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�1 ABRAHAM KUYPER E A POLÍTICA 1 Filipe Costa Fontes Um dos aspectos da vida cultural que merecem destaque em nosso curso é a política. Primeiramente, por que a tendência geral do evangelicalismo brasileiro em relação a este aspecto foi até aqui, em maior grau, a de rejeição e afastamento. Em segundo lugar, por que a situação política do país nos últimos anos tem estimulado muitos cristãos a se posicionarem a respeito de questões política, o que tem acontecido, muitas vezes, à parte das implicações de sua fé para esta área da vida. 1) ABRAHAM KUYPER: O HOMEM E SUA IMPORTÂNCIA Desde João Calvino, alguns pensadores reformados se dedicaram a tratar com profundidade das implicações da fé cristã para a esfera política. Dentre estes pensadores, Abraham Kuyper exerce lugar de destaque e pode, sem dúvida, servir de ponto de partida para uma apresentação introdutória da relação entre o cristão e a política. A importância de Kuyper se deve a dois fatores, basicamente. O primeiro delas é a sua formação pessoal. Kuyper une duas coisas fundamentais para alguém que deve ser considerado quando a questão é uma visão cristã da política. Por um lado, ele foi um teólogo e um pastor. Como tal, ele possuía o treino teológico necessário para pensar os fundamentos de uma visão de mundo cristã. Ao mesmo tempo, ele foi um político, um estadista. Kuyper viveu Produzido originalmente como Palestra, ministrada em 2014 na Igreja Presbiteriana 1 Monte Sião em SP. Cristianismo e Cultura Material de apoio Abraham Kuyper (1837-1920) ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar �2 na Holanda, do século XIX até o início do século XX (1837- 1920). Neste período ele fundou um partido político, denominado Partido Antirrevolucionário, por se opor aos ideais libertários da Revolução Francesa, e foi primeiro ministro da Holanda entre os anos de 1901 a 1905. Ele, portanto, vivenciou a esfera política de forma prática, o que possibilitou uma aplicação dos princípios bíblicos à concretude da experiência. O segundo fator que fundamenta a importância de Kuyper é sua influência abrangente. Abraham Kuyper foi um dos líderes de um movimento que ficou historicamente conhecido como neocalvinismo holandês, que foi uma tentativa de aplicação dos princípios calvinistas ao mundo moderno, com ênfase no engajamento cultural do cristão. A partir do trabalho iniciado por Kuyper, muitas iniciativas de impacto cristão aconteceram nas mais diferentes dimensões da vida cultural, como as ciências e as artes, por exemplo. 2. ABRAHAM KUYPER: O PENSAMENTO POLÍTICO O objetivo deste texto é apresentar um resumo do pensamento político de Abraham Kuyper. Para tanto, ele se baseia nas palestras que Kuyper proferiu no Seminário de Princeton, em 1898, publicadas originalmente como Lectures on Calvinism, traduzidas no Brasil sob o título de “Calvinismo” desde 2002. A tese central das palestras de Kuyper é que o calvinismo, considerado por ele como a mais consistente expressão do cristianismo, é mais do que uma postura teológica. Ele é uma Cosmovisão; em suas palavras: um sistema de vida. Com isto, Kuyper deseja esclarecer que os impactos do calvinismo não se restringem à vida eclesiástica, mas atingem a vida como um todo. Cada uma das palestras apresenta as implicações do calvinismo para um aspecto da vida cultural. Este texto lida, mais especificamente, com a segunda palestra, cujo assunto é “Calvinismo e Política”. 2.1 O caráter religioso da dimensão política Um dos elementos básicos do pensamento neocalvinista é a afirmação do caráter fundamentalmente religioso da realidade. Um discípulo de Kuyper, o filósofo Herman Dooyeweerd, levava tão a sério essa concepção, que costumava dizer que “tudo é religião”. O que Dooyeweerd desejava estabelecer com esta afirmação é que tudo o que existe está, de alguma forma, relacionado com Deus. O fundamento desta ideia é encontrado nas ideias bíblicas de CRIAÇÃO e de REDENÇÃO. Se Gênesis 1 é verdadeiro, e todas as coisas que existem foram criadas por Deus, é uma implicação natural disto que todas elas têm a ver com ele. E, se o evangelho é verdadeiro, e Jesus Cristo é quem disse ser – a Palavra eterna de Deus, que se fez carne para reconciliar com Deus todas as coisas – então