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O P L A N O D A SALVAÇÃO EUIÇÕES VIDA NOVA L E I R I A - P O R T U G A L Crédito: Mazinho Rodrigues. Doação Exclusiva para: http://entretextosteologicos.blogspot. TRAD U ZID O E PUBLICADO com permissão de W m . B. Eerdm ans Publishing Company Grand Rapids, Michigan, USA e The Presbyterian and Reform ed Publishing Com pany Philadelphia, Pennsylvania, USA ) t.c o m .l|^ B ■pany LISBOA http://entretextosteologicos.blogspot O P L A N O D A S A L V A Ç Ã O Pelo I)r. ISKN.IAMIM B. W A R FIELD Anligo professor do Seminário Teológico de Princeton TRADUÇÃO DA EDIÇÃO REVISTA 1 9 5 8 Í N D I C E Págs. I — AS DIFERENTES CONCEPÇÕES . . . . . 5 II ---A UTOSOTEKISMO........................................... 29 III — U N IV E R S A L IS M O .............................................................. 77 IV — SACERDOTALISMO . . . . . . . . 55 V ---- C A L V IN IS M O ............................................................... 101 n o t a s ............................................................................. . 125 I AS DIFERENTES CONCEPÇÕES O assunto de que nos vamos ocupar nesta série de prelecções, é comummente denominado «O Plano da Salvação». Numa designação mais técnica chama-se- -lhe «A Ordem dos Decretos». Esta designação técnica tem sobre a anterior (que é a mais popular) a van tagem de indicar com maior exactidão o campo da matéria em causa. É que, realmente, esta não se limita apenas ao processo da salvação em si, mas abrange, duma maneira geral, todo o curso das relações de Deus com o homem, relações que, de facto, vêm a culminar na salvação do ser humano. A Criação, a Queda e a condição do homem desta resultante, comummente, são também abrangidas por esta maté ria. No entanto, estes últimos aspectos podem com bastante propriedade, ser considerados mais autên ticos pressupostos do que partes essenciais da matéria em si. E não haverá grande dano em ficarmos com a designação mais popular. O facto de ser mais concreta dá-lhe uma vantagem que não pode ser menospre- 6 O PLANO DA SALVAÇÃO zada; e, acima de tudo, tem o mérito de pôr em relevo o assunto principal — a salvação. A série de activi dades diversas que vão ser consideradas, são, em qualquer caso, tidas como vogando em volta da sal vação do homem pecador, assunto este que é o seu objectivo imediato. Quando consideramos correcta mente o que esta matéria implica, não parece que seja preciso justificar com argumentos a designação geral de «O Plano da Salvação». Não achamos necessário determo-nos a discutir a questão prévia de saber se Deus, nas suas actividades de salvação, actua de acordo com um plano. Que Deus actua de acordo com um plano em todas as suas actividades é já admitido, pelo Teísmo. Esta belecida a existência de um Deus pessoal, tal questão perde a razão de existir. É que «pessoa» significa intenção: o que distingue precisamente uma pessoa de uma coisa é que os modos de actuar da primeira são intencionais; tudo quanto a pessoa faz tem um fim em vista; e a pessoa escolhe até os meios para chegar a esse fim. Por conseguinte, até o Deísta deve admitir que Deus tem um plano. Podemos, sem dúvida, imaginar uma forma extrema de Deísmo, em que se pretenda sustentar que Deus não tem o menor interesse nas coisas que acontecem no Seu universo; que, tendo criado o mundo, o tenha abandonado, deixando-o seguir o seu próprio rumo em direcção a qualquer fim que possa ter, sem lhe dar qualquer atenção. Não seria necessário dizer, contudo, que tal forma extrema de Deísmo não existe realmente, em bora haja, (estranho é dizê-lo) alguém, como teremos AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 7 ocasião de ver, que pense que, no assunto da salvação do homem, Deus se conduza da maneira irresponsável que mencionámos. O que o verdadeiro Deísta sustenta é a existência de uma lei. Crê, assim, que Deus confiou o Seu uni verso, não a um capricho imprevisto e desprecatado, mas sim à referida lei; lei esta que Deus pôs no Seu universo, que pôde confiar com segurança o governo dela. Isto