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AIRTON DE FARIAS No ano de 1964, o Brasil sofreu um forte abalo nas suas estruturas políticas e sociais: o Golpe Militar. Tal golpe instalou um regime ditatorial que restringiu os direitos dos cidadãos, reprimiu com violência qualquer movimento opositor e afundou o País numa grave crise econômica. A Ditadura durou 21 longos anos, os quais muitos preferem esquecer. Porém, é importante que saibamos que não devemos simplesmente apagar da História momentos, ainda que tristes, pois “esquecer é estar condenado a repetir os mesmos erros”. Um olhar sobre os governos militares possui este papel de resgate dessa dura parte da nossa História recente, investigan- do e aprofundando importantes discussões para o seu entendimento, bem como mantendo acesa a chama da justiça, da democracia e da cidadania. Uma leitura que vale a pena ser feita. AIRTON DE FARIAS Referência da editora – 4759 ISBN 978-85-8168-503-8 UM OLHAR SOBRE OS GOVERNOS MILITARES Ccc_Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares.indd 1 11/01/17 08:43 UM OLHAR SOBRE OS GOVERNOS MILITARES AIRTON DE FARIAS Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 1 27/12/16 11:39 Impresso no Brasil Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. ISBN: 978-85-8168-503-8 As palavras destacadas de amarelo ao longo do livro sofreram modificações com o novo Acordo Ortográfico. UM OLHAR SOBRE OS GOVERNOS MILITARES AIRTON DE FARIAS Professor, historiador e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Rua Neto Campelo Júnior, 37 CEP: 50760-330 - Mustardinha - Recife / PE Fone: (81) 3447.1178 - Fax: (81) 3422.3638 CNPJ: 14.605.341/0001-03 Editor Lécio Cordeiro Revisão de Texto Departamento Editorial Direção de Arte Elto Koltz Projeto Gráfico, Editoração e eletrônica e Capa Gabriella Correia Coordenação Editorial Direitos reservados à Editora Prazer de Ler Ltda. F224o Farias, Airton de, 1973- Um olhar sobre os governos militares / Airton de Farias; – 3. ed. – Recife: Prazer de Ler, 2017. 96p. : il. Inclui bibliografia. 1. BRASIL – HISTÓRIA. 2. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE MARÇO, 1964. 3. BRASIL – POLÍTICA E GOVERNO, 1964-1985. 4. GOVERNO MILITAR – BRASIL. 5. PRESIDENTES – BRASIL. I. Título. CDU 981 PeR – BPE 17-28 CDD 981 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 2 05/01/17 15:35 APRESENTAÇÃO Neste início de século, percebe-se uma ânsia de parte de nossa população, especialmente jovens, por ler e estudar o passado. Basta veri�car a quantidade de revistas nas bancas de jornais, a quantidade de livros novos nas livrarias e bibliotecas ou ainda as diversas reportagens na imprensa e até produções no cinema e na tevê sobre fatos históricos de “relevo”. Isso é bom, sem dúvida. Primeiramente, porque o hábito de ler é saudável e deve ser sempre motivado e praticado. Depois, saber História é uma forma de fazer uma re�exão sobre nosso presente. O modo como vemos o passado depende muito do que vivemos hoje. Muitas das contradições que permearam o que se foi ainda estão no agora. Uma geração de cidadãos que se deseja consciente de seu papel na sociedade não pode ignorar o que aconteceu nem deixar de pensar no que acontece. Mas esse “excesso de história” traz também algumas preocupações. Que tipo de história estamos vendo? Nesse sentido, o papel dos professores e historiadores é muito importante. Não podemos �car apenas restritos aos fatos do passado em si. Necessitamos aprofundar, veri�car os interesses em con- fronto. Não podemos idealizar nosso passado. A história do povo brasileiro, como a de qualquer outro povo do mundo, tem seus marcos elogiáveis, episódios vergonhosos, passagens frustrantes, eventos verdadeiramente heroicos, homens e mulheres com “virtudes” e “vícios”. Este livro, dirigido para jovens leitores e amantes da História, modestamente se volta para aqueles marcos controversos. Há mais de 40 anos, segmentos civis e militares derrubaram o governo legítimo de João Goulart, no que �cou conhecido como Golpe de 1964, iniciando um longo período autoritário, encerrado apenas em 1985. Nestas páginas, buscaremos entender as razões desse episódio tão dramático, como ele se deu e por que durou tanto tempo. Falaremos dos interesses em confronto entre os diversos grupos militares que assumiram o co- mando do Estado brasileiro. Abordaremos a reação de segmentos políticos mais radicais que, com a Ditadura, aprofundaram seus desejos pelas armas, de derrubar o capitalismo no País, e como foram massacrados, numa das épocas mais violentas e trágicas de nossa história, com torturas, atentados e execuções sumárias. Mas não apenas de pão, política e economia vivem as pessoas. Não nos esqueceremos de abordar as manifestações artísticas, extraordinariamente criativas no período ora tratado. Quais as relações do esporte, da música, etc. com a política e como as evidenciavam os grupos em confronto? Falaremos do �m da Ditadura, acontecido, também, pela extraordinária pressão de milhares de pessoas que corajosamente saíram às ruas, enfrentando bombas e baionetas. São antepassados nossos dos quais devemos muito nos orgulhar. Se você agora, jovem leitor, tem este livro em mãos (um livro crítico), foi porque muitos deles tiveram coragem de defender a democracia como um valor político supremo. Por eles e pelas gerações vindouras, devemos discutir, debater, difundir o que aconteceu. Mais: devemos também enxergar nossas contradições do presente. Esperamos que este livro o motive a ler outras obras sobre o tema e, cada vez mais, compreender a História do Brasil. Airton de Farias Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 3 27/12/16 11:39 ÍNDICE 0 1 0 2 O Golpe de 1964 e a Ditadura As causas do Golpe 07 Correntes ideológicas 07 João Goulart 11 O Golpe 13 O apoio americano ao Golpe 15 Os militares no poder 16 Gregório Bezerra 18 Luís Carlos Prestes 19 Sorbonne e Linha Dura 20 Carlos Lamarca e Carlos Marighella 21 Castelo Branco 23 A Linha Dura em ascenção 24 A produção artística dos anos 1960 26 Taiguara 29 Chico Buarque 30 Os anos de chumbo Costa e Silva 32 A era das revoluções 33 Brasil 13, ato 5 35 O cabo Anselmo 37 Mais um golpe 38 Sérgio Fleury 39 Frei Tito 40 Médici 41 Milagre econômico 42 “O outro lado do Milagre” 43 O �m do Milagre 45 Ufanismo e propaganda 45 A luta armada das esquerdas 47 O sequestro do embaixador americano 48 A guerrilha do Araguaia 50 A luta armada no cinema 52 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 4 29/12/16 08:59 0 3 0 4 A Ditadura em crise Geisel 54 O porquê da distensão lenta, segura e gradual 55 Grandes projetos, pequenos resultados 56 Política externa 58 A Operação Condor 59 “Os suicidados” 60 Idas e vindas 62 Sociedade civil 64 Frei Betto 64 As oposições 65 Mais opositores 67 O novo sindicalismo 69 As censuras na Ditadura 71 Wilson Simonal 75 O fim da Ditadura Figueiredo 76 Crise econômica 77 A abertura democrática 78 A anistia 79 Pluripartidarismo: dividir para governar 80 Os novos partidos 80 A Linha Dura reage à abertura 82 As eleições para governador em 1982 83 O desastre de Sarriá 84 A campanha das Diretas Já 85 A não aprovação da emenda Dante de Oliveira 86 A eleição de Tancredo 88 Mais uma frustração 91 Cultura dos anos 1980 93 Galeria 94 Bibliogra�a 96 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 5 27/12/16 11:39 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 6 27/12/16 11:39 de maior agitação popular da história deste país e inaugurando um período de autoritarismo que se estendeu pelos 21 anos seguintes. Uma data que talvez muitos desejassem nunca ter acontecido... E por que o Golpe de 1964 (chamado pelas direitas de “Revolução” de 64) aconteceu? O lei- tor deve estar atento a uma coisa fundamental: para se entender um fato histórico, é necessário compreender a época em que tal fato aconteceu,CORRENTES IDEOLÓGICAS Adotamos, neste livro, as ideias clássicas de direita, centro e esquerda, expressões surgidas durante a Revolução Francesa de 1789 e referentes aos locais onde sentavam os agrupamen- tos políticos com suas posições ideológicas. Por direitas, entenderemos os grupos sociais e políticos conservadores, contrários a mudanças e dispostos a manter a ordem capitalista. Por centros, compreenderemos os grupos de posições moderadas e conciliadoras, que, diante das circunstâncias, podem apoiar as reformas sociais, desde que dentro da “lei” e da “ordem”, ou podem apoiar a força e a repressão para deter as reformas. Por esquerdas, entenderemos os setores favoráveis às mudanças na sociedade em nome da justiça e da igualdade sociais, podendo até mesmo defender a criação do socialismo. Em cada corrente dessas, é bom notar, há uma diversidade igualmente de posições, indo de grupos mais moderados aos mais radicais. A G ÊN C IA O G LO BO Tanques entrando no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde se encontrava João Goulart. O Golpe de 1964 e a Ditadura AS CAUSAS DO GOLPE Existem datas e anos que di�cilmente esque- cemos — o aniversário do pai, o nascimento de um �lho, o falecimento de alguém importante. O Brasil apresenta datas inesquecíveis. Entre elas, certamente as de 31 de março/1º de abril de 1964, quando um golpe militar dado pelas Forças Armadas — com apoio de setores da sociedade civil — derrubou o Presidente da República João Goulart (o Jango), acabando com uma das fases 7 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 7 27/12/16 11:39 veri�car os grupos sociais que se opunham, saber os interes- ses defendidos pelos líderes. Os anos 1960 foram uma época de confrontos. In- ternacionalmente, o mundo vivia a Guerra Fria, ou seja, a disputa entre os Estados Unidos (EUA) — que coman- davam o bloco capitalista (e defendiam, em linhas gerais, a