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O pOder nOs tempOs da peste
O poder nos tempos da peste.indb 1 19/8/2009 19:01:46
Mário Jorge da Motta Bastos
O pOder nOs tempOs da peste
(pOrtugal – séculOs xiv/xvi)
Editora da Universidade Federal Fluminense
Niterói, 2009
O poder nos tempos da peste.indb 3 19/8/2009 19:01:46
Copyright © 2009 by Mário Jorge da Motta Bastos
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal 
 Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - 
 Niterói, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.editora.uff.br - 
E-mail: secretaria@editora.uff.br
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da 
Editora.
Normalização: Caroline Brito de Oliveira
Edição de texto: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho
Revisão: Tatiane de Andrade Braga, Icléia Freixinho, Sônia Peçanha
Capa e editoração eletrônica: Marcos Antonio de Jesus
Projeto gráfi co: José Luiz Stalleiken Martins
Editoração eletrônica e supervisão gráfi ca: Káthia M. P. Macedo
Imagem da Capa: Il trionfo della morte. Danza Macabra sulla facciata della Chiesa 
dei Disciplini, Clusone, Bérgamo, Itália – século XV 
(Pesquisa de imagem realizada por Paulo Henrique de Carvalho Pachá).
Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP
B327 Bastos, Mário Jorge da Motta 
 O poder nos tempos da peste (Portugal - séculos XIV/XVI) 
 Mário Jorge da Motta Bastos – Niterói : EdUFF, 2009.
 212 p. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
 Bibliografi a. p. 129 
 ISBN 978-85-228-0522-80475-7
 1. Doença 2. História I. Título II. Série 
 CDD 362.1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor: Roberto de Souza Salles
Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos
Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges
Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes
Assessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos
Comissão Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kaleff
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Livia Reis
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos 
Editora fi liada à
O poder nos tempos da peste.indb 4 19/8/2009 19:01:47
sumáriO
Prefácio, 9
 1. introdução, 17
Parte i: a doença Presente e nomeada
caPítulo 1 – a Peste no ocidente: o mal inscrito na 
longa duração, 25
1.1 a pOlissemia dO termO e as pandemias históricas, 25
1.2 Os “efeitOs” de um mal sem par, 30
1.3 um nOvO ciclO de terrOr, 35
1.4 as cidades sãO sObretudO mOrtuáriOs, 40
1.5 caOs inexplicável?, 45
caPítulo 2 – o discurso cristão: doença-Pecado coletivo, 47
2.1 a mãO interventOra e punitiva de deus, 50
2.2 as “primeiras fOrmulações”, 51
2.3 imagens e expressões dO castigO, 54
2.4 O castigO aflige a cOmunidade, 57
2.5 Origem e sentidO dO castigO: pecadO, culpa e redençãO, 62
caPítulo 3 – autoridade e interdições: a medicina e a doença, 73
3.1 a medicina cOnstrói a dOença, 75
3.2 um discursO de autOridade e interdições, 81
Parte ii: o rei físico e a saúde do reino 
caPítulo 4 – imagens funcionalistas da realeza, 89
4.1 Aspectos da produção literária da corte de Avis, 93
4.2 O livrO da virtuOsa benfeituria dO infante d. pedrO, 96
4.3 a realeza saneadOra, 101
caPítulo 5 – a efetivação das imagens, 109
5.1 aspectOs da afirmaçãO dO pOder régiO, 109
5.2 vetOres da intervençãO régia em matéria de saúde, 114
5.3 “taumaturgia” régia e restauraçãO dO cOrpO sOcial, 117
conclusão, 131
referências, 133
anexos, 145 
 nOrmas gerais de transcriçãO de dOcumentOs, 147
 anexO 1 - regimentO prOueytOsO cOntra ha pestenença, 149
 anexO 2 - recOpilaçam das cOusas que cOnvem gvardarse nO mOdO 
 de preseruar à cidade de lixbOa. & Os sãOs, & curar Os que 
 esteuerem enfermOs de peste, 161
O poder nos tempos da peste.indb 5 19/8/2009 19:01:47
 anexO 3 - breue summariO da peste que Ouue em lixbOa O annO de 69 
 que hum frade dOminicO escreueO a OutrO seu amigO, fingindO 
 a cidade huma naO perdida cOm tOrmenta desfeita, 197
O poder nos tempos da peste.indb 6 19/8/2009 19:01:47
À Wilma, Célia e Carolina, que me deram à luz, cada 
uma a seu modo. Ao Mário Filho, pai e parceiro. Aos 
meus alunos.
O poder nos tempos da peste.indb 7 19/8/2009 19:01:47
prefáciO
O autor do livro que prefaciamos afirma que “o tempo da doença 
é... o da proliferação de discursos sobre ela”. E o livro em questão in-
veste bastante, embora não em caráter exclusivo, numa leitura textual 
formalizada, em especial com o fito de esclarecer : (1) como se constrói 
o discurso médico sobre a doença, num contexto cristão, mas sobre a 
base do saber hipocrático-galênico herdado da Antiguidade; (2) como, 
no Livro da virtuosa benfeituria, de lavra do infante Pedro, irmão do rei 
Duarte, da dinastia de Avis, emerge, com um grau de elaboração bastante 
superior, uma noção já presente anteriormente (1340) em texto legal do 
rei Afonso IV: o regimento do reino foi outorgado ao monarca português 
por Deus; a sacralidade de origem do poder régio, por conseguinte, 
reúne as diversas funções do rei numa representação sua como “figura 
aglutinadora dos interesses gerais do reino”. Entre tais funções e como 
parte da figura aglutinadora em questão, o príncipe Pedro constrói, em 
especial, a noção do rei de Portugal como médico perfeito, encarregado 
de prover e preservar a saúde da comunidade sob sua direção, ou seja, 
de seu reino. Assim sendo, a obra pode servir para ilustrar, por contraste, 
uma alternativa a meu ver superior à visão da História, com ênfase dis-
cursiva, sem dúvida, mas sob o ângulo desconstrucionista, hoje opção 
ou tentação bastante comum. Em função disso, minha escolha quanto à 
estruturação deste Prefácio levar-me-á, de início, bastante longe do texto 
de Mário Jorge; mas prometo voltar a ele a seu devido tempo!
A opinião desconstrucionista a respeito da História acredita no 
papel central do elemento discursivo como fator constitutivo do conhe-
cimento. O conceito central para esta postura é, pois, o de discurso. O 
discurso, pretendem os desconstrucionistas, seria uma esfera social 
específica, dotada de uma lógica própria. “Discurso”, usado deste modo, 
designaria um sistema de significados formando uma rede de categorias − 
não devendo ser confundido, portanto, com outras coisas habitualmente 
chamadas também de discursos: textos, livros, falas ou outros exemplos 
empíricos de textos − e corresponderia àquilo que Michel Foucault de-
nominou episteme. Não se trata, porém, de um meio de transmissão de 
significados previamente presentes no social, mas, sim, de um compo-
nente ativo na constituição dos significados sociais, um corpo coerente 
de categorias mediante o qual, no contexto de uma situação social dada, 
os indivíduos apreendem e conceituam a realidade social; e, outrossim, 
em função do qual desenvolvem suas práticas. O discurso funciona, en-
tão, como uma rede conceitual que torna visível, especifica, diferencia 
e classifica. Mediante tal rede, os indivíduos − mais exatamente, grupos 
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específicos de indivíduos − dotam de significado o referente social (ou 
seja, estabelecem setores dele como objetos) e concebem e conformam 
a si mesmos como sujeitos agentes. Com esta noção de discurso (padrão 
de significados), passar-se-ia da dicotomia tradicional presente em tantas 
análises de meados do século XX – a realidade social em contraste com 
a subjetividade – para uma situação ternária: realidade, ou contexto, ou 
referente social/discurso/indivíduos humanos – sendo o discurso aquilo 
que, por um lado, transforma setores do social em objetos e, por outro, 
transforma seres humanos empíricos (individualmente considerados) 
em sujeitosagentes. Alega-se que esta nova visão do humano não seria 
antirrealista; não o seria, pelo menos, em seus proponentes mais so-
fisticados e menos primários, como Michel Foucault ou Joan W. Scott, 
embora o pudesse ser ao se tratar dos representantes menos voltados 
para pesquisas que sejam de fato pesquisas de base empírica e, conco-
mitantemente, mais radicais no interior do movimento pós-moderno, 
como Jacques Derrida ou Hayden White. O desconstrucionismo ou pós-
modernismo seria, acima de tudo, uma postura antiobjetivista, mais do 
que antirrealista. Ele não põe em dúvida a existência da realidade social, 
mas, sim, que algum setor desta possa assumir o status de objeto antes 
de ser assim constituído pelo discurso. Analogamente, os seres humanos 
só poderiam constituir-se em sujeitos atuantes, dotados de propósitos, 
mediante sua construção discursiva em tal sentido.
As ciências sociais (e entre elas a História Social), tal como ma-
joritariamente encaradas em meados do século XX, partiam de uma 
crítica do indivíduo ou do sujeito racional, que viam como sendo típico 
do pensamento burguês, ou seja, sujeitos individuais concebidos como 
naturais, autônomos, estáveis, plenamente informados e, portanto, 
agentes racionais e plenamente conscientes que seriam os autores das 
práticas sociais e a base e origem tanto das relações sociais quanto dos 
significados. Numa ciência social ou História “tradicional” que partis-
se de tal ponto de vista, o cientista do social deveria dedicar-se a um 
empreendimento interpretativo ou compreensivo, visando recuperar 
as motivações dos agentes, muitas vezes, aliás, reduzidos somente 
aos assim chamados “grandes homens”: governantes, generais, juízes, 
membros de elites intelectuais e religiosas, etc. As ciências sociais, bem 
como a História Social, no seu formato já assumido com clareza em 
meados do século XX (mas com precursores importantes, como, por 
exemplo, os marxistas clássicos do tipo de Marx, Engels ou Gramsci), 
achavam, pelo contrário, que os indivíduos derivam a sua identidade 
do lugar que ocupam nas relações sociais. Deste modo, tais sujeitos 
não passam de expressões, historicamente específicas, das condições 
sociais de existência, que estabelecem os termos em que os indivíduos 
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se autopercebem, caracterizam a si mesmos e, em função disto, agem. 