significa que o próprio Deísta concebe que Deus tem um plano; plano este que abrange tudo o que acontece no universo. O Deísta difere do Teísta só no que diz respeito às formas de actividade pelas quais entende que Deus leva a cabo o seu plapo. O Deísmo implica uma concepção mecânica do uni verso. Deus fez uma máquina e, exactamente porque essa máquina é muito boa, pode deixá-la executar os Seus fins e não os da própria máquina. Paralelamente, pode-se construir um relógio e depois, exactamente porque o relógio é bom, deixá-lo realizar o tique- -taque dos segundos, marcar os minutos, dar as horas, marcar os dias do mês, as fases da Lua e as respec tivas marés, e, se quisermos, podemos pôr-lhe um cometa que apareça no mostruário uma só vez durante a vida do relógio, não ao acaso, mas sim quando e onde e da maneira que nós tivermos marcado. Este relógio não escolhe o seu funcionamento; segue o funcionamento que lhe imprimiu aquele que o fez o funcionamento que lhe foi destinado pelo fabri cante; e o relógio de Deus, o universo, não executa o seu próprio plano mas sim o de Déus, como Ele 8 O PLANO DA SALVAÇÃO o ordenou, executando os inevitáveis acontecimentos com precisão mecânica. É uma grande concepção, esta concepção da lei do Deísta. 'Livra-nos do acaso. Mas só o consegue atirando-nos para as rodas dentadas duma máquina. Não é, pois, a mais alta concepção. A melhor con cepção é a do Teísmo, que nos livra até da lei e- nos coloca directamente nas mãos de uma pessoa. É uma grande coisa ficar livre do desordenado reino de um acaso sem desígnio. A deusa Tyche (Fortuna) era uma das mais terríveis divindades do mundo antigo, quase tão terrível como o Fado e dificilmente distinta dele É uma grande coisa estar sob a direcção dum desígnio inteligente. Mas há uma grande diferença entre o facto do referido desígnio ser executado por uma mera lei, que actua mecanicamente, e sê-lo pelo governo pessoal sempre presente da própria pessoa. Não há nada mais ordenado do que a direcção ou governo duma pessoa cujas acções são totalmente orientadas por um propósito inteligente e visam um fim. Se cremos num Deus pessoal e muito mais ainda, se, sendo Teístas, .cremos no governo imediato do mundo pelo Deus pessoal que lhe deu origem, então devemos crer num plano em que assenta tudo o que Deus fez e, por consequência, também, num plano de salvação. A única questão que pode surgir não diz respeito à realidade deste plano, mas sim à sua natu reza. Quanto à sua natureza, deve dizer-se que tem havido muitas opiniões diferentes. Na verdade quase todas as opiniões possíveis têm sido enunciadas em muitas ocasiões e em muitos lugares. Mesmo que AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 9 ponhamos à parte todas as opiniões não cristãs, não chegará a ser necessário modificar a afirmação ante rior. Várias linhas divisórias têm sido traçadas dentro do cristianismo; facções se têm erguido contra fac ções; diferentes tipos de crença se têm desenvolvido e dado nada menos do que diferentes sistemas de religião que se chamam cristãos, mas só têm de comum o nome. Nesta prelecção, é meu propósito pôr ràpidamente diante de nós uma perspectiva das várias opiniões que têm sido defendidas pelos maiores grupos dentro do cristianismo, para que se possa fazer ideia da sua extensão e das suas ligações. Talvez possamos conse guir melhor este nosso objectivo pela análise das grandes divergências que os separam, pelo menos para O nosso primeiro propósito. Enumerá-las-ei — as várltu opinlflos — nu ordem da sua importância, indo das dlícrciiçus mais profundas e de mais longo alcance nu dlvi.são dos cristãos, até às de efeito menos radical. I — () inais profundo abismo que separa os cha mados cristãos, quanto às suas concepções do plano de salvação, é o que os divide no que podemos cha mar as doutrinas Naturalista e Supernaturalista. A linha de divisãoneste assunto da salvação do homem é: ou Deus planeou simplesmente deixar o homem com capacidade maior ou menor para a si próprio se salvar; ou planeou intervir Ele próprio para o sal var. A diferença entre o Naturalismo e o Supernatu- ralismo é muito simples, sim, mas absoluta: ou é o homem que se salva a si próprio ou é Deus Quem o salva. 