nacionais e tratados internacionais ratificados pelo país que tratam do assunto são insuficientes para que se possa falar em tipo de terrorismo em nosso ordenamento jurídico. I.2 A Flexibilização da Proibição da Tortura e de Outras Modalidades de Maus-Tratos Antes de adentrar o mérito da questão, convém distinguir entre as diversas espécies que compõem o gênero maus-tratos, ou seja: tortura, tratamento desumano (também denominado cruel) e tratamento degradante. De acordo com a jurisprudência das Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, não se pode definir a priori quais atos pertenceriam a cada uma destas categorias. Tal somente poderia ser feito casuisticamente, a partir de uma análise das circunstâncias específicas de cada caso concreto, com destaque a: “duração do tratamento, os seus efeitos físicos ou mentais e, em alguns casos, o sexo, idade e estado de saúde da vítima”.29 A conduta vexatória seria, então, classificada conforme a intensidade do sofrimento infligido e o fim almejado.30 A tortura seria a forma mais grave de maus-tratos, praticado com o intuito, 28 STONE, Geoffrey R.; SEIDMAN, Louis M.; SUNSTEIN, Cass R.; TUSHNET, Mark V. Constitutional Law, 4th ed. New York: Aspen, 2001, pp. 710, 810 29 Corte Européia de Direitos Humanos, Case of Ireland v. the United Kingdom., [1978] ECHR 1, 1978, para.162 (tradução livre). 30 Corte Européia de Direitos Humanos, Aksoy v. Turkey., [1996] ECHR 68, 1996, paras.63-64; Corte Européia de Direitos Humanos, Case of Aydin v. Turkey., [1997] ECHR 75, para.82; Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos, 22 out. 2002. OEA/Ser.L/V/II.116 Doc. 5 rev. 1 corr., para.158; Caso Luis Lizardo Cabrera. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Caso 10.832, 1997, para. 80; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso inter alia, de obter informação ou confissão da vítima ou de terceiro, castigar, intimidar, coagir ou discriminar. Já o tratamento degradante, considerado o menos grave entre as três modalidades de maus-tratos, poderia ser definido como aquele que humilha o indivíduo “de maneira grave diante de terceiros ou o leva a atuar contra a sua vontade ou consciência”.31 Finalmente, o tratamento desumano, de nível intermediário, é “aquele que deliberadamente causa sofrimento físico e particularmente grave, que, dado a situação particular, é injustificado”.32 Observa-se, contudo, no Direito Internacional, tendência a expandir o conceito de tortura, de modo que este abarque atos antes definidos como tratamento desumano ou degradante. Nesse sentido, de acordo com a Corte Européia de Direitos Humanos: levando em consideração que a Convenção [a Convenção Européia de Direitos Humanos] é ‘um instrumento vivo que deve ser interpretado à luz das condições hodiernas’ (...), a Corte considera que certos atos que eram classificados no passado como ‘tratamento desumano ou degradante’ em oposição à tortura poderiam ser classificados de forma diferente no futuro. Ela adere à visão de que os altos e crescentes padrões requeridos na área de proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, de acordo e inevitavelmente, requerem maior firmeza na determinação da violação de valores fundamentais às sociedades democráticas.33 Na contramão do movimento internacional, o governo norte-americano defende uma definição restritíssima de tortura, que compreenderia apenas as condutas mais extremas e egrégias, responsáveis por dor física equiparável à falha de órgãos e funções corporais e à morte. É o que se depreende do Memorandum enviado pelo Advogado- Geral Adjunto, Jay Bybee ao Conselheiro da Casa Branca Alberto R. Gonzales34: para um ato constituir tortura (...) ele deve infligir dor que é difícil de suportar. Dor física correspondente à tortura deve ser equivalente em intensidade à dor acompanhando sérias lesões físicas, como falha dos órgãos, prejuízos a funções corporais ou até mesmo a morte. Para sofrimento ou dor puramente mental corresponder à tortura (...), deve resultar em significativo Loayza Tamayo. Serie C No. 33, 2000, para.57; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Ximenes Lopes v. Brasil. Serie C No. 149, 2006, para.127. 