não pode haver qualquer aspecto de existência que não esteja sujeito à autoridade de Cristo. Em Mateus 28, na passagem que ficou conhecida como “a grande comissão”, Jesus fez uma afirmação cuja radicalidade e abrangência nem sempre são percebidas. Ele afirmou: toda autoridade me foi dada nos céus e na terra (Mateus 28.28). A radicalidade e abrangência desta afirmação de Jesus são ASUS Destacar ASUS Destacar �3 vistas, primeiramente, no fato de que ele afirma ter recebido toda autoridade, e depois, que essa autoridade engloba o que acontece nos céus e na terra. Política é, portanto, uma questão religiosa. É um grande equívoco pensar que cristãos não deveriam pensar sobre política, nem fazer política. Na verdade, o não envolvimento responsável com este aspecto da vida deveria ser visto como uma desconsideração para com o senhorio de Cristo, uma vez que significa imaginar que uma área da vida possa funcionar de maneira autônoma, à parte da vontade de Deus. Inicialmente, portanto, através da compreensão do senhorio abrangente de Cristo sobre a realidade, o pensamento neocalvinista condena o comodismo do evangelicalismo contemporâneo no relacionamento com a política, responsabilizando-nos a um viver cristão nesta esfera de nossa existência cultural. 2.2 A ideia de SOBERANIA A que questões procuramos responder quando estamos lidando com política? Podemos dizer que, basicamente, elas são questões relativas ao exercício de poder e de autoridade. O que é o poder? Quem deve exercer o poder? Se sim, como ele deve ser exercido? Essas são as questões com as quais lidamos ao discutir o universo político. E elas nos ajudam a compreender por que a doutrina calvinista da soberania de Deus possui um papel fundamental em seu entendimento desta esfera. Abraham Kuyper entendeu isso. E, por isso, ele desenvolveu sua visão política como uma implicação e uma aplicação abrangente da doutrina calvinista da soberania de Deus. A doutrina da soberania de Deus foi fundamental para Kuyper também, porque ela se apresentou como o contraste necessário para o momento histórico em que ele produziu seu pensamento, quando se delineava a ideia da soberania absoluta do estado. Definindo soberania, Kuyper afirma: O que é Soberania? Não concordará você comigo, quando a defino como a autoridade que tem o direito, o dever e o poder de quebrar e punir toda resistência à sua vontade? Não dirá a sua indestrutível consciência tradicional a você mesmo que a soberania original e absoluta não pode residir em qualquer criatura mas precisa coincidir com a majestade de Deus? Se você acredita Nele como chefe e Criador, como Fundador e Diretor de todas as coisas, a sua alma deverá também proclamar o Deus Triúno como o único Soberano Absoluto. Nesta citação, Kuyper define soberania apontado para três características deste conceito. A primeira é que soberania inclui, não apenas o poder para o estabelecimento da vontade do soberano, mas também o direito de fazê-lo. Alguém pode estabelecer sua vontade pela força, mas não pode ser considerado legitimamente soberano se não tem o direito de fazê-lo. A segunda é o caráter indivisível da soberania. E, por fim, seu caráter originalmente divino. Kuyper identifica a Soberania como um atributo divino. Afinal, Deus é o único que tem ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar �4 poder e direito para, de forma indivisível (em todos os limites), de fazer cumprir a sua vontade. Existem muitos textos bíblicos que apontam para esta singularidade da soberania de Deus. Provavelmente a maioria de nós já leu muitas dessaspassagens várias vezes. Contudo, em virtude de nossa tendência teológica dualista, possivelmente não tenhamos nos atentado para a abrangência deles, mas o tenhamos interpretado como se eles se referissem a uma esfera particular da nossa vida – a dimensão espiritual – perdendo as implicações deles para a concretude de nossa existência. Alguns dos mais importantes são: Ouve óh Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor (Deuteronômio 6.4). Tendo Ezequias recebido a carta das mãos dos mensageiros, leu- a; então, subiu à Casa do Senhor, estendeu-a perante o Senhor e orou perante o Senhor, dizendo: Ó Senhor, Deus de Israel, que estás entronizado acima dos querubins, tu somente és o Deus de todos os reinos da terra; tu fizeste os céus e a terra (II Reis 19.14-15). Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados. Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades (Colossenses 1.13-16). Estes textos bíblicos, e outros mais, mostram que Deus é o único SOBERANO. Este fato possui duas implicações centrais. A primeira delas é que todo o exercício de poder e autoridade entre as criaturas é derivado. Toda autoridade procede de Deus (Romanos 13.1). Somente Deus possui e exerce autoridade original. Todo exercício de autoridade por parte do homem acontece por delegação divina. Consequentemente, todo exercício de autoridade por parte do homem é limitado, tanto em termos de duração, quanto de extensão. Ninguém, exceto Deus, pode exercer autoridade sempre, e de maneira irrestrita. O poder humano tem tem prazo de validade e extensão limitada. A segunda implicação é que Deus é o padrão para o exercício de autoridade por parte do homem. Se todo o poder e autoridade exercidos pelo homem são derivados, eles não podem ser exercidos de qualquer maneira. Todos os homens investidos de autoridade prestarão contas a Deus do modo como a exerceram. 2.3 A ideia de ESFERAS DE SOBERANIA ou de SOBERANIA NAS ESFERAS Mas como Deus exerce sua soberania? O instrumento através do qual Deus exerce a sua soberania é a sua LEI. Para compreendermos melhor esta questão, devemos considerar que, geralmente, nós temos um conceito muito reduzido de lei, identificando unicamente à moral. Mas a tradição neocalvinista trabalha com um entendimento mais abrangente de lei, que faz mais justiça ao ensino bíblico. Para a tradição neocalvinista, a lei é o ordenamento divino que define (estabelece limites) e organiza o funcionamento da realidade criada. Levando a sério a ideia ASUS Destacar ASUS Destacar ASUS Destacar �5 de criação, o neocalvinismo sustenta que o mundo possui uma estrutura normativa; uma estrutura de lei que garante o funcionamento da realidade em seus aspectos mais distintos (Jeremias 31.35-36; Isaias 28.23-29 – leis agrícolas). Num certo sentido, esta concepção de lei não nos é tão estranha. Nós falamos, por exemplo, sem dificuldades na existência de leis naturais, isto é, leis que regem o funcionamento da natureza. Contudo, quando adentramos as esferas culturais como nossas relações com o outro, a história, a linguagem, a economia, a arte, política, costumamos pensá-las como ambiente de construção autônoma do homem. A Bíblia, contudo, não permite uma dissociação entre o natural e o cultural, como se o último fosse uma construção arbitrária, autônoma, não normatizada. Pelo contrário, ela nos revela que a mesma palavra que estruturou a vida natural, estruturou a vida cultural (Salmo 147). Isto significa que, assim como existem leis físicas, químicas e biológicas, existem também leis lógicas, econômicas, históricas e sociais que regem a vida humana. É através destas leis que Deus exerce a sua soberania nos mais diversos aspectos da vida. Consequentemente, elas não podem ser desconsideradas e violadas sem que a vida humana sofra as consequências. A partir desta perspectiva, Kuyper percebeu que autoridade é também uma questão de esfera. Isto é, a lei de Deus estabelece diferentes autoridades para as diferentes esferas da vida humana. Na esfera da família, por exemplo, a autoridade é exercida pela figura do Pai; no universo analítico, pelo acadêmico; na esfera das artes, pelo artista, na esfera da igreja, pelos oficiais eclesiásticos, e assim sucessivamente. E, onde entra o Estado neste sistema? Para Kuyper, não entra. Quer dizer, entra mas não deveria ter entrado. Kuyper concebe o Estado como um elemento estranho, que deve sua existência, de certa forma, à queda em pecado. ...sem pecado não teria havido magistrado, nem ordem do estado; mas a vida política em sua inteireza teria se desenvolvido segundo um modelo patriarcal da vida de família. Nem tribunal de justiça, nem polícia, nem exército, nem marinha, é concebível num mundo sem pecado; e se fosse para a vida desenvolver a si mesma, normalmente e sem obstáculo de seu próprio impulso orgânico, consequentemente toda regra, ordenança e lei caducaria, bem como todo controle e afirmação do poder do magistrado desapareceria. Quem une onde nada está quebrado? Quem usa muletas