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A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental
Humanas / Sociais
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e dos sacramentos para coibir e sanar as faltas. Para isso, apresenta um catálogo explicativo classificando os pecados e como é possível extirpá-los, punindo-os segundo sua gravidade. Eles são classificados em uma ordem lógica que vai das faltas públicas às mais particulares, partindo (livro VI) do homicídio,e terminando (livro XVII) na fornicação. O livro XV, Libre Speculationum (Libro das Indagações), é uma meditação sobre o fim do homem, sobre a morte e sobre o que a ela se segue. O Corrector (Censor) ou Medicus (Médico) é inteiramente consagrado à penitência, é chamado assim, porque contém as correções do corpo e as medicinas da alma. Além de ensinar aos padres, mesmo aos mais simples, como aliviar cada um dos penitentes: pobre ou rico, criança, jovem ou velho, decrépito, enfermos, enfim como se deve estender o perdão a todos, de todas as idades, e de ambos os sexos. O Corrector “é uma recapitulação, uma espécie de resumo que, mais manejável, foi muito mais amplamente difundido que o conjunto do tratado. Ali se encontrava para cada pecado a tarifa precisa penitência pública que convinha ao bispo e a seus delegados infligir”.94 Portanto, o Corrector, ___________________________________________________________________________ 93 DUBY, Georges, op. cit., p.17. 95 ibid., op. cit., p. 19. 73 foi considerado o último penitencial, o melhor do gênero. Todavia, na época era mais do que isso, pois não pretendia apenas corrigir, mas também “cuidar”. No século XI, as modalidades de administração do sacramento de penitência elaboraram-se lentamente. Os padres deviam auxiliar os pecadores a purificar-se, devendo submetê-los à tortura, e forçá-los à confissão. “Desde que o penitente começasse a reconhecer suas faltas, era bom atiçar nele a vergonha, impedi-lo de ir mais longe, examinar lucidamente o âmago de sua alma”.95 O Corrector prefigura esses manuais compostos ao final do século XII para os confessores. Burchard de Worms, escreveu dois livros, Des Causes Générales (Das Causas Gerais) e De la Discipline Ecclésiastique (Da Disciplina Eclesiástica). No segundo, figura um questionário, um interrogatório sobre o pecado que consagra os poderes do bispo. Aqui as perguntas são feitas pelo bispo a sete homens escolhidos em cada paróquia, sete jurados. Estes devem revelar tudo o que sabem, o que viram e escutaram relativo às faltas cometidas à sua volta, na comunidade popular. “Trata-se de um procedimento de inquisitio, que o poder público empreendia periodicamente para restabelecer, para manter a paz”.96 No século X, parte atuante da Igreja regula seus procedimentos de controle e dominação, infiltrando-se em todos os níveis da sociedade, estendendo sua influência sobre a conduta dos leigos para detectar os menores indícios do que ela define como pecado. Um século mais tarde, o bispo delegou aos padres seu poder de vigiar e punir. A Igreja de agora em diante apresenta-se em condições de reger o íntimo de seus seguidores. Surge uma inovação relevante acompanhado de uma segunda: Burchard de Worms convida os padres a interrogarem diretamente as mulheres, com perguntas singulares e específicas pertinentes a vida dessas. O interrogatório refere-se aos dois sexos, a propósito de quatro categorias de faltas: o recurso aos sortilégios, o adultério, a fornicação, e a negligência em relação aos filhos. Duby duvida que Burchard possa ter transposto a barreira do universo feminino para obter informações na fonte diretamente com as mulheres. De fato, ele tirou informações de textos anteriores onde essas perguntas já apareciam diferentemente formuladas. Mesmo acreditando que as mulheres reinavam sobre os campos da culpabilidade, Burchard não se abstém de ir ao essencial, ao pecado feminino por excelência, a busca do prazer. Para isso, necessita interrogá-las separadamente. Essa obra elaborada meticulosamente não se atrapalha com perífrases, vai direto ao ponto crucial da questão. __________________________________________________________________________ 95 DUBY, Georges, op. cit., p. 19. 