A própria noção, típica da Filosofia burguesa, de “indivíduo” ou “sujeito 
racional”, para algumas das formas do tipo de ciência social ou História 
Social de que estamos falando – a marxista, por exemplo – seria so-
mente uma representação ideológica das condições sociais modernas, 
típicas da era do capitalismo triunfante. Para o marxismo, o indivíduo 
não passaria de uma expressão do conjunto das relações sociais, razão 
pela qual a prioridade explicativa na explicação do social e de suas 
transformações caberia, na verdade, a sujeitos coletivos ou intersubje-
tivos, como as classes sociais, sendo limitado o papel dos indivíduos 
encarados stricto sensu na ação e na transformação do social.
A tendência discursiva de tipo desconstrucionista tem como 
ponto de partida o suposto de que os sujeitos ou formas de identifica-
ção social, isto é, as maneiras em que os indivíduos e grupos percebem 
quem são, constituem sem dúvida entidades históricas, não sendo, em 
absoluto, essências universais. As identidades não são estados, são posi-
ções – entidades diferenciais ou relacionais que não conformam um todo 
homogêneo, mas, sim, algo plural e fragmentado. O pós-modernismo 
submete à crítica a noção de sujeito social, tratando de redifinir radi-
calmente a origem e a natureza dos sujeitos agentes. Para esta postura, 
a realidade social não constitui uma estrutura objetiva, assim como 
a identidade das pessoas não pode ser a expressão de sua posição 
social. Os significados atribuídos ao social nascem da interação entre o 
referente social e uma matriz categorial que constrói setores dele como 
objeto. Analogamente, a identidade também se gera como resultado de 
tal interação. Toda identidade só pode ser estabelecida mediante um 
processo de significação tornado possível por um determinado padrão 
de significados, ou um determinado padrão assumido pelo imaginário 
social. Assim, a identidade dos indivíduos – a forma em que se concebem 
e caracterizam, e em função da qual agem e se tornam sujeitos –, longe 
de ser mera expressão da posição que ocupam nas relações sociais, é 
na verdade o efeito de uma articulação discursiva particular, específica, 
dessa posição e de como ela é vivida, experimentada. Em outras pala-
vras, a identidade não é uma propriedade preexistente que a linguagem 
designa e representa, mas, sim, torna-se uma propriedade unicamente 
no seio da própria linguagem, do próprio discurso.
A continuidade lógica aparente entre a identidade e seu referente 
social é ilusória: a conexão entre ambos não é objetiva, nem da ordem 
da representação do real no nível da identidade; não é uma propriedade 
ou condição presente nos referentes sociais em si, de que os indivíduos 
chegariam a obter uma consciência que, então, projetariam na ação. 
A identidade surge, isto sim, como consequência de uma determinada 
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objetivação do referente social: não basta que exista tal referente social, é 
preciso que seja articulado como critério definidor de alguma identidade 
mediante a aplicação de uma matriz categorial ou sistema de diferenças 
(isto é, para constituir uma identidade é preciso também definir − para 
o descartar − o que ela não é). E a matriz em questão só pode ser da 
ordem da linguagem, do discurso. Os referentes sociais são causalmente 
inertes, só são ativados se e quando partes deles forem incorporadas a 
um padrão discursivo de significado. Caso se aceite tal ponto de vista, 
estar-se-á aceitando também que a identidade não está causalmente 
vinculada ao referente, mas, sim, a um objeto discursivamente construído. 
Deste modo, os objetos de identidade não podem preexistir às próprias 
identidades: objetos e identidades se constituem simultaneamente, no 
mesmo processo de articulação do contexto social mediante um discurso, 
um espaço de articulação que depende do imaginário social. O domínio 
do discursivo é que preexiste, fornecendo os padrões de “subjetivação” 
por meio dos quais os indivíduos possam constituir a si mesmos como 
sujeitos dotados de identidade, sentir-se como tais e, deste modo, agir 
como agentes conscientes. A linguagem não se limita a nomear os sujei-
tos: ela os gera, permite que apareçam, existam e atuem.
Outra consequência da postura que estamos sintetizando é a 
proibição de hierarquizar normativamente, epistemologicamente, as 
diferentes formas de identidade, como se umas fossem naturais, on-
tologicamente plenas e superiores às outras. O fato de que, em dadas 
circunstâncias históricas, um referente específico se converteu em 
objeto de identidade não garante que tal coisa vá acontecer em todos 
os casos, nem do mesmo modo, já que não é necessário que o processo 
discursivo que cria a identidade venha a existir: ele é possível, mas não 
é necessário. Outrossim, referentes mais ou menos análogos podem 
ser articulados discursivamente em formas heterogêneas, que gerarão 
identidades diferentes entre si. Além do mais, as identidades são todas 
passageiras e instáveis, em função da instabilidade, não do referente 
social, mas das construções discursivas. Todas as identidades, sem 
exceção, se forjam a partir do contraste com outras possibilidades de 
identificação e mediante a exclusão delas: cada identidade exige uma 
alteridade, um exterior constitutivo. Os pós-modernos acham que, 
devido a tal processo de exclusão, cada identidade está sempre ame-
açada pelo que deixa de fora. Na verdade, o jogo identidade/alteridade 
tende a criar duplas de identidades em oposição complementar,nas 
quais cada termo depende do outro e implica o outro, numa relação 
hierarquizada em que um deles é visto como superior ao seu contrário, 
mas impossível de constituir-se sem ele (masculino/feminino, branco/
negro, homossexual/heterossexual, proletariado/burguesia, etc.).
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O lado positivo do pós-modernismo consiste em ter chamado 
a atenção para o poder constitutivo do discurso – entendido como 
sistema categorial – no aparecimento de sujeitos e objetos sociais. O 
imaginário social tem, sem dúvida, um papel de peso, antes pouco 
explorado, em processos assim. O seu lado negativo – grave, a meu ver 
– está em absolutizar este fator além de qualquer limite razoável.
Em relação à crítica da postura pós-moderna que acabamos de 
sintetizar, pode-se indagar o seguinte: qual é o status ontológico de algo 
que, se acreditarmos nos pós-modernos, existe por si mesmo, ao que 
parece – o referente social, que, em si, não é gerado pelo discurso (só 
é “objetivado” por ele) – mas, ao mesmo tempo, não é um objeto de co-
nhecimento (o discurso é que pode vir a constituir setores seus como 
objetos)? Analogamente, como considerar seres humanos – aparente-
mente, indivíduos – que também existem por si na estruturação ternária 
a que aludimos (referente social/discurso/seres humanos) – posto que 
obviamente não é o discurso que gera os seres humanos fisicamente 
existentes –, mas que não são, em si ou por si, sujeitos, até que alguma 
configuração discursiva os constitua como tais? Parece estranha, por 
exemplo, a existência de um referente social que exista, se reproduza e 
mude por si mesmo, levando a coisas tão complexas quanto as diferen-
ciações socioeconômicas, mas, ao mesmo tempo, seja capaz de existir 
e transformar-se na sombra, numa espécie de limbo, até ser objetivado 
pela intervenção discursiva. Parece algo bastante improvável.
Nas pesquisas concretas levadas a cabo dentro dos princípios 
desconstrucionistas ou pós-modernos, a preferência por atribuir o pa-
pel causal à dimensão discursiva aparece com frequência como decisão 
arbitrária, mais derivada de um postulado teórico, uma escolha ou algo 
preconcebido – que a análise viria só ilustrar – do que da própria aná-
lise. Assim, por exemplo, William H. Sewell Jr. afirma que o surgimento 
da consciência de classe dos operários franceses coincide com a onda 
grevista que teve lugar na França em 1833, durante a qual se intensificou a 
colaboração ativa e prática dos membros de diferentes ofícios; mas acha 
também que esta onda de greves e a experiência prática da colaboração 
dos trabalhadores entre si são fatores insuficientes para explicar o apa-
recimento da consciência de classe: constituem uma “base importante”, 
um fator “favorável”, mas o fator causal por excelência para que a identi-
dade de classe substituísse a de ofício foi, segundo ele, que os operários 
começassem a dar sentido à sua situação mediante o uso que fizeram 
então do discurso liberal e, em especial, da categoria de “cidadão”.*
Esta sua opinião ou preferência não parece decorrer, em ab-
soluto, da análise empreendida, nem está de fato embasada. Como 
proceder, aliás, para medir uma onda de greves e a experiência 
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prática que articula como fatores “suficientes” ou “insuficientes” em 
algum sentido?! O autor parte, simplesmente, do postulado teórico 
desconstrucionista que prefere, de que são sempre os discursos 
(entendidos como redes categoriais) que geram as identidades, nes-
te caso, a de operário. Em suma, os pós-modernos desconstroem o 
homo oeconomicus ou a História Social, alegando serem unilaterais 
e estarem a serviço da manipulação exercida por certos centros de 
poder, só para caírem no homo symbolicus, igualmente unilateral. Por 
que uma unilateralidade seria melhor do que a outra? Como justificar 
a antipatia sistemática pelo econômico-social nas explicações? E a 
postura pós-moderna, com seu próprio caráter unilateral, por acaso 
não serve a foco de poder algum? Os pós-modernos nunca dizem a 
qual “poder do saber” estão vinculados, porém, nem “desconstroem” 
seus próprios construtos, só os alheios...