10 O PLANO DA SALVAÇÃO O consistente esquema Naturalista é conhecido na História da doutrina pelo nome de Pelagianismo. Q $ Pelagianismo puro afirma que todo o poder que actua na salvação do homem provém do próprio homem. Mas o Pelagianismo não é meramente assunto da história nem tão-pouco aparece sempre em estado de pureza. Assim como os pobres de bens terrenos estão sempre connosco, assim também estão sempre con nosco os pobres das coisas espirituais. Pode-se real mente pensar que nunca houve na história do cristianismo um período em que as concepções natu ralistas do processo da salvação tenham sido mais largamente espalhadas ou mais radicais do que actualmente. Uma espécie de Pelagianismo, que ultrapassa o próprio Pelágio na inteireza do seu naturalismo, está de facto muito em voga na hora que passa entre muitos que a si próprios se elevaram à posição de guias do pensamento cristão. E, em toda a parte, em todos os ramos do cristianismo, são correntes as concepções que atribuem ao homem, no uso dos seus poderes naturais, pelo menos a activi- dade decisiva na salvação da sua alma, o que implica a suposição de que Deus tenha disposto que se sal vem aqueles que, no ponto decisivo, de uma maneira ou de outra operam a sua própria salvação. As chamadas opiniões intermediárias são, como é óbvio, em princípio, opiniões naturalistas, uma vez que (qualquer que seja a parte que atribuam a Deus nas circunstâncias da salvação), quando chegam ao ponto crucial da própria salvação, colocam o homem na dependência dos seus próprios poderes. Proce AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 11 dendo assim, separam-se definitivamente da doutrina Supernaturalista do plano de salvação e, destarte, dò testemunho unânime de toda a Igreja organizada Porque, embora se tenha dado a entrada de muitos aspectos de doutrina naturalista nas pessoas de muitos membros das igrejas, toda a Igreja organizada — a Católica Ortodoxa Grega, a Católica Romana Latina e a Protestante, em todas as suas grandes formas his tóricas, Luterana e Reformada, Calvinista e Armi- niana — manifesta o seu acordo, firme e categórico, na concepção Supernaturalista da salvação. Teremos de jornadear até às regiões periféricas do cristianismo, onde encontraremos seitas de posição duvidosa den tro da corporação dos cristãos, como os Unitarianos, por exemplo, para depararmos com uma corporação organizada de cristãos sem confissão de fé Superna turalista. Esta confissão, em oposição directa ao Naturalismo,, declara categoricamente que é Deus, o Senhor, Quem salva a alma e não o próprio homem; e para que nenhum erro seja cometido, a referida confissão não se esquiva à declaração completa e, com plena com preensão do problema, afirma precisamente que todo o poder exercido na salvação da alma provém de Deus. Eis aqui, pois, o eixo da balança que sepai'a os dois grupos. O supernaturalista não se contenta em dizer que parte do poder usado na salvação da alma (ou até a maior parte desse poder) é de Deus. Afirma que todo esse poder vem de Deus, e que qualquer parte que o homem possa ter no processo dá salvação é subsidiária, como efeito, da acção divina; e que é 12 O PLANO DA SALVAÇÃO Deus e só Deus Quem salva a alma. E o Supernatu- ralista é, nesta acepção, a Igreja inteira organizada, em toda a extensão do seu testemunho oficial. 