96 id., op. cit., p. 20. 74 Esse mundo clerical masculino, produto das escolas catedrais, que nesses tempos faziam com que o saber saísse dos monastérios, construía uma visão misógina e altamente desfavorável da mulher com intuito subliminar, de exorcizar um impulso, um desejo natural de sexo, de carinho e de afeição; na construção de uma ordem teológica de repúdio a esse anseio e de busca de confirmação dessa construção dogmática repressiva. Da mesma forma, tudo a que se refere ao repúdio, ao adultério, à fornicação, à sodomia, às carícias impudicas, tudo está no masculino, e quanto às posturas sexuais proibidas, quanto aos momentos em que é proibido “dormir juntos”, é sobre o marido, e apenas sobre este, que pesa a suspeita de abusar assim de sua esposa. A convicção de que a mulher, muito ardente e pervertida, incita ao pecado da carne é muito poderosa. Não se vê sentido algum em atribuir ao homem a responsabilidade do pecado. Duby questiona o porquê de Burchard atribuir ao homem a responsabilidade e conclui vislumbrando duas razões: em primeiro lugar porque, por natureza, as mulheres são passivas, especialmente nos gestos do amor; são objetos que os machos, jovens ou velhos, espreitam, dobram à sua vontade, com os quais brincam. A ele as perguntas são feitas, como: “Espiaste mulheres no banheiro, nuas? Manipulaste sua vergonha?”.97 Pecadora, a mulher o é apenas quando sai de seu papel, conseguindo ela própria seu prazer. Quando se faz de homem, ou então, quando ousa – ela, que Deus quis terna, inerrmis, desarmada, posta sob a proteção masculina, forjar suas próprias armas, as poções, os encantamentos, os sortilégios. Quando desafia o poder masculino, irrationabiliter, fora do razoável, do campo das relações sociais ordenadas, claras, quando age longe do olhar do esposo nessa área que lhe é deixada no recanto mais escuro da morada, onde damas e aias cuidam das crianças pequenas, preparam os mortos para a entrada no além, sonham com a desforra, trocam segredos e suas carícias.98 Por outro lado, essa é a principal razão: o homem é o chefe da mulher. É responsável pelos atos e pensamentos daquela que desposou. Seu dever é proibir o que a vê fazer, o que a escuta dizer e desagrada a Deus. Portanto, todas as perguntas referentes a sortilégios, adivinhação, conivência com os demônios, bem como as práticas relativas ao sexo que os padres proíbem ao casal, lhes são feitas. Não a elas, mulheres irresponsáveis e submissas, mas feitas ao homem, seu “amo e senhor”. No livro XI, Burchard transcreveu os termos do juramento aos quais o marido e seu cônjuge eram chamados a prestar quando o bispo os havia reconciliado. O homem faz um discurso breve e a mulher fala mais demoradamente, porque se compromete mais. ___________________________________________________________________________ 97 DUBY, Georges, op. cit., p. 29. 98 ibid., op. cit., p.30. 75 Do lado feminino nota-se a sujeição, o temor, a vergonha, e apenas desse lado, o adultério e as terríveis sanções que a castigam. Em outro texto (livro VIII) é sublinhado que as mulheres não devem aparecer nas assembléias públicas para as quais não são convocadas, que certamente têm o direito de falar, de debater, mas entre si, sobre seus próprios assuntos de mulheres, e nessa parte da casa de onde raramente saem, e sempre acompanhadas. Então, são nesses cantos escusos da casa que as mulheres agem, e nem sempre agem bem. O chefe da casa não poderia ser considerado responsável pelas faltas delas, já que ele pouco penetra nesse espaço tenebroso, íntimo, e quando o faz, se defronta apenas com o silêncio. Nesta concepção, Deus, sim, a tudo