Buscar

O Plano da Salvacao - Benjamim B Warfield

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

O P L A N O
D A
SALVAÇÃO
EUIÇÕES VIDA NOVA 
L E I R I A - P O R T U G A L
Crédito: Mazinho Rodrigues. 
Doação Exclusiva para: 
http://entretextosteologicos.blogspot.
TRAD U ZID O E PUBLICADO 
com permissão de 
W m . B. Eerdm ans Publishing Company 
Grand Rapids, Michigan, USA 
e
The Presbyterian and Reform ed Publishing Com pany 
Philadelphia, Pennsylvania, USA
) t.c o m .l|^ B
■pany
LISBOA
http://entretextosteologicos.blogspot
O P L A N O
D A
S A L V A Ç Ã O
Pelo
I)r. ISKN.IAMIM B. W A R FIELD 
Anligo professor do Seminário Teológico 
de Princeton
TRADUÇÃO DA EDIÇÃO REVISTA 
1 9 5 8
Í N D I C E
Págs.
I — AS DIFERENTES CONCEPÇÕES . . . . . 5
II ---A UTOSOTEKISMO........................................... 29
III — U N IV E R S A L IS M O .............................................................. 77
IV — SACERDOTALISMO . . . . . . . . 55
V ---- C A L V IN IS M O ............................................................... 101
n o t a s ............................................................................. . 125
I
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES
O assunto de que nos vamos ocupar nesta série de 
prelecções, é comummente denominado «O Plano da 
Salvação». Numa designação mais técnica chama-se- 
-lhe «A Ordem dos Decretos». Esta designação técnica 
tem sobre a anterior (que é a mais popular) a van­
tagem de indicar com maior exactidão o campo da 
matéria em causa. É que, realmente, esta não se limita 
apenas ao processo da salvação em si, mas abrange, 
duma maneira geral, todo o curso das relações de 
Deus com o homem, relações que, de facto, vêm a 
culminar na salvação do ser humano. A Criação, a 
Queda e a condição do homem desta resultante, 
comummente, são também abrangidas por esta maté­
ria. No entanto, estes últimos aspectos podem com 
bastante propriedade, ser considerados mais autên­
ticos pressupostos do que partes essenciais da matéria 
em si. E não haverá grande dano em ficarmos com a 
designação mais popular. O facto de ser mais concreta 
dá-lhe uma vantagem que não pode ser menospre-
6 O PLANO DA SALVAÇÃO
zada; e, acima de tudo, tem o mérito de pôr em relevo 
o assunto principal — a salvação. A série de activi­
dades diversas que vão ser consideradas, são, em 
qualquer caso, tidas como vogando em volta da sal­
vação do homem pecador, assunto este que é o seu 
objectivo imediato. Quando consideramos correcta­
mente o que esta matéria implica, não parece que 
seja preciso justificar com argumentos a designação 
geral de «O Plano da Salvação».
Não achamos necessário determo-nos a discutir a 
questão prévia de saber se Deus, nas suas actividades 
de salvação, actua de acordo com um plano. Que 
Deus actua de acordo com um plano em todas as 
suas actividades é já admitido, pelo Teísmo. Esta­
belecida a existência de um Deus pessoal, tal questão 
perde a razão de existir. É que «pessoa» significa 
intenção: o que distingue precisamente uma pessoa 
de uma coisa é que os modos de actuar da primeira 
são intencionais; tudo quanto a pessoa faz tem um 
fim em vista; e a pessoa escolhe até os meios para 
chegar a esse fim. Por conseguinte, até o Deísta deve 
admitir que Deus tem um plano. Podemos, sem 
dúvida, imaginar uma forma extrema de Deísmo, em 
que se pretenda sustentar que Deus não tem o menor 
interesse nas coisas que acontecem no Seu universo; 
que, tendo criado o mundo, o tenha abandonado, 
deixando-o seguir o seu próprio rumo em direcção 
a qualquer fim que possa ter, sem lhe dar qualquer 
atenção. Não seria necessário dizer, contudo, que tal 
forma extrema de Deísmo não existe realmente, em­
bora haja, (estranho é dizê-lo) alguém, como teremos
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 7
ocasião de ver, que pense que, no assunto da salvação 
do homem, Deus se conduza da maneira irresponsável 
que mencionámos.
O que o verdadeiro Deísta sustenta é a existência 
de uma lei. Crê, assim, que Deus confiou o Seu uni­
verso, não a um capricho imprevisto e desprecatado, 
mas sim à referida lei; lei esta que Deus pôs no Seu 
universo, que pôde confiar com segurança o governo 
dela. Isto significa que o próprio Deísta concebe que 
Deus tem um plano; plano este que abrange tudo o 
que acontece no universo. O Deísta difere do Teísta 
só no que diz respeito às formas de actividade pelas 
quais entende que Deus leva a cabo o seu plapo. O 
Deísmo implica uma concepção mecânica do uni­
verso. Deus fez uma máquina e, exactamente porque 
essa máquina é muito boa, pode deixá-la executar os 
Seus fins e não os da própria máquina. Paralelamente, 
pode-se construir um relógio e depois, exactamente 
porque o relógio é bom, deixá-lo realizar o tique- 
-taque dos segundos, marcar os minutos, dar as horas, 
marcar os dias do mês, as fases da Lua e as respec­
tivas marés, e, se quisermos, podemos pôr-lhe um 
cometa que apareça no mostruário uma só vez durante 
a vida do relógio, não ao acaso, mas sim quando e 
onde e da maneira que nós tivermos marcado. Este 
relógio não escolhe o seu funcionamento; segue o 
funcionamento que lhe imprimiu aquele que o fez 
o funcionamento que lhe foi destinado pelo fabri­
cante; e o relógio de Deus, o universo, não executa 
o seu próprio plano mas sim o de Déus, como Ele
8 O PLANO DA SALVAÇÃO
o ordenou, executando os inevitáveis acontecimentos 
com precisão mecânica.
É uma grande concepção, esta concepção da lei 
do Deísta. 'Livra-nos do acaso. Mas só o consegue 
atirando-nos para as rodas dentadas duma máquina. 
Não é, pois, a mais alta concepção. A melhor con­
cepção é a do Teísmo, que nos livra até da lei e- nos 
coloca directamente nas mãos de uma pessoa. É uma 
grande coisa ficar livre do desordenado reino de um 
acaso sem desígnio. A deusa Tyche (Fortuna) era uma 
das mais terríveis divindades do mundo antigo, quase 
tão terrível como o Fado e dificilmente distinta dele 
É uma grande coisa estar sob a direcção dum desígnio 
inteligente. Mas há uma grande diferença entre o 
facto do referido desígnio ser executado por uma mera 
lei, que actua mecanicamente, e sê-lo pelo governo 
pessoal sempre presente da própria pessoa. Não há 
nada mais ordenado do que a direcção ou governo 
duma pessoa cujas acções são totalmente orientadas 
por um propósito inteligente e visam um fim.
Se cremos num Deus pessoal e muito mais ainda, 
se, sendo Teístas, .cremos no governo imediato do 
mundo pelo Deus pessoal que lhe deu origem, então 
devemos crer num plano em que assenta tudo o que 
Deus fez e, por consequência, também, num plano 
de salvação. A única questão que pode surgir não diz 
respeito à realidade deste plano, mas sim à sua natu­
reza. Quanto à sua natureza, deve dizer-se que tem 
havido muitas opiniões diferentes. Na verdade quase 
todas as opiniões possíveis têm sido enunciadas em 
muitas ocasiões e em muitos lugares. Mesmo que
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 9
ponhamos à parte todas as opiniões não cristãs, não 
chegará a ser necessário modificar a afirmação ante­
rior. Várias linhas divisórias têm sido traçadas dentro 
do cristianismo; facções se têm erguido contra fac­
ções; diferentes tipos de crença se têm desenvolvido 
e dado nada menos do que diferentes sistemas de 
religião que se chamam cristãos, mas só têm de 
comum o nome.
Nesta prelecção, é meu propósito pôr ràpidamente 
diante de nós uma perspectiva das várias opiniões 
que têm sido defendidas pelos maiores grupos dentro 
do cristianismo, para que se possa fazer ideia da sua 
extensão e das suas ligações. Talvez possamos conse­
guir melhor este nosso objectivo pela análise das 
grandes divergências que os separam, pelo menos 
para O nosso primeiro propósito. Enumerá-las-ei — as 
várltu opinlflos — nu ordem da sua importância, indo 
das dlícrciiçus mais profundas e de mais longo alcance 
nu dlvi.são dos cristãos, até às de efeito menos radical.
I — () inais profundo abismo que separa os cha­
mados cristãos, quanto às suas concepções do plano 
de salvação, é o que os divide no que podemos cha­
mar as doutrinas Naturalista e Supernaturalista. A 
linha de divisãoneste assunto da salvação do homem 
é: ou Deus planeou simplesmente deixar o homem 
com capacidade maior ou menor para a si próprio 
se salvar; ou planeou intervir Ele próprio para o sal­
var. A diferença entre o Naturalismo e o Supernatu- 
ralismo é muito simples, sim, mas absoluta: ou é o 
homem que se salva a si próprio ou é Deus Quem o 
salva.
10 O PLANO DA SALVAÇÃO
O consistente esquema Naturalista é conhecido na 
História da doutrina pelo nome de Pelagianismo. Q $ 
Pelagianismo puro afirma que todo o poder que actua 
na salvação do homem provém do próprio homem. 
Mas o Pelagianismo não é meramente assunto da 
história nem tão-pouco aparece sempre em estado de 
pureza. Assim como os pobres de bens terrenos estão 
sempre connosco, assim também estão sempre con­
nosco os pobres das coisas espirituais. Pode-se real­
mente pensar que nunca houve na história do 
cristianismo um período em que as concepções natu­
ralistas do processo da salvação tenham sido mais 
largamente espalhadas ou mais radicais do que 
actualmente. Uma espécie de Pelagianismo, que 
ultrapassa o próprio Pelágio na inteireza do seu 
naturalismo, está de facto muito em voga na hora 
que passa entre muitos que a si próprios se elevaram 
à posição de guias do pensamento cristão. E, em 
toda a parte, em todos os ramos do cristianismo, são 
correntes as concepções que atribuem ao homem, no 
uso dos seus poderes naturais, pelo menos a activi- 
dade decisiva na salvação da sua alma, o que implica 
a suposição de que Deus tenha disposto que se sal­
vem aqueles que, no ponto decisivo, de uma maneira 
ou de outra operam a sua própria salvação.