2 — Há, sem dúvida, diferenças de opinião entre os Supernaturalistas, e diferenças que não são nem pequenas, nem de pouca monta. A mais profunda é a que separa os Sacerdotalistas dos que seguem o espírito evangélico. Mas tanto os Sacerdotalistas como os do espírito evangélico são Supernaturalistas, isto é,í concordam em que todo o poder exercido na sal vação da alma provém de Deus. Diferem na maneira como o poder salvador de Deus se exerce sobre a alma. O ponto exacto cla divergência entre eles está na questão do modo: Deus, por Cujo único poder se efectua a salvação, salva os homens por uma relação directa e imediata com eles como indivíduos; ou então, salva-os por meio de agências com poder sobrenatural por Ele estabelecidas no mundo. O pro blema é, pois, saber se a operação salvadora de Deus é ou não imediata: Deus salva os homens por acção imediata ou directa da Sua graça sobre as suas almas, ou actua sobre eles tão-sòmente por meio de agências estabelecidas para esse fim ? O ensino da Igreja Romana apresenta-nos um mo delo de Sacerdotalismo. No referido ensino afirma-se que a Igreja é a instituição salvadora, isto é, só por ela exclusivamente pode a salvação ser apresentada aos homens. Fora cla Igreja e das suas leis, dizem eles, não pode alcançar-se a salvação: a graça só pode ser transmitida por meio e através do ministério da referida Igreja, e não de qualquer outro modo. Duas AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 13 máximas mostram o seu poder: onde está a igreja está o Espírito; fora da igreja não há salvação. Sempre que para salvação há necessidade indis pensável daquelas agências consideradas como por tadoras da graça salvadora, eis, então, de qualquer maneira, a presença do espírito sacerdotal; e, torna-se dominante, sempre que tal indispensabilidade se torne absoluta. Assim, os chamados Meios da Graçap tornam-se «meios indispensáveis» e são, no sentido' estrito, não somente meios «sine quibus non», mas. até o real «quibus» da salvação. Em antagonismo completo com tal doutrina está a doutrina do espírito evangélico, que procura con-; servar o que considera o único e coerente supernatu- ralismo, elimina qualquer intermediário entre a alma e o seu Deus, e deixa a pessoa em dependência abso luta de Deus para a salvação da sua alma: sobre ela> Deus opera directamente por meio da Sua Graça. O espírito evangélico sente a sua dependência para salvação, não de quaisquer meios de graça, mas sim directamente de Deus; espera a Graça directamente de Deus, e não de meios de graça; e sustenta, por consequência, que o Espírito Santo é, não só capaz de actuar, mas que realmente actua onde, quando e como quer. O espirito evangélico concebe a Igreja e as suas ordenanças como instrumentos que o Espí rito utiliza e não como agentes que utilizam o Espírito Santo na obra da salvação. Em directa oposição às máximas do consistente sacerdotalismo, o princípio evangélico toma como lemas: onde está o Espírito, 14 O PLANO DA SALVAÇÃO aí está a Igreja; fora da corporação dos regenerados não há salvação. Ao caracterizarmos assim o espírito evangélico, não deixará de notar-se que estamos a caracterizar o Protestantismo. De facto todo o Protestantismo Confessional, em todos os seus ramos — Luterano e Reformado, Calvinista e Arminiano — é evangélico na doutrina do plano da salvação. O Protestantismo e o princípio evangélico estão contidos dentro dos mesmos limites, se é que estas duas designações não são exactamente sinónimas. Assim como todo o cris tianismo organizado afirma categoricamente a sua confissão de supernaturalismo puro, assim também todo o Protestantismo organizado é igualmente claro € categórico na sua confissão do espírito evangélico. Destarte o princípio evangélico aparece-nos como uma concepção do plano da salvação distintamente protestante; e talvez não seja estranho que, na sua imediata oposição ao sacerdotalismo, por vezes quase perca de vista a sua mais profunda oposição ao natu ralismo. O princípio evangélico não deixa de ser fun damentalmente antinaturalista, ao verificar-se anti- -sa-cerdotal: o seu protesto primário continua a ser contra o naturalismo e, pelo facto de se opor tam bém ao sacerdotalismo, só se revela coerentemente supernaturalista, pois recusa-sea admitir quaisquer intermediários entre a alma e Deus, Que é a única fonte de salvação. O único e verdadeiro princípio evangélico, portanto, é aquele em que ressoa clara mente a dupla confissão: que todo o poder exercido na salvação da alma provém de Deus; e que Deus. na Sua obra de salvação, actua directamente na alma, AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 