existência da propriedade particular, do livre-comércio e a democracia liberal com a pluralidade de partidos, li- berdade de imprensa, etc.) — e a União Soviética (URSS), líder do bloco socialista/comunista (e que desejava, grosso modo, uma economia controlada pelo Estado, a existência de um partido único, etc.). Como as duas superpotências tinham enorme arsenal de armas nucleares, não entravam em confronto diretamente, embora usassem, ajudassem e interferissem em outros países para derrotar o adversário. Dessa forma, a América Latina foi uma área que não escapou à Guerra Fria, ainda que estivesse há décadas sob a in�uência dos EUA. Eram comuns as invasões de tropas nor- te-americanas no continente ou o apoio a golpes objetivando derrubar governos que, de alguma forma, contrariassem os interesses das autoridades e empresas dos Estados Unidos. Essas intervenções aumentaram ainda mais na Guerra Fria, principalmente após a Revolução Cubana de 1959, quando um grupo de guerrilheiros, liderado por Fidel Castro e Er- nesto Che Guevara, tomou o poder do país caribenho, anos depois alinhando-se à União Soviética, para fúria dos EUA. Nesse sentido, pretendendo evitar a propagação do comunismo ou adoção de medidas que o contrariassem, o governo norte-americano, nos anos 1960 e 1970, começou a apoiar os setores civis e militares mais conservadores das Jânio Quadros condecora Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria nacional, em sua visita ao Brasil em 1961. FG V /C PD O C Fidel Castro quando entrou em Havana. BU RT G LI N N /M A G N U M P H O TO S/ C O N TR A ST O 8 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 8 27/12/16 11:39 sociedades latino-americanas (as chamadas direitas) visando à instalação de regimes autoritários que conservassem seus interesses e a ordem capitalista. Não por acaso, naquelas dé- cadas, quase todos os países da América do Sul estavam sob o comando de ditaduras militares. O Brasil foi um desses países. Logicamente, não podemos atribuir o Golpe de 64 apenas a fatores externos. Na verdade, as causas principais do Golpe estavam dentro do Brasil, que, no início dos anos 1960, vivia igualmente uma fase de grande agitação política e de confronto de interesses entre as várias classes e movimentos sociais. A euforia de crescimento econômico do governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956–61) acabara, vivendo o País, naquele início de década, uma situação delicada. Na verdade, estava em crise o chamado “modelo de substituição de importações”, que, desde os anos 1930, havia possibilitado um crescimento indus- trial do Brasil, através da produção, no próprio País, de bens antes comprados do exterior. No começo dos anos 1960, acabara a fase “fácil” dessa industrialização, e para o Brasil continuar crescendo seria necessária uma reor- ganização econômica e social, bene�ciando as elites e o capital estrangeiro, em detrimento das camadas mais pobres. Foi exatamente isso que se deu durante a Ditadura Militar. Naquele momento de crise, com aumento da estag�ação (ou seja, mistura de estagnação e in�a- ção: a economia não crescia, e os preços subiam), da dívida externa, das diferenças regionais e uma No governo Kubitschek, a principal obra foi a construção da nossa capital federal, Brasília. EX EC U TI V E O FF IC E O F TH E PR ES ID EN T O F TH E U N IT ED S TA TE S John Kennedy ameaçou invadir Cuba, caso os mísseis fossem instalados. A BR IL IM A G EN S 9 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 9 29/12/16 08:59 maior dependência do capital estrangeiro, aumenta- va a pressão dos movimentos sociais, fossem rurais (como as Ligas Camponesas) ou urbanos, a exemplo da Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Eles rei- vindicavam reformas sociais mais profundas, prin- cipalmente a reforma agrária, ou seja, a distribuição das terras dos grandes latifundiários entre os mais pobres, o que irritava os segmentos conservadores e era tachada de medida “comunista”. Vale ressaltar que havia então profundas liga- ções dos militares brasileiros com o pensamento conservador e pró-Estados Unidos, pensamento este estabelecido em muito pela Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949. Ali desen- volveu-se a denominada Doutrina de Segurança Nacional (DSN), para a qual o desenvolvimento do Brasil deveria processar-se através da abertura ao capital estrangeiro (ou seja, deveria ocorrer a internacionalização da economia do País), sem esquecer o fator segurança, isto é, o combate a qualquer ação comunista ou esquerdista que pu- sesse em risco os valores do capitalismo. Assim, o Golpe de 64 ocorreu diante da cada vez maior radicalização dos defensores de mu- danças na sociedade (as esquerdas) e da oposição dos conservadores, que acusavam os primeiros de “quererem implantar no Brasil o comunismo”, num momento de crise do modelo econômico de “substituição de importações” e de grande tensão internacional, provocado pela Guerra Fria e pelo Imagem da greve na Baixada Fluminense em 1962. Toda a classe trabalhadora sofria com o aumento de preços e protestava. JO RN A L D O E ST A D O D E M IN A S medo dos EUA de que outros países da América Latina “imitassem” a Revolução Cubana e aconte- cesse a expansão do comunismo. Para conservar a ordem política e social e adotar um modelo econômico não popular, as forças de direita civis e militares implantaram a Ditadura, contando para tanto com o apoio dos Estados Unidos. 10 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 10 27/12/16 11:39 JOÃO GOULART Os setores civis e militares de direita ha- viam sofrido grande derrota em 1961, quando foram obrigados a “engolir” a posse de João Goulart (Jango) na presidência da República, após a surpreendente renúncia do até então presidente Jânio Quadros (eleito em 1960 e que governaria apenas sete meses, deixando o cargo a 25 de agosto de1961). Goulart, dono de grande fortuna pessoal, fora lançado na política por Getúlio Vargas, �gura igualmente detestada pelos conservadores e pelas elites, cujos prin- cipais porta-vozes eram a União Democrática Nacional (UDN) e Carlos Lacerda, governador do então Estado da Guanabara (hoje, Rio de Janeiro). As restrições dos militares e das classes dominantes a Jango vinham de algum tempo. Nacionalista (ou seja, achava que caberia ao próprio Estado brasileiro ser o principal agente do desenvolvimento), membro do Partido Tra- balhista Brasileiro (PTB) e político com base eleitoral entre as camadas mais pobres da po- pulação e entre os trabalhadores, João Goulart fora Ministro do Trabalho no segundo governo Vargas (1951–54), quando acabou demitido por pressão das elites, por apoiar as reivindicações dos sindicatos — muitos dos quais ligados ao clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB)—, não reprimir greves e propor um au- mento de 100% no salário mínimo. É bom ressaltar que os getulistas eram, de início, inimigos radicais do comunismo, mas, aos poucos, foram se aproximando das esquer- das, principalmente em torno de um programa econômico nacionalista para o Brasil. Estavam, portanto, na contramão daquilo defendido por vários militares e empresários, para quem o de- senvolvimento econômico do País deveria passar por investimentos internacionais. Em tempos de paranoia anticomunista na Guerra Fria, incomodavam aos conservadores o nacionalismo de Jango e sua postura em defen- der as relações do Brasil com países não ligados apenas ao bloco capitalista. Por exemplo, como vice-presidente de Juscelino Kubitschek, João Goulart visitara a União Soviética, irritando po- líticos e importantes setores das Forças Armadas. Quando da própria renúncia de Jânio Quadros, No destaque da imagem, vemos Carlos Lacerda, maior opositor do go- verno Vargas e João Goulart, apoiando o Golpe de 64. A G ÊN C IA O G LO BO 11 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 11 27/12/16 11:39 Jango estava em visita o�cial à China Comunista e teve enormes di�culdades de voltar ao Brasil para assumir o poder, pela oposição das direitas. Aconteceu, então, uma grave crise política, pois, con- tra a postura golpista dos conservadores, levantaram-se as esquerdas e grande parte da população exigindo que se cumprisse a Constituição, ou seja, que João Goulart as- sumisse o cargo de presidente. Isso acabou ocorrendo em setembro de 1961, embora Jango assumisse o governo com poderes esvaziados. Para contornar a crise, foi realizada, às pressas, uma emenda à Constituição, introduzindo-se no Brasil o sistema parlamentarista de Governo, ou seja, quem realmente “mandaria” no Brasil seria um primeiro-ministro. O parlamentarismo duraria entre 1961e 1963, apresen- tando ao País como primeiros-ministros, sucessivamente, Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima. A breve duração do parlamentarismo se deve, em parte, à pressão de Goulart para reaver os plenos poderes que um presidente normalmente tem no Brasil. Obteve, dessa forma, a antecipação e realização de um plebiscito em janeiro de 1963 (estava marcado, inicialmente, para 1965), quan- do a maioria dos eleitores optou pelo retorno do presidencialismo. Pouco mais de um ano depois, João Goulart foi deposto. Jango fez um governo contraditório. Há his- toriadores que falam de sua pretensão de conti- nuar no governo, contrariando, pois, a legislação da época. Ora se aproximava dos conservadores, negando qualquer possibilidade de reformas so- ciais; ora se aproximava das forças de esquerda, Cartaz pelo “Não ao parlamentarismo” no plebiscito de 1963. IC O N O G RA PH IA Comício da Central do Brasil: Jango inicia as Reformas de Base. IC O N O G RA PH IA 12 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 12 27/12/16 11:39 sendo acusado de in�uenciar os movimentos