31 Greek Case. Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos, No. 12, 1969, p.186 (tradução livre). 32 Idem (tradução livre). 33 Corte Européia de Direitos Humanos,Case of Selmouni v. France. [1999] ECHR 66, 1999, para.101 (tradução livre). 34 Ressalte-se que, devido à repercussão negativa que ocasionou junto ao público, o Memorandum de Jay Bybee foi substituído por Memorandum formulado pelo então Advogado-Geral Adjunto Daniel Levin ao Vice Advogado-Geral James B. Comey. Porém, apesar de criticar a concepção restritiva de tortura de seu antecessor, Levin não se afastou damesma. Com efeito, ilustra, como práticas passíveis de serem consideradas tortura “espancamentos severos na genitália, cabeça e outras partes do corpo, com canos de mental, nós de latão, bastões, tacos de baseball e vários outros itens; remoção de dentes com alicates; chutes no rosto e costelas; fratura de ossos e costelas e deslocamento de dedos” (Office of the Assitant Attorney General. Memorandum for James B. Comey Deputy Attorney General: Legal Standards Applicable under 18 U.S.C 2340-2340A, 2004, p. 10 (tradução livre). dano psicológico de longa duração, e.g. durando por meses ou até mesmo anos (grifos nossos)”.35 A adoção, por Bybee, do aludido marco teórico não se deu de forma isolada. Ao contrário, foi acompanhada por manifestações de outras autoridades. A título de exemplo, o então Vice Advogado-Geral Adjunto, Mark Richard – em discurso perante o Senado por ocasião da deliberação sobre a adoção da Convenção da ONU contra a Tortura – esclareceu que “a tortura é compreendida como sendo aquela crueldade bárbara que se encontra no topo da pirâmide de condutas vexatórias envolvendo os direitos humanos”. Similarmente, o Comitê de Relações Exteriores do Senado sustentou que “para um ato ser tortura, deve ser uma forma extrema de tratamento cruel e desumano, causando dor severa e intencionada a causar dor e sofrimento severos”.36 A veiculação de uma definição restritiva de tortura associa-se ao argumento de que – ao contrário do que determinam os tratados,37 a doutrina38 e a jurisprudência internacionais39 - o tratamento desumano ou degradante não caracterizaria violação do ordenamento jurídico norte-americano. Com efeito, a lei que internaliza a Convenção da ONU contra a Tortura se limita a criminalizar a tortura, não estendendo qualquer punição ao tratamento desumano ou degradante. Estas duas espécies de maus-tratos abarcariam somente “atos que não devem ser cometidos e os quais os Estados devem se esforçar para prevenir, mas que os Estados não precisam criminalizar, deixando-os sem o estigma das penalidades criminais”.40 Ainda que assim não fosse, argumentava-se também que, por força de reserva feita pelo Senado à Convenção da ONU contra a Tortura, não haveria, sob o artigo 16, qualquer proibição a respeito do uso de tratamento cruel, desumano ou degradante contra estrangeiros além-mar (inclusive na Baía de Guantánamo que, para esses efeitos, não era considerada como parte do território norte-americano).41 35 Office of the Assistant Attorney-General. Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel for the President: Standards of Conduct for Interrogation under 18 U.S.C. 2340-2340A, 2002, p.1. 36 Memorandum Daniel Levin, op.cit., p. 7 (tradução livre). 37 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Nova York, 16 Dez. 1966, em vigor 23 Mar. 1976. 999 U.N.T.S. 171, art.7; Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Convenção Européia sobre Direitos Humanos). Roma, 4 nov. 1950, art.3; Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José da Costa Rica, 22 nov. 1969, em vigor 18 jul. 1978, UNTS 17955, art.5(2): 38 QUIROGA, Cecília Medina. La Convención Americana: Vida, Integridad Personal, Libertad Personal, Debido Proceso y Recurso Judicial. San José: Centro de Derechos Humanos, Facultad de Derecho, Universidad de Chile, 2005, p. 153. 