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ASCENSÃO E QUEDA DA LAQUEADURA TUBÁRIA NO BRASIL? UMA AVALIAÇÃO DAS PESQUISAS DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DE 1986, 1996 E 2006 André Junqueira Caetano RESUMO: Em 1986, 28,2% das mulheres brasileiras unidas, entre 15 e 44 anos de idade estavam esterilizadas. Em 1996, esse percentual era de 40,1%. Em 2006 ele retorna ao nível de 1996, 29%. Este artigo analisa a influência nas informações de idade, período e coorte sobre a probabilidade de esterilização durante o período de ascensão e queda do emprego desse método contraceptivo, isto é, dos anos 1980 até 2006. Os resultados deste trabalho indicam que as chances de laqueadura tubária para as mulheres de 15 a 44, unidas e com pelo menos dois filhos nascidos vivos são significativamente superiores em 2006. De fato, a maioria opta e realiza a laqueadura após o segundo filho. Boa parte das mulheres entrevistadas em 2006 ainda não entraram nas idades de maior probabilidade de ter o segundo filho ou já passaram por esses eventos antes das mudanças introduzidas pela Lei 9263, do planejamento familiar, de 1997. Por esse motivo, é arriscado, no mínimo, pensar a prevalência de laqueadura tubária, a partir dos resultados da PNDS 2006, como um indicador de mudança estrutural. Palavras-chave: Planejamento familiar; Contracepção; Laqueadura tubária; Brasil Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais-PUC Minas e Cedeplar-Universidade Federal de Minas Gerais 2 ASCENSÃO E QUEDA DA LAQUEADURA TUBÁRIA NO BRASIL? UMA AVALIAÇÃO DAS PESQUISAS DE DEMOGRAFIA E SAÚDE DE 1986, 1996 E 2006 André Junqueira Caetano INTRODUÇÃO Neste artigo examina-se a chance laqueadura tubária no Brasil e os determinantes associados a ela. A análise utiliza as informações das mulheres de 15 a 44 anos entrevistadas pelas Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde (PNDS) de 1986, 1996 e 2006. As informações referem-se, portanto, a mulheres nascidas entre 1942 e 1991, ou seja, que transitaram para o período reprodutivo convencionado entre 1957 e 2006. Em 1996 o percentual de mulheres entre 15 e 49 anos, unidas, que estavam laqueadas era de 40.1%. Em 2006 esse percentual foi de 29.1%. O objetivo do trabalho é avaliar em que medida, na medida do possível, a queda na proporção de mulheres unidas cirurgicamente esterilizadas entre 1996 e 2006 corresponde a uma mudança no padrão de uso desse método contraceptivo. Tal mudança poderia advir de uma série de fatores, mas duas hipóteses em especial merecem atenção. A primeira está relacionada com a possibilidade de que a Lei 9263, aprovada em 1996 e sancionada em agosto 1997, assim como as portarias posteriores que a regularam, tenha criado obstáculos adicionais ao acesso, no Sistema Único de Saúde (SUS), a esse procedimento. A segunda hipótese refere-se a uma mudança, por uma série de fatores e circunstâncias, do método de preferência entre a população usuária de contracepção, mulheres e homens. Com as informações das mulheres de 15-44, unidas, de parturição de ordem dois ou superior 1 , das três PNDS empilhadas e compatibilizadas, são ajustados três modelos logísticos binomiais para estimar a chance de esterilização feminina controlando-se pelo ano da pesquisa, idade e coorte de nascimento. Para testar a significância da diferença entre a prevalência da laqueadura tubária de 1996 e 2006, o terceiro modelo incorpora variáveis de interação entre ano da entrevista e situação de domicílio. Um modelo adicional, com as mesmas variáveis do terceiro modelo, é ajustado utilizando-se apenas as mulheres que tiveram filho há até cinco anos do momento da pesquisa. Os resultados indicam que as chances de laqueadura tubária para as mulheres com essas características são significativamente superiores em 2006. De fato, a vasta maioria opta e realiza a laqueadura após o segundo filho. Por esse motivo, é arriscado, no mínimo, pensar a prevalência de laqueadura tubária, a partir dos resultados da PNDS 2006, como um indicador de uma mudança estrutural. PPGCS-PUC Minas e Cedeplar-UFMG 1 Dentre as mulheres laqueadas, 97,8% eram parturição dois ou superior. Dessas, 33,7% eram parturição dois e 34,4% eram parturição três. 3 1. LAQUEADURA TUBÁRIA NO BRASIL 1.1. O contexto histórico A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, marca na mudança de paradigma na abordagem da contracepção na medida em que o conhecimento e o acesso às alternativas contraceptivas e sua utilização segura significam o direito de decidir e a oportunidade de implementar, com a orientação e acompanhamento apropriados, decisões sobre se, quando e quantos filhos ter (UN MILLENNIUM PROJECT 2006). Nesse âmbito, comportamento e saúde reprodutiva se justapõem uma vez que o primeiro é delineado pela possibilidade e qualidade da segunda. A difusão da laqueadura tubária no Brasil foi abordada desse ponto de vista na medida em que a ausência de políticas que permitissem o acesso aos métodos contraceptivos, em geral, colocou a farmácia, isto é, o mercado, como principal fonte de oferta (FARIAS 1989). O efeito perverso apontado por Farias em seu artigo seminal diz respeito à falta de alternativas para as camadas de baixa renda, ou melhor, ao leque de alternativas pouco indicadas, seja à saúde, seja ao bolso – o aborto, a laqueadura, a farmácia, as gravidezes não desejadas. Grosso modo, até a CIPD de 1994, no Cairo, o controle populacional via contracepção moderna era visto, na perspectiva da narrativa clássica da transição demográfica, como uma possibilidade de rebaixamento das condições necessárias para o início do processo de declínio da fecundidade (CALDWELL e CALDWELL 1986). Em um Terceiro Mundo com taxas de crescimento populacional consideradas explosivas e diante de parcas chances de que os países desse mundo viessem, tão cedo, a passar pelas transformações sociais que deflagrariam