quando as pernas estão sadias? Estas palavras de Kuyper mostram que, em seu entendimento, o Estado foi instituído por Deus para a manutenção da ordem em um mundo decaído. O pecado transtornou o governo direto de Deus, uma vez que perdemos a capacidade de respeitar as suas leis nas mais diversas esferas (Salmo 2). Então, Deus concedeu aos homens como remédio para esta enfermidade, um instrumento mecânico de manutenção da ordem: o Estado. �6 Sendo assim, Kuyper concebe o Estado como uma dádiva de Deus pós queda, que existe para possibilitar a manutenção de nossa existência em um mundo decaído. Sua A razão de ser é a manutenção da ordem social. Esta é a razão de o apóstolo Paulo, escrevendo aos Romanos, associar o Estado ao poder da espada. O papel do Estado é, exclusivamente, o de promover o bem e punir o mal, papel este que ele cumpre através de três ações: a) Garantindo a liberdade de cada esfera; b) Defendendo indivíduos mais fracos de abusos dentro de uma determinada esfera (interferência ocasional); c) constrangendo as esferas separadas a apoiá-lo e sustentá-lo em suas funções legítimas, através do pagamento de impostos. Embora Kuyper reconheça que o Estado é necessário para a manutenção da vida e da ordem em um mundo decaído, por outro lado ele reconhece que o estado não é o remédio final e definitivo, pois há um perigo inerente à natureza do Estado. Ele possui uma natureza coercitiva. Sua função é usar a autoridade para tolir a liberdade, quando esta extrapola seus limites. Mas o Estado também sofre das consequências do pecado. Consequentemente ele tende a exagerar em suas funções e tornar-se tirano. Haverá sempre uma tensão entre o Estado e as demais esferas sociais e nós devemos sempre vigiar contra o perigo que está escondido no poder do Estado para nossa liberdade pessoal. Esse aspecto do pensamento de Abraham Kuyper nos conduz a pensar sobre o risco de colocarmos nossa esperança de redenção no Estado. A promoção final e definitiva da ordem, à luz da Bíblia não acontecerá mediante a instauração de um programa político-partidário, mas mediante a transformação completa da realidade, por ocasião da segunda vinda de Cristo, quando então ele haverá de colocar todas as coisas debaixo de seus pés, e reinar sobre a terra por toda a eternidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Considerar o pensamento de Abraham Kuyper sobre a política nos chama a atenção para o fato de que a ideia de que política e cristianismo são elementos antagônicos não procede. Consequentemente, está equivocada a ideia de que o cristão não deve envolver-se com política. O envolvimento do cristão com a política deve através da oração constante pelas autoridadesconstituídas (I Timóteo 2.1-2); pela educação política, que visa compreender o lugar da política no reino de Deus; pelo exercício do seu poder de escolha dos magistrados de forma responsável; pelo sustento o estado através do pagamento de seus impostos, em situações ordinárias; e pela associação que visa promover diversas causas públicas, o que pode diminuir a ingerência do Estado sobre as diversas esferas da vida humana. Outra implicação desta reflexão é a percepção de que uma visão cristã da política não é uma questão de opção entre esquerda ou direita, mas de redefinição abrangente. O cristianismo não pode se contentar com menos do que redenção completa. O desafio cristão é o de redefinir as questões a partir de sua grande narrativa: a da criação, da soberania de Deus, da redenção em Cristo, da consumação futura, etc. �7 Finalmente, compreender esta questão implica refletir que a igreja também pode se engajar numa série de atividades de cunho social que contribuam para a reforma da sociedade. Mas, não deve perder de vista o centro de nossa missão eclesiástica: a pregação do evangelho. Pois, se a desordem em que vivemos, em última instância, é resultado da queda em pecado, não há contribuição maior que a igreja pode oferecer ao mundo do que cumprir sua missão evangelística. Libertando pessoas da escravidão do pecado e habilitando-as pelo poder do Espírito e da Palavra a se submeter a Deus nas mais diferentes esferas da vida, a igreja oferece sua maior contribuição para a transformação de nossa sociedade.
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