sociais na pretensão de pressionar o Congresso Nacional e demais poderes da República a apro- varem as medidas de interesse do governo. Tal postura apenas tornava mais tenso o já compli- cado jogo político brasileiro dos anos 1960. Goulart, em �ns de 1963 e início de 1964, ao que parece, “inclinou-se” de�nitivamente para a esquerda e para as reformas sociais, ganhando destaque sua proposta de Reformas de Base — reforma agrária, reforma educacional, reforma urbana, limite na remessa dos lucros das empre- sas multinacionais, etc. Os setores conservadores, há muito descon�ados das “intenções” de Jango, aumentam suas articulações nesse momento, através de várias entidades, sobretudo da grande imprensa, que alardeia o “caos” do Brasil. O País estaria mergulhado numa “terrível” crise econô- mica e de “moralidade” (o governo era acusado de corrupção) e ainda num clima de “agitação, anarquia e comunização” com o apoio de Jango, pela proximidade deste com as esquerdas. Para escândalo das direitas, o clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB) apoiava o governo e igualmente defendia a aprovação das Reformas de Base, “na lei ou na marra”. Outra �gura detestada pelos conservadores era o ex-governador gaúcho e cunhado de Goulart, Leonel Brizola, com seus ataques ferinos contra as injustiças sociais brasileiras. Dessa forma, políticos opositores (destacadamente da UDN) e militares, contando com apoio do embaixador americano Lincoln Gordon no Rio de Janeiro, de parte da Igreja, da imprensa, da Ordem dos Advogados do Brasil, de empresários, latifundiá- rios, classe média e mesmo populares, começam a articular a queda de Jango. O GOLPE Três episódios precipitariam o Golpe de 1964. O primeiro foi o comício da Central do Brasil, na sexta-feira, 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, quando Jango assinou decreto acerca da reforma agrária diante de uma multidão de mais de 350 mil pessoas. O início das Reformas de Base e a dimensão da manifestação popular (evidenciando que o governo tinha igualmente muito apoio entre a população) alarmou ainda mais as elites e classes médias. Em reação, as direitas organizaram, dias depois, em São Paulo, a Passeata da Família com Deus pela Liberdade, em protesto contra o governo e a “expansão do comunismo ateu no Brasil”. Essa e outras passe- atas convenceram muitas pessoas da necessidade de uma intervenção militar para “salvar a Pátria”. Um segundo episódio que tornou o Golpe iminente foi a chamada Rebelião dos Marinheiros em 26 de março, um protesto ocorrido na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro 13 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 13 27/12/16 11:39 contra a prisão do cabo José Anselmo, que fora detido por tentar organizar um sindicato para a categoria (a legislação proíbe que militares das Forças Armadas tenham organizações de classe). A manifestação havia sido proibida pelo Ministé- rio da Marinha, e a não punição dos marinheiros partícipes do evento irritou as Forças Armadas, pois se quebrou uma das coisas mais valorizadas pelos militares, a obediência à hierarquia. Passou- -se a ideia de que Jango não seria capaz de manter a disciplina. Isso levou vários militares, até então indecisos quanto ao Golpe, a apoiar �rmemente a conspiração em andamento. É importante ressaltar que o Cabo Anselmo era ou se tornaria depois informante das Forças Armadas, contribuindo, nos anos mais duros da Ditadura, para a prisão e morte de vários oposi- tores de esquerda. Por �m, o último episódio que levou ao levante de 64 foi a reunião dos sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, em 30 de março, quando Jango e sete ministros participa- ram de um evento de subo�ciais e sargentos, no qual acabaram homenageados os militares que haviam participado da rebelião dos marinheiros. Ali, Jango discursa e con�rma sua pretensão de prosseguir com as Reformas de Base. No dia seguinte, 31 demarço de 1964, o Golpe �nalmente aconteceu. Iniciou-se em Mi- nas Gerais, com apoio do governador do estado, A Passeata da Família com Deus pela Liberdade levou milhares de pessoas para as ruas, como protesto contra o governo e avanço do comunismo no Brasil. RE PR O D U Ç Ã O Magalhães Pinto, um levante comandado pelo general Olympio Mourão Filho, que partiu com suas tropas para o Rio de Janeiro. Igualmente, o general Amauri Kruel, de São Paulo, deslocou- -se com suas forças para o Rio. Logo, outras guarnições País afora aderiram ao levante. Em 1º de abril, Jango fugiu para o Rio Grande do Sul e não promoveu nenhuma reação, temendo derramamento de sangue. Dali Goulart foi para o exílio, no Uruguai, onde faleceria em 1976. Não houve resistência ao Golpe nem lutas — a rigor, foi feito através de telefonemas entre os líderes golpistas. Iniciava-se um regime autoritário que duraria longos 21 anos. 14 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 14 27/12/16 11:39 O APOIO AMERICANO AO GOLPE Enquanto a conspiração para o Golpe de 1964 acontecia no Brasil, ocorria a chamada Operação Brother Sam, arquitetada pelos EUA, objetivando apoiar os militares brasilei- ros para o levante. Por ordem do presidente estadunidense Lyndon Johnson, foi deslo- cada para o Brasil, em 31 de março de 1964, uma esquadra visando a dar força extra aos conspiradores brasileiros e garantir o triunfo do Golpe, caso houvesse resistência. Eram seis contratorpedeiros, um porta-aviões, um porta-helicópteros e quatro petroleiros com 533 mil barris de combustível. A frota estava de guarnição desde 20 de março, por sugestão do influente embai- EX EC U TI V E O FF IC E O F TH E PR ES ID EN T O F TH E U N IT ED S TA TE S xador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon. Na verdade, o plano vinha sendo arquitetado desde, pelo menos, 1962, ainda no governo de John Kennedy, quando Gor- don informara que os militares brasileiros pretendiam realizar uma insurreição. Hoje, os historiadores acreditam que o Golpe aconteceu não apenas por pressão dos EUA — estes tinham, de fato, interesse em derrubar Goulart ou qualquer governo de esquerda —, mas a insurreição de 64 foi liderada e articulada no próprio País, pelos militares, pelas elites e pela classe média de direita. 15 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 15 27/12/16 11:39 OS MILITARES NO PODER Com o exílio de João Goulart, a presidên- cia da República foi declarada vaga, passando o cargo interinamente para o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili. Contudo, quem de fato mandava eram os militares, que logo forma- ram uma “Junta Revolucionária” para assumir o poder, composta do vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, do tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo, da Aeronáutica, e do General Arthur da Costa e Silva, do Exército. Entre as primeiras ações dessa junta, esteve a decretação do depois chamado Ato Institucional nº 1 (AI-1 – 9 de abril de 1964), que determinou várias cassações de opositores e mudanças nas instituições do País. A partir daí, a vida política brasileira passou a ser comanda- da por esses Atos Institucionais, pelos quais os militares faziam o que bem desejassem, violando os princípios básicos da democracia. Curioso notar que os militares no poder nunca assumiram expressamente a feição autoritária do regime, argumentando que o Congresso Nacional ainda continuava funcionando, bem como os órgãos da Justiça, a Constituição ainda estava em vigor, etc. O Golpe foi recebido de maneira diversa pela sociedade. Para amplos setores da classe média e das elites, a “Revolução” de 1964 ocorrera para “salvar o Brasil da corrupção, do comunismo e restaurar a democracia”; assim, não surpreende que muita gente, em clima de festa, tenha saído às ruas para saudar os tanques e militares que derru- baram João Goulart. Para os segmentos populares, o Golpe foi trágico. Muitas lideranças de esquerda e nacionalistas acreditaram nas palavras de Jango, segundo o qual um “esquema militar” o manteria no poder caso as direitas tentassem um golpe. Mas não havia esquema militar, e as esquer- das não se prepararam para resistir ao Golpe. Nos primeiros dias de abril, houve uma verdadeira fuga dos militantes populares, pois os golpistas vitoriosos passaram a efetivar prisões dos adver- sários com agressões e torturas. O maior exemplo disso foi a prisão do comunista Gregório Bezerra no Recife (PE): já idoso, foi amarrado seminu à traseira de um jipe e puxado humilhantemente pelos bairros populares da cidade — um o�cial do Exército o espancou com uma barra de ferro em praça pública. Episódios semelhantes ocorreram Brasil afora. Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em 1964, após o Golpe militar. 16 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 16 27/12/16 11:39 Várias pessoas foram obrigadas a exilar-se no exterior para escapar às perseguições políti- cas. Com o AI-1, foram cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos (ou seja, não podiam ocupar cargos públicos nem votar ou ser votados) 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 o�ciais das Forças Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades políticas, como o próprio Jango, Leonel Brizola, Jânio Quadros, Miguel Arraes (governador de Pernambuco, deposto com o Golpe) e Luís Carlos Prestes (principal líder do Partido Comunista). Depois, nem o ex-presidente Juscelino Kubitschek escapou das perseguições. Aqueles funcionários públicos tidos como “ameaça à segurança nacional” foram demitidos, e três mil integrantes das Forças Armadas, pela mesma ra- zão, acabaram indo para a reserva (aposentados). Alguns governadores também foram cassados. As perseguições e cassações continuariam nos anos seguintes. Leonel Brizola tentou organizar, sem sucesso, uma resistência ao Golpe. Exilou-se no Uruguai, onde se reunia com outros descontentes com o regime militar. Seu nome constava na primeira lista de cassados pelo AI-1. Com o Golpe de 1964, Miguel Arraes foi retirado do Palácio do Campo das Princesas no meio da noite após se negar a renunciar, sendo preso e posteriormente exilado para a Argélia. 