a queda da fecundidade, como havia sido observado nas sociedades industriais (CALDWELL e CALDWELL 1986), o planejamento familiar tinha conotação bastante diversa do sentido de direito, ainda que pudesse vir de encontro a uma potencial demanda de mulheres e casais. Nesse aspecto, é importante compreender os primórdios do que viria a ser, principalmente a partir dos anos 1950, as linhas mestras em termos de pesquisas e políticas. De acordo com Caldwell e Caldwell (1986), a missão de estudiosos da área populacional (Frank Notestein, Marshall Balfour, Roger Evans e Irene Taeuber), com o apoio financeiro da Fundação Rockefeller, a países da Ásia, em 1948, foi definidora das prioridades de investimento na área populacional em todo o mundo até o final da década de 1980. As conclusões dessa missão podem ser resumidas, segundo o casal Caldwell, nos seguintes pontos: I. A principal contribuição do Ocidente industrializado, e das Fundações, deveria ser o incentivo à pesquisa sobre transformações culturais, especialmente sobre as razões da demanda por filhos e os motivos para reduzir fecundidade. Estudar em vez de remediar, o que significava pesquisa demográfica dentro de cada contexto social em questão. II. Era necessário criar corpos nativos de acadêmicos e especialistas em estudos populacionais. III. Seria necessário um método anticoncepcional barato, simples, seguro e efetivo, o que não existia e não estava no horizonte; isso indicava a premência de se investir em pesquisa biomédica aplicada à contracepção. 4 Ao final dos anos 50, já havia se tornado um paradigma orientador de programas e políticas que o rápido crescimento populacional retardava o desenvolvimento econômico. Segundo Caldwell e Caldwell (1986), Richard Nelson, em 1956, Harvey Liebenstein, em 1957, Ansley Coale e Edgar Hoover, em 1958, abordame desenvolvem essa relação. Tal preocupação acaba resultando em uma série de iniciativas de fundações dos Estados Unidos e de alguns governos, direcionadas pelas recomendações da missão asiática de 1948. Em 1951, as associações de planejamento familiar de diversos países fundam a International Planned Parenthood Federation, em um encontro em Bombaim. Em 1952, John D. Rockefeller III cria o Population Council, com o objetivo de melhor entender os problemas relacionados com população (CALDWELL e CALDWELL 1986). Também em 1952, a Fundação Ford entra na área populacional e em 1954 passa a financiar o Population Council. O principal objetivo da Fundação Ford era desenvolver grandes programas de população, primordialmente no Terceiro Mundo. Seu propósito era participar no esforço para diminuir o crescimento da população mundial (CALDWELL e CALDWELL 1986). Essas motivações estiveram por trás dos grandes investimentos feitos em pesquisas do tipo Knowledge-Attitude-Practice (KAP) gap nos anos 1960, e, nos anos 1970, nos World Fertility Surveys (WFS). Os KAP-gap surveys acabaram por assumir a função de comprovar a existência de uma demanda frustrada por contracepção e de convencimento da necessidade de políticas de planejamento familiar nos países onde foram realizados (WARWICK 1983). Esse aspecto, na verdade, resultou em um viés na concepção, elaboração e implementação dessas pesquisas, agravado pelo falta de rigor científico e metodológico (WARWICK 1983). Os Demographic and Health Surveys (DHS), denominados Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde no Brasil, representam uma terceira onda desse tipo de pesquisa. Eles tiveram início em 1984, planejado para ser realizado de cinco em cinco anos com o intuito de coletar, analisar e disseminar o conhecimento sobre demografia e planejamento familiar iniciado pelo WFS, incluindo a nova metodologia de então que permitia estudar o determinantes próximos da fecundidade (FISHER e WAY 1988). 2 A primeira rodada da DHS no Brasil, denominada Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar (PNSMiPF), foi realizada em 1986. Em 1991 a pesquisa foi levada a cabo somente no Nordeste. Em 1996, ela volta a ter representatividade nacional. Por fim, em 2006 é realizada uma nova PNDS, da criança e da mulher, financiada pelo Ministério da Saúde e coordenada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) 3 . As análises feitas a partir das informações dessas pesquisas vão permitir o acompanhamento da evolução do mix contraceptivo nacional e o que se observa entre 1986 e 1996 é um aumento substancial da laqueadura tubária, que passa de 28% para 40% das mulheres entre 15 e 49 anos unidas 4 . A laqueadura tubária não era custeada pelo sistema público nem pelos planos privados de saúde, o mecanismo para cobrir os custos ou acobertar a intervenção era acoplá-la a uma cesariana ou registrar a realização de outro procedimento, tal como a colpoperineoplastia, pago pelo SUS (MERRICK e BERQUÓ 1983, CAETANO e POTTER 2004). De fato, a partir do exame dos dados dos surveys de 1986 e 1996, fica claro que as laqueaduras eram feitas principalmente no sistema público de saúde, gratuitamente ou pagas, acopladas a uma cesariana ou sem associação com o parto. A combinação dessas características variava conforme o nível de renda e peso do setor privado na assistência médica, ou seja, conforme a região. No Nordeste, por exemplo, a 2 http://www.measuredhs.com/aboutdhs/, acesso em 21 de março de 2009. 3 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/index.php, acesso em 22 de abril de 2009. 