As chamadas opiniões intermediárias são, como é 
óbvio, em princípio, opiniões naturalistas, uma vez 
que (qualquer que seja a parte que atribuam a Deus 
nas circunstâncias da salvação), quando chegam ao 
ponto crucial da própria salvação, colocam o homem 
na dependência dos seus próprios poderes. Proce­
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 11
dendo assim, separam-se definitivamente da doutrina 
Supernaturalista do plano de salvação e, destarte, dò 
testemunho unânime de toda a Igreja organizada 
Porque, embora se tenha dado a entrada de muitos 
aspectos de doutrina naturalista nas pessoas de muitos 
membros das igrejas, toda a Igreja organizada — a 
Católica Ortodoxa Grega, a Católica Romana Latina 
e a Protestante, em todas as suas grandes formas his­
tóricas, Luterana e Reformada, Calvinista e Armi- 
niana — manifesta o seu acordo, firme e categórico, 
na concepção Supernaturalista da salvação. Teremos 
de jornadear até às regiões periféricas do cristianismo, 
onde encontraremos seitas de posição duvidosa den­
tro da corporação dos cristãos, como os Unitarianos, 
por exemplo, para depararmos com uma corporação 
organizada de cristãos sem confissão de fé Superna­
turalista.
Esta confissão, em oposição directa ao Naturalismo,, 
declara categoricamente que é Deus, o Senhor, Quem 
salva a alma e não o próprio homem; e para que 
nenhum erro seja cometido, a referida confissão não 
se esquiva à declaração completa e, com plena com­
preensão do problema, afirma precisamente que todo 
o poder exercido na salvação da alma provém de 
Deus. Eis aqui, pois, o eixo da balança que sepai'a os 
dois grupos. O supernaturalista não se contenta em 
dizer que parte do poder usado na salvação da alma 
(ou até a maior parte desse poder) é de Deus. Afirma 
que todo esse poder vem de Deus, e que qualquer 
parte que o homem possa ter no processo dá salvação 
é subsidiária, como efeito, da acção divina; e que é
12 O PLANO DA SALVAÇÃO
Deus e só Deus Quem salva a alma. E o Supernatu- 
ralista é, nesta acepção, a Igreja inteira organizada, 
em toda a extensão do seu testemunho oficial.
2 — Há, sem dúvida, diferenças de opinião entre 
os Supernaturalistas, e diferenças que não são nem 
pequenas, nem de pouca monta. A mais profunda é 
a que separa os Sacerdotalistas dos que seguem o 
espírito evangélico. Mas tanto os Sacerdotalistas como 
os do espírito evangélico são Supernaturalistas, isto 
é,í concordam em que todo o poder exercido na sal­
vação da alma provém de Deus. Diferem na maneira 
como o poder salvador de Deus se exerce sobre a 
alma. O ponto exacto cla divergência entre eles está 
na questão do modo: Deus, por Cujo único poder se 
efectua a salvação, salva os homens por uma relação 
directa e imediata com eles como indivíduos; ou 
então, salva-os por meio de agências com poder 
sobrenatural por Ele estabelecidas no mundo. O pro­
blema é, pois, saber se a operação salvadora de Deus 
é ou não imediata: Deus salva os homens por acção 
imediata ou directa da Sua graça sobre as suas almas, 
ou actua sobre eles tão-sòmente por meio de agências 
estabelecidas para esse fim ?
O ensino da Igreja Romana apresenta-nos um mo­
delo de Sacerdotalismo. No referido ensino afirma-se 
que a Igreja é a instituição salvadora, isto é, só por 
ela exclusivamente pode a salvação ser apresentada 
aos homens. Fora cla Igreja e das suas leis, dizem 
eles, não pode alcançar-se a salvação: a graça só pode 
ser transmitida por meio e através do ministério da 
referida Igreja, e não de qualquer outro modo. Duas
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 13
máximas mostram o seu poder: onde está a igreja 
está o Espírito; fora da igreja não há salvação.
Sempre que para salvação há necessidade indis­
pensável daquelas agências consideradas como por­
tadoras da graça salvadora, eis, então, de qualquer 
maneira, a presença do espírito sacerdotal; e, torna-se 
dominante, sempre que tal indispensabilidade se 
torne absoluta. Assim, os chamados Meios da Graçap 
tornam-se «meios indispensáveis» e são, no sentido' 
estrito, não somente meios «sine quibus non», mas. 
até o real «quibus» da salvação.
Em antagonismo completo com tal doutrina está 
a doutrina do espírito evangélico, que procura con-; 
servar o que considera o único e coerente supernatu- 
ralismo, elimina qualquer intermediário entre a alma 
e o seu Deus, e deixa a pessoa em dependência abso­
luta de Deus para a salvação da sua alma: sobre ela> 
Deus opera directamente por meio da Sua Graça. O 
espírito evangélico sente a sua dependência para 
salvação, não de quaisquer meios de graça, mas sim 
directamente de Deus; espera a Graça directamente 
de Deus, e não de meios de graça; e sustenta, por 
consequência, que o Espírito Santo é, não só capaz 
de actuar, mas que realmente actua onde, quando e 
como quer. O espirito evangélico concebe a Igreja 
e as suas ordenanças como instrumentos que o Espí­
rito utiliza e não como agentes que utilizam o Espírito 
Santo na obra da salvação. Em directa oposição às 
máximas do consistente sacerdotalismo, o princípio 
evangélico toma como lemas: onde está o Espírito,
14 O PLANO DA SALVAÇÃO
aí está a Igreja; fora da corporação dos regenerados 
não há salvação.
Ao caracterizarmos assim o espírito evangélico, 
não deixará de notar-se que estamos a caracterizar 
o Protestantismo. De facto todo o Protestantismo 
Confessional, em todos os seus ramos — Luterano e 
Reformado, Calvinista e Arminiano — é evangélico 
na doutrina do plano da salvação. O Protestantismo 
e o princípio evangélico estão contidos dentro dos 
mesmos limites, se é que estas duas designações não 
são exactamente sinónimas. Assim como todo o cris­
tianismo organizado afirma categoricamente a sua 
confissão de supernaturalismo puro, assim também 
todo o Protestantismo organizado é igualmente claro 
€ categórico na sua confissão do espírito evangélico. 
Destarte o princípio evangélico aparece-nos como 
uma concepção do plano da salvação distintamente 
protestante; e talvez não seja estranho que, na sua 
imediata oposição ao sacerdotalismo, por vezes quase 
perca de vista a sua mais profunda oposição ao natu­
ralismo. O princípio evangélico não deixa de ser fun­
damentalmente antinaturalista, ao verificar-se anti- 
-sa-cerdotal: o seu protesto primário continua a ser 
contra o naturalismo e, pelo facto de se opor tam­
bém ao sacerdotalismo, só se revela coerentemente 
supernaturalista, pois recusa-sea admitir quaisquer 
intermediários entre a alma e Deus, Que é a única 
fonte de salvação. O único e verdadeiro princípio 
evangélico, portanto, é aquele em que ressoa clara­
mente a dupla confissão: que todo o poder exercido 
na salvação da alma provém de Deus; e que Deus. 
na Sua obra de salvação, actua directamente na alma,
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 15
3 — Mesmo assim, contudo, há muitas e profundas 
diferenças entre os que seguem o princípio evangé­
lico. Todos eles estão de acordo em que todo o poder 
exercido na salvação provém de Deus e em que Deus 
actua directamente na alma, ao desempenhar a Sua 
acção salvadora. Mas diferem muito uns dos outros, 
quanto aos métodos exactos empregados por Deus, 
ao levar muitos filhos para o estado glorioso de sal­
vação. Alguns deles atingiram a sua posição evangé­
lica por meio de correcção modificadora aplicada a 
um fundamental sacerdotalismo, de que saíram. Muito 
naturalmente, certos elementos desse sacerdotalismo 
subjacente permaneceram incrustados na reconstru­
ção e deram cor à sua maneira de conceber a posição 
evangélica. Há ainda outros no grupo evangélico 
cujas concepções estão semelhantemente coloridas 
por um naturalismo subjacente, naturalismo de que 
eles provieram, tendo chegado à melhor confissão 
por um processo semelhante de modificação e 
correcção. O-primeiro destes grupos é representado 
pelos evangélicos Luteranos, que, por isso, gostam 
de falar de si próprios como partidários duma «Re­
forma Conservadora»; isto significa que formaram as 
suas concepções evangélicas na base do sacerdota­
lismo da Igreja Romana, da qual saíram, talvez difi­
cilmente e nem sempre com perfeição. O outro grupo 
é formado pelos evangélicos Arminianos, aqueles cujo 
princípio evangélico é um aperfeiçoamento do subja­
cente semipelagianismo dos «Remonstrantes Holan­
deses». Em oposição completa a grupos tais como 
os mencionados, há ainda outros grupos evangélicos
16 O PLANO DA SALVAÇÃO
que adoptam o princípio evangélico fundamental na 
sua pureza sem cor alguma de elementos estranhos.
Nesta variedade de posições, não é fácil estabelecer 
um princípio de classificação que facilite a tarefa de 
discriminar nitidamente as formas principais que o 
princípio evangélico assume. Tal princípio, contudo, 
parece apresentar-se-nos naquelas duas concepções 
opostas do plano de salvação denominadas Universa- 
iísta e Particularista. Todos os que seguem o princí­
pio evangélico concordam em que o poder para a 
salvação da alma provém de Deus e é sobre ela exer­
cido directamente por Deus. Mas diferem sobre jc 
Deus exerce esse seu poder de salvação igualmente, 
ou, pelos menos, indiscriminadamente, sobre todos 
os homens (universalmente), sejam salvos ou não, ou 
se o exerce somente sobre alguns, ou (particular­
mente) sobre apenas os que são realmente salvos. O 
ponto de divergência é este: ou se entende que Deus 
tem um plano realmente Seu para salvar os homens 
pela Sua Graça indubitavelmente eficaz e omnipo­
tente, ou se entende que apenas derrama a Sua 
Graça sobre os homens, tornando-os assim capazes 
de ser salvos, sem no entanto assegurar indubitàvel- 
mente, a salvação de alguns, em quaisquer casos 
particulares.