17 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 17 27/12/16 11:39 Gregório Bezerra é preso e humilhado em Pernambuco. GREGÓRIO BEZERRA Gregório Bezerra nasceu numa humilde família do sertão pernambucano no ano de 1900. Como muitos outros nordestinos, teve uma infância de pobreza e dificuldades. Aos quatro anos, já estava trabalhando nos canaviais. Aos oito anos, já era órfão de pai e mãe. Estudos, não teve. Acaba migrando para o Recife. Ali passa fome, dorme nas ruas, trabalha como carregador de malas e ajudante de pedreiro. Por essa época, entra em contato com militantes de esquerda e vira socialista. Em 1917, é preso e condenado a quatro anos de cadeia por participar de manifestações de apoio às greves que ocor- riam naquele ano e à Revolução Comunista Russa. Seria preso muitas outras vezes de- pois. Liberto após cumprir a pena, ingressa no Exército. Finalmente é alfabetizado e en- tra na Escola de Sargentos. Em 1930, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Era o começo da Era Vargas (1930–45). Em 1935, o PCB tenta derrubar Getúlio do poder, no que ficou conhecido como Intentona Comunista. A revolta no Recife é liderada por Gregório Bezerra. É um fracasso, e vários militantes de esquerda são presos. Gregório é pu- nido com 28 anos de cadeia, cumprindo pena, contudo, até 1945, quando foi liber- tado com a anistia decretada em virtude do fim do Estado Novo (1937–45). Já é um militante comunista respeitado e famoso, tanto que é eleito deputado cons- tituinte/federal em 1946. Tem posições O C RU ZE IR O firmes na defesa das causas populares. Em 1947, como avanço da Guerra Fria e histeria anticomunista, o registro eleitoral do PCB é cassado, e todos os parlamentares comunis- tas perdem os mandatos. Gregório Bezerra volta à clandestinidade, participando do movimento sindical. Com o Golpe de 1964, está entre os primeiros presos da Ditadura Militar, sendo torturado e humilhado pelas ruas do Recife ao ser amarrado a um jipe. Em 1969, contudo, acaba liberto, em troca do embaixador americano no Brasil, Char- les Elbrick, que havia sido sequestrado por grupos guerrilheiros de esquerda. Viveu no México e depois na União Soviética, exilado. Em 1979, com a Lei da Anistia, pôde retor- nar ao Brasil. Em divergência com o PCB, ingressa no PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e fica na suplência de deputado federal nas eleições de 1982. No ano seguinte, falece. Sobre Gregório, escreveu o poeta Ferreira Goulart: “Mas existe nesta terra muito homem de valor que é bravo sem matar gente, mas não teme o matador, que gosta da sua gente e que luta a seu favor, como Gregório Bezerra, feito de ferro e de flor”. 18 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 18 27/12/16 11:39 LUÍS CARLOS PRESTES Luís Carlos Prestes, O Velho, foi o mais importante dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no século XX. Gaúcho nas- cido em 1898, fez carreira militar (chegou a capitão) e ganhou notoriedade nacional nos anos 1920, quando os tenentes e demais jovens oficiais do Exército tiveram grande atuação política, sonhando em mudar o País, então governado por oligarquias rurais. Ocorreram várias revoltas tenentistas — a mais famosa, a Coluna Prestes, liderada por Luís Carlos Prestes, que, com mais de mil homens, percorreu de norte a sul o Brasil entre 1924 e 1927, na intenção de derrubar o governo de Artur Bernardes (1922–26). Prestes ficou conhecido como Cavaleiro da Esperança, mas a Coluna não teve êxito e se dissolveu na Bolívia. Por essa época, Prestes passa a simpatizar com os ideais socialistas, acreditando que apenas assim acontece- riam mudanças para valer na sociedade. Vira comunista e ingressa no PCB. Vai para a União Soviética em 1931, de onde regressa ao Brasil em 1934 e lidera no ano seguinte o que ficou conhecido como Intentona Co- munista, levante comunista que pretendia derrubar Getúlio Vargas da presidência. Com o fracasso da revolta, Prestes, sua esposa — a famosa militante alemã Olga Benário (que conhecera na União Soviética) —, bem como diversos outros militantes de esquerda são presos. Olga, comunista e judia, é entregue pelo governo Vargas à Alemanha nazista e acaba depois executada num campo de concentração. Prestes fica preso por nove anos, sendo libertado em 1945, com o fim da ditadura getulista do Estado Novo (1937–45). Já era quase um mito para os simpatizantes de esquerda, tanto que é eleito senador em 1946. Mas o registro eleitoral do PCB é cassado em 1947, e os comunistas per- dem seus mandatos. Prestes entra para a clandestinidade, raramente aparecendo em público — o Partido Comunista teme pela prisão e morte de seu mais destacado dirigente. Em 1951, conheceria sua segunda mulher, a pernambucana Maria Prestes, com quem teria sete filhos. No governo do presidente Juscelino Kubistchek, as perseguições aos comunistas diminuem, e Prestes volta à cena política. Engaja-se na defesa das reformas de base defendidas por João Goulart (1961–63). Com o Golpe de 64, Prestes está entre os primeiros a serem cassados. Exila-se na União Soviética. Sua liderança entra em decadência, pois muitos militantes comunistas acusam-no de não ter preparado o PCB para resistir ao Golpe. Além disso, o PCB recusa a luta armada desejada por vários militantes, que, assim, deixam o “Partidão” e fundam novos agru- pamentos políticos. Prestes só voltaria ao Brasil em 1979, com a Anistia. Sem espaços mais dentro do PCB, também sai da organização e adentra o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola. Prestes falece em 1990. 19 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 19 27/12/16 11:39 Eram partidários de soluções técnicas e defen- diam um governo forte, ainda que se dissessem adeptos da democracia. Apoiavam a Ditadura no sentido de o País realizar “reformas moder- nizadoras conservadoras” para, então, o governo voltar aos civis. O segundo grupo dos militares era o da Linha Dura, composto da maioria dos membros das Forças Armadas e que tinha como líder o General Costa e Silva. Esse grupo apresentava militares com menor grau de instrução — eram mais jovens e sem muitas ligações com os Esta- dos Unidos, embora, tal qual a Sorbonne, fossem visceralmente anticomunistas. Em geral, eram muito nacionalistas e defendiam o crescimento econômico do País em associação com o capital estrangeiro, embora o Estado devesse ter um papel importante nesse crescimento. Defendiam a “revolução permanente”, ou seja, a necessidade de estar sempre combatendo os “inimigos da Pátria”, sendo para tanto necessária uma maior permanência dos militares no poder. Mais radicais, foram os membros dessa Linha Dura os principais envolvidos nos casos de tortura e morte dos opositores da Ditadura Militar. Não se pode pensar, contudo, que ape- nas a Linha Dura cometeu crimes para “defender a Pátria”. Pesquisas recentes mostram que ações arbitrárias foram promovidas igualmente por integrantes da Sorbonne. SORBONNE E LINHA DURA O AI-1 estabeleceu ainda a eleição indireta do novo presidente do Brasil, ou seja, pelo Congresso Nacional (já esvaziado pelos deputados e senado- res “incômodos”, devidamente cassados antes). O eleito foi o general cearense Humberto de Alencar Castelo Branco, que coordenara o Golpe de 64. O leitor deve saber, porém, que os militares golpistas não formavam um grupo homogêneo, ou seja, existiam, entre eles, alas com interesses distintos. De maneira geral, podemos dizer que existiam dois grandes grupos entre os militares. O primeiro �cou conhecido por Sorbonne, ou Castelista, composto de o�ciais superiores que participaram da II Guerra Mundial (1939–45) e que depois fundaram a Escola Superior de Guerra. Pode-se dizer que eram os intelectuais golpistas (por isso o nome: Sorbonne é uma fa- mosa universidade francesa) de fortes ligações políticas com a UDN. Anticomunistas ferre- nhos, defendiam o alinhamento total do Brasil com os EUA no campo internacional. Politicamente, os militares da Sorbonne eram menos conservadores e defensores do liberalismo econômico, da livre iniciativa e do livre mercado, com a associação do Brasil ao capital estrangeiro para o desenvolvimento nacional. Seu líder era o citado Castelo Branco. 