39 A jurisprudência entende mesmo que a proibição de todas as formas de maus-tratos atingiu o status de norma imperativa de Direito Internacional (jus cogens): C.f. Ximenes Lopes, op.cit., para. 126; Caso Cantoral Benavides. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Serie C No. 69, 2000, para. 95. 40 Memorandum Jay Bibee, op.cit., p. 15 41 Responses to Senator Richard J. Durbin’s Written Questions for Timothy Flanigan, Nominee to be Deputy Attorney General. Disponível em http://balkin.blogspot.com/flanigan.durbin.pdf, acesso em: 26 de abril de 2010, p.1. Apoiando simultaneamente uma concepção restritiva de tortura e a não criminalização de outras condutas vexatórias, o governo norte-americano pretendia excluir o maior número possível de situações do espectro de condutas legalmente proibidas e, portanto, viabilizar práticas que do contrário seriam condenadas. Nesse sentido, à época em que era Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld elaborou relatório sobre as técnicas de interrogatório oficialmente autorizadas para uso contra os “combatentes ilegais” (unlawful combatants) detidos em Guantánamo. Dentre elas, incluem-se: o aumento moderado ou significativo do medo do inquirido; a sua humilhação; a manipulação de seu regime alimentar e de sono, apta a ocasionar transtornos biológicos e fisiológicos; o seu isolamento de outros detentos.42 Ademais, até mesmo os atos passíveis de serem definidos como tortura não seriam peremptoriamente vedados: eles poderiam ser realizados se visassem a fim mais nobre do que a mera integridade física da vítima. Trata-se de revisita ao velho aforismo maquiavélico de que os “fins justificam os meios”. Particularmente ilustrativo dessa perspectiva é o paradigmático caso da ticking bomb. Imagine-se a seguinte situação: o FBI prendeu suspeito de terrorismo em Nova York, que lhes informa ter instalado bombas em pontos estratégicos da cidade. Ele já as tinha ativado e em algumas horas, toda a cidade seria destruída e milhares de pessoas morreriam. Apesar de saber como desativá-las, ele se recusa a contar a seus captores. Poderiam eles torturá-lo, a fim de extrair a informação vital que impediria o desastre? Nesta hipótese excepcional, na qual o problema é colocado em termos simples, como a escolha entre a integridade corporal de um indivíduo e a preservação da vida de milhares de pessoas, não seria difícil angariar apoio generalizado à utilização da tortura. Porém, a realidade fática nunca se apresenta com tamanha obviedade. A maioria das situações envolve fatores e variáveis que não são contempladas no paradigma da ticking bomb: o prisioneiro pode nada saber sobre as bombas ou como desativá-las; as próprias bombas podem ser um mero rumor; a confissão extraída pode ser falsa ou não ser obtida a tempo de salvar os indivíduos ameaçados. Além disso, é mais provável que os valores em confronto não sejam tão díspares quanto àqueles apresentados hipoteticamente, e, então, torna-se ainda mais complicado determinar quem teria a autoridade para decidir que a integridade física de alguém é menos digna de proteção do que outro direito. 42 Department of Defense of the United States of America – the Secretary of Defense. Memorandum for the Commander, US Southern Command. Subject: Counter-Resistance Techniques in the War on Terrorism. April 16 2003. Disponível em http://www.humanrightsfirst.com/us_law/etn/gonzales/memos_dir/mem_20030416_Rum_IntTec.