A controvérsia específica daqueles a quem chamei 
universalistas, é que, ao mesmo tempo que todo o 
poder exercido na salvação vem de Deus e é por Ele 
exercido directamente sobre a alma, também tudo 
aquilo que Deus faz relativo à salvação dos homens, 
fá-lo em favor e para o bem de todos os homens, sem
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 17
discriminação alguma. Esta declaração parece dar 
origem a uma doutrina de salvação universal. Se fosse 
Deus o Senhor quem salvasse a alma e não o próprio 
homem; e se Deus, o Senhor, salvasse operando com 
a Sua Graça salvadora directamente sobre a alma e 
se, por fim, Deus exercesse a Sua Graça salvadora 
igualmente sobre todas as almas; pareceria segura­
mente inevitável a conclusão de que todos seriam 
salvos. Nesta ordem de ideias tem aparecido por vezes 
fervorosos militantes do espírito evangélico que, par­
tindo exactamente destas bases, têm defendido vigo­
rosamente que todos os homens são salvos: a salvação 
vem totalmente de Deus, e Deus é omnipotente; e 
como Deus opera a salvação por meio da Sua Graça 
toda-poderosa em todos os homens, todos os homens 
são salvos. É, contudo, um facto que a grande massa 
dos universalistas não tem aceitado este consistente 
universalismo, e isto devido às afirmações claras e 
categóricas da Bíblia de que realmente nem todos os 
homens são salvos. Dão de face com um grande pro­
blema e têm despendido grandes esforços para de­
fender que as actividades de Deus na salvação são 
inteiramente universalistas, enquanto que o facto 
central da salvação, é particularista; no entanto, o 
princípio evangélico fundamental de que só a Graça 
de Deus é que salva, é ainda afirmado por eles. Estes 
esforços deram em resultado, especialmente, duas 
correntes, a do Luteranismo evangélico e a do Armi- 
nianismo evangélico. Ambas afirmam que a salvação*1 
está inteiramente nas mãos de Deus e que toda a 
actividade de Deus na salvação incide indiscrimina­
18 O PLANO DA SALVAÇÃO
damente sobre todos os homens, ainda que nem todos, 
mas apenas alguns, sejam salvos.
Em oposição a este incoerente universalismo, outros 
evangélicos há que sustentam que o particularismo 
ligado ao ponto central do processo da salvação — 
por isso que é Deus e só Deus Quem salva — faz, 
necessàriamente, parte também do próprio processo 
de salvação. Em defesa' do princípio evangélico 
comum, em defesa também do supernaturalismo fun­
damental comum a todos os cristãos, nenhum deles 
chegou à sua posição legítima por outra maneira — 
mais em defesa da própria religião — e todos eles 
advogam que, através de todo o processo da salvação, 
Deus actua, não com os homens em massa, mas com 
cada um individualmente, de cada um se apodera 
com a Sua Graça, e a cada um, pela Sua Graça, leva 
à salvação. Como é Ele Quem salva os homens, como 
os salva por acção directa nos seus corações, e como 
a Sua Graça salvadora é o Seu poder infinito que 
efectua a salvação, os homens são devedores a Deus, 
não meramente da oportunidade geral de salvação 
mas em cada caso e em todos os casos da sua própria 
salvação real. Por consequência, a Ele — e só a Ele 
— pertence, em cada caso, toda a glória, que, aliás, 
ninguém pode partilhar com Ele. Assim, para que o 
justo lema Soli Deo Glória possa transparecer como 
verdadeiro e não sofrer restrições, nem no seu signi­
ficado, nem na sua força, afirmam que é necessário 
compreender que é de Deus que cada um que tem a 
salvação, recebe cada coisa que a ela diz respeito e. 
acima de tudo, o próprio facto de que é Ele que entra
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 19
na salvação. A questão exacta que divide os univer- 
salistas e os particularistas é, por consequência, saber 
se a graça salvadora de Deus, na qual exclusivamente 
há salvação, salva realmente. A presença da graça 
salvadora significa salvação, ou pode ela estar pre­
sente e não haver salvação ?
4 — Até os particularistas, no entanto, têm as suas 
divergências. A mais importante dessas divergências 
è a que separa aqueles que sustentam que Deus tem 
em vista não todos os homens mas só alguns, nomea­
damente aqueles que são realmente salvos, em todas 
as suas operações que visam a salvação dos homens; 
e aqueles que desejam distinguir, entre as operações 
de Deus neste campo, umas de carácter particularista 
e outras de carácter universalista. Esta última ma­
neira de ver é uma tentativa para conseguir uma 
harmonia entre a concepção particularista e a con­
cepção universalista, preservando o particularismo, 
tanto no processo como no desfecho da salvação, o 
suficiente para fazê-la depender exclusivamente da 
graça de Deus e para Lhe dar toda a glória da sal­
vação real; enquanto que, ao mesmo tempo, cede ao 
universalismo do processo da salvação, tanto quanto 
os seus aderentes julgam poder ser feito dentro da 
conservaçãológica deste particularismo fundamental.
A operação especial da salvação que é cedida por 
eles ao universalismo é a da redenção do pecador 
operada por Cristo. Supõem que, no plano de Deus, 
este facto tenha em vista todos os homens, não de 
uma maneira absoluta, mas potencialmente. Todos 
os homens são redimidos por Cristo, claro, desde que
20 O PLANO DA SALVAÇÃO
creiam n’Ele. A sua crença n’Ele está, no entanto, 
dependente da obra da fé levada por Deus, Espírito 
Santo, aos seus corações, nas Suas realizações que 
têm por objectivo dar efeito à redenção de Cristo. 
Esta opinião é, pois, conhecida, não meramente pelo 
nome do seu autor como Amyraldianismo, mas tam­
bém, mais descritivamente como Redencionismo Hi­
potético, ou mais comummente, como Universalismo 
Hipotético. Transfere a questão que divide os partí- 
cularistas e os universalistas a respeito do plano da 
salvação como um todo, para a questão mais espe­
cífica do trabalho de redenção realizado por Cristo. 
E o centro exacto do problema vem, por consequên­
cia, a ser se o trabalho redentor de Cristo salva 
realmente aqueles por quem foi consumado, ou se 
apenas abre uma possibilidade de salvação para os 
tais. Os universalistas hipotéticos, sustentando que o 
objectivo da redenção visa todos os homens sem 
qualquer diferença e que nem todos os homens são 
salvos, não podem considerar a redenção como uma 
operação especificamente salvadora, e estão, por 
consequência, acostumados a falar dela como capaz 
de tornar a salvação possível para todos, como 
abrindo o caminho da salvação aos homens, como 
removendo todos os obstáculos à salvação dos ho­
mens, ou de outra maneira semelhante. Por outro 
lado, o particularista coerente é capaz de considerar 
a redenção realizada por Cristo como efectiva, e 
insiste em que ela é, em si mesma, um acto salvador 
que salva realmente e assegura a salvação daqueles 
a favor de quem foi realizado.
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 21
O debate vem assim a incidir sobre a natureza da 
obra redentora de Cristo, e os particularistas são 
capazes de tornar muito claro que qualquer coisa que 
lhe seja adicionada em extensão, lhe é tirada em 
intensidade. Por outras palavras, o assunto é aqui o 
mesmo do debate com o universalismo geral dos lute­
ranos e arminianos, nomeadamente, se as operações 
salvadoras de Deus realmente salvam; embora o ponto 
aqui se concentre só numa destas operações salva­
doras. Se as operações salvadoras de Deus salvam 
realmente, então todos aqueles em quem Ele opera 
para salvação, são salvos e o particularismo é apre­
sentado na própria natureza do caso, a menos que 
estejamos dispostos a seguir completamente o uni­
versalismo e a declarar que todos os homens se sal­
vam. Assim, no interesse do postulado fundamental 
do Supernaturalismo (que separa todo o cristianismo 
organizado do mero naturalismo) de que todo o poder 
exercido na salvação da alma vem de Deus — e da 
grande declaração evangélica Soli Deo Glória — é 
que o particularista consequente afirma que a exten­
são da redenção operada por Cristo não pode ir além 
do grupo daqueles que são realmente salvos, mas 
deve sustentar-se que é somente uma das operações 
pelas quais Deus salva aqueles a quem salva, e não 
eles a si próprios. E não são somente eles que o pre­
tendem mas nós devemos dar lugar ao particularismo 
tanto no processo como na realização da salvação; 
mas um lugar deve ser exigido para ele igualmente 
em todos os processos da salvação. É Deus, o Senhor, 
quem salva; e, em todas as operações pelas quais
22 O PLANO DA SALVAÇÃO
realiza a salvação, não opera a favor de todos os ho­
mens e sobre todos eles indistintamente, mas só a 
favor e sobre alguns homens, nomeadamente aqueles 
a quem Ele salva. É esta a única maneira de preser­
varmos a Sua glória e de Lhe imputarmos a Ele, e 
tão-sòmente a Ele, toda a obra da salvação.
5 — As diferenças que temos enumerado esgotam 
as possibilidades de diferenças de grande importância 
dentro dos limites do plano de salvação. Os homens 
estão numa destas duas opiniões: ou são naturalistas 
ou supernaturalistas; e os supernaturalistas ou são 
sacerdotalistas ou do espírito evangélico; os do espí­
rito evangélico ou são universalistas ou particularis- 
tas; os particularistas devem-no ser acerca de algumas 
das operações salvadoras de Deus ou a respeito de 
todas elas. Mas os próprios particularistas consisten­
tes acham ainda possível a existência de diferenças 
entre eles próprios, não, em boa verdade, sobre os 
termos do próprio plano da salvação, sobre o qual 
têm todos a mesma opinião, mas no domínio dos 
pressupostos desse plano; e para completar a enume­
ração apresentada, é bom que a referida diferença 
seja também aqui mencionada. Nada tem que ver 
com o que Deus tenha feito no decorrer das suas 
operações salvadoras, mas, passando sobre o assunto 
da salvação, inquire se lidou em geral com a raça 
humana, como raça, no que diz respeito ao seu des­
tino. Estas duas facções são conhecidas na história 
do pensamento pelos nomes que exprimem o seu 
contraste, de Supralapsarianos e Sublapsarianos ou 
Infralapsaríanos. O ponto de divergência entre eles
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 23
é se Deus, ao tratar com os homens quanto ao seu 
destino, os divide em duas classes meramente, como 
homens, ou como pecadores. Isto é, se o decreto 
divino da eleição e preterição diz respeito aos homens 
considerados meramente como homens, ou conside­
rados já como homens pecadores, uma massa corrupta.
O simples facto de pôr esta questão parece trazer 
em si a resposta. É que o que está em causa, a saber, 
a relação autêntica com os homens é condicionada 
pelo pecado, e isto a respeito das duas classes igual­
mente, tanto a dos que são eleitos, como a dos que 
são omitidos: não podemos falar de salvação nem de 
perdição sem levar em conta o pecado. O pecado pre­
cede necessàriamente em pensamento, não a ideia 
abstracta de discriminação, mas o caso concreto de 
discriminação que estamos a discutir, uma discrimi­
nação a respeito de um destino, que envolve ou sal­
vação ou punição. Tem de haver a perspectiva do 
pecado para o estabelecimento de um decreto de 
salvação, assim como para o estabelecimento de um 
decreto de punição. Não podemos, portanto, falar 
num decreto de discriminação entre homens, no que 
diz respeito a salvação e punição, sem pôr, como 
antecedente lógico, a consideração de que os homens 
são pecadores.
O erro desta divergência de opinião que estamos 
agora a considerar está no facto de procurarem 
levantar a questão da discriminação que Deus faz 
entre os homens, dividindo-os em dois grupos, um, 
o dos que recebem o Seu imerecido favor e o outro, 
o dos que são objecto do Seu desagrado, procurarem
24 O PLANO DA SALVAÇÃO
levantá-la, dizíamos, fora do domínio da realidade; 
assim se perdem em meras abstracções. Quando tra­
tamos deste assunto concretamente, vemos que se 
resume nisto: ou Deus faz discriminação entre os 
homens com o fim de salvar alguns; ou salva alguns 
com o fim de fazer discriminação entre os homens. 