20 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 20 27/12/16 11:39 Marighella, líder revolucionário que teve apoio dos frades dominicanos, como Frei Tito. CARLOS LAMARCA E CARLOS MARIGHELLA Tido como o “inimigo número um” da Ditadura Militar, o baiano Carlos Marighella teve uma vida agitada, até ser morto pela repressão em 1969. Nascido em Salvador (BA) em 1911, era filho de um italiano e uma negra descendente de escravos. Alto, de bom preparo físico, notabilizou-se pela coragem e audácia, mas também pelo talento literário, escrevendo livros, desde teoria revolucionária à poesia. Em 1936, abandonou os estudos superiores para virar militante profissional do PCB, tal a convicção que apresentava no ideal socialista. Preso durante a ditadura getulista do Estado Novo, é libertado em 1945, com anistia. Já militante famoso e defensor das causas populares, acaba eleito deputado em 1946, perdendo o mandato no ano seguinte em virtude da decretação da ilegalidade do PCB. Como tantos outros militantes comunistas, passa a ter vida clandestina, embora continue a atuar no meio sindical. Com o Golpe de 1964, entra em atrito com o PCB. Não aceita a posição do “Partidão” em recusar a luta armada como forma de derrubar a Ditadurae levar o País para o socialismo. Após contatos com Cuba, funda a Ação Li- bertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro responsável por várias operações, a mais famosa delas, o sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, em 1969. A partir daí, a repressão da Ditadura intensificou-se, com a prisão, a tortura e o assassinato de vários militantes. Marighella acaba sendo assassinado à bala em 1969, em São Paulo, numa ação policial comandada pelo famoso delegado Sergio Paranhos Fleury. A ALN, contudo, con- tinuou na ativa, até ser aniquilada em 1972, com a morte de vários de seus líderes e militantes. Outro Carlos igualmente atazanou os militares. Era Carlos RE PR O D U Ç Ã O 21 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 21 27/12/16 11:39 Lamarca, carioca nascido em 1937. Desde jovem fez carreira militar, chegando à pa- tente de Capitão. Era excelente atirador e chegou a fazer parte das tropas de paz da ONU mandada à Palestina nos anos 1960. Já simpatizante da causa socialista, matinha contato com agrupamentos re- volucionários, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em 1969, desertou do Exército, levando de um quartel várias armas e munição, numa ação que irritou profundamente os militares, afinal era um capitão das Forças Armadas que “passava” para o lado inimigo. Tornou- -se mesmo uma “questão de honra” para os militares eliminar Lamarca. Uma das operações mais famosas da VPR foi o assalto ao cofre do ex-governador paulis- ta Ademar de Barros (famoso pela frase “roubo, mas faço”). Com o crescimento do cerco por parte da Ditadura, Lamarca deslocou-se para os sertões da Bahia, onde, em 1971, após dramática fuga, foi fuzilado pelos agentes da repressão. Carlos Lamarca. 22 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 22 27/12/16 11:39 O cearense Castelo Branco assumiu a presidência com o Golpe de 64. CASTELO BRANCO Assumindo em 15 de abril de 1964, Castelo Branco fez um governo mais vacilante do que realmente brando. Acabou conivente com vários arbítrios e não conseguiu deter o crescimento da Linha Dura e dos defensores da Ditadura pura e simples. Uma evidência do autoritarismo foi a criação, em junho de 1964, do Serviço Nacional de Informação (SNI), que teve como principal idealizador e primeiro chefe o General Golbery do Couto e Silva (outro importante líder do grupo da Sorbonne). O SNI tinha como meta “coletar e analisar informações úteis à segurança nacional” — na prática, tornou-se um órgão de espionagem poderoso, vigiando a todos com seus agentes in�ltrados na sociedade. Durante a Ditadura, havia um clima de medo entre as pessoas de cair nas mãos do SNI, ser perseguido, preso, tortura- do e eliminado. Ninguém falava o que pensava abertamente, descon�ava-se de qualquer pessoa estranha, e havia pavor dos dedos-duros, gente que denunciava ou falsi�cava denúncia contra os “subversivos”. Anos depois, tentando se justi�car, Golbery disse que criara um monstro... Passados os momentos iniciais de “euforia” pelo triunfo da “Revolução”, a nova administra- ção tratou de realizar as reformas para “mudar o Brasil”. Para “resolver a questão rural”, Castelo fez aprovar o Estatuto da Terra, que encaminhava a reforma agrária e promovia uma política agrícola. A lei nunca saiu do papel — ao contrário, não houve reforma agrária, continuou-se a perseguir os sindicalistas rurais e estimulou-se o grande agronegócio, em detrimento dos pequenos pro- prietários. Na política internacional, o Brasil alinhou- -se completamente com os EUA, os quais, não por acaso, foram os primeiros a reconhecer o Golpe de 64. Exemplo desse alinhamento foi o envio de tropas brasileiras à República Domini- cana, apoiando um golpe e a invasão militar ali realizada pelos Estados Unidos na intenção de derrubar um governo de esquerda. Internamente, o importante Ministério do Planejamento do governo foi entregue ao civil conservador Roberto Campos, que, ao lado do Ministro da Fazenda, o também civil Otávio Gouveia de Bulhões, dirigiu a economia nos anos RE PR O D U Ç Ã O 23 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 23 27/12/16 11:39 iniciais da Ditadura. Para tanto, lançou-se o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), que tinha entre suas metas o controle da in�ação, tida como o principal obstáculo ao crescimento brasileiro. As causas da in�ação foram apontadas como sendo os gastos do governo (dé�cit público), o excesso de crédito para o setor privado e os aumen- tos de salário. Assim, para controlar seu dé�cit, o governo tratou de cortar os gastos públicos, ou seja, investir menos em saúde, educação, etc., e aumentar as tarifas das empresas públicas e os impostos (mexendo, pois, no bolso da população). Criou-se ainda a correção monetária para tarifas públicas, ou seja, os tributos pagos com atraso te- riam os valores corrigidos pela in�ação. A oferta de empréstimos do governo para empresas privadas foi igualmente encarecida e di�cultada. Com isso, muitas empresas começaram a pas- sar por di�culdades, algumas fechando e gerando mais desemprego. Foi, porém, no campo salarial que o governo agiu mais duramente. Os salários passaram a ser achatados (isto é, tiveram seu valor real diminuído), pois só eram reajustados uma vez por ano e em níveis inferiores ao da in�ação. Os trabalhadores perderam o direito de esta- bilidade após dez anos no mesmo emprego, o que foi substituído pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) — �cou mais fácil para o patrão demitir os empregados, que, sabendo que pode- riam ser demitidos a qualquer momento, eram obrigados a aceitar a baixa remuneração. Lembre- mos que os sindicatos mais combativos estavam fechados ou sob intervenção do governo e não podiam reagir àquelas medidas. Os sindicalistas mais radicais haviam sido afastados, perseguidos ou mesmo presos. Greves eram proibidas. Por outro lado, o governo criou muitos benefícios para os investimentos estrangeiros, facilitando as remessas de lucro para o exterior, de modo que as empresas multinacionais passaram a investir em peso no Brasil. O governo dos EUA e o Fundo Monetário Internacional (FMI) empres- taram muito dinheiro à ditadura brasileira. Para o objetivo que desejava, o Paeg foi um sucesso, pois a in�ação começou a baixar a partir de 1966, embora com custos elevados para o conjunto da sociedade, provocando descontentamento mesmo entre aqueles que haviam apoiado o Golpe de 64. A LINHA DURA EM ASCENÇÃO O descontentamento popular com os ru- mos da “revolução” �cou evidente já em outubro de 1965, quando alguns estados realizaram elei- ções para governador. Mesmo com a cassação de vários políticos, a oposição ganhou em estados importantes, como Guanabara e Minas Gerais. O resultado das urnas alarmou os militares e enfraqueceu o grupo Castelista. Para a Linha Dura, era a prova de que o governo era muito complacente com os adversários. Defendiam 24 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 24 27/12/16 11:39 No começo de 1966, outra medida arbi- trária de Castelo: a decretação do AI-3, estabe- lecendo que as eleições para governadores dos estados também seriam indiretas, através dos deputados estaduais. Ao longo daquele ano, ocorreram novas cassações de parlamentares oposicionistas, e, em outubro, o Congresso Na- cional seria fechado — inclusive com a invasão do plenário por militares —, sendo reaberto apenas um mês depois (pelo AI-4) para aprovar, às pressas, um novo texto constitucional (elabo- rado e imposto pelos militares), que entrou em vigor em março de 1967. A Constituição de 1967 incorporou as medidas autoritárias da Ditadura, aumentando as atribuições do presidente da República e a centralização do poder, ou seja, aumentou ain- da mais as competências do Governo Federal e subordinou os governadores e prefeitos.A rigor, quem mandava eram os militares, agindo como bem desejassem. Era visível o endurecimento da Ditadura. Debilitada, a Sorbonne não conseguiu fazer o sucessor de Castelo Branco (que, por sinal, fa- leceria num desastre aéreo posteriormente). Em março de 1967, a Linha Dura assumiu �nalmente o comando do País, ao tomar posse o novo presi- dente, General Costa e Silva, eleito indiretamente pelo Congresso. Iriam começar os mais terríveis anos da Ditadura, os “anos de chumbo”. que era preciso “pulso” e o endurecimento do regime para levar adiante a luta contra o comu- nismo “ateu” e a corrupção. Pressionado pela Linha Dura, Castelo Bran- co baixou o Ato Institucional nº 2 em outubro de 1965, apenas 24 dias após as eleições estaduais. O AI-2 estabeleceu de�nitivamente que a eleição do presidente da República seria realizada pelo Congresso Nacional, em sessão pública e nominal (os militares temiam nova derrota caso houvesse eleição direta). Determinou, ainda, a extinção dos partidos políticos existentes e a criação de um regime bipartidário no País, ou seja, só poderia haver dois partidos. Dessa maneira, surgiram dois partidos: Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A Arena agrupava os partidários da Dita- dura, sendo que a maioria de seus membros era proveniente da antiga União Democrática Na- cional e do Partido Social Democrático (PSD). O MDB, de oposição, reunia políticos vindos do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e alguns do PSD. É bom lembrar que, a princípio, pelo me- nos, o MDB era um partido frágil (essa era uma razão para os militares permitirem sua existên- cia), pela força da Ditadura e pela ausência de lideranças de expressão (os principais líderes oposicionistas estavam cassados ou exilados). Apenas na segunda metade da década de 1970, o MDB ganhou maior expressão política. 