Outro assunto pode resumir-se nestas perguntas: como se cons-
titui, de onde vem, como muda o discurso, entendido na acepção men-
cionada de moldura categorial, ou imaginário social? Michel Foucault, 
talvez mais sincero do que outros pós-modernos, confessava não saber 
responder como se abandona uma episteme (a versão foucaultiana do 
discurso e das práticas a ele articuladas) para passar à seguinte. Ou-
tros pós-modernos oferecem respostas muito inadequadas, sobretudo 
se considerarmos a importância central que concedem ao conceito de 
discurso tal como o definem. Admitem, aliás, que o esforço maior da 
atitude desconstrucionista tem-se exercido em análises sincrônicas dos 
efeitos constitutivos do discurso, razão pela qual a pesquisa das origens e 
transformações discursivas ainda é insuficiente. Apresentam, entretanto, 
respostas parciais, pouco convincentes. Uma das mais frequentes é achar 
que toda nova situação social é sempre apreendida e conceitualizada 
mediante as categorias herdadas da situação discursiva precedente, que 
são modificadas para exercer a nova função: assim, a realidade social não 
gera as categorias ou conceitos que lhe serão aplicados, mas, sim, interage 
com um sistema categorial preexistente. Isto recorda as teorias sobre a 
origem da vida na Terra que afirmavam que ela veio de outros astros... 
Dizer que o sistema discursivo se forma, em cada caso, por meio da in-
tertextualidade com um discurso mais antigo equivale, simplesmente, a 
jogar para trás o problema da origem do discurso como tal, em lugar de 
dar-lhe solução. Outra resposta eventual é que os indivíduos, ao utiliza-
rem o sistema discursivo, o reproduzem como é, em certas condições, o 
modificam. Nesta opinião haveria uma aproximação pelo menos parcial 
com posturas como a de Julia Kristeva ou a de Marshall Sahlins; com a 
ressalva importante, porém, de que estes últimos autores preservam a 
noção de um sujeito agente racional, coisa que não ocorre com os pós-
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modernos, já que, como vimos, para eles os seres humanos só podem 
ser constituídos como sujeitos pela mediação do discurso.
O caráter altamente insatisfatório de respostas como estas leva 
a contradições frequentes, lapsos e escorregadelas no tocante à ques-
tão do sujeito. Em seu trabalho já citado antes, William H. Sewell Jr. 
afirma que a institucionalização liberal do direito de propriedade e da 
liberdade de indústria (que proibia a associação dos trabalhadores e 
determinava a repressão estatal à mesma) estimulou alguns militantes 
operários a que reformulassem o ponto de vista dos trabalhadores: 
de um tal processo de rearticulação discursiva deveria vir a nascer a 
nova identidade operária. Neste modo de ver, a identidade operária é 
atribuída, não ao efeito de um discurso desencarnado, mas, sim, à ação 
deliberada e racional de certos “militantes operários” que, portanto, 
agiram como sujeitos, não a posteriori da construção discursiva de 
sua identidade, mas a priori, criando-a.**
Em contraste com esta maneira de conceber a História – a meu 
ver altamente insatisfatória e, epistemologicamente, mais cheia de 
furos do que uma peneira –, o que nos oferece o rico texto elaborado 
por Mário Jorge?
Em primeiro lugar, longe da tendência a negar os grandes objetos 
da História mediante sua fragmentação sistemática, o seu estudo busca, 
pelo contrário, estabelecer nexos. A perspectiva cristã relativa à doença 
em geral e à peste em particular mantém-se fiel à matriz hipocrático-
galênica herdada da Antiguidade, não negando, portanto, o discurso e as 
práticas médicas coetâneas. Aceita, por exemplo, o “envenenamento doar” – causa natural – como uma das razões da epidemia. Entretanto, num 
nível hierarquicamente superior, submete tal fator à incidência da vonta-
de divina. Em outras palavras, mesmo dadas as circunstâncias naturais 
favoráveis à eclosão da pestilência, esta só ocorrerá se Deus – em função 
do castigo aos pecados dos homens – assim o decidir. Analogamente, o 
discurso médico medieval está cristianizado, em Portugal, como alhures. 
Seus produtores, entretanto, são agentes sociais diferentes dos clérigos 
e, portanto, sua estratégia discursiva não se limita a reafirmar os prin-
cípios cristãos. O discurso médico português do século XVI inclui, por 
exemplo, elementos específicos de discriminação social voltados contra 
os negros, as prostitutas e os pobres, cuja reclusão recomenda, em caso 
de epidemia, tanto quanto a dos próprios doentes. Além disso, tal como 
o discurso eclesiástico, mas por outros caminhos, trata de fundamentar 
a importância social dos médicos e a autoridade de que devem estar 
dotados. Isto se faz num raciocínio de fundo cristão: o médico, tal como 
a natureza, está regido pela inteligência divina, o que lhe permite agir 
adequadamente, isto é, em defesa do estabelecimento e da preservação da 
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saúde da comunidade. Por sua vez, o discurso régio, em princípio, vai na 
mesma direção: o príncipe Pedro estabelece uma equivalência entre mal, 
doença e pecado – todos estes, elementos “desnaturais”, ou antinaturais 
–, por um lado; por outro, aceita os princípios e medidas derivados da 
medicina da época. Entretanto, isto é feito no contexto de uma política 
específica de centralização régia, em especial quanto a intervenções 
nos municípios que vão no sentido da diminuição de sua autonomia (o 
que é facilitado pela incidência maior das epidemias em âmbito urbano: 
“Aquelas conjunturas nas quais a presença do flagelo se fazia mais incisiva 
foram, obviamente, as mais favoráveis ao incremento das determinações 
régias.”). O discurso régio se apropria à sua maneira, seletivamente, dos 
discursos religioso e médico, “amalgamando-os, revestindo-os da sua 
autoridade”. Mas o faz segundo uma estratégia específica. Assim, por 
exemplo, “o discurso religioso, em sua matriz clerical, desautorizava a 
realeza”. A afirmação de um discurso religioso como parte do discurso 
régio deve, então, fazer-se, como aliás também ocorre no caso do discurso 
médico, mediante a reafirmação da autoridade e do poder do rei, “cuja 
afirmação social demanda a submissão das autoridades concorrentes”.
Numa pesquisa como a do livro que prefaciamos, os agentes sociais 
geram discursos, criam discursos, amalgamam discursos: não são uma 
criação de discursos desencarnados que ninguém sabe de onde vêm. E 
tais agentes são de fato sociais, coletivos. Assim, por exemplo, em função 
da crescente intervenção régia nos concelhos, “a administração munici-
pal foi-se concentrando numa oligarquia restrita, cada vez mais ligada 
ao monarca”. Os agentes sociais agem num contexto que, por sua vez, 
esclarecido no início do livro, está longe de ser uma emanação discursiva, 
já que tem embasamento econômico e demográfico, entre outros.
Em suma, no trabalho de Mário Jorge temos uma prova concreta de 
que é possível levar a cabo uma pesquisa que respeite o que chamamos 
de lado positivo do pós-modernismo – reconhecer o poder constitutivo 
do discurso entendido como sistema categorial – para a análise do apa-
recimento e das modificações históricas dos sujeitos e objetos sociais, 
sem, entretanto, cair na ingenuidade de acreditar que, por ser o discurso 
uma variável de peso (ou seja, sempre existe uma dimensão discursiva a 
ser levada em conta nas análises sociais), por tal razão só ele seja digno 
de percepção e estudo (como se o discurso esgotasse a realidade social, 
o que não passa de um reducionismo empobrecedor).
Ciro Flamarion Cardoso
nOtas
* WILLIAM H. Sewell Jr. Work and revolution in France: the language of labour from 
the Old Regime to 1848. New York: Cambridge University Press, 1980, p. 213
** Sewell Jr., p.197, 280. 
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1. intrOduçãO
1.1. apresentaçãO
Esta obra que o(a) leitor(a) tem em mãos constitui a manifestação 
sensível e derradeira de um longo processo de contágio e incubação! Se 
é positivo o prognóstico, caberá àquele(a) estabelecê-lo. Explico-me.
Ao concluir a graduação em história, nos idos de 1988, possuía 
um “tema”, na verdade um fascínio (mórbido?) surgido do primeiro 
contato com a “Peste Negra”. Contato distante, como convém, tra-
vado pela leitura. É que o tema suscita, e já de longa data, estudos 
orientados por abordagens diversas, confluindo em sua maioria para 
o intuito mais amplo de avaliar o peso e a influência das doenças nas 
sociedades humanas. 
Em relação à “Peste Negra”, sobretudo, é hoje volumosa a 
bibliografia, cabendo-lhe a primazia no interesse dos historiadores. 
A demografia histórica, a história socioeconômica e a história das 
mentalidades – apenas para situar, esquematicamente, alguns dos 
seus campos privilegiados – vêm dedicando-se a avaliar os efeitos 
diversos da “Morte Negra”, buscando-se conhecer a sangria demo-
gráfica produzida pelo flagelo, bem como suas articulações com as 
transformações que se processaram na sociedade europeia ocidental 
ao final da Idade Média.
Embora ainda em menor escala, os estudiosos despertam cada 
vez mais para o fato de que, se a Grande Peste constitui fenômeno único 
na história da doença, pela fereza com que abateu a Europa de então, 
as frequentes reincidências da epidemia não devem ter seus efeitos 
menosprezados, posto que, entre outros aspectos, reproduziram pe-
riodicamente o angustiante contato das populações com o flagelo.
Ingressando no Programa de Pós-Graduação em História da UFF 
para cursar o mestrado, o fascínio genérico passou a circunscrever-se; 
propus-me a abordar o tema sob um prisma até então negligenciado 
pela historiografia, em especial, a portuguesa, qual seja, o das relações 
entre doença e poder.
Nesse sentido, e mais especificamente, considerando a elevada 
frequência com que a sociedade portuguesa foi assolada por surtos 
epidêmicos, ao longo dos séculos XIV ao XVI, num contexto de afir-
mação do poder régio sob a dinastia de Avis, este estudo orienta-se 
para a análise de uma interpretação da doença que, dele emanada, 
requisita à realeza o poder e a função de intervenção social objeti-
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ão vando a sua erradicação. Dessa forma apropriada, a reação à doença 
manifesta-se como um nível particular das práticas intervencionistas 
do Estado, contribuindo para a compreensão da complexidade do 
processo mais global, posto que a ele se articula, da centralização 
política então em curso.