A causa imediata que O leva a esse desejo abstracto 
de discriminação será a vontade de ter alguma varie­
dade nas suas relações com os homens ? E, por isso, 
unicamente para actuar segundo todas as suas possi­
bilidades, é que Ele torna alguns desses homens 
objecto do Seu favor inefável e trata outros em 
estrita concordância com os seus méritos pessoais ? 
Ou a causa imediata que a isso o impele será, por­
ventura, o não desejar que toda a humanidade morra 
nos seus pecados, e, assim, para actuar de acordo com 
tal compaixão, intervém para resgatar da sua ruína 
e miséria uma multidão numerosa que ninguém pode 
contar — de tantas pessoas para quantas, sob a pres­
são de Seu sentido de justiça, possa obter o consen­
timento de toda a Sua natureza para isentá-los das 
penas justas dos seus pecados — por um expediente 
em que se encontram e se conjugam a Sua justiça e 
a Sua misericórdia ? O que quer que possamos res­
ponder à primeirapergunta, o certo é que a última é 
aquela que se nos apresenta com uma orientação 
justa acerca das tremendas realidades da existência 
humana.
Um dos motivos principais na estrutura do esquema 
supralapsariano é o desejo de preservar o princípio 
particularista através de todas as relações de Deus
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 25
com os homens; não apenas a respeito da salvação 
do homem mas através de todo o curso da acção 
divina para com o homem. Desde a própria criação, P 
como já foi dito, que Deus se relaciona com os ho­
mens como divididos em duas classes, os que recebem 
respectivamente o Seu imerecido favor e os que rece­
bem a Sua condenação bem merecida. De acordo 
com isto, alguns supralapsarianos situam o decreto da 
discriminação como o primeiro na ordem do pensa­
mento, antecedendo até o decreto da criação. Todos 
eles o situam, na ordem do pensamento, antes do 
decreto da queda. É, pois, oportuno salientar que 
esta tentativa de particularizar toda a relação de 
Deus com os homens não está, na verdade, cabal­
mente terminada. O decreto da criação do homem, e 
mais particularmente o decreto de permitir que o 
homem, cuja criação está planeada, caia no pecado 
são necessàriamente universalistas. Não foram criados 
apenas alguns homens, nem tão-pouco foram criados 
alguns homens diferentes dos outros; muito pelo 
contrário, toda a humanidade foi criada no seu pri­
meiro homem, e toda foi criada igual. Não foi pei- 
mitida a queda de só alguns homens; foi-o, pelo con­
trário, a todos os homens e a todos de igual maneira.
A tentativa para expulsar o particularismo da esfera 
do plano da salvação, onde o problema é diferente 
(porque reconhecidamente só algumas pessoas se 
salvam) e de o introduzir na esfera da criação ou da 
queda, onde o problema é comum (porque todos os 
homens foram criados e todos os homens experimen­
taram a queda) é incapaz de resolver a própria neces­
26 O PLANO DA SALVAÇÃO
sidade do caso. O particularismo só pode vir à baila 
quando os diversos problemas exigem a postulação 
de diversas relações que encerram problemas varia­
dos. Não deve, pois, ser introduzido na região das 
relações divinas com o homem antes de o homem 
necessitar de salvação e dos tratos de Deus com ele 
a respeito de uma salvação que não é comum a todos. 
O supralapsarianismo erra, tanto, tão sèriamente num 
lado, como o universalismo no outro. O infralapsa- 
rianismo apresenta o único esquema consistente con­
sigo próprio e consistente com os factos.
Há-de ser difícil ter deixado de notar que as várias 
concepções da natureza do plano de salvação que 
acabamos de passar em revista, não existem singela­
mente lado a lado como concepções variadas do refe­
rido plano, cada uma delas fazendo o seu apelo em 
oposição a todas as outras. Estão antes relacionadas 
umas com as outras como uma série progressiva de 
correcções de um erro original, atingindo de cada 
vez mais e mais consistência na corporização da ideia 
fundamental da salvação. Se queremos, então, abrir 
caminho entre elas, não o conseguiremos lançando-as 
indiscriminada e corrosivamente umas contra as 
outras, mas sim seguindo-as com regularidade ao 
longo da série. O Supernaturalismo deve ser, em pri­
meiro lugar, considerado como contrário ao Natura­
lismo; a seguir o Espírito Evangélico, como contrário 
ao Sacerdotalismo; depois, o Particularismo como 
contrário ao Universalismo. E assim chegaremos 
afinal à concepção do plano de salvação que faz 
inteira justiça ao seu carácter específico. É segundo
AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 27
esta perspectiva que dirigiremos a nossa atenção nas 
prelecções que se seguem.
O diagrama que damos a seguir mostra numa visão 
sinóptica as várias conceções que acabam de ser 
enumeradas nesta prelecção; tal diagrama facilita a 
apreensão das suas relações mutuas.-
II
ÂUTOSOTERISMO
Fundamentalmente só há duas doutrinas de salva­
ção (*): uma diz que a salvação vem de Deus; a outra 
diz que a salvação vem de nós próprios. A primeira 
é a doutrina geral da Cristandade; a última é a dou­
trina do paganismo universal. «O princípio do paga­
nismo», nota o Dr. Herman Bavinck (2), «é, negati­
vamente, a negação do verdadeiro Deus ê da dádiva 
da Sua graça; e, positivamente, a noção de que a 
salvação pode alcançar-se pelo poder e saber do pró­
prio homem. «Vinde, edifiquemos para nós uma 
cidade e uma torre, cujo cume chegue até ao céu, e 
façamo-nos um nome» (Gén. 11:14). Quer as obras, 
pelas quais o paganismo busca o caminho da salva­
ção, tenham um carácter mais ritual ou mais ético, 
quer sejam de natureza mais positiva ou mais nega­
tiva, em qualquer caso, o homem continua sempre o 
seu próprio salvador; todas as religiões com excepção 
do Cristianismo são autosotéricas... E a filosofia não 
conseguiu superar isto: mesmo Kant e Schopenhauer,
30 O PLANO DA SALVAÇÃO
os quais com a sua opinião acerca da maldade inata 
do homem, reconhecem a necessidade de uma rege­
neração, acabam, finalmente, por recorrer à vontade, 
sabedoria e poder do homem.»
Foi, por conseguinte, com muita propriedade que 
Jerónimo chamou ao Pelagianismo, o primeiro sis­
tema organizado de salvação própria ensinado na 
Igreja, a «heresia de Pitágoras e Zenão» (3). Com 
•efeito o Pelagianismo foi a cristalização, em formas 
cristãs, da ética estóica largamente difundida e pela 
-qual o pensamento dos homens se tinha governado 
através de toda a precedente história da Igreja (4). 
À volta do princípio central da plena aptidão da von­
tade humana, sustentado com uma confiança com­
pleta e proclamado, não na fraca forma negativa de 
que a obrigação é limitada pela capacidade, mas na 
exultante forma positiva de que a capacidade é intei­
ramente competente para realizar toda a obrigação. 
Pelágio, não querendo sistematizar, constrói um sis­
tema autosotérico completo (5). Por um lado, este 
sistema ficou protegido pela negação de qualquer 
«queda» sofrida pela humanidade no seu primeiro 
chefe, e consequentemente de qualquer vínculo, quer 
de pecado, quer de mera fraqueza, derivado da sua 
história passada. Cada homem nasce na mesma con­
dição na qual Adão se criou; e cada homem contínua 
através da vida na mesma condição em que nasceu. 
Pela sua queda Adão, quando muito, deixou-nos um 
mau exemplo, o qual, contudo, não temos necessi­
dade de seguir a não ser que-o queiramos; e os nossos 
pecados passados quando, claro, formos „chamados a
AUTOSOTERISMO 31
prestar contas e tivermos que sofrer o justo castigo 
que é uma consequência deles, não podem de qual­
quer maneira diminuir ou limitar o nosso dever 
inerente de fazer o que é justo. «Declaro», diz Pelá- 
gio, «que o homem pode estar sem pecado, e que é 
capaz de guardar os mandamentos de Deus» (6). E 
esta capacidade permanece intacta depois, não só do 
pecado de Adão, mas também de todo e qualquer 
pecado cometido pelo próprio. «É», diz Juliano de 
Eclanum, «precisamente tão perfeito depois de pecar 
como era antes de pecar» (7). Por isso, em qualquer 
momento que queira, qualquer homem pode cessar 
de pecar e daí por diante ser e continuar a ser per­
feito. Por outro lado esta afirmação categórica da 
completa capacidade para cumprir toda a rectidão, 
está protegida pela negação de toda a «graça» no 
sentido de uma ajuda interior de Deus. Como tal 
ajuda da parte de Deus não é necessária, nem é dada, 
cada homem, no mais absurdo sentido, opera a sua 
própria salvação: seja com medo e tremendo ou não, 
isso dependerá unicamente do seu temperamento 
individual. Certamente que o termo «graça» está tão 
profundamente entranhado nas descrições das Es­
crituras que não pode ser banido completamente. 
Por isso os Pelagianos continuaram a empregá-lo mas 
explicaram-no de tal maneira que o esvaziaram do 
fecundo significado que tem nas Sagradas Escrituras 
Para eles a «graça» é o dom fundamental e consiste 
no seu livre arbítrio inalienável e também nos moti­
vos que Deus põe no homem para que ele use esta 
liberdade para o bem.
32 O PLANO JDA SALVAÇÃO
O esquema Pelagiano,portanto, abrange os pontos 
que se seguem. Deus dotou o homem com um inalie­
nável livre arbítrio, em virtude do qual este é per­
feitamente capaz de fazer tudo quanto dele se exija. 
Deus acrescentou a esta grande dádiva as dádivas da 
Lei e do Evangelho para iluminarem o caminho da 
rectidão e para persuadirem o homem a andar nele; 
e até a dádiva de Cristo foi feita para suprir uma 
expiação pelos pecados passados daqueles que de­
sejam proceder rectamente, e especialmente para 
fornecer um bom exemplo. Aqueles que, por estes 
motivos e na posse da sua liberdade inextirpável, 
abandonam os seus pecados e fazem o que é recto, 
serão aceites pelo Deus justo e recompensados se­
gundo as suas obras.