25 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 25 27/12/16 11:39 A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DOS ANOS 1960 A década de 1960 foi agitada não apenas politicamente, mas tam- bém na produção artística e cultural. Em 1961, a União Nacional dos Estudantes (UNE) criara os Centros Populares de Cultura (CPCs) no sentido de produzir uma arte nacionalista, de esquerda, voltada para a problemática social e defensora de reformas na sociedade — uma “arte revolucionária” e engajada politicamente. Em contato direto com as massas, os CPCs encenavam peças em portas de fábricas, favelas e sindicatos, publicavam cadernos de poesia e produziam �lmes, além de promover cursos de teatro, artes visuais e �loso�a. Na música, igualmente surgem artistas com militância política, produzindo o que �cou conhecido como canção de protesto. As letras apresentavam conteúdo político e social, virando um instrumento de conscientização das classes populares — aí destacam-se nomes como Carlos Lyra, João do Vale, Chico Buarque de Hollanda e Geraldo Vandré, muitos dos quais revelados em Festivais da Canção nas tevês Excelsior e Record (a Globo só se tornaria dominante com a Ditadura). Durante a Ditadura, sobretudo na fase de maior repressão dos “anos de chumbo”, tais canções eram censuradas, como ocorreu com Pra não dizer que não falei de �ores — 1968, de Geraldo Vandré, que praticamente se tornou um hino de contestação aos militares: “Caminhando e cantando/ e seguindo a can- ção,/ somos todos iguais,/ braços dados ou não./ Nas escolas, nas ruas,/ campos, cons- truções,/ caminhando e cantado/ e seguindo a canção [...]”. Vem, vamos embora/ que esperar não é sa- ber/ quem sabe faz a hora/ não espera acon- tecer...” Geraldo Vandré. RE PR O D U Ç Ã O Após o Golpe de 1964, a agitação política cresceu e a participação de artistas na composição de músicas de protesto tam- bém. Assim como Geraldo Vandré, Chico Buarque (acima) compôs diversas músicas com esse intuito. RE PR O D U Ç Ã O 26 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 26 27/12/16 11:39 Ao lado dessa música engajada, com re- flexões políticas, acontecia um movimento de música jovem chamado Jovem Guarda, que também se tornou uma referência na produção artística do Brasil dos anos 1960. O rock chegara ao Brasil na década de 1950, mas estourou de fato no decênio seguin- te. Era o mais puro iê-iê-iê, canções açucaradas, ingênuas e de consumo, ou seja, apenas para ouvir, sem maiores reflexões. O nome Jovem Guarda veio de um programa da TV Record, existente entre 1965–68 e apresentado por três grandes expoentes e cantores daquele estilo musical: Roberto Carlos, o “rei da juventude”, Erasmo Carlos, o “tremendão”, e Wanderléia, a “ternurinha”. A Jovem Guarda, se por um lado ia contra o conservadorismo da sociedade, potencializava o corpo como fonte de prazer para os jovens (na- moro, beijo, danças, etc.), com cantores e fãs de cabelos longos, garotas com minissaias e gírias (“É uma brasa, mora!”). Apresentava-se sem preocupações sociais ou políticas, uma “música alienada”, como diziam à época as esquerdas, intelectuais e uni- versitários. En- quanto o País vi- via o drama da Ditadura, Rober- to Carlos cantava: “De que vale o céu azul e o Sol sempre a brilhar/ se você não vem, e eu estou a lhe esperar./ Só tenho você no meu pensamento,/ e a sua ausência é todo o meu tormento./ Quero que você me aqueça nesse inverno/ e que tudo mais vá pro inferno [...]” (Quero que vá tudo pro inferno — 1966). Surgiu, então, uma “divisão”: os adeptos de uma arte engajada e os de uma cultura de consu- mo, ou “alienada”. Tal divisão, depois, passou para os festivais de música na tevê, na oposição entre os defensores da música de protesto e os tropicalistas, integrantes de um outro importante movimento cultural do País na década de 1960. O Tropicalismo, ou Tropicália, surgiu do destaque de um grupo de artistas baianos parti- cipantes do festival de música na TV Record, em 1967, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil pro- vocaram polêmica com as músicas Alegria, alegria e Domingo no Parque, respectivamente. Em 1968, o lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circensis divulga ainda mais o movimento, que mistura o arcaico e o moderno, ou seja, elementos da cultura tradicional brasileira e a modernidade da vida urbana e sua cultura de consumo. No movimento, também se destacaram Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Rogério Duprat, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão, entre outros. Inspirado no Manifesto Antropofágico da Se- mana de Arte Moderna de 1922, a Tropicália aceita as in�uências externas (para raiva das esquerdas nacionalistas), incorporando- -as à cultura brasileira, como, por exemplo, o uso de gui- tarras elétricas (vistas por muitos como um símbolo do imperialismo dos EUA). 27 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 27 27/12/16 11:39 Também é in�uenciada pelas inovações estéticas radicais e pelas vanguardas artísticas, com a pop art, a poesia concreta e a contracultura. Era a “geleia geral brasileira”. As inovações de comportamento (barbas e cabelos longos, roupas frouxas e coloridas, consumo de drogas, etc.), cafonice, carnavalização do País, crítica musical, crítica social e política, etc. também assustaram e irritaram bastante as direitas e os conservadores da Ditadura — tanto que Gil e Caetano viram-se obrigados a sair do País. Dessa maneira, sem adotar a postura de esquerda das canções de protesto nem cair no mero consumismo do iê-iê-iê, o Tropicalismo tratou a política e a estética num mesmo plano, evidenciando, com uma outra forma de arte, as contradições da modernização subdesenvolvida. A canção Tropicália (1968), de Caetano Veloso, serve bem de exemplo para o que falamos: No trecho da canção ao lado, percebemos uma tensão crítica entre o tradicional e o mo- derno: “bossa” e “palhoça”, “banda” (referência a uma canção de Chico Buarque) e “Carmem Miranda”.O arranjo da canção (tente ouvi-la) mistura ritmos populares brasileiros com mú- sica de vanguarda e ritmos de música jovem. O Tropicalismo igualmente se manifestou em outras formas de arte, como nas artes plásticas (com destaque para Hélio Oiticica), no cinema (com Glauber Rocha e o Cinema Novo) e no teatro (com as peças polêmicas de José Celso Martinez Correa). “Sobre a cabeça, os aviões; sob os meus pés, os caminhões./ Aponta contra os chapadões, meu nariz/ Eu organizo o movimento, eu oriento o Carnaval,/ eu inauguro o monumento no Planalto Central do País./ Viva a bos-sa-sa- sa, viva a palhoça-ça-ça-ça-ça [...]/ Domingo é o fino da bossa, segunda-feira está na fossa,/ terça-feira vai à roça, porém / o monumento é bem moderno, não disse nada do modelo do meu terno./ Que tudo mais vá pro inferno, meu bem. / Viva a banda-da-da, Carmem Miranda- da-da-da-da”. A G ÊN C IA O G LO BO Rio, dezembro de 1964. Nara Leão durante o show Opinião; surge a “estética da agitação”. 28 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 28 27/12/16 11:39 RE PR O D U Ç Ã O TAIGUARA Sendo considerado um dos símbolos da resistência à censura, Taiguara foi um dos mais censurados compositores da MPB, pois teve mais de 100 canções vetadas. Taiguara Chalar da Silva nasceu no Uruguai, em 1945, durante uma tem- porada de shows de seu pai, o maestro Ubirajara Silva. Largou a faculdade de Direito para se dedicar à música e foi autor de clássi- cos da MPB, como Hoje, Universo do Teu Corpo, Teu Sonho Não Acabou e Viagem. Devido aos seus problemas com a censura, Taiguara se autoexilou na Inglaterra por volta de 1973, gravando LPs que nunca chegariam ao mercado fonográfico. Voltou ao Brasil em 1975 e gravou Imyra, Tayra, Ipy – Taiguara, com Hermeto Paschoal e grande orquestra, mas o espetáculo do lançamento do dis- co foi cancelado, e a censura recolheu rapidamente todas as cópias. Esse fato o levou ao autoexílio nova- mente, desta vez na África e Europa por vários anos. Por volta dos anos 1980, vol- tou ao Brasil, mas não obteve o mesmo sucesso do passado. Faleceu em São Paulo, de câncer na bexiga, em 1996. 29 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 29 27/12/16 11:39 CHICO BUARQUE Francisco Buarque de Hollanda nasceu no dia 19 de junho de 1942 no Rio de Janeiro. Passou parte da infância em São Paulo e na Itália. Desde pequeno, foi louco por futebol e já desenvolvia seu lado escritor no jornalzinho da escola. Vivia em uma casa cheia de músicos, escri- tores, poetas e intelectuais; alguns amigos de seu pai, Sérgio (grande historiador bra- sileiro), ou de sua irmã Heloísa. Logo, seu gosto pela música e literatura aflorou. Chico ainda estudou Arquitetura em São Paulo, mas logo descobriu que não tinha talento para essa área. Em seguida, na década de 1960, inicia-se a fase dos gran- des festivais de música, onde ele aparece em destaque com a música Sonho de um Carnaval. Após esses, seguiram-se vários festivais, novas parcerias musicais, etc. No momento em que escreve Pedro Pedreiro, estabelece sua identidade musical, ou seja, deixa de criar apenas dentro da linha Tom Jobim para mostrar uma característica pró- pria. A partir daí, os críticos e estudiosos se debruçam sobre sua obra, estudando-a sob todos os ângulos. Chico tornou-se o grande sucesso nacional, comparado, admirado, estudado, lido e cantado por jovens e velhos. Por causa de sua obra provocativa e po- litizada, ele foi ameaçado pelo regime militar brasileiro e se autoexilou na Itália, em 1969. Nessa época, e mesmo quando retornou ao Brasil em 1970, confrontou-se duramente com a censura do governo Mé- dici. Estabeleceu-se um jogo desgastante entre o compositor e os censores. Apesar de você, Cálice, Tanto Mar e Bolsa de Amores foram completamente cen- suradas; outras canções tiveram versos