4 A rodada de 1986 entrevistou mulheres de 15 a 44 anos de idade. http://www.measuredhs.com/aboutdhs/ http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/index.php 5 proporção de laqueaduras de intervalo obtidas gratuitamente tinha um peso muito maior do que nas regiões Sul e Sudeste (CAETANO e POTTER 2004). Esse intenso aumento na prática da esterilização cirúrgica feminina acabou por dar grande peso a esse procedimento como tópico de análise e pautou, em boa medida, os estudos na área de fecundidade e comportamento reprodutivo a partir de 1996. Como a pesquisa de 1991 foi realizada apenas na região Nordeste, ficamos no escuro, em termos nacionais, de 1986 a 1996, e dez anos mais até que a PNDS 2006 fosse lançada e seus dados prontamente disponibilizados em 2008. De saída, esse capítulo estabelece o que já foi dito anteriormente, isto é, como outras instituições, como em outros países, a Fundação Ford no Brasil seguiu as recomendações da missão asiática de 1948. Investiu, com sucesso, na formação de um corpo acadêmico altamente especializado em demografia, culminando na formação da ABEP ao fim dos anos 1970. Investiu em pesquisa biomédica aplicada à reprodução humana, principalmente no grupo do Dr. Elsimar Coutinho, na Universidade Federal da Bahia, e em programas de planejamento familiar, principalmente na BEMFAM (Sociedade Civil para o Bem-estar da Família no Brasil). Menos badalado, mas não menos importante que essas iniciativas, segundo Souza, foi o investimento feito, durante a década de 1970, no Programa Reprodução, Nutrição e Saúde Materno-infantil (RENUMI), baseado em maternidades nas quais eram treinados e formados médicos, enfermeiros e pessoal técnico nas áreas de pré-natal, parto e puerpério, da UNICAMP, Universidade Federal do Ceará, Escola Paulista de Medicina, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e Fundação de Educação Superior, em Recife, Pernambuco. Além de serviços de saúde materno-infantil, esse programa oferecia planejamento familiar para mulheres de baixa renda. Souza (2002) esclarece que um dos objetivos centrais do RENUMI – inicialmente denominado Planejamento Familiar, Nutrição e Saúde Materno-infantil – foi testar o Índice de Perkin (PERKIN, 1968). Gordon Perkin, médico, foi assessor da Fundação Ford no Brasil entre 1973 e 1975. O Índice de Perkin procurava mensurar a “probabilidade de gravidez” (SOUZA 2002, p. 364) e, dependendo do escore obtido, recomendava-se iniciativas de aconselhamento e anticoncepção. Como o Índice de Perkin incorporava fatores socioeconômicos, a sua utilização, na perspectiva do paradigma do Cairo, segundo Souza, seria uma “grave violação dos direitos reprodutivos” (p. 364) na medida em que medicalizava a pobreza e classificava como incapazes de reproduzir as pobres com determinadas características reprodutivas e história médica. De fato, Souza afirma que a Fundação Ford utilizou esse programa como uma operação “cavalo de Tróia” (p. 365). O objetivo do índice não visava exatamente identificar risco de gravidez adicional, mas o risco de uma gravidez adicional resultar em morte ou afecção para a mãe ou para a criança. Mulheres que obtivessem um escore superior a quarto pontos deveriam ser “informed individually of the increased risk of a further pregnancy and encouraged to adopt a reliable method of family planning” (PERKIN 1968, p. 714). Corroborando a interpretação de Souza (2002), Perkin e Saunders (1979) afirmam que o foco na saúde materno-infantil a partir da perspectiva da gravidez de alto risco era parte de um conceito mais amplo de planejamento familiar cujo objetivo último era fazer avançar a aceitação e provisão de métodos contraceptivos modernos. É bastante provável, como assevera Souza (2002), que o RENUMI e as iniciativas associadas a ele tenham se configurado como sementes, do lado da oferta, da cultura da esterilização (BERQUÓ 1995) que veio a florescer posteriormente e que se refletiu no aumento da proporção de laqueadas, em relação a 1986, observado na PNDS 1996. Frente a uma procura crescente e em face da ausência de serviços que dessem 6 conta da demanda pelo controle da fecundidade, em face da medicalização intensa da sociedade e da “hospitalização/cirurgicalização” da prática médicae dentro de um sistema público de atendimento hospitalar manipulável, a grande disseminação da laqueadura é compreensível. 1.2. O período 1970-1996 A evolução do uso de métodos contraceptivos no Brasil esteve associada a substanciais transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas a partir de 1960. Nesse período o país deixou de ser majoritariamente rural para ter a maioria de sua população vivendo em áreas urbanas, mormente em cidades metropolitanas e médias, período em que sua economia rompeu definitivamente com formas de trabalho não- capitalistas e, logo, não-monetárias, ao extinguir o colonato (PAIVA 1984), em que o acesso à educação se expandiu rapidamente e a entrada da mulher no mercado de trabalho mudou de forma definitiva a composição por sexo do mesmo (RAMOS e SOARES 1994), em que as telecomunicações integraram o país (FARIA e POTTER, 1990) e em que a medicalização da sociedade brasileira fez com que o médico substituísse os poderes paternos, marital e religiosos – masculinos – vigentes (FARIA 1989). Segundo Faria, a medicalização se origina da iniciativa de reestruturação do sistema nacional de saúde nos anos 1960 e 1970 baseado na ênfase sobre a medicina curativa, em detrimento da medicina preventiva, na qual a rede privada de hospitais passa a ser a espinha dorsal do sistema público e de sua expansão. O aumento dessa cobertura vai expor parcelas crescentes da população à cultura médica, ou seja, coloca aspectos da vida privada sob a influência médica, legitimando a interferência em processos biológicos e avalizando a sua eficácia (VIERIA, 2003). O aumento da demanda por regulação da fecundidade via uso de métodos contraceptivos modernos configura-se, assim, como uma das mudanças dentro do quadro geral de transformação, no sentido modernizante, da sociedade brasileira. A demanda crescente por regulação da fecundidade se dará principalmente pelo aumento da utilização da laqueadura tubária a partir de 1980. Esse aumento foi devido, em larga medida, à disseminação da laqueadura tubária, principalmente nas áreas mais pobres do país e nos estratos