Foi este o primeiro esquema puramente autosoté- 
rico proclamado na Igreja, e é inteiramente distinto 
de todos os que se lhe seguiram de então para cá
Pela providência de Deus a divulgação deste 
esquema autosotérico foi imediatamente combatida 
por uma defesa da doutrina da «graça» igualmente 
clara e consistentemente elaborada, de maneira que 
o grande conflito entre a graça e o livre arbítrio se 
travou na Igreja, de uma vez para sempre, nos 
começos do século V. O campeão da graça nesta 
controvérsia foi Agostinho; cujo sistema inteiro girava 
em torno da afirmação de a graça ser a única fonte 
de todo o bem no homem e isto de uma maneira tão 
sincera e completa como Pelágio fizera em roda da 
afirmação da plena capacidade da vontade humana, 
só por si, poder realizar toda a rectidão. Vê-se clara­
AUTOSOTERISMO 33
mente o alcance da afirmação de Agostinho pelas 
exigências do Concílio de Cartago (417 a 418 AD) 
o qual recusou dar-se por satisfeito a não ser com a 
confissão inequívoca de que «nós somos ajudados 
pela Graça de Deus, por meio de Cristo, não somente 
a conhecer o bem, mas a fazê-lo, em cada acto sim­
ples, de tal maneira que, sem a graça, somos inca­
pazes de ter, pensar, dizer ou fazer qualquer coisa 
que diga respeito à piedade. «Assim, a oposição entre 
os dois sistemas era absoluta. Num, tudò era atribuído 
ao homem; no outro, tudo se imputava a Deus. Nele^, 
duas religiões, basicamente as duas religiões possíveis, 
se encontraram em combate mortal: a religião da fé 
e a religião das obras; a religião que desespera do 
eu e põe toda a sua confiança em Deus, o Salvador, 
e a religião que põe toda a esperança no eu; ora, 
visto ser a religião, na sua própria natureza, com­
pleta dependência de Deus, religião na pureza da sua 
própria concepção não é mero moralísmo quase reli­
gioso. A batalha foi violenta mas o desfecho não foi, 
felizmente, duvidoso. Com o triunfo do Agostinia- 
nismo tornou-se claro, duma vez para sempre, que o 
Cristianismo continuaria como religião e uma reli­
gião para homens pecadores necessitados de salvação, 
e não se corromperia transformando-se num mero 
sistema ético que conviria somente para justos que 
não precisam de salvação.
Mas como se costuma dizer, o preço da liberdade 
é uma vigilância contínua. Assim, a Igreja depressa 
descobriu que a própria religião só pode conservar-se 
à custa de uma luta contínua. O Pelagianismo difx-
34 O PLANO DA SALVAÇÃO
cilmente morreu; ou talvez não tenha morrido com­
pletamente, mas apenas se tenha retirado da cena e 
aguarde o momento propício, e, entretanto, vai mo­
lestando a Igreja com formas suas disfarçadas apenas 
o bastante para escapar à condenação da Igreja. O 
Semipelagianismo tomou imediatamente o lugar do 
Pelagianismo; e, quando a controvérsia com este foi 
ganha, em seu lugar apareceu um Semi-semipelagia- 
nismo, que o Concílio de Orange introduziu, por 
traição, dentro da Igreja, o génio de Aquino siste­
matizou e o Concílio dé Trento, finalmente, prendeu 
com cravos de ferro àquela parte da Igreja que o 
seguiu. Como resultado da controvérsia Pelagiana, 
surgiu o reconhecimento da necessidade da graça; 
como resultado da controvérsia Semipelagiana, o da 
sua preveniência mas a sua completa eficácia, a sua 
«irresistibilidade», como lhe chamam os homens, foi 
negada pelo fatal compromisso de Orange e assim, 
a marcha conquistadora iniciada pelo Agostinianismo 
foi sustida e a confissão pura da salvação pela graça 
tornou-se para sempre impossível dentro daquela 
secção da Igreja cujo orgulho ostensivo se expressa 
em que ela é semper eadem. Na verdade, não mais 
foi legalmente possível, dentro dcxs limites da Igreja, 
atribuir ao homem, como fizeram os Pelagianos, a 
totalidade da salvação; nem mesmo, como os Semi- 
pelagianos, a iniciação da salvação. Mas também não 
foi mais possível legalmente atribuir a salvação tão 
completamente à graça de Deus que esta sozinha 
pudesse completá-la sem a ajuda da desacreditada 
vontade humana — na verdade esta ajuda surge
AUTOSOTERISMO 35
somente como autorizada e impelida pela graça pre- 
veniente, mas não tão eficazmente impelida que não 
possa reter e anular as operações da graça salvadora.
À tendência deste sistema Sinergista é, obviamente, 
descendente e por isso não nos surpreenderá saber 
que fàcilmente caiu no mencionado Semipelagia- 
nismo, o qual, a despeito da sua condenação oficial 
pela Igreja, parece ter constituído pràticamente a fé 
da maior parte dos homens da Idade Média, e neste, 
o acto que determina a salvação é atribuído, não à 
graça de Deus portadora da salvação, mas à anuência 
da vontade, que dá eficácia à omnipotente Graça de 
Deus. Eis aqui uma salvação pelas obras, tão genuína, 
embora tão grosseira, como a do próprio Pelagia- 
nismo puro; e, consequentemente, através de toda a 
Idade Média, o legalismo reinou soberanamente, um 
legalismo que produziu exactamente os mesmos efei­
tos que se manifestaram nos círculos judaicos de que 
saiu o apóstolo Paulo, tão vividamente descritos por 
Heinrich Weinel. «Só pode ser feliz debaixo da dis- 
pensação da lei» diz Weinel (8), «quem pode viver 
numa vida inteira de mentira... Mas as naturezas 
sólidas, altivas, sinceras, não podem ser espoliadas 
com uma mentira. Se são incapazes de resistir, mor­
rem da mentira; se são fortes, é a mentira que morre. 
A mentira inerente na lei, estava na presunção de 
que esta pode ser cumprida plenamente. Todos os 
companheiros de Paulo entendiam que os manda­
mentos não podiam ser guardados mas não aplicavam 
isto a si mesmos. O mais velho procedia na presença 
do mais novo como se os pudesse guardar; cria-se
36 O PLANO DA SALVAÇÃO
nisto pela fortaleza de outrem e não se reconhecia a 
impossibilidade de si mesmo. Encobriam os pecados 
aos seus próprios olhos comparando-se com outros 
homens justos e recorrendo aos tempos remotos de 
Enoque, Noé e Daniel, para arranjarem advogados a 
favor das suas almas (9). Confiavam em que Deus 
consentiria que as boas obras dos santos cobrissem 
as suas deficiências, e não se esqueciam de, ocasional­
mente, implorarem perdão, embora, na generalidade, 
eles mantivessem a mentira e procedessem como se 
estivessem bem.»
Eis um quadro verdadeiro da Idade Média. Os 
homens sabiam muito bem que não podiam alcançar 
a salvação por eles próprios, mesmo debaixo do inci­
tamento da Graça de Deus; sabiam muito bem que 
falhavam nas suas «boas obras» a cada passo; e, 
mesmo assim, continuavam a manter esta ficção ca­
davérica (10). Não havia então homens fortes «que 
derrubassem esta mentira» ? Realmente eles aparece­
ram em vários lugares, um Gottschalk no século IX, 
um Huss no XV, um tardio Jansen no XVII; mas, a 
despeito dos seus protestos, a mentira continuou 
viva, até chegar o último homem realmente forte, 
Martinho Lutero, que fez com que essa mentira mor­
resse. O Agostinianismo que tinha sido reprimido na 
Igreja de Roma não pôde ser suprimido. A Igreja 
tinha-se subordinado à doutrina que não podia 
admitir o Agostinianismo. Este não tinha, pois, outra 
solução a não ser queimar os laços que o uniam à 
Igreja e sair desta. A explosão surgiu com aquilo a 
que nós chamaAios a Reforma. A Reforma não é
AUTOSOTERISMO 37
nada mais do que o Agostinianismo assumindo os 
seus direitos: o abandono detudo que é humano para 
apoiar-se somente em Deus no problema da salvação.
Por isso, nada é tão fundamental na doutrina dos 
Reformadores como a consideração da completa inca­
pacidade do homem e da sua absoluta necessidade 
da Graça divina; e contra nada os Reformadores 
lutaram tão firmemente como contra a afirmação do 
poder inato de o homem realizar a sua justificação. 
Para Lutero, o Pelagianismo foi a heresia das heresias, 
equivalente, do ponto de vista religioso, à increduli­
dade; e, do ponto de vista ético, a um mero egotismo. 
Foi «para ele, o termo compreensivo de todas aquelas 
coisas que ele particularmente desejava atacar na 
Igreja Católica» (12). O seu tratado De Servo Arbitrio 
escrito contra a exaltação pelagirúazadova que Erasmo 
fez da capacidade humana foi considerado por ele o 
único dos seus livros, juntamente com o Catecismo, 
no qual não encontrou nada que corrigir (13). «Quanto 
à doutrina do livre arbítrio, como tinha sido pregada 
antes de terem aparecido Lutero e outros Reformado­
res», escreve Calvino (13 a) «o único resultado dela foi 
encher os homens de uma opinião presumida acerca 
da sua própria virtude, fazendo-os inchar de vaidade, 
e não dando nenhum lugar à Graça de Deus e ao auxí­
lio do Espírito Santo». «Quando dizemos a alguém», 
continua a escrever (14), «que busque a rectidão e a 
vida fora de si próprio, isto é, só em Cristo, visto esse 
alguém nada ter em si mesmo a não ser pecado e 
morte, imediatamente estala uma controvérsia sobre 
a liberdade e o poder da vontade. Pois se o homem
38 O PLANO DA SALVAÇÃO
tem qualquer capacidade proveniente de si mesmo 
para servir a Deus, já não obtém a salvação inteira­
mente pela graça de Cristo, mas atribui-a, em parte, 
a si próprio. Embora não neguemos que o homem 
actua espontâneamente e de livre vontade, quando é 
guiado pelo Espírito Santo, mantemos que toda a 
sua natureza está tão imbuída de depravação que, 
por si só, não tem capacidade de actuar recta­
mente» (15).
Não passou muito tempo, contudo, até nos próprios 
círculos de verificado Agostinianismo onde a atribui­
ção da salvação somente a Deus era uma paixão, para 
que o velho fermento da salvação pelo próprio 
começasse novamente a actuar (16). Foi nada menos 
do que por Filipe Melanchthon que esta nova «queda 
da graça» entrou, no pensamento da Reforma, posto 
que, por seu ensino só tenha feito um pequeno pro­
gresso. Três períodos se podem distinguir no desen­
volvimento desta sua doutrina (17). No primeiro, foi 
um Agostiniano puro, como Lutero ou o próprio Cal- 
vino. No segundo, que principia em 1527, começa a 
seguir Aristóteles na sua doutrina geral da vontade. 
No terceiro, de 1532 por diante, atribui à vontade do 
homem, embora só como poder puramente formal, 
algum lugar no próprio processo da salvação: isto 
pode colocar as qualidades espirituais, criadas unica­
mente pelo Espírito Santo, em cadeias ou no trono. 