15 3 — Mesmo assim, contudo, há muitas e profundas diferenças entre os que seguem o princípio evangé lico. Todos eles estão de acordo em que todo o poder exercido na salvação provém de Deus e em que Deus actua directamente na alma, ao desempenhar a Sua acção salvadora. Mas diferem muito uns dos outros, quanto aos métodos exactos empregados por Deus, ao levar muitos filhos para o estado glorioso de sal vação. Alguns deles atingiram a sua posição evangé lica por meio de correcção modificadora aplicada a um fundamental sacerdotalismo, de que saíram. Muito naturalmente, certos elementos desse sacerdotalismo subjacente permaneceram incrustados na reconstru ção e deram cor à sua maneira de conceber a posição evangélica. Há ainda outros no grupo evangélico cujas concepções estão semelhantemente coloridas por um naturalismo subjacente, naturalismo de que eles provieram, tendo chegado à melhor confissão por um processo semelhante de modificação e correcção. O-primeiro destes grupos é representado pelos evangélicos Luteranos, que, por isso, gostam de falar de si próprios como partidários duma «Re forma Conservadora»; isto significa que formaram as suas concepções evangélicas na base do sacerdota lismo da Igreja Romana, da qual saíram, talvez difi cilmente e nem sempre com perfeição. O outro grupo é formado pelos evangélicos Arminianos, aqueles cujo princípio evangélico é um aperfeiçoamento do subja cente semipelagianismo dos «Remonstrantes Holan deses». Em oposição completa a grupos tais como os mencionados, há ainda outros grupos evangélicos 16 O PLANO DA SALVAÇÃO que adoptam o princípio evangélico fundamental na sua pureza sem cor alguma de elementos estranhos. Nesta variedade de posições, não é fácil estabelecer um princípio de classificação que facilite a tarefa de discriminar nitidamente as formas principais que o princípio evangélico assume. Tal princípio, contudo, parece apresentar-se-nos naquelas duas concepções opostas do plano de salvação denominadas Universa- iísta e Particularista. Todos os que seguem o princí pio evangélico concordam em que o poder para a salvação da alma provém de Deus e é sobre ela exer cido directamente por Deus. Mas diferem sobre jc Deus exerce esse seu poder de salvação igualmente, ou, pelos menos, indiscriminadamente, sobre todos os homens (universalmente), sejam salvos ou não, ou se o exerce somente sobre alguns, ou (particular mente) sobre apenas os que são realmente salvos. O ponto de divergência é este: ou se entende que Deus tem um plano realmente Seu para salvar os homens pela Sua Graça indubitavelmente eficaz e omnipo tente, ou se entende que apenas derrama a Sua Graça sobre os homens, tornando-os assim capazes de ser salvos, sem no entanto assegurar indubitàvel- mente, a salvação de alguns, em quaisquer casos particulares. A controvérsia específica daqueles a quem chamei universalistas, é que, ao mesmo tempo que todo o poder exercido na salvação vem de Deus e é por Ele exercido directamente sobre a alma, também tudo aquilo que Deus faz relativo à salvação dos homens, fá-lo em favor e para o bem de todos os homens, sem AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 17 discriminação alguma. Esta declaração parece dar origem a uma doutrina de salvação universal. Se fosse Deus o Senhor quem salvasse a alma e não o próprio homem; e se Deus, o Senhor, salvasse operando com a Sua Graça salvadora directamente sobre a alma e se, por fim, Deus exercesse a Sua Graça salvadora igualmente sobre todas as almas; pareceria segura mente inevitável a conclusão de que todos seriam salvos. Nesta ordem de ideias tem aparecido por vezes fervorosos militantes do espírito evangélico que, par tindo exactamente destas bases, têm defendido vigo rosamente que todos os homens são salvos: a salvação vem totalmente de Deus, e Deus é omnipotente; e como Deus opera a salvação por meio da Sua Graça toda-poderosa em todos os homens, todos os homens são salvos. É, contudo, um facto que a grande massa dos universalistas não tem aceitado este consistente universalismo, e isto devido às