de baixa renda (WONG et al. 1998). A pílula e a laqueadura tubária somavam 54,7% do total de mulheres unidas em idade reprodutiva em 1986 e 60,8% em 1996, indicando o aumento do uso e a tendência à concentração de métodos no período. Se em 1986 havia 1,1 mulher laqueada para cada mulher usando a pílula, em 1996 essa razão havia subido 1,9. Segundo Vieira (2003), essa concentração e o peso da laqueadura tubária refletem a medicalização do planejamento familiar, que é, em verdade, reflexo da medicalização da vida reprodutiva da mulher. A difusão da laqueadura tubária no Brasil, desse ponto de vista, ocorreu na ausência de políticas que permitissem o acesso aos métodos contraceptivos, em geral. Esse fato fez do mercado a principal fonte de oferta (FARIA 1989). O “efeito perverso”, cunhado por Faria, refere-se exatamente à falta de alternativas para as camadas de baixa renda, ou melhor, às alternativas nefandas restantes – a esterilização cirúrgica, a farmácia, o aborto inseguro, a gravidez não desejada. O aumento da prevalência da esterilização cirúrgica feminina intensificou a preocupação com as ações controlistas no Brasil, isto é, a suspeita de que clínicas de planejamento familiar financiadas por instituições internacionais ofereciam laqueaduras gratuitas ou a preços módicos sob indicação médica ou social (SOF 1994). Berquó (1993) afirma que o fato de que cerca de 150 clínicas e hospitais brasileiros serem, à 7 época, afiliados à Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar (ABEPF) ajudaria a solucionar o aparente enigma do crescente número de laqueaduras gratuitas entre mulheres de baixa renda. Havia também a suspeita de que esse fenômeno era o resultado de uma política de controle populacional, por meio da esterilização cirúrgica feminina em massa, direcionada especificamente para os pobres em geral e para os negros, em particular (GELEDÉS 1991, RIO DE JANEIRO 1991). Diante das evidências existentes então, Congresso Nacional instalou, em 1992, uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o fenômeno da esterilização em massa de mulheres no Brasil. A comissão estabeleceu nove itens nos quais focalizou a investigação, dentre os quais sobressaíam motivações racistas, participação de interesses internacionais, a real disponibilidade de métodos contraceptivos para a população de baixa renda, o estágio de implementação do PAISM e o uso eleitoral de laqueaduras tubárias. O relatório final, publicado em 1993, concluiu que o PAISM estava muito longe de ser efetivo e serviços de planejamento familiar inexistiam ou eram inacessíveis para a maior parte da população (BRASIL 1993). De acordo com o relatório final da CPI, a ausência de políticas públicas voltadas para a oferta de meios de regulação da fecundidade e para a saúde reprodutiva, assim como a falta de fiscalização das clínicas de planejamento familiar, permitia que atores privados pudessem operar livremente no país. Esses serviços, no entanto, estavam longe de atender a demanda por contracepção. Para remediar a situação, a CPI recomendou, entre outras medidas, a efetiva implementação do PAISM e a realização de auditoria no SUS de forma a controlar a prática da laqueadura tubária e o seu uso eleitoral (BRASIL 1993). A despeito da preocupação de que forças coercitivas estavam impelindo mulheres pobres a se esterilizarem cirurgicamente, o crescente uso da laqueadura tubária tinha raízes firmes na prática médica e na exploração venal, por parte de médicos, da alta demanda por contracepção em um contexto de ausência de serviços de planejamento familiar que atendessem as mulheres de baixa renda. Nesse aspecto, em consonância com Vieira (2003), a disseminação da laqueadura reflete a “hospitalização” da saúde, ou seja, é uma manifestação específica, no campo reprodutivo, do processo de medicalização (BARROSO 1984). Barroso adiantava, já em 1984, a possibilidade de que o grosso das laqueaduras ocorridas a partir de 1970 tivesse sido ativamente solicitado, sem nenhuma forma direta de coerção. Ela advertia, entretanto, que determinantes específicos tais como a estrutura do atendimento hospitalar e a ausência de políticas públicas que fizessem face à crescente demanda por contracepção moderna levava as mulheres a elegerem a laqueadura tubária como método de preferência. De fato, dado que a laqueadura tubária não era custeada pelo sistema público nem pelos planos privados de saúde, o mecanismo para cobrir os custos ou acobertar a intervenção cirúrgica era acoplá-la a uma cesariana ou registrar a realização de outro procedimento, a colpoperineoplastia, por exemplo, pago pelo SUS (MERRICK e BERQUÓ 1983, CAETANO e POTTER 2004). De fato, a partir do exame dos dados das PNDS 1986 e da PNDS 1996, é evidente que as laqueaduras eram realizadas principalmente no sistema público de saúde, pagas ou gratuitamente, ligadas a uma cesariana, ou a outro tipo de procedimento cirúrgico (CAETANO e POTTER 2004). A realização da PNDS 1996 e outros estudos realizados a partir de então permitiram que o entendimento da contracepção e da prática da laqueadura tubária no Brasil fosse ampliado. Análises que enfatizavam determinantes específicos deram lugar a perspectivas mais complexas nas quais se conectavam as deficiências do sistema de saúde, o comportamento dos médicos e profissionais de saúde, a posição recalcitrante por parte dos parceiros e maridos em relação à contracepção, desinformação sobre o 8 próprio corpo e sobre a atuação dos métodos contraceptivos, falta de acesso ao leque de métodos reversíveis e pobreza (BERQUÓ 1995, DINIZ et al 1998). Permeando todos esses aspectos estava o reconhecimento de que havia uma grande demanda e escassas alternativas contraceptivas. A esse respeito,Berquó (1993) argumenta que a cumplicidade entre mulheres, médicos e outros profissionais da saúde em um cenário de opções contraceptivas escassas engendraram uma „cultura da esterilização‟, ou seja, que a laqueadura tubária tinha se constituído em um ponto final da vida reprodutiva das mulheres tão natural quanto a menopausa. É esse conjunto de elementos e acontecimentos que propiciaram a criação, em 1996, da lei 9.263. 