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010. http://www.humanrightsfirst.com/us_law/etn/gonzales/memos_dir/mem_20030416_Rum_IntTec.pdf O dilema da ticking bomb é manipulado com o objetivo de priorizar a perspectiva do torturador em detrimento daquela do torturado e de apresentar a tortura como ato heróico e não como uma conduta vexatória e degradante. Novamente coloca- se o risco, já discutido na sessão anterior, de que uma pequena abertura na norma, permitida para um caso específico e excepcional, transforme-se em um rombo, representado pela flexibilização generalizada da norma a uma infinidade de outras circunstâncias. Atenta a isso, a Suprema Corte de Israel, no caso Public Committee Against Torture v. Israel enfatizou que o emprego da tortura em estado de necessidade não implica em autorização indiscriminada para o seu uso no futuro: a defesa de ‘necessidade” não constitui uma fonte de autoridadeautorizando os investigadores do GSS [General Security Service – Serviço Geral de Segurança, em sua sigla em inglês] a fazerem uso de meios físicos durante o curso das interrogações (...). A defesa de ‘necessidade’ tem o efeito de permitir aquele que age sob circunstâncias de ‘necessidade’ a escapar de condenação criminal (...). Ela não autoriza o uso de meios físicos para o propósito de permitir que investigadores executem os seus deveres em circunstâncias de necessidade. O próprio fato de que um ato em particular não constitui um ato criminoso (devido à defesa da ‘necessidade’) não autoriza, em si, a administração a conduzir este fato e, em fazendo isso, infringir os direitos humanos. A Regra do Direito requer que uma infração de um direito humano seja prescrita por um estatuto, autorizando a administração neste sentido. A suspensão da responsabilidade criminal não implica autorização para infringir um direito humano.43 Deve-se estar atento, portanto, para que o terrorismo não seja utilizado para legitimar a violação de uma das principais garantias individuais contra o poder de investigação e punição do Estado. Foi à custa de muita luta e esforço que a tortura foi banida do processo penal e “pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, este importante consenso da comunidade internacional parece ter sido posto sob questionamento”.44 Aderir a este entendimento é abrir as portas para um dos maiores retrocessos da história da humanidade e do garantismo processual penal. I.3. O Ato das Comissões Militares e a Prática de Blacklisting no Conselho de Segurança 43 ISRAEL. Corte Suprema de Israel. Public Committee Against Torture in Israel v. The State of Israel and The General Security Service. HCJ 5100/94, 1999, p. 34. 44 Statement of the Special Rapporteur on Torture, Manfred Nowak to the 61st Session of the UN Commission on Human Rights apud FOOT, Rosemary. Torture: The Struggle over a Peremptory Norm in a Counter-Terrorist Era. Thousand Oaks, London, 2006. Analisadas as ofensas aos direitos à liberdade de expressão, à intimidade, à privacidade e à integridade física, deve-se examinar como as estratégias de repressão ao terrorismo violam os direitos e garantias de índole propriamente processual. Para tanto, cumpre chamar atenção para os dispositivos mais relevantes do Ato das Comissões Militares de 2006 (Military Commissions Act). Primeiramente, por serem estabelecidas ex post facto por ato do executivo,45 para julgarem condutas específicas (violação das leis da guerra e outras ofensas passíveis de serem julgadas por comissões militares46) perpetradas por um grupo determinado de pessoas (estrangeiros definidos como combatentes inimigos envolvidos em hostilidades contra os Estados Unidos47), em 11 de setembro de 2001, ou depois desta data,48 concluí-se que constituem tribunais de exceção e, por isso, violam o princípio do juiz natural. Este é corolário do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal e determina que é competente o juiz constitucionalmente pré-constituído para a causa, por critérios abstratos previstos em lei. Ele também exige que o juiz seja imparcial e que não tenha qualquer interesse na resolução da lide. Em segundo lugar, nos processos perante as comissões militares, observa-se desrespeito à proibição da apresentação de provas obtidas ilicitamente, sendo admitidas, em algumas circunstâncias, até mesmo provas produzidas por meio da coerção. Nesse sentido, o § 948r determina que os depoimentos anteriores ao estabelecimento do Ato de 2005 sobre o Tratamento de Detentos, em relação aos quais se