inteiros vetados. Apesar de conseguir vê- -las gravadas anos depois, com o afrouxa- mento da censura, o cantor lamenta que o tempo delas tenha passado, pois Tanto Mar, por exemplo, diz respeito à Revolu- ção dos Cravos em Portugal, e muita coisa teve que ser mudada para que ela fosse lançada. Seu confrontamento com a censura foi longo e cansativo. Em alguns casos, tratava-se de censura política; em ou- tros, de censura moral; demonstrando a estrutura de qualquer ditadura: a aliança da repressão política com a repressão sexual. Ele assumiu o pseudônimo de Julinho da Adelaide para tentar se livrar do cerco dos censores e conseguiu gravar três canções. Mesmo assim, continuava a compor numa 30 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 30 27/12/16 11:39 A G ÊN C IA JB Chico Buarque fez de sua música uma grande propaganda antiditadura. A BR IL IM A G EN S linha de denúncia de aspectos sociais, econômicos e culturais, como a famosa Construção. Também escreveu criticando diretamente a Ditadura, como em Meu Caro Amigo. Nessa época de confrontamento escanca- rado com a censura, Chico confessa que, em muitos momentos, sua critatividade estava mais voltada para driblar a censura do que para sua própria música. Esse corpo a corpo de Chico com a censu- ra registrou episódios lamentáveis, como o desligamento de microfones em shows, o espancamento de atores de suas peças e o impedimento da imprensa de notificar a proibição de suas obras. É inevitável que nossa reflexão nos leve à conclusão de que, além de inibir, conter e atrapalhar o processo criativo do artis- ta, a censura também comete o grave pecado de desinformar culturalmente, interrompendo o processo de formação/ informação do público. Chico Buarque, nossa unanimidade na- cional, ainda hoje é referência e inspira- ção para muitos, continua compondo e fazendo shows pelo mundo. Ele converte em sucesso tudo o que empreende, pro- vando que mesmo um súdito excluído da corte oficial pode vencer e mostrar as verdades à sociedade. 31 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 31 27/12/16 11:39 Costa e Silva: a Linha Dura militar no governo. Diante do modelo econômico militar, que prejudicava os trabalhadores e achatava os sa- lários, acontecem greves, mesmo que proibidas pelo governo. Em 1968, há greves em Contagem (MG) e Osasco (SP), inclusive com ocupação de fábricas pelos operários e forte apoio de es- tudantes e das esquerdas. O governo interveio nos sindicatos, e tropas fortemente armadas, usando de violência, desocuparam as empresas. Nesse momento, igualmente se intensi�cava a luta armada das esquerdas, aparecendo diversos grupos guerrilheiros, conforme veremos adiante. Até parte de antigos aliados dos golpistas, como Carlos Lacerda, passou a questionar o re- gime. Lacerda, desejoso de ocupar a presidência da República, uniu-se (quem diria!) a seus antigos desafetos Juscelino Kubitschek e João Goulart na denominada Frente Ampla, organizada em 1966 e que exigia o �m da permanência dos militares no poder e a redemocratização imediata do País. A G ÊN C IA B RA SI L Os anos de chumbo COSTA E SILVA Chamado de “Tio Velho” pelos golpistas de 64, o Presidente e General Artur da Costa e Silva (1967–69) realizara uma sólida carreira militar. Suas características, contudo, diferenciavam-se das do intelectualizado Castelo Branco — nada de leituras complicadas sobre estratégia militar; preferia coisas leves e corridas de cavalos. Era um dos líderes da Linha Dura, o grupo mais radical dos militares, defensores de um regime forte e autoritário, que combatesse por todos os meios os opositores políticos. Iria realizar um governo complicado, pois, após os momentos iniciais de maior impacto da repressão, as oposições começaram a se rearticu- lar, sobretudo as de esquerda. Membros da Igreja Católica passaram a se atritar com o governo, destacando-se no Nordeste Dom Helder Cama-ra, arcebispo de Olinda e do Recife. A União Na- cional dos Estudantes (UNE), fechada quando do Golpe, começou a mobilizar os estudantes, que teriam grande destaque nos protestos contra a Ditadura, sobretudo no ano de 1968. 32 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 32 27/12/16 11:39 A Frente foi proibida pela Ditadura em 1968. Eram comuns, nas ruas das principais cida- des do País, os confrontos entre estudantes e po- liciais: correrias, bombas de gás, balas, coquetéis molotov (bombas caseiras), pedradas, prisões, pessoas feridas e até mortes. Os estudantes pro- testavam não só contra a Ditadura, mas exigiam maior atenção e recursos para a educação, bem como melhores condições de vida para a popu- lação. A maioria daqueles jovens queria mudar o mundo — costumes, política, cultura, artes. A ERA DAS REVOLUÇÕES As pessoas dos anos 1960 acreditavam �r- memente em mudanças, fossem pací�cas ou não — não por acaso, os militares de 64 chamaram seu golpe de “revolução”. De fato, muita coisa estava mudando na época: maior liberdade sexual (com a invenção da pílula anticoncepcional), emancipação feminina, novos comportamentos (uso da minissaia, consumo de drogas, rock), crítica aos sistemas políticos (fosse o consumis- mo capitalista dos EUA, fosse o autoritarismo da URSS). Havia um desejo incontido por liberdade e novas experiências. Nos muros das cidades, pichavam-se frases provocativas: “Sejamos rea- listas — peçamos o impossível”. Parecia que tudo que “era sólido estava se desmanchando no ar”. As mudanças, obviamente, não iriam aconte- cer por si mesmas. Necessitavam ser provocadas, e, para tanto, a força não estava descartada. Assim, há toda uma exaltação dos confrontos e agitações que ocorriam mundo afora, como na Ásia (a Guerra do Vietnã, quando os camponeses vietnamitas lutavam bravamente contra os EUA), nos Estados Unidos (onde ocorriam gigantescos protestos contra a Guerra do Vietnã e agitações sociais pelos direitos civis dos negros), na África (onde vários países obtinham sua independência), na Europa (�caram famosos os protestos estudantis de maio de 1968 na França, quando os estudantes quase derrubaram o governo local; e a chamada Primavera de Praga, quando tropas soviéticas invadiram a antiga Che- coslováquia e massacraram um movimento popular que desejava democratizar o socialismo) e, sobretu- do, na própria América Latina (com o surgimento de várias guerrilhas de esquerda, que tentavam reproduzir o êxito da Revolução Cubana de 1959). Dos inúmeros incidentes acontecidos em 1968 no Brasil, um dos mais destacados foi a mor- te do estudante Edson Luís, de 17 anos, no Rio de Janeiro, num confronto entre universitários e policiais, em 28 de março. Revoltados, os colegas do estudante não permitiram que a polícia levasse o cadáver, que foi conduzido até a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e posto numa mesa. O assassinato chocou o País. No enterro do rapaz, compareceram mais de 50 mil pessoas. 33 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 33 27/12/16 11:39 As passeatas de 1968 terminavam, muitas vezes, em confronto com a polícia. AGÊNCIA JB Passeata dos Cem Mil, em 1968, no Rio de Janeiro. AGÊNCIA JB As manifestações estudantis aumentaram Brasil afora em pro- testo pelo ocorrido. No Rio de Janeiro, ocorreu em 1º de abril de 1968 (aniversário de quatro anos do Golpe) a famosa Passeata dos Cem Mil, em memória de Edson. Tornaram-se rotineiras as cenas de jovens com apitos, bandeiras e faixas, fazendo greves, ocupando faculdades, praças e ruas, gritando “Abaixo a Ditadura”. Raro o dia que não ocorresse uma passeata ou um confronto nas ruas — a juventude, para surpresa dos conservadores, se organizava, brigava, virava carros, incendiava, era também violenta contra os que a violentavam. Os jovens protestavam contra os acordos entre o Ministério da Educação (MEC) e a United Agency for Internacional Development, mais conhecidos como acordos MEC-Usaid, que colocaria em risco o ensino público e gratuito através da transformação das universidades em empresas a serviço do modelo capitalista. Criticavam o problema dos “excedentes” (que sempre vinha à tona no início do ano, após o vestibular), estudantes que, embora conseguissem a aprovação no vestibular, não cursavam as faculdades, em virtude da falta de vagas. As manifestações eram combatidas pela polícia e pelos grupos de extrema direita, como o Movimento Anticomunista (MAC). Em 13 de outubro de 1968, a polícia prendeu mais de mil estudantes em Ibiúna (SP), quando a UNE realizava um congresso estudantil clandestino. Costa e Silva e a Linha Dura �caram pasmos diante de “tanta baderna”. Seus piores pesadelos estavam virando realidade. Contudo, aquela agitação toda acabou servindo de pretexto para a Linha Dura colocar em prática o que já defendia desde o Golpe de 64, ou seja, o fechamento total do regime e uso da “força pesada” contra os opositores. É nesse sentido que se deve entender a decretação do terrível Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. 