Circunscrito o tema central deste estudo e, objetivando o seu 
desenvolvimento, dividimo-lo em cinco capítulos, além desta intro-
dução em que teceremos considerações gerais sobre os pressupostos 
teóricos que norteiam a análise. 
O primeiro capítulo foi dedicado a pôr em cena o fúnebre 
ator. Transbordando o recorte espaço-temporal mais preciso que 
circunscreve nossa análise, abordamos, com base na bibliografia 
disponível, a longa trajetória do contato das sociedades medievais 
europeias com a doença.
Os capítulos segundo e terceiro são, considerado o tema cen-
tral deste estudo, de certa forma complementares. Tendo em vista a 
elevada frequência da doença, e a desestabilização social que produz, 
o elemento primário de reação contra ela consiste nas tentativas de 
defini-la, impor-lhe um significado. Nestes dois capítulos, portanto, 
dediquei-me a abordar as concepções da doença expressas pelos 
discursos religioso e médico, respectivamente, visto terem fundamen-
tado a formulação do discurso régio. Quanto às fontes utilizadas para 
a análise do discurso religioso, a efetiva compreensão deste levou-mea extrapolar o recorte espaço-temporal mais preciso em que se encer-
ra este estudo, já que se elabora num “diálogo” embasado e inscrito 
na longa tradição judaico-cristã. Utilizamos as crônicas monásticas 
portuguesas, relatos de suas ações “memoráveis” em terras lusitanas, 
além de uma narrativa da peste de 1569 em Lisboa, de autoria de um 
frade dominicano anônimo. Quanto às fontes utilizadas para a análise 
do discurso médico – duas fundamentalmente –, serão caracterizadas 
no capítulo correspondente.
Os capítulos quatro e cinco são, decididamente, complemen-
tares, confluindo para a análise do objeto central deste estudo. Sua 
divisão foi motivada pela perspectiva de considerar, nas articulações 
entre o poder régio e a doença, a fundamentação ideológica do exer-
cício do poder orientado para o cumprimento de funções sociais que 
se lhe afirmam inerentes, definidoras da própria (sobre) natureza da 
realeza. Dentre elas, destacamos a expressão da função saneadora do 
rei, que o realça como responsável pela saúde da sociedade. Desenvol-
vida a análise a partir de uma fonte central, única, as considerações 
que julgamos relevantes constam do próprio capítulo. No último, 
aborda-se, a par do processo de produção da concepção régia da do-
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ença, os principais níveis de intervenção social que a mesma suscita, 
utilizando-se para tal crônicas régias e, sobretudo, fontes jurídicas 
de caráter local, através das quais impunham-se as determinações 
do poder central sobre as municipalidades.
Nestes poucos mais de dez anos passados desde a elaboração da 
dissertação até a sua atual publicação em livro, os historiadores mantive-
ram-se, em termos gerais, alheios às relações que constituem o seu objeto 
de análise, o que nos motivou a preservar o material original, submetido a 
alguns poucos ajustes. Agradecemos ao(s) parecerista(s) e avaliador(es) 
anônimos que avalisam, com o seu crivo, a nossa decisão.
1.2. pressupOstOs teóricOs-metOdOlógicOs
A doença pertence à história, em primeiro lugar, porque não 
é mais do que uma idéia, um certo abstracto numa “complexa 
realidade empírica” [...] (LE GOFF, [19--], p. 7).
 Ora, não há que duvidar de sua materialidade, dolorosamente 
manifesta, por exemplo, num bubão axilar. No entanto, mais do que um 
fator biológico, a doença é um elemento de cultura. Ela é o que dela se 
diz ao longo do milenar contato do homem com os agentes patogêni-
cos. E o que dela se diz não é unívoco, diacrônica e sincronicamente, 
constituindo-a em objeto e campo de um conflito histórico entre su-
postas verdades mais ou menos divergentes, concorrentes. Quanto às 
epidemias de peste, explicá-las, circunscrevê-las, consistia antes do 
mais em forjar um quadro tranquilizador, conceber uma ordenação em 
meio ao caos, instituir a coerência lógica de um sentido do qual, ao 
cabo, apresentar-se-iam os remédios ou alternativas de superação.
Investir-lhe um sentido, essa a função primordial dos discursos 
sobre a doença, veículos de expressão de múltiplas significações, de-
finidas social e historicamente. E em sendo o discurso uma forma de 
engendramento de sentido, e todo sentido social, qualquer discurso, 
como qualquer fenômeno social, é passível de ser “lido” em relação 
ao ideológico e ao poder, que são, portanto, dimensões específicas 
de análise entre tantas que perfazem o universo social de sentido. 
Segundo Verón, o ideológico não consiste num tipo específico de dis-
curso, tampouco numa “instância” que ocupe um lugar demarcado na 
estrutura social, mas “pode-se [vê-lo] como sistema de comportamen-
tos rituais, da mesma maneira que no agenciamento da gestualidade 
cotidiana [...]” (VERÓN, 1980, p. 92). Mas em se tratando desta matéria 
significante específica – o discurso – o autor articula a manifestação 
ideológica às suas “condições sociais de produção”, enquanto a de 
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ão poder relaciona-a com os efeitos discursivos (VERÓN, 1980, p. 192). As 
“duas gramáticas”, de produção e consumo, não são jamais idênticas, 
constituindo-se a circulação dos discursos no desvio que se interpõe 
entre ambas. Destaca-se, assim, a complexidade do processo social 
de geração e difusão das ideologias.
No que tange ao processo de sua produção, dois aspectos há 
que se distinguir: os determinantes sociais que se impõem dentre 
as condições de formulação do discurso (a demarcação do universo 
de possibilidades no interior da utensilagem mental disponível ao 
período), bem como a situação específica do autor (em sentido amplo, 
coletivo) que o elabora, considerando-se sua vinculação com grupos 
e instituições, riqueza criativa individual e os meios materiais de que 
dispõe. Quanto ao processo de circulação das ideologias, sujeita-se 
ao poder das classes e do Estado, que através do controle exercido 
sobre os “canais” de difusão – meios materiais e instituições da so-
ciedade civil – “seleccionam y simplifican segmentos de un discurso 
ideológico que bien puede ser más amplio, complejo e contradictório 
que las versiones difundidas y vulgarizadas” (BRIGNOLI; CARDOSO, 
1988, p. 18). Isto posto, a análise do discurso não deve nunca se fur-
tar ao exame das condições que orientam a sua elaboração, ou seja, 
não deve prescindir da consideração das determinações sociais que 
se articulam à sua construção, às condições de trânsito do discurso 
na sociedade e, por fim, às possíveis interferências das ideias por ele 
divulgadas na ordem social.
Jean Delumeau distingue três explicações para a peste, vigentes 
no período histórico do qual nos ocupamos. Uma, formulada pelos 
eruditos, apontava na origem da epidemia a corrupção do ar, decorren-
te de fenômenos celestes (passagem de cometas, conjunções astrais 
particularmente nefastas etc.), de emanações pútridas várias ou da 
ação de ambas, conjuntamente. A segunda, originada da multidão 
anônima, consistia numa acusação, a de que semeadores do contágio 
disseminavam deliberadamente a doença, sendo portanto necessário 
localizá-los e puni-los. A terceira, elaborada “ao mesmo tempo pela 
multidão e pela Igreja” (DELUMEAU, 1989, p. 138), creditava a doença 
à ação punitiva de um Deus encolerizado: impunha-se à comunidade 
penitente apaziguá-lo. Jean-Nöel Biraben, com relação ao mesmo 
tema, diferencia duas formas de compreensão da doença, uma mani-
festa pelo “povo, [que] cria na ação de intermediários sobrenaturais, 
enquanto as elites cultas recorriam à ação de intermediários físicos” 
(MARCÍLIO, 1984, p. 117).
Além das dúvidas suscitadas pelo laconismo do vocabulário – 
quem são os eruditos e a elite culta, e o povo e a multidão anônima? 
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Integravam os primeiros a multidão que partilhava com a Igreja a noção 
de castigo, na perspectiva de Delumeau? – a imprecisão, a despeito 
da intenção de demarcar uma origem social precisa, autônoma, para 
cada uma das formulações, parece-nos residir na desconsideração, 
em primeiro lugar, de que tais discursos interagiam, influenciavam-
se mutuamente, e isto por não serem irredutíveis entre si. Opor uma 
concepção popular a uma concepção erudita da doença implica negar 
as relações entre os níveis de cultura, segundo um “modelo” de tradi-
ções culturais como o estabelecido por Peter Burke (1989, p. 50-90). 
A ampla massa iletrada da população no período não teria acesso às 
fórmulas rebuscadas do discurso erudito, supondo que este tenha 
sido o da medicina cultivada nas universidades. No entanto, se foi 
este o locus primordial de sua produção, não foi o âmbito restrito de 
sua divulgação. Fundamentava, na origem, a requisição de autoridade 
para a sua mensagem, mas o seu reconhecimento demandava da sua 
capacidade de disseminação.
Parece-nos possível considerar inclusive que, se de fato as 
massas atemorizadastenderam a recorrer a explicações sobrenatu-
rais, ou a buscar culpados pelo contágio, tais procedimentos talvez 
sejam indicadores do poder de divulgação das referências médicas 
e religiosas. Isto porque, aspecto negligenciado pelos autores e que 
acima destacamos, as “gramáticas de produção” e de “consumo” dos 
discursos não são análogas, consistindo esta última, ela própria, 
numa produção, “que evidentemente não fabrica nenhum objecto, 
mas constitui representações que nunca são idênticas às que o [...] o 
autor [investiu] na sua obra” (CHARTIER, [19--], p. 59). No processo 
social de apropriação dos discursos criam-se usos e representações 
que não são necessariamente redutíveis à intenção de seus produto-
res. Nesse sentido, popularizada a noção de doença como fruto do 
pecado, não seria lícito punir os “bodes expiatórios” – judeus, lepro-
sos, feiticeiros – pecadores potenciais por todos reconhecidos? Não 
eram estes os mesmos que envenenavam os poços, corrompiam o ar 
e disseminavam o contágio?