A partir deste começo o sinergismo ganhou terreno, 
ràpidamente, na Igreja Luterana (1S). É verdade que 
encontrou oposição: os velhos Luteranos, um Ams- 
dorf, um Flacius, um Wigand, um Brenz, todos eram
AUTOSOTERISMO 39
Agostinianos inteiramente convictos. Mas a oposição 
não foi tão calorosa como podia ter sido se a contro­
vérsia com os Calvinistas não estivesse no seu auge. 
Até Brenz admitiu que Strigel dele escarnecesse, na 
disputa de Weimar, com seu predestinacionismo, pois 
não tomou corajosamente a ofensiva. E assim Andrea 
pôde corromper a doutrina de Lutero, na Conferência 
de Mompelgard, em 1586, sem arguição (19); Aegidius 
Hunmius pôde ensinar abertamente a resistibilidade 
da graça (20); e John Gerhard pôde condicionar a 
eleição à presidência da fé (21). Quando Melanchthon 
se recreava com frases tão ambíguas como «Deus 
atrai a si aquele que o busca», «Livre arbítrio é o 
poder de o próprio homem buscar a graça», estava a 
brincar com o fogo. Cem anos depois os teólogos 
saxões Hoe van Hohenegg e Polycarp Leyser, na 
Conferência da Lípsia, em Março de 1631, podiam 
confiadamente apresentar como doutrina Luterana a 
declaração de que «Deus certamente nos elege pela 
graça de Cristo; mas isto teve lugar de acordo com a 
Sua presciência de quem podia, verdadeira e cons­
tantemente, acreditar em Cristo; e àqueles que Deus 
previu que podiam crer, a esses predestinou e elegeu 
para os tornar abençoados e gloriosos». A obra mara­
vilhosa da Graça de Deus, ressuscitadora dos mortos, 
a qual Lutero tão apaixonadamente proclamou, foi 
então posta completamente à disposição daquela von­
tade do homem que Lutero declarou estar totalmente 
escravizada ao pecado e ser somente capaz de rea­
lizar alguma coisa boa, quando a ela é levada pela 
graça que a faz nascer de novo (22).
40 O PLANO DA SALVAÇÃO
Nada disto melhorou com o rolar dos anos. Até 
um dos mais considerados professores luteranos dos 
nossos dias, Wilhelm Schmidt, Professor de Teologia 
em Breslau, nos diz (23) que «o propósito e amor 
divinos só podem actuar precisamente através da 
vontade do ser a que se dirigem»; e «numa palavra, 
há em face dos sagrados decretos de Deus, uma liber­
dade estabelecida por Ele próprio, contra a qual tais 
decretos, muito frequentemente se quebram e podem, 
na verdade, quebrar-se em cada caso particular» í24'). 
Portanto não fica satisfeito com a rejeição da prae- 
destinatio stride dicta dos Calvinistas, e repudia 
igualmente a praedestinatio late dieta dos antigos 
teólogos luteranos, a qual sustenta a existência de 
um decreto de Deus pelo qual todos os homens 
designados para salvação, conforme uma vontade 
antecedente, enquanto que, por uma vontade conse­
quente, são postos à parte e destinados à salvação, 
todos os que Deus prevê que crerão, finalmente, em 
Cristo. «Porque», diz ele (25), «com a divina ou infalí­
vel presciência a respeito deles, as decisões do homem 
cessam de ser livres». Assim não só a predestinação 
divina, como também a presciência divina, são sacri­
ficadas no altar da liberdade humana e a conclusão 
de toda a matéria é enunciada nas palavras: «Todos 
os homens estão, no que diz respeito a Deus, escritos 
no Livro da Vida (benevolente universalis); mas no 
fim da jornada será determinado, finalmente quais os 
que, de entre todos estes, permanecem escritos nele». 
O resultado não pode ser conhecido antecipadamente 
nem mesmo por Deus (26). Não basta que a redenção
AUTOSOTERISMO 41
comprometa a yontade, de maneira a poder-se dizer 
que não há redenção, «a não ser que o pecador nela 
coopere muito energicamente», mesmo se interpre­
tarmos isto como querendo significar «que ele próprio 
permite ser redimido» (2r). Devemos prosseguir e 
dizer que «a redenção falhará em alcançar o seu fim 
e ficará sem efeito, por mais que a vontade divina, 
de amor e conselho de salvação, possa desejar de 
outro modo, se não lhe é dada eficácia pelo íntimo 
do homem, fazendo-o realizar-se, ele agarra a mão 
salvadora e arrepende-se, abandona o seu pecado e 
passa a viver uma vida recta» (3S). Quando Schmidt 
chega, contudo, a falar da Aplicação da Salvação pelo 
Espírito Santo (20), é explícito em negar ao Espírito 
Santo qualquer poder para produzir a salvação numa 
alma que a não quer. «Mesmo o Espírito Santo» diz, 
«não pode, em face da livre vontade que por natureza 
pertence ao homem, compelir ninguém a aceitar a 
salvação. Até Ele, só pode realizar o Seu propósito 
de nos salvar, se nós não fizermos obstrução, não nos 
desviarmos d’Ele, não nos opusermos à Sua obra em 
nós. Temos poder para tudo isto e Ele é impotente 
(ohnmachtig) a este respeito, quando usarmos mal 
o nosso poder... Aquele que não quer ser salvo, 
não pode ser ajudado nem mesmo pelo Espírito 
Santo» (30).
A afirmação da capacidade do eu dificilmente 
poderá ir mais longe; nem mesmo naqueles versos 
excitantes, mas, sem dúvida, algo jactanciosos de 
W. E. Henley.
42 O PLANO DA SALVAÇÃO
Na noite que me cobre,
Negra como a sepultura, de polo a polo, 
Agradeço o que quer que Deus possa ser 
Para a minha alma inconquistável.Ao sentir a garra dos acontecimentos,
Não me tenho encolhido nem vociferado, 
Debaixo das mocadas da sorte,
A minha cabeça sangra mas não se curva.
Para além deste lugar de ira e lágrimas,
Nada luz a não ser o horror das trevas,
E mesmo assim a ameaça dos anos 
Encontra-me e encontrar-me-á sem medo.
Não interessa quão estreita seja a porta,
Quão cheio de punições seja o rol,
Sou o senhor do meu destino;
Sou o capitão da minha alma.
Isto é, sem dúvida, um Pelagianismo sem pejo, a 
menos que prefiramos chamar-lhe paganismo puro. E.
contudo, é citado com acalorada aprovação, por um
considerado ministro da Igreja da Escócia, ao escre­
ver, absolutamente neste mesmo espírito, acerca do 
grande assunto da «Eleição». Usa-se, na verdade, 
directamente para sustentar a alegre afirmação do 
princípio fundamental do Pelagianismo de que a capa­
cidade limita a obrigação: «Aquela vida cônscia que 
se expressa dizendo “Tu deves”, acorda dentro de nós
AUTOSOTERISMO 43
um eco não menos certo que diz: “Porque devo,. 
posso” . Aquele “posso” permanece para sempre por 
mais fraco que se possa tornar» (31) Pelágio não exigi' 
ria mais nada.
Podemos inferir de tal fenómeno como o meneio- 
nado que as Igrejas Reformadas, embora retendo a 
sua confissão Agostiniana, o que as Luteranas não 
puderam fazer e, abandonando o Semi-pelagianismo 
Arminiano que brotou no começo do século XVII 
para os afligir como os Luteranos não o conseguiram 
fazer com o seu sinergismo, tem ainda nos nossos dias 
sido penetrado pelas mesmas concepções pelagiani- 
zadoras. Isto é tão grandemente verdadeiro, que nos 
encontramos hoje, de todos os lados, mesmo nas 
Igrejas Reformadas, com as mais ilimitadas afirma­
ções da independência humana, e da impossibilidade 
da acção da vontade humana ser governada ou pre­
vista. Os excessos a que isto pode conduzir por certo 
se vê em claro, pois que incidentalmente, nas obser­
vações feitas pelo Dr. David W. Forrest no infeliz 
livro a que chamou, por certo muito iludidamente 
«A Autoridade de Cristo» (1906). Nas suas mãos a 
liberdade humana tornou-se de tal modo toda-pode- 
rosa que claramente aboliu não só os princípios 
comuns à religião evangélica, mas toda a fé na pró­
pria providência divina. Adoptou de facto, acerca da 
livre agência, um ponto de vista que reserva ao 
homem uma independência completa e exclui todo o 
controle divino ou até presciência da acção humana. 
Incapaz de governar os actos de agentes livres, Deus 
é forçado a ajustar-se constantemente a eles. Por isso
44 O PLANO DA SALVAÇÃO
tem que aceitar no Seu universo muitas coisas que 
preferiria que nele não estivessem. Está por exemplo 
neste caso toda a esfera do acidental. Se cooperarmos 
com outros em empreendimentos perigosos, ou, diga­
mos, se sairmos à procura de diversão numa caçada, 
podemos ser mortos por um acto de inexperiência 
dum companheiro ou por um tiro perdido dum ati­
rador descuidado. Deus nada pode fazer neste caso e 
de nada valerá apelarmos para Ele relativamente a 
isto. Pois, diz o Dr. Forrest (32), «Deus só poderia 
evitar que o mau companheiro ou atirador causas,;e 
a morte aos outros privando-o da liberdade de traçar 
o seu próprio destino. Não há, numa palavra, controle 
providencial, sejam quais forem os actos dos agentes 
livres. Consequentemente, diz-nos o Dr. Forrest (33) 
que um homem sensato não ficará surpreendido com 
o facto de sobreviverem crueldades trágicas no 
mundo, as quais o fazem parecer quase obscuramente 
errado: «reconhecerá as possibilidades de liberdade 
do homem quando desdenha da vontade de Deus, 
tanto por meio dos castigos aplicados por meio do 
sofrimento, quanto pela recusa de ser ensinado pelo 
sofrimento». Nem a graça de Deus pode intervir 
para sanar a imperfeição da Sua providência. A livre 
vontade humana interpõe uma barreira real ao ope­
rar da Sua graça; e Deus não tem poder para vencer 
a oposição do coração humano .«Não há barreira à 
entrada do Espírito Santo no coração», nota o 
Dr. Forrest, com o ar de fazer uma grande confis­
são (34), «excepto aquela que é criada pela recusa do 
coração em recebê-LO», isto constitui, evidentemente,
a u t o s o t e r i s m o 45
apenas uma outra maneira de dizer que a recusa do 
coração é uma barreira insuperável à entrada nele do 
Espírito Santo (35). Por consequência, o progresso do 
Seu reino no mundo não pode ser planeado, nos seus 
pormenores, por nosso Senhor, mas jaz na Sua mente 
só esboçado nas suas linhas gerais. «Viu», diz o 
Dr. Forrest, «que a “conversão” tinha o seu factor 
humano assim como o seu factor divino; e que as 
poderosas obras de Deus podem ser tornadas impos­
síveis pelas perversidades do homem incrédulo. Por 
isso, o curso detalhado do Reino no mundo é algo 
inescrutável...» (36). Mesmo na própria Igreja o pro­
pósito divino pode falhar, a despeito da prometida 
presença do Espírito de Deus nela: porque, embora 
o Espírito não falhe em guiar a Igreja, esta pode falhar 
em «preencher as condições dentro das quais ela pró­
pria utilizaria a direcção do Espírito» (37). Numa 
palavra, o Dr. Forrest é tão zeloso em emancipar o 
homem do domínio de Deus que chega quase a colo­
car Deus debaixo do domínio do homem. O mundo 
que Deus criou escapou ao Seu controle. Deus não 
tem mais nada a fazer senão aceitá-lo como ele se 
Lhe apresenta e ajustar-se-lhe o melhor que possa. 