questiona o nível de coerção utilizado, poderão ser admitidos se o juiz militar considerar que “a totalidade das circunstâncias torna o depoimento confiável e portador de valor probatório suficiente” e “se os interesses da justiça seriam melhor atendidos pela admissão do depoimento como evidência”. Quanto aos depoimentos de mesmas características que sejam posteriores ao aludido diploma normativo, eles serão aceitos se satisfeitos aqueles dois requisitos e se “os métodos de interrogatórios utilizados para obter o depoimento não constituem tratamento cruel, desumano ou degradante proibido pela seção 1003 do Ato de 2005 relativo ao Tratamento de Detentos”. Contrario sensu, a interpretação gramatical do dispositivo sugere que os depoimentos anteriores a este ato seriam acolhidos mesmo se houvessem decorrido da prática de maus-tratos. 45 Military Commissions Act of 2006, Public Law 109–366—OCT. 17, 2006. Disponível em: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgi-bin/getdoc.cgi? dbname=109_cong_public_laws&docid=f:publ366.109.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010, § 948h. 46 Ibidem, § 948b (a). 47 Idem. 48 Ibidem, § 948d (a). Há, também, a autorização de que, ao elaborar as regras sobre evidência aplicáveis as comissões militares, o Secretário de Defesa preveja o seguinte: “a evidência será admissível se o juiz militar determinar que ela teria valor probatório a uma pessoa razoável”; “a evidência não será excluída do julgamento pela comissão militar sob o fundamento de que a evidência não foi apreendida conforme mandado de busca ou outra autorização”; “um depoimento do acusado que é de outra forma admissível não será excluída do julgamento por comissão militar sob o fundamento de suposta coerção ou auto-incriminação compulsória desde que a evidência cumpra os requisitos da seção 948r”; “a evidência será admitida como autêntica, desde que – (i) o juiz militar da comissão militar determine que há base suficiente para considerar que a evidência é o que considera ser; e o juiz militar instruir os membros a considerarem quaisquer questões de autenticação ou identificação da evidência na determinação do peso, se algum, a ser dado a ela”.49 Dos dispositivos supracitados, depreende-se que, nas comissões militares, é acolhida evidência que seria rejeitada como ilícita no trâmite processual regular, além de haver clara violação do princípio da não auto-incriminação, para o qual ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Outra característica digna de ser mencionada é a confusão entre os papéis de acusador e julgador, que afeta a imparcialidade do mesmo e remete ao sistema inquisitorial. Com efeito, ao juiz são conferidos poderes significativos no tocante à determinação das provas que serão ou não apreciadas. Os artigos do Ato das Comissões Militares também impõem inúmeras restrições aos direitos à ampla defesa e ao contraditório. Particularmente importantes a este respeito são as seguintes regras: (i) o acusado deve ser representado por um defensor militar; se optar por um defensor civil, este deve satisfazer todos os requisitos enumerados no § 949c (b) (3), inclusive ter sido considerado apto ao acesso a informação confidencial classificada no nível Secreto ou mais elevado; (ii) o juiz é autorizado a excluir o acusado de determinados procedimentos, nos termos do § 949d (3) (e), se considerar que tal é necessário para garantir a segurança física de indivíduos ou prevenir que o acusado perturbe o trâmite processual; (iii) para proteger informações definidas como confidenciais pelo chefe de departamento executivo ou militar ou agência governamental, o juiz pode permitir: a supressão ou substituição de tais informações de documentos submetidos ao acusado ou apresentados como evidência 49 Ibidem, § 949a (b) (A)-(D). perante a comissão militar; a substituição de um relato de fatos relevantes que a informação confidencial se destinaria a provar; (iv) ao juiz militar é dado
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