Negar a irredutibilidade profunda entre os níveis de compreensão 
da doença não significa, no entanto, considerá-los como numa relação 
de simbiose pacífica, processo livre de tensão e disputas. Projetando-se 
como um fenômeno ideológico, a doença ultrapassa um suposto campo 
primário, biológico, constituindo-se num elemento das representações 
do mundo e da ordem social. Estas, se aspiram à universalidade, vincu-
lam-se sempre aos interesses do grupo que as elaboram. Os discursos 
que a abordam não são, portanto, neutros: propõem estratégias, práti-
cas, comportamentos que visam fundar uma autoridade, num “campo 
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ão de concorrências e competições cujos desafios se enunciam em termos 
de poder e dominação” (CHARTIER, [19--], p. 17). Nesse sentido, Ciro 
F.S. Cardoso e Héctor Brignoli destacam que
[...] analisado como um corpus, o nível do mental coletivo de 
uma sociedade em um momento dado não tem que possuir 
uma coerência lógica interna; ele se caracterizará, ao contrário, 
como um mosaico de ideologias em disputa, partilhadas apenas 
parcialmente por diversos grupos e classes. A coerência emer-
girá, imposta pela lógica do poder, a partir de uma perspectiva 
funcional. (BRIGNOLI; CARDOSO, 1988, p. 18)
Isto posto, se as ideologias, como conjunto de códigos gera-
dores de mensagens, são indispensáveis à formulação e orientação 
dos comportamentos sociais, sua principal função é de legitimação 
(BRIGNOLI; CARDOSO, 1988, p. 16), a que permite, em última análise, 
o funcionamento de toda sociedade. Elemento de ordenação social, 
a sua criação ou apropriação pelas classes dominantes e o Estado 
constitui ingrediente fundamental da “dupla legitimação” (BRIGNOLI; 
CARDOSO, 1988, p. 16) das relações de produção dominantes. Nesse 
sentido, em sendo a doença um elemento de desestruturação, amea-
ça recorrente aos frágeis equilíbrios sociais, a reação contra aquela 
demanda e favorece a expressão de um poder ordenador.
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parte i:
a dOença presente e nOmeada
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caPítulo 1
a peste nO Ocidente: O mal inscritO na lOnga duraçãO
A peste volta a ameaçar a humanidade: 
Segundo a OMS, a peste não só está longe de ter sido erradicada, 
como assiste-se, nas últimas décadas, ao seu ressurgimento em 
diversos países e regiões do planeta. Nos três primeiros anos 
do novo milênio foram registrados 9.227 casos no mundo, com 
766 óbitos. (W. H. O., 2006, p. 9). 
A notícia, ainda que traduza a preocupação das autoridades 
internacionais da área da saúde, certamente não suscitou, entre 
os leitores comuns, o alarde e a comoção que suscitaria entre seus 
antepassados, sobretudo dos séculos XIV ao XVI. Àquela época, a 
referência à pestilência, repleta de significado, fazia-se plena do sen-
timento vívido de angústia e desolação que dominava os espíritos. A 
“pestilência” contemporânea, tal qual a sociedade, é outra, ainda que, 
a despeito do progresso da ciência médica, da “superação das mentes 
supersticiosas”, não tenha deixado de evocar reações próximas, por 
natureza, àquelas milenares que, em diferentes períodos, culturas e 
sociedades, vieram à tona no intuito de amortecer o choque.
Ainda que atualmente a peste subsista em extensos focos natu-
rais, sobretudo na Mandchúria, Mongólia e Turquestão (ROQUE, 1979, 
p. 77),1 seu caráter avassalador de pandemia parece ter-se encerrado 
com a chamada Peste de Hong-Kong, que a partir de 1894, proveniente 
do foco chinês do Yunnam, ganhou o mundo irradiando-se deste porto 
por via marítimo-comercial (VERONESI, 1991, p. 439). Concluía-se, 
assim, com a terceira e última “epidemia mundial”, a trajetória milenar 
da difusão de um flagelo ao qual já se imputaram enormes responsabi-
lidades nas rupturas e transformações que se processaram na história 
das sociedades humanas. Isto, se a peste não estiver de volta...
1.1 a pOlissemia dO termO e as pandemias históricas
Pestilência, pestelença, pestinência, peste. Contrariamente à pre-
cisão epidemiológica que, a partir da descoberta do bacilo pestoso por 
Yersin e Kitasato durante a epidemia de Hong-Kong, delimitou o termo e a 
doença “peste”, desde a mais remota Antiguidade a expressão revestiu-se 
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de um caráter polissêmico, designando não só contágios de natureza 
vária como “distúrbios ecológicos” aos quais se associaram elevadas 
mortalidades. A noção aparece já entre os egípcios, no II milênio a.C., 
como entre os hititas, em Sumer (RUFFIE; SOURNIA, 1985, p. 74). Na 
Bíblia, o Antigo Testamento está repleto de alusões à peste, dentre as 
quais reteremos algumas, à guisa de exemplo, voltando posteriormente 
ao tema. A peste figura entre as “pragas” com que o Deus de Moisés 
atingiu o Egito, e foi ainda ela que dizimou os filisteus quando estes se 
apropriaram da Arca da Aliança.2 No Novo Testamento, destaca-se a 
imagem clássica do Livro do Apocalipse de São João (SOARES, 1989, 
p. 1346), em que a abertura do quarto selo liberta o cavaleiro de nome 
morte, com o poder de matar, sobre as quatro partes da terra, à espada, 
à fome, com a peste e por meio das feras da terra. Ingrediente básico da 
mentalidade apocalíptica e milenarista, de forte apelo cristão, fomentada 
no Ocidente da Alta Idade Média pela ação de Gregório Magno, “o papa 
da peste”, quando das epidemias que assolaram a Itália em fins do século 
VI (BIRABEN; LE GOFF, 1960, p. 1498). Quanto à Idade Média, a referência 
surge em santo Isidoro de Sevilha, nas suas Etimologias, como sinônimo 
de contágio (SEVILLA, 1982, p. 489). No latim medieval, bárbaro para 
o classicismo purista dos renascentistas, a expressão “pestis” revestia 
múltiplos significados, traduzindo muitas vezes “miséria”, “destruição, 
“infortúnio”. Outras vezes referia-se a moléstias que conspurcavam o 
corpo, aplicando-se então a doenças de natureza vária, como sífilis, tifo 
etc. (MEIRELLES, 1866, p. 206-207).
Tendo em vista a abordagem e os objetivos que orientam esta 
análise, consideramos secundária a controvérsia que, pelo menos 
desde o século XIX em Portugal, afeta epidemiologistas e historiadores 
da doença. Referimo-nos à preocupação de discernir, dada a histórica 
amplitude do termo e as exigências de precisão contemporânea, as 
verdadeiras epidemias de peste que, ao longo dos séculos, teriam 
assolado as sociedades humanas. Não é tanto a presença efetiva e 
documentada do Iersinia pestis o que nos interessa, mas o destaque 
para a íntima convivência das sociedades medievais com cataclismas 
e epidemias que se traduziram, neste universo mental, como pestes, 
associadas ou igualadas, portanto, em seu caráter destruidor e caó-
tico. Por sinal, o rigor nominativo contemporâneo fica, via de regra, 
plenamente satisfeito quando seevocam as grandes pandemias que 
afetaram, ao longo da história, as sociedades humanas.
Celebrizou-se, pelo brilho da narrativa de Tucídides, no Livro II da 
sua História da Guerra do Peloponeso (ROQUE, 1979, p. 73), a peste que 
entre 430 e 425 a.C. grassou em Atenas. Oriunda da Etiópia, foi favoreci-
da pela concentração de refugiados no interior da área urbana, quando 
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do ataque ao porto do Pireu sob a liderança da coligação espartana 
(RUFFIE; SOURNIA,1985, p. 78). Agindo em fases sucessivas, a doença 
atingiria outras cidades gregas, provocando a morte de um terço dos 
habitantes de Atenas. A despeito da profunda divergência entre os epi-
demiologistas quanto à precisa etiologia desta epidemia, Mário Roque 
considerou-a “como um conjunto de várias pestinenças, em que, de 
certeza, a peste bubônica e a pneumônica estiveram presentes” (RO-
QUE, 1979, p. 73). Depois de Tucídides, encontramos ainda descrições 
de pestes devidas a Posidônio, Amiano Marcelino, e sobretudo as 
manifestações bubônicas referenciadas, no século I d.C., por Rufus de 
Éfeso, inserta nas obras de Oribásio (Livro 44, cap. 17), e por Pedanius 
Dioscorides Anazarbeus, cirurgião e fitologista (ROQUE, 1979, p. 74).
Mas se tais referências fornecem ainda aos epidemiologistas 
material, sem dúvida escasso, para amplo debate, quanto à chamada 
“Peste de Justiniano”, não resta muito lugar à dúvida em sua carac-
terização como a primeira grande pandemia europeia de peste. À 
semelhança de sua congênere de 1348, além da presença efetiva (e 
dolorosa!) do bubão, configurou-se como epidemia “mundial”, ceifan-
do parcelas dos três continentes – África, Ásia e Europa – a partir do 
foco primitivo africano (BIRABEN; LE GOFF, 1960, p. 1484). Atestada 
em 541, grassando em Pelúsia, no delta do Nilo, originária da Etiópia, 
irrompeu pelo Egito, atingindo Alexandria e o norte da África para, 
cruzando em várias direções o Mediterrâneo, tocar a Palestina, a 
Síria, Constantinopla e a Europa Ocidental. Tal qual se explicitaria no 
segundo grande ciclo inaugurado em meados do século XIV, a doença 
assolou a Alta Idade Média em vagas epidêmicas sucessivas, com 
surtos em 541/44, 558/61, 570, 580/82, 588/91 etc. Presença nefasta em 
média a cada 12 anos, até a última referência em 767. Considerados 
os limites impostos ao seu estudo pela exiguidade das referências 
documentais,3 a Europa parece ter sido desigualmente atingida, tanto 
em intensidade quanto regionalmente, e ferida principalmente em sua 
fachada mediterrânica, em especial na Itália (Ravena, Gênova, Roma, 
Pávia), Gália (Narbona, Marselha) e Península Ibérica. Estimada a sua 
parca capacidade de penetração interiorana, destaque-se, contudo, 
que a “Peste de Cadwalader”, assinalada por Beda na Grã-Bretanha 
entre 664-684, deve certamente ter-se articulado aos ciclos acima 
referidos (ROQUE, 1979, p. 75). Cessam, misteriosamente, em 767, as 
referências às epidemias. Desinteresse dos cronistas de época por 
relatar fenômeno já quase “cotidiano”? Ou encerrara-se, a esta altura, 
por razões não muito claras para os especialistas, o primeiro grande 
ciclo epidêmico de peste? Trégua, ao que parece, a partir da segunda 
metade do século VIII! Provisória, no entanto...