1.3. O período pós 1996 Após a sanção da Lei 9.263 e da edição das portarias que a regulamentaram, uma série de pesquisas e estudos foi realizada com o objetivo de investigar e avaliar o acesso à esterilização cirúrgica, com ênfase no papel dos médicos, na perspectiva de gestores e na avaliação de usuários do sistema público de saúde que requereram a laqueadura tubária ou a vasectomia. Uma pesquisa pioneira foi realizada em 1999 para avaliar os efeitos da Lei 9.263 na Região Metropolitana de São Paulo. Entre julho e dezembro daquele ano foram entrevistados os responsáveis por 23 serviços de saúde que ofereciam laqueadura tubária e vasectomia. A principal conclusão desse estudo foi de que a lei não tinha tido efeito significativo na prática de esterilização cirúrgica feminina, tendo produzido, em verdade, um resultado não esperado (LUIZ e CITELI 1999). Segundo os entrevistados, a demanda por laqueadura tubária havia crescido após a lei e a provisão dessa demanda competia com os casos em que a esterilização era indicação médica. Segundo os autores, os entrevistados reportaram que os serviços não tinham capacidade de suprir a demanda total, situação que piorou com a proibição da esterilização pós-parto em fevereiro de 1999 (LUIZ e CITELI op. cit.). Além disso, o estudo sugere que os médicos eram muito pouco aderentes aos critérios definidos pela lei, isto é, criavam seus próprios critérios caso a caso. As autoras concluem ser necessário levar à população o conhecimento de seus direitos e aprimorar os mecanismos de fiscalização de médicos e hospitais de forma a garantir o cumprimento da lei. Berquó e Cavenaghi 2003 analisaram a implementação da nova legislação de planejamento familiar, especialmente da esterilização cirúrgica voluntária, com vistas a verificar se os diretos reprodutivos de mulheres e homens estavam sendo atendidos. As autoras realizaram uma pesquisa longitudinal com uma amostra de 159 indivíduos em Palmas, Recife, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba e Cuiabá. Foram realizadas, também, entrevistas com profissionais e gestores de saúde. Após seis meses de acompanhamento dos requerentes, 25,8% das mulheres e 31% dos homens obtiveram o procedimento. Boa parcela dos indivíduos que não obteve a cirurgia mencionou a burocracia e o desrespeito à lei por parte dos serviços como razões para o insucesso. Por outro lado, 73% das mulheres e 70,4% dos que requisitaram a esterilização responderam ter passado pelo processo de aconselhamento. Segundo as autoras, os resultados indicavam que a prática usual da esterilização pouco havia mudado após as portarias que regulam a Lei 9.263. Outro achado importante de Berquó e Cavenaghi (op. cit.) foi o grau elevado de desconhecimento, por parte dos gestores públicos e diretores de serviços de saúde, do corpo legal e normativo que regula a estruturação dos serviços de planejamento familiar e realização de esterilização cirúrgica, além da ausência de atuação efetiva dos conselhos estaduais e municipais de saúde nesse âmbito. É importante ressaltar, porém, 9 a nota final das autoras do estudo, que asseveram “[...] que a porta de entrada no sistema de saúde mostrou-se elemento importante na implementação das cirurgias. Os ambulatórios de hospitais, especialmente no caso das mulheres, reduzem as dificuldades burocráticas e agilizam o acesso às ligaduras tubárias” (p. S452). POTTER e colegas (2003) realizaram pesquisa longitudinal nas Regiões Metropolitanas de Porto Alegre, Belo Horizonte e Natal, e no município de São Paulo. Foram entrevistadas 1.612 mulheres grávidas com idade entre 18 e 40 anos. A amostra foi estratificada segundo a natureza do serviço, se público ou privado, na proporção de dois para um. As entrevistas foram realizadas no momento do recrutamento, um mês antes da data marcada para o parto e um mês após essa data. Mulheres que informaram, em uma das duas primeiras entrevistas, que não queriam mais filhos foram perguntadas sobre como preveniriam futuras gravidezes. Aquelas que relataram querer a esterilização foram perguntadas se planejavam obtê-la imediatamente após o parto ou mais tarde. Na entrevista após o parto, essas mulheres foram perguntadas se elas haviam sido laqueadas e, em caso negativo, se gostariam de obter a cirurgia futuramente. Foi encontrada uma proporção substancial de mulheres que desejavam a esterilização pós-parto entre aquelas que não queriam mais filhos. Entretanto, pacientes de hospitais públicos apresentaram uma chance significativamente maior de esterilização se comparadas às pacientes de hospitais privados. Os autores argumentam que a nova lei não deve ter reduzido as desigualdades de acesso à laqueadura tubária e, de forma não antecipada, pode estar incentivando a realização de cesarianas desnecessárias. Potter e colegas afirmam que permitir a laqueadura tubária após o parto vaginal removeria esse incentivo e atenderia a uma demanda das mulheres. Em Ribeirão Preto (SP), a esterilização cirúrgica é oferecida no SUS desde 1999 (VIEIRA e SOUZA 2009). Em estudo realizada por Vieira e Ford, em 2004, verificou- se que parte dos solicitantes da esterilização cirúrgica pelo SUS em Ribeirão Preto não obtinha o procedimento. O insucesso, segundo os autores, poderia ser devido à desistência ou adiamento em decorrência do aconselhamento ou devido a obstáculos originados no sistema de saúde. Vieira e Souza (2009) analisaram essas hipóteses entrevistando, em 2004, 230 indivíduos que demandaram e não obtiveram cirurgia de esterilização no período de 1999 a 2004. Esses indivíduos foram comparados com 297 indivíduos