Certa vez disseram a Tomás Carlyle que Margaret 
Fuller tinha declarado com a sua maneira solene: 
«Aceito o universo»; pois o simples comentário do 
sábio foi «Co’a breca, é o melhor que ela tem a fazer». 
Está Deus Omnipotente no mesmo caso ? Ora se Deus 
está neste caso, seja em que grau for, então não se 
pode falar de salvação do homem por Deus. Se, de 
qualquer maneira, o homem tem que ser salvo, embora
46 O PLANO DA SALVAÇÃO
seja contestável se a palavra «salvação» é a que se 
deve usar neste caso, é claro que ele deve «salvar-se» 
,a si próprio. Se pudermos ainda falar de um plano 
de salvação da parte de Deus, esse plano reduzir-se-á 
só a conservar o caminho da salvação aberto, para que 
o homem, que é senhor do seu próprio destino (38), 
não possa encontrar nenhum obstáculo quando esco­
lher seguir por esse caminho. Em boa verdade é esta 
concepção da «salvação» que, nos mais largos cír­
culos, é agora confíadamente proclamada. É este o 
gonzo em que gira todo o pensamento desse Novo 
Protestantismo que surgiu nos nossos dias, repudiando 
a Reforma e todas as suas obras como mero medie- 
valismo e agarrando-se antes ao lluminismo, como o 
nascimento de um novo mundo, um novo mundo em 
que só o homem governa como Senhor de tudo. Tem- 
-se chamado Racionalismo a todo este movimento e, 
como a um se segue outro, diremos: o Rationalismus 
Vulgarís de Wegscheider; o de Kant e seus seguido­
res; o das Escolas post-Kantianas; e agora o nosso 
«Novo Protestantismo», a que devemos ao menos con­
ceder o elogio de reproduzir o modelo com maravi­
lhosa fidelidade.
Pensadores profundos como Kant, talvez possamos 
dizer, ainda mais pensadores de mentalidade espiri­
tual como Rudolfo Eucken, seriam incapazes de ava­
liar tão nèsciamente a natureza humana se vissem 
nela apenas o bem. Mas mesmo a percepção da radical 
depravação da natureza humana não pode libertá-los 
do círculo fixo de pensamento que afirma a existência 
da capacidade humana para toda a esfera da obriga­
AUTOSOTERISMO 47
ção humana como quer que essa capacidade seja 
arquitectada. «Como é possível que um homem natu­
ralmente mau se transforme a si mesmo num homem 
bom», exclama Kant (39), «isso frustra inteiramente 
o nosso pensamento, porque, como pode uma árvore 
má dar bom fruto ?» Mas, apesar de compreender a 
impossibilidade disto, ele acaba por adoptar a solu­
ção, ou talvez não seja solução, do fraco. «Deve ser- 
-nos possível tornarmo-nos melhores, mesmo se aquilo 
que nós somos capazes de fazer for insuficiente, e 
tudo o que podermos fazer for tomarmo-nos recep­
tivos de um auxílio mais alto, de natureza inescru­
tável» (40). Para além desemelhante apelo a um poder 
místico inescrutável que corre através da vida do 
homem que se esforça por se ajudar a si mesmo, nem 
mesmo um Rudolfo Eucken consegue ir. E, por isso, 
o nosso pensamento moderno só reproduz o antigo 
Pelagianismo, com um sentido de culpa menos pro­
fundo e um sentido mais profundo das dificuldades 
que o mal trouxe ao homem. Acerca da expiação nada 
se diz; e enquanto esta procura uma maneira de auxi­
liar, deve ser um auxílio que corre para a alma em 
resposta e paralelamente às directrizes dos seus pró­
prios esforços criadores.
O espectáculo é ainda pior fora do ambiente das 
mais profundas filosofias, pois aí reproduzem-se as 
mais baixas formas do Pelagianismo com toda a in­
consciência da sua capacidade. A mais característica 
expressão deste ponto de vista geral é dada, talvez, 
na alegação corrente de que a parábola do Filho 
Pródigo engloba não meramente a essência mas a
48 O PLANO DA SALVAÇÃO
totalidade do Evangelho. Preciosa como esta parábola 
é pela sua grande mensagem de que há alegria nos 
céus por um pecador que se arrepende, quando é des­
viada do propósito pelo qual ela foi proferida e feita 
como contendo todo o Evangelho (corruptio optimi 
péssima) torna-se o instrumento de destruição de todo 
o edifício do Cristianismo. Não há então expiação 
nesta parábola, e nem sequer Cristo, na função mais 
atenuada que poderia atribuir-se possivelmente a um 
Cristo. Não há graça criadora nesta parábola; e, em 
verdade, nem Espírito Santo em qualquer função, 
mesmo a mais ineficaz, que lhe possa ser atribuída. 
Não há, tão-pouco, nesta parábola, o amor de Deus 
que procura o pecador: o pai da parábola não presta 
absolutamente nenhuma atenção ao seu filho errante, 
mas deixa-o só, e aparentemente não se interessa por 
ele. Considerada como uma representação pictórica 
do Evangelho, o seu ensino é unicamente este e nada 
mais: que quando alguém, inteiramente por sua pró­
pria resolução, escolhe levantar-se e ir ter com Deus, 
será recebido com aclamação. É com certeza um 
evangelho muito lisongeiro. É lisongeiro dizerem-nos 
que podemos levantar-nos e ir ter com Deus todas as 
vezes que o queiramos, e que ninguém nos impor­
tunará por causa disso. É lisongeiro dizerem-nos que 
quando resolvermos ir ter com Deus podemos esperar 
uma excelente recepção e nada nos será perguntado. 
Mas é este o Evangelho de Jesus Cristo ? Todo o 
ensino de Jesus Cristo se resumirá nisto: que as portas 
do céu permanecem abertas e que qualquer pessoa 
que o queira pode entrar por elas em qualquer altura ?
AUTOSOTERISMO 49
Este é, contudo, todo o sistema dos nossos modernos 
teólogos liberais: os nossos Harnacks e Boussets e os 
seus inumeráveis discípulos e imitadores.
«Inumeráveis» discípulos e imitadores, disse, pois, 
que estes ensinos se espalharam, sem dúvida, por todo 
o mundo. Erick Schader diz-nos que durante toda a 
sua vida de professor não conheceu nenhum aluno 
que não tivesse sido profundamente impressionado, 
durante mais ou menos tempo, com o facto de ver 
nas duas parábolas — a do Fariseu e do Publicano em 
oração no templo e a do Filho Pródigo — que o per­
dão de Deus não é condicionado por coisa nenhuma 
e que não há necessidade de Expiação (41). Como se 
vê é um Pelagianismo que ultra-pelagianiza Pelágio. 
Este admitia em parte a culpa do pecado e reconhecia 
também em parte a obra expiatória de Cristo ao fazer 
a expiação pela dita culpa. Ora esta teologia não 
admite nada disto. Sem um sentido real de culpa, e 
sem o mínimo sentimento de falta de capacidade que 
nos vem do pecado, põe complacentemente o perdão 
de Deus à disposição de quem quiser dignar-se rece­
bê-lo das Suas mãos. À visão de Deus implícita nestas 
opiniões, alguém chamou, com propriedade embora 
sarcasticamente, «a concepção de Deus como animal 
doméstico». Assim como vós cuidais das ovelhas para 
obterdes a lã, e das vacas para obterdes o leite, assim 
também cuidais de Deus para d’Ele obterdes o per­
dão. O alcance disto é horrivelmente ilustrado pela 
história do pobre Heinrich Heine debatendo-se na 
agonia do seu leito de morte, que ao ser interrogado 
por uma visita caridosa se tinha esperança de lhe
50 O PLANO DA SALVAÇÃO
serem perdoados os seus pecados, replicou com um 
relance de zombeteira amargura «Porque não! Cer­
tamente que sim: para isso é que Deus existe». Para 
isso é que Deus existe ! É assim que a nossa moderna 
teologia liberal considera Deus. Este não tem senão 
uma função e só num ponto entra em contacto com 
o homem: existe para perdoar os pecados.
Num espírito semelhante ouvimos soar por toda a 
parte da Terra em proclamação apaixonada daquilo 
a que os seus aderentes gostam de chamar um «evan­
gelho de todo aquele que o quer». Sem dúvida o que 
se pretende enfatizar é a universalidade da oferta do 
evangelho. Mas não estamos a ultrapassar as marcas 
quando parecemos fazer depender a salvação pura­
mente da vontade humana ? E não deveríamos nós 
deter-nos na consideração de que se desta maneira 
parecemos por um lado abrir o caminho da salvação 
a «todo aquele que o quer», por outro lado abrimo- 
-lo somente a «todo aquele que o quer ?» E quem 
há neste mundo de morte e pecado, já não digo mera­
mente que queira mas que possa querer o bem ? Não 
é uma verdade eterna que não se colhem uvas dos 
espinheiros nem figos dos abrolhos ? Que só a árvore 
boa pode dar bom fruto e que a árvore má dá sem­
pre, e em qualquer lugar, somente mau fruto ? Não 
é só o Black Giles de Hannah More, no seu livro 
«Caçador Furtivo» que pode por acaso achar difícil 
arrepender-se no momento em que o desejar». De 
nada serve falar da salvação como sendo para «quem 
quer que a queira» no mundo de um universal «não 
quero». Eis aqui o ponto verdadeiramente difícil:
AUTOSOTERISMO 51
como e onde podemos nós obter a vontade P Deixemos 
os outros regozijarem-se com um «evangelho de todo 
aquele que o quer»: para o pecador que se reconhece 
como tal e sabe o que é ser pecador, somente bastará 
um evangelho de «Deus quer». Se o evangelho tem 
que ser confiado às vontades mortais dos homens 
pecadores, e não há nada superior ou para além, 
quem então pode ser salvo ?