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Subtraída da memória coletiva ocidental ao longo de seis sécu-
los, foi como um fato novo que a peste irrompeu na Europa em meados 
do século XIV. Inaugurava-se, com a segunda pandemia histórica – a da 
Grande Mortandade – um novo ciclo epidêmico que só iria arrefecer 
a partir de fins dos Quinhentos, quando sobretudo o tifo, a varíola e 
a sífilis passam a disputar com a peste a primazia na destruição de 
vidas humanas.
Desde Pollitzer e Wu Lien-teh (ROQUE, 1979), na década de 1950, 
situa-se a origem da Peste Negra no extenso e primitivo foco natural 
da doença radicado no planalto central da Ásia, onde grassava em es-
tado endêmico, atingindo daí por três vias o seu caráter de pandemia: 
deslocando-se para o oeste, abateu a Europa; para o sul, a Índia e, por 
fim, a caminho do leste, fustigou grande parte do Extremo Oriente.
No entanto, estudos mais recentes, levados a efeito a partir da 
década de 1970, consideram o foco centroasiático apenas como um 
importante agravante da pandemia que se teria originado na China. 
Com base em cronistas e informações de natureza vária, concluem 
que o deslocamento da epidemia para Ocidente fora precedido de uma 
longa série de catástrofes que, desde 1333, assolou diversas regiões 
chinesas. Alternaram-se, num período de 15 anos, secas prolongadas, 
chuvas torrenciais e tremores de terra que ceifaram, por si, milhões de 
vidas. Em última análise, tal frequência de distúrbios climáticos teria 
desalojado de seus focos naturais elevadas quantidades de roedores 
pestíferos, ainda hoje presentes na Mandchúria, Mongólia e Turquestão. 
Seriam eles que, ao se dispersarem, juntamente com as primeiras po-
pulações infectadas, ensejaram a disseminação da doença. Sua marcha 
para Ocidente seguiu as duas principais vias de comércio:
l a primeira, terrestre, cruzava o extenso, e eivado de focos 
naturais da doença, planalto centro-asiático. Quer tivesse aí 
se originado ou reforçado, as lápides sepulcrais de diversos 
centros populacionais, sobretudo na Rússia, atestam a morte 
por peste a partir de 1338, bem como seu curso lúgubre para 
oeste. Por tal via, a epidemia atingiria os movimentados por-
tos do Mar Negro, como Caffa e Constantinopla, que foram 
dizimadas a partir de 1346;
 l a segunda rumava da China pelo sul, cruzando a Índia, para 
daí, por via terrestre ou marítima – respectivamente pela 
Pérsia e Mesopotâmia e via Golfo Pérsico e Mar Vermelho – 
atingir os portos do Mediterrâneo Oriental.
Por qualquer das vias, a epidemia encontrava-se instalada nestes 
centros comerciais entre fins de 1346 e princípios de 1347, grassando 
já em Alexandria e no norte da África, nas ilhas gregas, em Jaffa, Caffa 
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e Constantinopla. Não tardaria a abordar a Europa Ocidental, ao que 
parece seguindo também duas rotas:
l partindo da Crimeia, atravessou a Alemanha central, indo 
fustigar as cidades hanseáticas e as regiões bálticas e do 
Mar do Norte;
l avançando pelo Mediterrâneo com assombrosa velocidade, 
em um trimestre (fins de 1347/48) franqueou seus principais 
portos, e daí o continente. De Messina, ganhou a Sicília, Túnis, 
Córsega, Sardenha, Baleares e os portos orientais da Penínsu-
la Ibérica. Enquanto Gênova constituiu-se em principal polo 
difusor da peste na Itália setentrional e central, Veneza, onde 
a doença instalou-se a despeito da precocidade das medidas 
preventivas, irradiou-a para a Áustria e a Hungria. E coube 
a Marselha, atingida a partir de Messina, o triste lugar de 
destaque na difusão europeia do flagelo, que daí seguiu por 
três vias: para ocidente, por via marítima, contaminou a 
Septimânia (Narbonne, Carcassone, Toulouse etc.), atingiu a 
Catalunha e, por fim, seguindo o curso do Ródano, abordou 
o norte da França, Flandres, os Países Baixos, Bélgica e Ale-
manha. Na sequência, atingiu a Inglaterra, Escócia, Irlanda 
e regiões escandinavas, de onde rumou para oriente, aden-
trando a Rússia, e completando em 1352, no Mar Negro, o 
périplo que tivera ali, cinco anos volvidos, um dos principais 
centros de disseminação.
As tentativas de determinar o início e a progressão da epidemia 
de Peste Negra em terras portuguesas esbarram, até aqui, na escassez e 
no laconismo das fontes. O Livro da Noa, do mosteiro de Santa Cruz de 
Coimbra, um dos raros documentos coetâneos que se refere à epidemia, 
registra que na “Era de mil e trezentos e oytenta e seys anos [à margem] 
por S. Miguelde Setembro [festa em 29 deste mês] se compeçou esta 
pestilençia”. Quanto à sua duração, afirma que “esta mortaydade duraua 
na terra por spaço de tres meses”. Ao indicar os sintomas da doença, 
assegura-nos da presença da peste: “e as mays dores das doenças eram 
de leuacoens que tijnham nas verilhas e so os bracos” (RAU, 1986, p. 
129), referência explícita ao bubão pestilencial.
Basicamente a partir dessas informações, a historiografia por-
tuguesa (ROQUE, 1979, p. 124) conclui que o início do contágio deu-
se em fins de setembro de 1348, tendo sido breve, ainda que nefasta, 
a sua duração em terras lusitanas. Mário da Costa Roque (ROQUE, 
1979, p. 123-136), no entanto, criticando a referência literal, e muito 
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pouco crítica, aos registros acima transcritos, põe em dúvida não só 
o início da epidemia por esta altura – tendo em vista a participação 
efetiva do país no intenso tráfego comercial mediterrânico, cujos 
principais portos foram ainda contaminados em fins de 1347 – bem 
como sua disseminação e desaparecimento em apenas um trimestre. 
Redimensionando a extensão das informações contidas no Livro da 
Noa, considera-as restritas ao início e duração do flagelo numa “terra” 
específica, possivelmente Coimbra. Advoga o autor que a entrada da 
peste em Portugal deve ter ocorrido na primavera de 1348, estação 
propícia à eclosão do surto – oriundo do Mediterrâneo –, e que sua 
difusão pelo hinterland tenha se dado ao longo desse ano, de forma 
mais ou menos lenta segundo o trajeto fluvial ou terrestre.
1.2 Os “efeitOs” de um mal sem par
A volumosa bibliografia hoje existente sobre a grande epidemia 
de peste negra de 1348 indica, já pelo seu aspecto quantitativo, o re-
conhecimento de seu peso e influência marcantes sobre a evolução 
da sociedade europeia ao final da Idade Média. “Muy pocas vezes, en 
el transcurso de la historia, un acontecimiento determinado ha teni-
do una gama de resonancias más amplia que la Peste Negra de 1348” 
(CALLICÓ, 1970-1971, v. 7, p. 67).
Vários especialistas, de diversas regiões da Europa, dedicam-se, 
há várias décadas, a traçar o roteiro do contágio, a estabelecer os dife-
rentes índices de mortalidade nas áreas atingidas, bem como a avaliar 
as transformações impostas pela “grande mortandade” em diversos 
níveis da sociedade cristã ocidental de 1300. Ainda em 1898, um dos 
primeiros estudiosos da Morte Negra rendia-se – com certa dose de 
exagero – a seus efeitos devastadores, requisitando-lhe ter “marcado o 
verdadeiro fim do período medieval e o início da nossa Idade Moderna” 
(GASQUET apud MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV, p. 211).
A ampla maioria dos medievalistas converge para a configuração 
do cunho de catástrofe com que a peste se abateu sobre o Ocidente. 
No entanto, as divergências são profundas quando se trata de imputar 
ao fenômeno e seus efeitos, a primazia nas transformações socioe-
conômicas que se processaram na sociedade europeia ao longo dos 
séculos XIV e XV.
O debate aprofunda-se, sobretudo, ao tratar-se do que Ciro 
Flamarion Cardoso intitulou “problema histórico da depressão do 
final da Idade Média” (CARDOSO; BRIGNOLI, 1984, p. 22). Segundo o 
autor, a interpretação dominante acerca das transformações acima 
referidas, e particularmente no que tange ao regime senhorial, super-
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dimensiona o poder explicativo da catástrofe demográfica, gerando 
“esquemas interpretativos insuficientes”, incapazes de se sustentar, 
por exemplo, quando aplicados comparativamente à evolução do 
processo na Europa Oriental.