esterilizados. Dentre os que não conseguiram a cirurgia, 10% ainda tinham expectativa de obtê-la. Dos 207 restantes, 71% decidiram adiar e 29% encontraram obstáculos – período longo de espera parece ter sido o principal deles. Em comparação com o grupo dos que obtiveram o procedimento, maior renda e maior escolaridade favoreceram o acesso. Os autores afirmam, porém, que menos de 15% dos candidatos não obtiveram a cirurgia no período estudado e que adiamento e desistência podem ser consequência do processo de aconselhamento. Certamente, o acesso à esterilização cirúrgica é regulado por lei que estipula os direitos dos cidadãos e as obrigações por parte do sistema público de saúde no provimento desse serviço. Os estudos realizados indicam que um problema enfrentado em alguns contextos é o desconhecimento ou a não observância, sem sanções, dos critérios estipulados pela lei e suas portarias. Em outros contextos, o problema é a inexistência de hospitais do SUS licenciados para prover a laqueadura tubária, o que provavelmente faz com que ela siga sendo um serviço de troca clientelística. No Amazonas, por exemplo, em apenas um município foram realizadas esterilizações cirúrgicas pelo SUS em 2007. Assim, uma grande proporção da população não tem acesso a esse serviço. Além disso, a necessidade de apresentar autorização do cônjuge e a proibição da laqueadura pós-parto pode estar alimentando uma demanda frustrada, ao mesmo tempo em que estimula a realização de cesarianas desnecessárias ou outros 10 procedimentos que possam acobertar e cobrir os custos da esterilização. Por outro lado, a legislação é um estímulo para a organização de serviços hospitalares autorizados, o que, por sua vez, é uma forma de disseminar o conhecimento e promover o acesso a métodos reversíveis. A PNDS 2006 nos permite conhecer a situaçãomais recente. No que se refere à laqueadura tubária, de acordo com a PNDS 2006, do total mulheres unidas, entre 15 e 49 anos de idade, esterilizadas cirurgicamente, 51,3% o foram até 1997, ano ao final do qual a lei e suas regulamentações passaram a viger. Portanto, 48,3% das mulheres unidas de 15 a 49 anos que estavam esterilizadas em 2006 poderiam ter obtido a laqueadura dentro dos critérios da lei. Entre as que foram esterilizadas depois de 1997, 11% o foram em 1998 e 1999, esse último sendo o ano no qual entrou em vigor a portaria que proibiu a laqueadura pós-parto. A Tabela 1 apresenta a distribuição percentual das mulheres que estavam laqueadas em 1996 e as mulheres que foram laqueadas entre 1998 e 2000, segundo a natureza do serviço médico onde foi realizado o procedimento cirúrgico. Percebe-se que houve um aumento da participação do setor privado na provisão da laqueadura. Essa mudança é válida para todas as regiões, com exceção da região Nordeste, onde aumentou a participação do setor público de saúde no provimento da esterilização cirúrgica feminina. Em relação a esse dado, é importante ter em mente que do número total de laqueaduras realizadas no SUS entre 1998 e 2006, 21,2% ocorreram no Nordeste, praticamente o mesmo percentual da região Sul (21,5%). Do total, 47,1% das laqueaduras tubárias realizadas no SUS nesse período ocorreu na região Sudeste. TABELA 1 Distribuição percentual das mulheres de 15 a 49 anos unidas laqueadas, segundo o local de obtenção do método, por ano da pesquisa – Brasil Ano Local de Obtenção Total (n)* Serviço Público Serviço Privado Outro 1996 71,4 27,6 1,0 100 3.012 2006 63,5 36,4 0,1 100 1.405 Fonte dos dados: PNDS 1996, PNDS 2006. A Tabela 2 indica uma mudança importante na relação da laqueadura tubária com o parto. No período 1998-1999 observa-se o padrão clássico que o caracterizou, a esterilização cirúrgica acoplada a um parto cesáreo. No período mais recente, o percentual de esterilizações de intervalo, sem relação com o parto, cresce, quase equiparando-se ao percentual de laqueaduras durante uma cesariana. TABELA 2 Distribuição percentual das mulheres esterilizadas cirurgicamente a partir de 1998, segundo a relação do procedimento com o parto, por período – Brasil Relação da laqueadura com o parto Período Total (n)* 1998-1999 2000-2006 Durante cesariana 65,4 47,1 51,2 847 Pós-parto 5,0 11,2 6,3 104 Intervalo 29,6 41,2 38,6 638 Sem resposta 0,0 0,5 3,9 65 Total 100 95 100 1.655 Fonte dos dados: PNDS 1996, PNDS 2006. 11 2. METODOLOGIA As Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde são parte de uma iniciativa de realização inquéritos sobre fecundidade, planejamento da fecundidade, comportamento e saúde reprodutiva denominada Demographic and Health Surveys (DHS). Essas pesquisas foram iniciadas em 1984 e planejadas para serem realizadas de cinco em cinco anos, em vários países, com o intuito de coletar, analisar e disseminar o conhecimento sobre demografia e planejamento familiar iniciado pelo WFS, incluindo uma nova metodologia que incluía os determinantes próximos da fecundidade (FISHER e WAY 1988). Sua implementação e continuidade foi uma iniciativa da USAID. Posteriormente, o programa passou a ser realizado pela Macro International Inc. Demographic e denominado MEASURE DHS Project. Além de coletar dados que permitem estimar níveis de fecundidade, a DHS levanta informações sobre planejamento familiar, saúde materna e infantil, HIV/AIDS/ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e saúde reprodutiva 5 . A primeira rodada da DHS no Brasil, denominada Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar, é realizada em 1986. Em 1991 a pesquisa é levada a cabo somente no Nordeste. Em 1996, ela volta a ter representatividade nacional, sendo denominada Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS). Por fim, em 2006 é realizada uma nova PNDS, da criança e da mulher, financiada pelo Ministério da Saúde e coordenada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) 6 . As análises feitas a partir das informações