34 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 34 27/12/16 11:39 BRASIL 13, ATO 5 O pretexto imediato usado pelos militares para decretar o AI-5 chega a ser ridículo. Em 2 de dezembro de 1968, o jovem deputado federal carioca do MDB, Márcio Moreira Alves, fez um discurso no Congresso Nacional, no chamado “pinga-fogo” (sessões às quais comparecem poucos deputados), denunciando o autoritarismo que o País vivia, sugerindo que as pessoas boicotassem os militares, que não comparecessem aos des�les de 7 de Setembro, que “as mocinhas não danças- sem com os cadetes enquanto não terminassem as torturas e a ditadura no Brasil”, etc. O discurso foi mimeografado e distribuído nos quartéis, sendo recebido pelos militares como uma “grande ofensa”. O governo, então, diante da “agressão às Forças Armadas”, solicitou a autorização da Câmara dos Deputados para processar Márcio Alves. Os parlamentares não deram tal autori- zação. Na verdade, a não aceitação do pedido era desejada pelo próprio governo Costa e Silva, para aumentar ainda mais o clima de atrito com as oposições e decretar o AI-5 — tanto é isso que os próprios deputados ligados à Arena eram estimulados pela Ditadura para votar contra a autorização do processo! Aquela agitação política toda do �nal dos anos 1960, perceba, não foi a causa para a decreta- ção do Ato Institucional nº 5. Foi apenas desculpa que a direita radical da Linha Dura esperava para endurecer de vez o regime, coisa que desejava ter feito já quando do Golpe de 64. Assim, na sexta-feira 13 de dezembro de 1968 (mais uma sexta-feira 13 em nossa história — para os supersticiosos), Costa e Silva, em tom sensacionalista, devido à “necessidade de conti- nuar a revolução e salvar o Brasil da anarquia e baderna”, mandou tropas do Exército fecharem o Congresso Nacional e baixa o AI-5, que dava aos militares amplos poderes e reduzia ao mínimo os direitos dos cidadãos. O AI-5, ao contrário dos anteriores, não tinha prazo de vigência (mas duraria até 1978) e suspendia todas as garantias constitucionais e individuais. Suspendia o habeas corpus* para os crimes contra a “segurança nacional e a ordem Mesmo antes do decreto do AI-5, muitos atos violentos já ocorriam contra civis, como o assassinato do estudante Edson Luís em março de 1968. Na imagem, vemos José Dirceu discursando com a camisa ensanguentada do estudante morto. Depois do AI-5, os militares ganharam mais poderes. RE PR O D U Ç Ã O 35 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 35 27/12/16 11:39 política”, dava ao presidente da República poderes para fechar provisoriamente o Congresso Nacio- nal, cassar e suspender direitos políticos, demitir e aposentar servidores públicos. Segue-se, então, nova onda de prisões,cas- sações e perseguições aos opositores. Calcula-se que mais de 10 mil pessoas foram presas e que, nos dois meses seguintes, 441 cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos ou foram cassa- dos, muitos deles professores universitários. Os meios de comunicação passam a ser censurados abertamente. Mais pessoas são obrigadas a fugir ou a deixar o País. No início de 1969, a Ditadura, com base no AI-5, estabeleceu que os agentes do governo poderiam prender quem desejassem por sessenta dias, sendo que por dez dias o detido se- ria mantido incomunicável, ou seja, não poderia falar com familiares ou advogado — na prática, era um sequestro. Com o AI-5, cresceriam ainda mais no Brasil os poderes e a arbitrariedade dos agentes dos vários órgãos de espionagem, informação e repressão do governo, como o Serviço Nacional de Informação (SNI), o Centro de Informação da Marinha (Cenimar), o Centro de Informação da Aeronáutica (Cisa), o Centro de Informação do Exército (CIE), o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a Polícia Federal e as polícias civis e militares dos estados, entre outros. A tortura e até a eliminação dos opositores, sobretudo de esquer- da, tornaram-se métodos rotineiros do governo. Curiosamente, com o fechamento total da Ditadura e o aumento da repressão, os vários gru- pos de esquerda radical aprofundam suas ideias de que o governo só cairia pela força das armas. Não por acaso, as ações armadas da esquerda multiplicam-se a partir de 1969. Acabaram mas- sacradas, como veremos adiante. Em resumo, o AI-5 foi a instalação de�nitiva da Ditadura no Brasil. Até ali, havia ainda, mesmo que limitados, espaços para a oposição se manifes- tar. Depois, não mais, tanto que há historiadores que chamam o AI-5 de “o golpe dentro do Golpe”. Iniciava-se um dos períodos mais sombrios da história brasileira, com prisões em massa, torturas, mortes, etc. Eram os terríveis “anos de chumbo”. Pixação contra a Ditadura, em junho de 1968, meses antes de o AI-5 ser anunciado. A G ÊN C IA JB 36 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 36 27/12/16 11:39 O CABO ANSELMO Um dos mais famosos delatores da Ditadu- ra foi o Cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos). Nascido no Rio de Janeiro em 1942, ingressou na vida militar e notabilizou-se pelo radicalismo na chamada Revolta dos Marinheiros em 1964, um dos episódios que precipitaria o Golpe Militar. Ninguém sabe se já era a esta altura um agente duplo, cujas ações radicais visavam a desestabilizar ainda mais o governo João Goulart. Com a Ditadura, Anselmo é expulso da Marinha e mergulha na vida clandestina, participando da resistência de esquerda ao Regime Mi- litar, fazendo treinamento de guerrilha em Cuba. Volta ao Brasil em 1970, sendo preso pelo temido Delegado Fleury. Há quem acredite que foi neste momento que Cabo Anselmo “mudou de lado”, sendo solto com a missão de se infiltrar nos agrupamentos revolucionários e passar informações para os órgãos de repressão. De fato, fez isso, IC O N O G RA PH IA levando à queda e, consequentemente, tor- tura e morte de vários militantes socialistas. Uma das pessoas presas pela delação de Anselmo foi sua companheira, a paraguaia Soledad Viedma, grávida de cinco meses — a mulher apareceu morta ao lado do feto... Após ser denunciado seu papel de “ca- chorro” (ou seja, um agente a serviço da repressão), Cabo Anselmo sumiu, sendo dado mesmo como morto, embora muitos suspeitassem que estivesse vivo, com iden- tidade falsa e protegido pelo aparato estatal de segurança. Reportagem da revista IstoÉ de 1984 veio a comprovar que Anselmo ainda vivia, aguçando o desejo de muitos ex-militantes de matá-lo, pelas traições que cometera. O Cabo deu nova entrevista à imprensa em 1999, mas seu paradeiro até hoje continua ignorado. 37 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 37 27/12/16 11:39 MAIS UM GOLPE Em agosto de 1969, Costa e Silva sofreu um derrame, que o deixou paralisado. Pela Consti- tuição de 1967, deveria assumir o governo o vice, Pedro Aleixo, civil, conservador oriundo da anti- ga UDN e indicado para o cargo numa intenção da Ditadura em obter apoio da sociedade. Como, porém, Aleixo era contra o AI-5, foi impedido de tomar posse — era mais um golpe dado pelos militares Linha Dura. Uma junta militar, formada pelos ministros militares (General Aurélio de Lira Tavares, Almirante Augusto Rademaker e Brigadeiro Márcio de Sousa e Melo), assume o poder, a�rmando fazê-lo até a recuperação de Costa e Silva (este, contudo, acabou falecendo.) Começaram, então, às pressas, várias ar- ticulações entre os grupos militares para saber quem assumiria de�nitivamente a presidência. Isso provocou grande agitação nos quartéis. Para complicar, em setembro de 1969, grupos armados de esquerda sequestraram o embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, exigindo (e conseguindo), para soltar o diplomata, que a Di- tadura libertasse vários presos políticos. A tensão política aumentou, e as tropas �caram em alerta País afora. A cúpula militar resolveu agir rápido e escolheu o General Emílio Médici, amigo de Costa e Silva, para a presidência. A Linha Dura continuaria no governo dessa forma. Antes de passar o governo para Médici, a junta militar resolveu fazer uma emenda à Constituição, que muitos consideram uma nova Constituição, incorporando todas as medidas arbitrárias baixadas até ali, como o AI-5. Essa verdadeira “Constituição de 1969” estabelecia ainda que o governo poderia baixar os chama- dos decretos-leis, os quais entrariam em vigor imediatamente (e, se o Congresso não os votasse em 60 dias, estariam aprovados de qualquer ma- neira). Cada vez mais a Ditadura ganhava força. Uma das últimas fotos de Costa e Silva (à esquerda), em 1969: apesar da apa- rente normalidade, ele está mudo e com o lado direito do corpo paralisado. A BR IL IM A G EN S 38 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 38 27/12/16 11:39 D O PS SÉRGIO FLEURY O mais famoso torturador da Ditadura foi Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), de São Paulo. Nascido em 1933 e bacharel em Direito, notabilizou-se nos anos 1960 no combate aos crimes comuns na capital paulista. Tal notabilidade fê-lo ser convidado para o Dops e para outros órgãos de combate à “subversão”, como a Oban/DOI-Codi. Participou das ope- rações em que foram assassinados os guerrilheiros Carlos Marighella e Carlos Lamarca. Participou pessoalmente da tortura de centenas de presos políticos. Seus métodos eram brutais, envolvendo pau de arara, choque nos órgãos sexuais, cadeira do dragão, etc. Chegava a injetar éter nos pés das vítimas! Destaque no combate à “subversão”, condecorado várias ve- zes pelas autoridades, Fleury complicou-se ao participar dos esquadrões da morte em São Paulo — policiais contratados para agir como pistoleiros. Por influência política, porém, nunca foi condenado por nenhum dos crimes ou preso (para livrá-lo da prisão, os deputados da Ditadura criaram a Lei nº 5.941, a qual permitia que todos os réus com bons ante- cedentes respondessem julgamento em liberdade, mesmo se tivessem sido condenados em primeira instância — a lei ficou conhecida como Lei Fleury). Delegado Fleury morreu misteriosamente em 1978, ao cair de um iate ancorado no litoral paulista. Não foi feita autópsia, e o corpo foi enterrado às pressas — suspeita-se de vingança de algumas de suas vítimas ou “queima de arquivo” (ou seja, alguém o eliminou temendo que o delegado contasse algo “revelador”). 39 Um_Olhar_Sobre_Os_Governos_Militares_001a112.indd 39 27/12/16 11:39 FREI TITO Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, nasceu em Fortaleza–CE, no ano de 1945. De família humilde, após muito esforço, ingressou no respeitável Liceu do Ceará, onde
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