Não cabe, na perspectiva deste estudo, aprofundar este amplo 
debate historiográfico relativo ao “lugar” da Peste Negra no contex-
to de fins da Idade Média. Referenciá-lo pareceu-nos obrigatório, 
posto que na sequência, ao abordar os possíveis efeitos da grande 
epidemia, tocamos em considerações que sustentam determinada 
corrente interpretativa, em especial a que aponta para uma profunda 
crise socioeconômica no período. Pressupondo a relação entre crise 
e decadência, crise e doença, a grande peste e seus efeitos acabam 
por revestir-se de uma singularidade profunda, tornando-se o deux 
ex machina da crise geral dos séculos XIV e XV.
Armando Castro (1980, v. 3, p. 223) destaca, lucidamente, que a 
Peste Negra relaciona-se com fatores sociais, ganhando sentido profun-
do quando articulada às condições sociais de existência na sociedade 
de então. Le Roy Ladurie, por seu turno, afirma que, paralelamente 
à punção demográfica produzida pela epidemia, o soerguimento da 
manutenção do capital agrícola favoreceu a expansão dos cultivos 
ainda em meados da centúria seguinte. 
Esta superabundância do capital terra permitiu que o nível de 
vida aumentasse substancialmente na segunda metade do sécu-
lo XV, bem como a diversificação da economia urbana, marítima, 
etc., crescendo as necessidades materiais desde Portugal até à 
Alemanha. (CASTRO, 1980, v. 3, p. 223)
Enfim, foi a peste fator do “outono da Idade Média ou (da) pri-
mavera dos novos tempos?” (WOLFF, 1988). 
A primeira questão suscitada pela grande epidemia de peste negra, 
responsável, sem dúvida, pelo cunho de catástrofe que esta assume já 
aos olhos dos contemporâneos, é o da altíssima taxa de mortalidade 
provocada pela doença, promovendo uma profunda punção demográfica 
no continente europeu. Os cronistas contemporâneos, aterrados ante a 
destruição causada pelo flagelo, tendem a exagerar os números, atual-
mente criticados pela demografia histórica. Contudo, convém lembrar 
que em regiões onde a documentação, principalmente as listas de obi-
tuários preservadas durante a epidemia, permite o cômputo em bases 
minimamente seguras, vê-se “com surpresa que aquelas notícias estão 
muito próximas da realidade, que os cronistas se limitaram, no máximo, 
a arredondar os números” (DOREN apud MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV, 
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p. 212). A proporção dos óbitos devidos à peste parece ter oscilado entre 
2/3 a 1/8 em relação ao conjunto da população européia, consideradas 
as variações regionais (RENOUARD apud WOLFF, 1988, p. 31). 
Com efeito, tende-se a considerar que as cidades, dada a concen-
tração populacional e as precárias condições de higiene, bem como as 
associações comunitárias pagaram maior tributo à epidemia. Segundo 
um documento da antiga colegiada de são Pedro de Coimbra morreram, 
na Igreja da Almidinha, “o Priol e o chantre e todos os Raçoeyros [...] 
huus de pos outros todos em huu mes” (MEIRELLES, 1866, p. 8). Em 
Lisboa, “a peste matou todos os oficiais do mosteiro de S. Vicente de 
Fora, na sacristia, hospital, vestiaria, enfermaria e correaria” (MAR-
QUES, 1987, p. 20). O arcebispo de Braga comunicou ao papa Clemente 
VI, em fins de 1348, que 
devido à mortandade imensa e horrível que naquelas partes 
durou, como ainda dura, a vossa igreja bracarense está privada 
da consolação dos seus ministros, de tal modo que dificilmen-
te se podem efetuar os ofícios divinos por sacerdotes locais 
(MARQUES, 1987, p. 21).
No entanto, a tendência de creditar a estes centros uma maior 
propensão ao choque da epidemia pode dever-se à abundância relativa 
de informações, sem que daí se possa deduzir que os campos tenham 
sido menos fustigados. Segundo dados provenientes da aldeia de 
Givry, na Borgonha (WOLFF, 1988, p. 31), registraram-se 39 óbitos em 
1345, 25 em 1346, 42 em 1347, e 649 de princípios de janeiro a meados 
de novembro de 1348, período em que foi atingida pela epidemia. Em 
estudo relativo a Navarra, as condições naturais dessa região monta-
nhosa – altitude, relevo acidentado, divisão e compartimentação em 
vales – bem como as baixasdensidades humanas levaram seu autor a 
supor que teria sido moderadamente atingida pelo flagelo. “E contudo, 
a disseminação foi geral. As aldeias isoladas foram todas infestadas” 
(BERTH apud WOLFF, 1988, p. 31). Conclui-se, portanto, que a devas-
tação foi marcada por uma profunda variação, tanto em relação às 
cidades como também ao campo (BERTH apud WOLFF, 1988, p. 32). 
A ausência de fontes diretas, relativas a aldeias e cidades, im-
pede o conhecimento, em bases seguras, das baixas provocadas pela 
epidemia em solo português. As informações colhidas em cronistas 
contemporâneos são, ao extremo, genéricas, inclusive em dados 
relativos especificamente a Portugal. Assim, o já citado Livro da Noa 
afirma que “morrerom (polo mundo) as duas partes das gentes” (RAU, 
1986, p. 129). Parece-nos possível conceber que o cronista do mostei-
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ro, tomando seu “microcosmo pelo mundo”, refira-se aí ao índice de 
mortalidade inferido dentro dos muros da abadia, índice, sem dúvida 
elevado, o que faz supor a manifestação pneumônica da doença.
No entanto, pautando-se pelas inúmeras referências relativas 
ao despovoamento do reino, afirmam os historiadores que todo Por-
tugal foi assolado pelo flagelo. De um extremo ao outro do país, e por 
anos a fio, abundam as queixas e representações em cortes contra a 
deficiência de braços para o amanho da terra, e a consequente ruína 
da agricultura. Em 1358, um documento relativo a Santar afirmava que 
durante a “pestelença morreram muytos homes antigos que a verdade 
sabem e ora som maaos de achar homes antigos que se acordem do 
tempo delRey dom Donys e delRey dom Afonso seu padre delRey dom 
Denys” (MARQUES et al., 1963, v. XIV-XV, p. 215). 
Seria este um indicativo, sem dúvida exagerado (69 anos sepa-
ram a Peste Negra do início do governo de D. Dinis, e o documento 
faz ainda menção ao tempo de seu pai!), de que a epidemia ceifou 
sobretudo os mais velhos? Ponte de Lima queixava-se, em 1372, de 
que “nom era povorada como cumpria” (MARQUES et al., 1963, v. XIV-
XV, p. 215), enquanto Coimbra, em 1373, ressentia-se de estar “muy 
despovorada e falecida de companha” (MARQUES, 1963, v. XIV-XV, p. 
215). O rol dos besteiros do conto também denuncia uma acentuada 
queda de seus contingentes, assinalada a partir de fins do século XIV 
e por quase todo o século XV.
Oliveira Marques, depois de arrolar os variados testemunhos 
relativos ao despovoamento do reino, conclui que “todo [ele] traduzia 
o mesmo fenômeno e exprimia idêntico queixume, em cartas régias, 
em artigos de corte, em contratos de compra e venda, em testamentos, 
enfim” (MARQUES, 1987, p. 28).
Poder-se-iam multiplicar, na sequência, as referências que pare-
cem apontar para uma íntima articulação entre a eclosão da Peste Negra 
e a de uma “crise” demográfica em Portugal. No entanto, a tendência de 
queda demográfica que marcou o final da Idade Média manifestou-se, em 
diversas regiões europeias, desde os primeiros anos do século XIV, ou 
ainda a partir de finais do século XIII, ainda que o período mais crítico 
situe-se nos cerca de 20 anos consecutivos à Grande Peste. Esta, ao se 
abater sobre um meio já deficiente, exerceria uma influência determinan-
te. Em relação a Portugal, aguarda-se a elaboração de estudos regionais 
que venham a lançar alguma luz sobre a questão, permitindo englobá-lo 
ou excluí-lo do quadro mais comum ao Ocidente. Um dos raros exis-
tentes, uma monografia relativa ao Vale do Mondego, indica ser datável 
de 1340, ou mesmo antes, a tendência gradual de diminuição, “quer no 
número de arrotéias quer no de transações de bens imobiliários, a par 
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de uma intensificação nos queixumes de penúria e dos tempos difíceis 
que se iam atravessando” (MARQUES, 1987, p. 20). 
Tenha ou não se debatido a agricultura portuguesa em meio a 
um quadro crítico anterior a 1348, a sangria demográfica provocada 
pelo flagelo iria acirrar as contradições e conflitos de classe entre 
empregadores e assoldadados. D. Afonso IV deliberou, por lei de 1349,4 
no intuito de pôr cobro a suposta motivação da crise – a carência de 
mão de obra. No preâmbulo do diploma régio, indica as motivações de 
sua expedição: afirma ter sido a “postenença” responsável pela falta 
de mão de obra, não só em função das mortes, mas ainda pelo fato 
de que muitos antigos jornaleiros, em função das heranças recebidas, 
negavam-se a trabalhar em terras alheias. Outros, ainda seguindo suas 
indicações, exigiam pelo trabalho quantias abusivas, acarretando a 
diminuição da renda dos proprietários, que deixaram de arar seus 
campos e apascentar seus rebanhos, promovendo “grandes dapnos 
nos pãaes E nas outras cousas E fruytos da terra”. Parece-nos oportuno 
ressaltar, em relação a esta lei, bem como a suas congêneres europeias 
(SILVA, 1976, p. 81) (que inclusive representam a primeira manifestação 
da intervenção do poder régio, senão contra a doença, ao menos con-
tra seus efeitos), a intenção do legislador de preservar integralmente 
os interesses das elites concelhias, diante do aumento do poder de 
barganha e pressão auferido pelos trabalhadores rurais.