dessas pesquisas vão permitir o acompanhamento da evolução do mix contraceptivo nacional e o que se observa entre 1986 e 1996 é um aumento perturbador da laqueadura tubária, que passa de 28% para 40% das mulheres entre 15 e 49 anos unidas. O empilhamento das três PNDS com representatividade nacional implicou na impossibilidade de se incorporar algumas variáveis importantes na análise. Esse foi o caso, por exemplo, das macrorregiões do país e da inclusão do grupo etário 45-49 anos. A divisão regional utilizada em 1986, ano em que esse grupo etário não foi pesquisado, impede a compatibilização com os demais anos. Cor da pele também não foi pesquisada em 1986. Foram ajustados três modelos logísticos binomiais que estimam a chance de laqueadura tubária entre mulheres de 15 a 44 anos de idade, unidas, com pelo menos dois filhos nascidos vivos. Formalmente, o modelo logístico para k variáveis independentes é dado por ikkii ij ij xxx p p ...) 1 log( 2211 onde pi é a probabilidade de yi = 1 (Alisson 1999). A equação logística pode ser solucionada para pi de forma que )...exp(1 1 2211 ikkii i xxx p No caso deste estudo, yi = 1 indica mulher esterilizada cirurgicamente. As variáveis independentes utilizadas são 5 http://www.measuredhs.com/aboutdhs/, acesso em 21 de março de 2009. 6 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/index.php, acesso em 22 de abril de 2009. http://www.measuredhs.com/aboutdhs/ http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/index.php 12 Idade, Escolaridade, Parturição, Situação de residência (rural como referência), Ano da pesquisa (2006 como referência), Coorte decenal de nascimento (1972-1981 como referência), Interação entre ano da pesquisa e situação de residência. A Tabela 3 apresenta a prevalência da laqueadura entre as mulheres unidas em três situações distintas. Na primeira parte da tabela, foram incluídas todas as mulheres unidas de 15 a 49 anos. Observa-se que o ano de 1996 apresenta o maior percentual de mulheres unidas laqueadas, ao passo que o peso do tamanho da amostra de 2006 se mostra na linha de total. Na segunda parte da tabela foram excluídas as mulheres unidas, de 45 a 49 anos de idade dos anos de 1996 e 2006, de forma a se compatibilizar as três pesquisas utilizadas neste estudo. Observe-se os padrões frisados para a primeira parte da tabela se mantêm. Finalmente, na terceira parte da Tabela 3, são excluídas as mulheres de parturição um ou sem filho. Novamente, o padrão já observado se mantém, mas a amostra de 1996 passa a ter maior peso. Unidas, 15-49 anos Laqueadura tubária 1986* 1996 2006 Total n Sim 13,2 46,1 40,7 100 7.126 Não 17,6 34,7 47,7 100 14.817 Total 16,2 38,4 45,4 100 21.943 Unidas, 15-44 anos Laqueadura tubária 1986* 1996 2006 Total n Sim 15,8 46,4 37,8 100 5.958 Não 19,1 33,9 47,1 100 13.664 Total 18,1 37,7 44,2 100 19.622 Unidas, 15-44 anos, parturição 2 ou superior Laqueadura tubária 1986* 1996 2006 Total n Sim 15,9 46,4 37,7 100 5.829 Não 24,3 36,5 39,2 100 6.669 Total 20,4 41,1 38,5 100 12.498 Fonte dos dados: Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde, 1986, 1996, 2006. *A PNSMiPF 1986 não pesquisou mulheres de 45 a 49 anos. TABELA 3 Prevalência da laqueadura tubária - Brasil, 1986-1996-2006 A Tabela 4 e a Tabela 5 apresentam a prevalência da laqueadura tubária entre as mulheres unidas, de 15 a 44 anos, com pelo menos dois filhos nascidos vivos. Na Tabela 4, observa-se que a prevalência aumenta com a idade, atingindo níveis similares nos dois últimos grupos etários. Os quase nove anos decorridos entre o início da vigência da legislação sobre planejamento familiar, de 1998 em diante, e o momento daPNDS, em 2006, constituem um período curto para a transição para a maternidade, parturições de ordem dois ou superiores e laqueadura. Parte das mulheres entrevistadas em 2006, as mais jovens, teve filho depois de 2005 e outra proporção importante, a mais 13 velhas, teve filho antes de 1998. Do ponto de vista de coorte, portanto, é possível que o quadro não tenha se alterado ou que a chance de esterilização tenha aumentado. Essa classificação inclui coortes de nascimento diferentes. A Tabela 5 indica que a maior prevalência de laqueadura tubária ocorre na coorte de nascimento de 1962 a 1971, ou seja, as mulheres que tinham entre 15 e 24 anos em 1986, 25 a 34 anos em 1996 e 35 a 44 anos em 2006. As entrevistadas em 1996 têm, portanto, o maior peso nessa coorte. É essa composição entre idade e coorte que deve ser levada em conta no exame desses dados. Laqueadura tubária 15-19 20-24 25-29 30-34 35-39 40-44 Total n Sim 0,1 3,3 13,6 25,2 29,9 27,8 100 5.828 Não 2,0 13,0 21,4 24,0 20,2 19,3 100 6.669 Total 1,1 8,5 17,8 24,6 24,8 23,3 100 12.497 Fonte dos dados: Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde, 1986, 1996, 2006. TABELA 4 Prevalência da laqueadura tubária por grupo etário- Brasil, 1986-1996-2006 Laqueadura tubária 1982-91 1972-81 1962-71 1952-61 1942-51 Total n Sim 1,0 15,1 42,6 33,1 8,2 100 5.829 Não 5,9 21,9 37,7 25,5 9,0 100 6.667 Total 3,6 18,7 40,0 29,1 8,6 100 12.496 Fonte dos dados: Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde, 1986, 1996, 2006. Prevalência da laqueadura tubária por coorte decenal de nascimento Brasil, 1986-1996-2006 TABELA 5 3. RESULTADOS O Quadro 1 apresenta os resultados da modelagem logística binomial. O Modelo 1, básico, indica que a chance de esterilização aumenta com a idade, com a escolaridade e com a parturição. Esses efeitos, estatisticamente significantes, só se alteram no Modelo 4, que inclui apenas as mulheres que tiveram filho período de cinco anos anteriores à pesquisa. Na verdade, apenas o efeito da variável parturição é que se torna estatisticamente não-significante. A chance de esterilização é 22% superior para as residentes em áreas urbanas em relação à residência em áreas rurais. Esse efeito é o mesmo no Modelo 2. Nos Modelos 