Como um escritor moderno, que não faz grandes 
reivindicações para uma ortodoxia especial mas tem 
algum discernimento filosófico, assinala «o eu que 
determina é o mesmo eu que é determinado»; «o eu 
que, de acordo com Pelágio deverá fazer melhorar 
alguém e o mau eu que necessita ser tornado bom». 
«A doença reside no querer, não em qualquer parte 
de nós próprios mas no querer que a vontade pode 
controlar. Como é que a própria doença pode rea­
lizar a cura ? (42). O problema situa-se nas nossas von­
tades: podemos ser bons se quisermos, mas não o 
queremos; e não podemos começar por querer isto, a 
não ser que nós assim queiramos começar, isto é, a 
não ser que nós sempre queiramos isto. «Quem me 
livrará do corpo desta morte ? Graças a Deus por 
Jesus Cristo nosso Senhor». Dizem-me que me arre­
penda se quero ser perdoado; mas como posso arre­
pender-me ? Eu só faço o que está errado porque 
gosto disso e não consigo deixar de gostar disso ou 
gostar de algo melhor lá porque me dizem para eu 
assim fazer, nem mesmo que me provem que isso 
será melhor para mim. Se tenho que ser transformado, 
algo deve apossar-se de mim e transformar-me» (4S).
52 O PLANO DA SALVAÇÃO
«Pode o pêssego renovar a frescura perdida R» Per­
gunta Cristina G. Rossetti, mais poèticamente, mas 
com a mesma agudeza pungente:
Pode o pêssego renovar a sua frescura perdida,
Ou a violeta o seu perdido perfume,
Ou a neve manchada tornar-se branca como na noite
[tínterior ?
O homem não pode alcançar isto, contudo nunca temais: 
0 leproso Naamã
Mostra-nos o que Deus quer e pode.
O Deus que então operou, opera agora aqui;
Por isso não deixeis que o opróbrio anuvie a vossa
[fronte.
Deus que operou então, está a operar agora.
O pecador só pode confiar na misericordiosa omni­
potência de Deus e no Seu amor omnipotente, 
«Cristo», brada CarlosSpurgeon (44j, «é não só “capaz 
de salvar” aqueles que se arrependem, mas é também 
capaz de fazer com que os homens se arrependam; 
levará aos céus aquele que crê; mas, além disso, tem 
poder para criar corações novos nos homens e para 
operar neles a fé. É poderoso para fazer com que o 
homem que detesta a santidade, a ame, e para cons­
tranger a dobrar os joelhos diante d’Ele, aquele que 
despreza o Seu nome. Mas nisto não está tudo ô que 
Ele é, porque o poder divino se vê igualmente na 
obra que se segue a estas coisas...
Ele é poderoso para conservar puro o Seu povo 
depois de assim o ter tornado, e para preservá-lo em 
temor e amor até à consumação da sua existência 
espiritual no céu».
AUTOSOTERISMO 53
Se assim não fosse, a condição do pecador seria 
desesperada. O pecador só pode esperar numa graça 
toda-poderosa; pois só esta é capaz de ressuscitar os 
mortos. De que serve mandar um pregoeiro entre as
/ 'v p i * -p o r l o r í i l o i v r i n d q « A o n r v v l - r i n y~J r\ / - i / i t ú f f n n
abertas; qualquer pessoa que queira pode entrar» ? A 
pei*gunta real e de premente necessicfefejí; Quem 
pode dar vida a estes ossos secos ? A^ratóáontra tojctó ̂
o ensino que tenta levar o homá&V-confiar 
mesmo como podendo re a liz^ ^ u m a coi t^ipiesmo 
a mais pequenina part^riá^^a salvação^o^ristia- 
nismo ordena-lhe quç^(|u|raieta intei&@ente a Deus.
É Deus e só Detts^qtfetn salva, em cada ele­
mento do procè^so'/da salva^^Dj'« Se houver, ainda 
que seja u^sè^ònto», diz:^|pr%e()n com inteligência,
que possa«na vçsnm em a ceiestiaKCía nossa rectiaao, 
ser \da^^’ or nós, estamos perdidos».
III
SACERDOTALISMO
O testemunho consistente da Igreja universal é que 
a salvação vem de Deus e só de Deus. E por isso 
a tendência que constantemente se manifesta igual­
mente em todos os sectores da Igreja, de se conceber 
a salvação, de uma maueúa ou de outva, wum grau 
maior ou menor, como vinda do homem, é estigma­
tizada pelo próprio testemunho oficial de toda a 
Igreja como um resíduo de paganismo ainda não 
inteiramente eliminado do pensamento e sentimento 
daqueles que se declaram e se chamam a si mesmos 
Cristãos. A reaparição incessante desta tendência, 
debaixo de uma ou de outra forma, por toda a Igreja, 
é evidência bastante, contudo, da dificuldade que os 
homens sentem em preservar na sua pureza, a atri­
buição cristã da salvação unicamente a Deus. E esta 
dificuldade intromete-se de uma ou outra maneira 
por meio da diferença grande e de longo alcance que 
se levantou nas afirmações elaboradas pela própria 
Igreja, a respeito do modo divino de operar ao rea­
lizar a salvação do homem.
56 O PLANO DA SALVAÇÃO
Embora se declare que a salvação vem de Deus, 
que só Ele pode salvar, ensina-se, contudo, numa 
grande parte da Igreja (modernamente na maior 
parte), que Deus ao operar a salvação não o faz direc­
tamente na alma humana, mas indirectamente, isto é. 
por meio de instrumentos que estabeleceu como meios 
pelos quais a Sua Graça salvadora é comunicada aos 
homens. Como estes instrumentos são confiados a 
mãos humanas para serem administrados por elas, 
assim se introduz um factor humano entre a graça 
salvadora de Deus e a sua acção efectiva nas almas 
dos homens; e este factor humano é, na verdade 
constituído como factor determinante da salva­
ção ('''’). Toda a Igreja Protestante, em todas as 
suas partes componentes, Luterana, e Reformada, 
Calvinista e Arminiana, se levanta, num protesto 
apaixonado, contra este sistema sacerdotal, como 
apropriadamente se lhe chama. Segundo o puro 
supernaturalismo da salvação, insiste-se que Deus, o 
próprio Senhor, opera pela Sua graça imediatamente 
nas almas dos homens e que não faz depender a sal­
vação de nenhum homem, da fidelidade ou capricho 
dos seus semelhantes. Como diz o velho John Hooper 
que condena como «uma opinião ímpia» a noção 
«que atribui a salvação do homem à recepção de um 
sacramento externo», «como se o Espírito Santo de 
Deus, não pudesse ser levado pela fé à consciência 
arrependida e aflita, excepto sempre que é transpor­
tado por esse veículo sacramental externo» (46). Em 
oposição a esta «opinião ímpia» o Protestantismo faz 
depender o bem estar da alma directa e unicamente
SACERDOTALISMO 57
çla Graça de Deus, sem absolutamente quaisquer 
intermediários,
A essência do sacerdotalismo encontra uma expres­
são cabal no sistema da Igreja de Roma inteiramente 
desenvolvido e logicamente arrumado. De acordo 
com este sistema, Deus, o Senhor, nada fez para a 
salvação do homem directa e imediatamente: tudo o 
que faz para salvar os homens, fá-lo por mediação 
da Igreja, à qual depois de a ter investido com os 
poderes adequados para essa tarefa, confiou toda a 
obra da salvação (47). «Não será incorrecto dizer», 
nota o Dr. W. P. Paterson ao expor a doutrina da 
Igreja Romana acerca deste assunto «que na 
concepção do Catolicismo Romano o carácter predo­
minante da religião Cristã está na instituição sobre­
natural que representa Cristo, a qual leva por diante 
a Sua obra e actua como mediadora virtual das bên­
çãos da salvação. A sua vocação ou comissão não é 
senão o perpetuar da obra do Redentor. Claro que 
não substitui a obra de Cristo. Pressupõe que Cristo, 
o Filho Eterno de Deus, assentou o fundamento da 
Sua obra na Sua Encarnação e na Sua morte expia­
tória, que todo o poder, autoridade e graça, vêm 
finalmente d’Ele; e que, assim como todas as bên­
çãos espirituais procedem d’Ele, também só a Ele 
pertence toda a glória. Mas na dispensação presente, 
a Igreja, numa grande escala, tomou sobre si a obra 
de Cristo. Ela é, num sentido real, a reincarnação 
de Cristo com o fim de continuar e completar a Sua 
missão redentora. Através da Sua Igreja continua a 
realizar as funções de Profeta, Sacerdote e Rei. Ela
58 O PLANO DA SALVAÇÃO
perpetua a sua função de Profeta testemunhando a 
verdade uma vez entregue aos santos, e, interpre­
tando e determinando, com uma autoridade infalível, 
a doutrina que tem a mesma importância e firmeza 
que a Sua própria revelação original. A Igreja é a 
Sua sucessora na terra no exercício da função sacer­
dotal. Representa-O tão completamente na Sua fun­
ção sacerdotal de mediação entre Deus e os homens 
que, não obstante não haver outro nome dado entre 
os homens a não ser o de Jesus, pelo qual podemos 
ser salvos, contudo não há promessa de salvação fora 
da organização visível de que Ele é o Cabeça invisí­
vel. Além disso, entende-se que ela O representa como 
sacerdote sacrificador pela repetição perpétua na 
Missa do sacrifício que Ele uma vez ofereceu na 
Cruz. Neste sacrifício divino que é celebrado na 
Missa, ensina-se (49) «que o próprio Cristo está con­
tido e imolado duma forma incruenta no altar da 
cruz; e que este sacrifício é verdadeiramente propi­
ciatório. E, finalmente, que ela administra o régio 
poder de Cristo na terra. Tem direito absoluto pois 
a reivindicar a obediência dos seus membros em 
todos os assuntos da fé e prática com o direito e 
dever de punir os desobedientes pela infracção das 
"suas leis, e de coagir os contumazes».
Numa palavra, a Igreja neste sistema é considerada 
cõmo sendo o próprio Jesus Cristo na sua forma ter­
rena, e, por conseguinte, sua substituta como objecto 
próximo da fé dos Cristãos (50). «A Igreja visível» diz 
Mohler (51), «é o Filho de Deus como aparece, con­
tinuamente, como sempre se repete a si mesmo e
SACERDOTALISMO 59
eternamente renova a Sua Juventude entre os homens 
em forma humana. É a Sua encarnação perene». É 
então à Igreja que os homens devem recorrer para 
encontrarem a salvação; somente através da Igreja 
e dos seus ritos é que essa salvação é transmitida aos 
homens; numa palavra, a salvação dos homens é 
mais atribuída à Igreja do que a Cristo ou à graça 
de Deus. Somente «por meio dos santíssimos sacra­
mentos da Igreja», declara-se abertamente (52), é «que 
toda a verdadeira justiça ou começa ou, tendo come­
çado, se desenvolve; ou tendo sido perdida é recupe­
rada».

Continue navegando