Outra questão suscitada pela Peste Negra diz respeito à concen-
tração de propriedades, fenômeno característico da súbita elevação da 
mortalidade produzida pela epidemia. Embora tal acúmulo não tenha 
se limitado aos membros das classes privilegiadas, foi sem dúvida a 
Igreja uma das mais beneficiadas pelos legados testamentários (não 
era a peste castigo de Deus, e o legado meio de alcançar sua graça?), 
fato superdimensionado pela nobreza laica contrária à concentração 
de patrimônios por parte, principalmente, das ordens religiosas. O 
conflito estabeleceu-se entre a Igreja e o Poder Régio (querela antiga, 
exacerbada em função da conjuntura!), particularmente em relação à 
competência para a abertura e disposição dos testamentos. D. Afonso 
IV, por meio da já referida lei de 1349, firmou a posição real, proibindo 
a apresentação dos testamentos aos vigários e ordenando sua provisão 
pelos juízes régios das localidades. Temendo o descumprimento da 
disposição, reafirma seu poder e decisão sobre as municipalidades, 
instituindo os “juízes de fora parte”, nomeados e investidos pela au-
toridade régia, mas com salários custeados pelos concelhos.
Talvez fosse possível observar ainda alguns reflexos, porven-
tura longínquos, produzidos pela Grande Peste e seus efeitos sobre 
as transformações que se processaram na sociedade portuguesa ao 
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final da Idade Média. O incremento da pastorícia, principalmente na 
região alentejana e nos arredores de algumas cidades, parece guardar 
relação com o escasseamento da mão de obra. Oliveira Marques des-
taca o engrandecimento das cidades do sul, fenômeno provavelmente 
acelerado a partir da segunda metade do século XIV, “consequência 
possível das migrações posteriores à Peste Negra” (MARQUES, 1987, 
p. 187). Movimento sensível em diversas outras regiões europeias e 
apontado, via de regra, como importante fator da crise do setor agrário, 
seu processo é, ao menos teoricamente, conhecido. A epidemia pro-
moveu pesadas baixas nos centros urbanos. Este súbito decréscimo 
do contingente de trabalhadores gerou uma elevação dos salários 
artesanais, e com ela a fuga maciça da mão de obra para as cidades, 
onde lhe pagavam melhor.
Contudo, os efeitos da Peste Negra no complexo contexto que 
caracterizou o final do medievo português estão ainda a exigir a 
atenção dos historiadores, permanecendo quase intocado o campo 
de uma história social da doença em Portugal.
1.3 um nOvO ciclO de terrOr
Não haveria mais, depois de 1348, epidemias “mundiais”, ao me-
nos como caráter catastrófico atingido pela peste no “terrível século 
XIV”. No entanto, destacando uma de suas “faces”, tantas vezes eclip-
sada pelo prestígio da pandemia, a Peste Negra inaugurou no Ocidente 
um novo ciclo da doença, assemelhando-se à Peste de Justiniano em seu 
caráter fundador. Agindo em vagas epidêmicas frequentes até fins do 
século XVI, a partir de quando se atenuou o seu papel de principal des-
truidor demográfico (MARCÍLIO, 1984, p. 77), seguiu o flagelo ceifando 
vidas em grande intensidade regional, atingindo por vezes índices mais 
elevados do que os inferidos na Grande Epidemia. Tais surtos configu-
ravam, via de regra, as crises de mortalidade (MARCÍLIO, 1984, p. 77), 
elemento central, estrutural, definidor do regime demográfico de tipo 
antigo. Ainda que sua “excelência destruidora” legitime a abordagem 
isolada dos diversos surtos epidêmicos, a efetiva compreensão de suas 
reincidências e efeitos devastadores demanda o seu enquadramento no 
modelo demográfico acima referido, ganhando o fenômeno pleno signi-
ficado pela sua articulação com as condições materiais do período. 
O desenvolvimento, relativamente recente, da demografia 
histórica permitiu a formulação de uma das mais importantes teo-
rias sobre o comportamento demográfico das populações de Antigo 
Regime, dando origem ao conceito (ou ao modelo) de “demografia 
de tipo antigo”, aplicável às (e característico das) populações 
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anteriores à transição demográfica contemporânea. Tendo em vista 
o caráter essencialmente quantitativo das análises demográficas, 
aliado a uma perspectiva diacrônica, os historiadores demógrafos 
buscam discernir a vigência temporal de regimes demográficos, 
globalmente caracterizados em função das tendências marcantes 
e duradouras do comportamento das principais variáveis que os 
compõem. Destaque-se que o modelo proposto abrange, a despeito 
da referência ao Antigo Regime, um período mais vasto, grosso modo 
situado entre a segunda metade do século XIV e fins do século XVIII 
(RODRIGUES, 1990, p. 16).
Em regime demográfico dito “normal”, livre da episódica inter-
venção de eventos catastróficos (em certas épocas, como veremos, 
de fato ordinários!), o índice de nascimentos tende a ultrapassar o de 
óbitos, gerando o crescimento populacional “natural”, que se produz 
segundo ritmos variados. Quanto aos seus determinantes, os de-
mógrafos afirmam a existência de “freios preventivos” (mecanismos 
autorreguladores, homeostáticos), adotados consciente ou inconscien-
temente pelas populações no intuito de controlá-los ou adequá-los ao 
nível da oferta de alimentos (MARCÍLIO, 1984, p. 47-68).
Considerado o pressuposto inicial, caracteriza o regime demo-
gráfico antigo a recorrência periódica de crises de mortalidade que 
solapavam, total ou parcialmente, o capital humano auferido nos perío-
dos de crescimento natural das populações. Tais crises configuram-se 
como estruturais não só em função de seus determinantes profundos, 
como de sua ascendência sobre o comportamento das demais variáveis 
demográficas. Todos os países europeus da era moderna estiveram, em 
maior ou menor grau, sujeitos a periódicos anos de crise, basicamente 
traduzidos, num contexto de elevada mortalidade “normal”, por um 
brusco e violento acréscimo dos óbitos, imposto por causas de tipo 
endógeno ou exógeno, não necessariamente intrínsecas à população 
atingida. Ainda que pontualmente marcassem sua presença, as crises 
repercutiram de forma variada, segundo períodos e lugares, de acordo 
com o complexo conjunto de elementos que as originava. Assim, o 
crescimento populacional atingido em termos globais no século XVI 
parece articular-se a uma menor ocorrência e/ou virulência das crises. 
O oposto, no tocante a ambas as variáveis, caracterizou a centúria 
seguinte, até que o espaçamento e a paulatina supressão daquelas 
viesse instituir, com a grande mutação de fins do Oitocentos, o regime 
demográfico contemporâneo.
No que diz respeito à natureza das crises demográficas e aos 
seus fatores essenciais determinantes, Dupâquier (RODRIGUES,1990, 
p. 21) propõe uma tipologia que as caracteriza como: 1. crise de sub-
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sistência, dada a falta e/ou carestia de alimentos básicos em determi-
nada região, sem implicar necessariamente um aumento significativo 
do número de óbitos; 2. crise de mortalidade “pura”, traduzida por 
um aumento simples dos índices de mortalidade, devido em geral à 
deflagração de um surto epidêmico e; 3. crise de tipo misto, aquela 
em que um surto infectocontagioso se abate sobre uma conjuntura 
marcada por sucessivos anos de quebra da produção agrícola, ou de 
escassez crônica de alimentos, determinando a elevação brusca dos 
óbitos. Claro está resultarem desta última as efetivas crises demográ-
ficas, dada sua profunda incidência sobre os índices de mortalidade, 
de concepções e casamentos, e ainda sobre a sensibilidade coletiva. 
Da conjugação da crise de subsistência com a epidêmica (no período 
ao qual se circunscreve esta análise, sobretudo a peste, a despeito da 
ocorrência de febres tifóides e paratifóides) atingia-se, via de regra, a 
decuplicação da taxa média de óbitos. Um movimento de força igual, 
porém inversa, incidia sobre os matrimônios, com uma queda imediata 
acentuada nas concepções, definindo-se teoricamente a recuperação 
populacional como um processo de médio prazo.
Da compreensão da complexidade que caracteriza a articulação 
dos fatores acima aduzidos, e as crises demográficas do passado, 
vislumbra-se de forma mais nítida e equilibrada, não só o poder deses-
truturador com que a doença afligia a sociedade, como as razões de 
sua contumácia e da demarcação de um palco predileto à encenação 
do seu espetáculo de horrores.
Consideremos, em primeiro lugar, da longa lista de calami-
dades, as fomes e penúrias, distinguidas pela incidência da morte 
(WOLFF, 1988, p. 15). Ainda que, via de regra, desencadeadas pela 
interferência de fatores climáticos adversos (chuvas excessivas, secas 
prolongadas etc.), mais ou menos controláveis em função do grau de 
desenvolvimento das forças produtivas, articulam-se e são também 
determinadas pelos níveis de produtividade, circulação, consumo e 
estoque de alimentos. A despeito do avanço tecnológico e do aumento 
da produtividade dos campos, esteio para o arranque da sociedade 
ocidental europeia entre os séculos XI e XIII, a precariedade subsistente 
das forças produtivas, aliada ao profundo abismo social que separava 
os setores privilegiados do campesinato, produzia, quando rompido o 
frágil equilíbrio da produção, fomes terríveis das quais ouvem-se ecos 
mesmo no período acima referido. Maurice Berthe, em estudo relativo 
à região da Navarra (WOLFF, 1988, p. 16), considera que as variações 
climáticas ali verificadas no século XIV não podem ser caracterizadas 
como anormais. Segundo Brooks (apud MARQUES, 1978, p. 39), o século 
XIII padeceu maior número de calamidades naturais do que quaisquer 
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dos seguintes. Portanto, mais do que os próprios acidentes climáticos, 
anormal é a amplitude das catástrofes, frequentes, por eles desencade-
adas a partir de meados do século XIV. Antes que um “determinismo 
climatológico” (frio e umidade maiores?), foram os problemas crônicos 
da agricultura medieval, agudizados pela crescente pressão demográ-
fica e senhorial, os fatores fundamentais do desequilíbrio manifesto 
pela economia dos campos no alvorecer da Baixa Idade Média. Lem-
bremos que a fome endêmica que caracterizou o período articulou-se 
ao aumento das exações sobre o campesinato, pela exacerbação da 
exploração

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