3 e 4, o coeficiente exponenciado dessa variável muda de sentido devido à introdução do termo de interação. Com relação aos períodos, no Modelo 1 a chance de esterilização em 1986 é 27% inferior à chance em 2006 e a chance de esterilização em 1996 é 39% superior à de 2006. Entretanto, ao se incluir as variáveis de coorte decenal de nascimento o efeito do ano de 1996 torna-se estatisticamente não-significante, ao passo que quanto mais antiga a coorte, maior a chance de esterilização. Para testar o efeito dos anos em que as mulheres foram entrevistadas na presença das variáveis de coorte foi introduzida interação entre situação de residência e ano. A presença dos termos de interação altera o significado dos coeficientes das variáveis que compõem a interação. No caso da situação de residência urbana, o coeficiente 14 exponenciado expressa a razão de chance de laqueadura tubária entre mulheres de residência urbana e mulheres de residência rural em 2006. Com relação às variáveis de período, o coeficiente exponenciado da variável 1986 corresponde à razão de chance de laqueadura tubária entre mulheres rurais pesquisadas em 1986 e mulheres pesquisadas em 2006. Finalmente, com relação às variáveis de período, o coeficiente exponenciado da variável 1996 corresponde à razão de chance de laqueadura tubária entre mulheres rurais pesquisadas em 1996 e mulheres pesquisadas em 2006. O inverso dele indica a razão de chance de laqueadura tubária entre mulheres urbanas pesquisadas em 1986 e 1996, respectivametne, e mulheres pesquisadas em 2006, isto é, 5,55 maior em 1986 e 1,47 maior em 1996. Os coeficientes dos termos de interação, que indicam razão entre as razões de chance de laqueadura tubária entre mulheres de residência urbana e mulheres de residência rural das mulheres pesquisadas em 1986 e 1996, respectivamente, em às mulheres pesquisadas em 2006. Esse efeito denota a diferença entre as razões de chance dos períodos, controlando-se pelas demais variáveis incluídas no modelo. No caso de 1986, a diferença é maior que duas vezes e no caso de 1996 a diferença é quase uma vez e meia. O valor-p desse coeficiente indica se essa diferença é estatisticamente significante ou não. Exp(B) Sig. Exp(B) Sig. Exp(B) Sig. Exp(B) Sig. Idade 1,07 0,00 1,04 0,00 1,04 0,00 1,04 0,00 Parturição 1,05 0,00 1,06 0,00 1,07 0,00 1,03 0,15 Escolaridade 1,02 0,01 1,02 0,01 1,02 0,00 1,04 0,00 Urbano (Ref.: rural) 1,22 0,00 1,22 0,00 0,78 0,00 0,83 0,13 1986 (Ref.: 2006) 0,73 0,00 0,44 0,00 0,18 0,00 0,45 0,00 1996 1,39 0,00 0,98 0,83 0,68 0,00 0,85 0,33 1972-81 (Ref.: 1982-91) - - 3,23 0,00 3,28 0,00 2,60 0,00 1962-71 - - 4,35 0,00 4,41 0,00 3,36 0,00 1952-61 - - 5,70 0,00 5,69 0,00 3,77 0,00 1942-51 - - 5,91 0,00 5,87 0,00 5,54 0,00 Interação: Urbano*1986 - - - - 3,29 0,00 2,01 0,00 Interação: Urbano*1996 - - - - 1,60 0,00 1,47 0,01 Constante 0,05 0,00 0,04 0,00 0,05 0,00 0,05 0,00 Fonte dos dados: Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde, 1986, 1996, 2006. *O modelo 4 não inclui as mulhres que não tiveram filho nos cinco anos anteriores à pesquisa. QUADRO 1 Modelos logísticos binários e razão de chance de laqueadura tubária: mulheres unidas de 15 a 44 anos de parturição 2 ou superior- Brasil, 1986-1996-2006 Variáveis Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 Modelo 4* Modelo Chi- square df Sig. -2 Log likelihoo d 1 882,5 6 0,00 16.386 2 961,1 10 0,00 16.307 3 1.053,7 12 0,00 16.215 4 312,8 12 0,00 6.986 QUADRO 2 Teste global e Goodness of fit 15 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Houve uma descontração do mix contraceptivo brasileiro, com diminuição importante do papel da laqueadura tubária e aumento da participação masculina. Por outro lado, o SUS continua sendo o maior provedor de laqueadura tubária. Em 1986, 28,2% das mulheres brasileiras unidas, entre 15 e 44 anos de idade estavam esterilizadas. Em 1996, esse percentual era de 40,1%. Em 2006 ele retorna ao nível de 1996, 29%. Os resultados deste trabalho indicam que as chances de laqueadura tubária para as mulheres de 15 a 44, unidas e com pelo menos dois filhos nascidos vivos são significativamente superiores em 2006. De fato, a maioria opta e realiza a laqueadura após o segundo filho. Boa parte das mulheres entrevistadas em 2006 ou ainda não entraram nas idades de maior probabilidade de ter o segundo filho ou já passaram por esses eventos antes das mudanças introduzidas pela Lei 9263, do planejamento familiar, de 1997. Por esse motivo, não é recomendável tomar uma medida de período – a prevalência da laqueadura tubária em um dado momento– como o resultado de um processo estrutural que ocorre ao longo do tempo. Assim, é arriscado, no mínimo, pensar a prevalência de laqueadura tubária, a partir dos resultados da PNDS 2006, como um indicador de uma mudança de fundo. Há que se levar em conta a composição etária e a estrutura de coortes, além de se estabelecer a população de maior exposição ao evento de interesse. 16 REFERÊNCIAS ALLISON, P.D.1999. Logistic regression using SAS system: theory and application. Cary. NC: SAS Institute Inc. ÁVILA, Maria Betânia."PAISM: Um Programa de Saúde para o Bem-Estar de Gênero." Relatório, SOS Corpo, Recife, 1993. BARROSO, Carmen. "Esterilização Feminina: Liberdade e Opressão." Revista de Saúde Pública, 18, 1984. BERQUÓ, Elza. A Saúde Reprodutiva das Mulheres na „Década Perdida‟. Relatório de Pesquisa, São Paulo: CEBRAP, 1995. BRASIL - Congresso Nacional. "Exame da Incidência da Esterilização em Massa de Mulheres no Brasil." Comissão Parlamentar de Inquérito: Relatório Final, Brasília, 1993. BRASIL – Ministério daSaúde. Lei ordinária 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Diário Oficial da União, 20 ago, 1997a. BRASIL – Ministério da Saúde. Portaria 144, de 20 novembro, 1997. Diário Oficial da União, 24 nov, 1997b. 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