afirmações claras e categóricas da Bíblia de que realmente nem todos os homens são salvos. Dão de face com um grande pro blema e têm despendido grandes esforços para de fender que as actividades de Deus na salvação são inteiramente universalistas, enquanto que o facto central da salvação, é particularista; no entanto, o princípio evangélico fundamental de que só a Graça de Deus é que salva, é ainda afirmado por eles. Estes esforços deram em resultado, especialmente, duas correntes, a do Luteranismo evangélico e a do Armi- nianismo evangélico. Ambas afirmam que a salvação*1 está inteiramente nas mãos de Deus e que toda a actividade de Deus na salvação incide indiscrimina 18 O PLANO DA SALVAÇÃO damente sobre todos os homens, ainda que nem todos, mas apenas alguns, sejam salvos. Em oposição a este incoerente universalismo, outros evangélicos há que sustentam que o particularismo ligado ao ponto central do processo da salvação — por isso que é Deus e só Deus Quem salva — faz, necessàriamente, parte também do próprio processo de salvação. Em defesa' do princípio evangélico comum, em defesa também do supernaturalismo fun damental comum a todos os cristãos, nenhum deles chegou à sua posição legítima por outra maneira — mais em defesa da própria religião — e todos eles advogam que, através de todo o processo da salvação, Deus actua, não com os homens em massa, mas com cada um individualmente, de cada um se apodera com a Sua Graça, e a cada um, pela Sua Graça, leva à salvação. Como é Ele Quem salva os homens, como os salva por acção directa nos seus corações, e como a Sua Graça salvadora é o Seu poder infinito que efectua a salvação, os homens são devedores a Deus, não meramente da oportunidade geral de salvação mas em cada caso e em todos os casos da sua própria salvação real. Por consequência, a Ele — e só a Ele — pertence, em cada caso, toda a glória, que, aliás, ninguém pode partilhar com Ele. Assim, para que o justo lema Soli Deo Glória possa transparecer como verdadeiro e não sofrer restrições, nem no seu signi ficado, nem na sua força, afirmam que é necessário compreender que é de Deus que cada um que tem a salvação, recebe cada coisa que a ela diz respeito e. acima de tudo, o próprio facto de que é Ele que entra AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 19 na salvação. A questão exacta que divide os univer- salistas e os particularistas é, por consequência, saber se a graça salvadora de Deus, na qual exclusivamente há salvação, salva realmente. A presença da graça salvadora significa salvação, ou pode ela estar pre sente e não haver salvação ? 4 — Até os particularistas, no entanto, têm as suas divergências. A mais importante dessas divergências è a que separa aqueles que sustentam que Deus tem em vista não todos os homens mas só alguns, nomea damente aqueles que são realmente salvos, em todas as suas operações que visam a salvação dos homens; e aqueles que desejam distinguir, entre as operações de Deus neste campo, umas de carácter particularista e outras de carácter universalista. Esta última ma neira de ver é uma tentativa para conseguir uma harmonia entre a concepção particularista e a con cepção universalista, preservando o particularismo, tanto no processo como no desfecho da salvação, o suficiente para fazê-la depender exclusivamente da graça de Deus e para Lhe dar toda a glória da sal vação real; enquanto que, ao mesmo tempo, cede ao universalismo do processo da salvação, tanto quanto os seus aderentes julgam poder ser feito dentro da conservaçãológica deste particularismo fundamental. A operação especial da salvação que é cedida por eles ao universalismo é a da redenção do pecador operada por Cristo. Supõem que, no plano de Deus, este facto tenha em vista todos os homens, não de uma maneira absoluta, mas potencialmente. Todos os homens são redimidos por Cristo, claro, desde que 20 O PLANO DA SALVAÇÃO creiam n’Ele. A sua crença n’Ele está, no entanto, dependente da obra da fé levada por Deus, Espírito Santo, aos seus corações, nas Suas realizações que têm por objectivo dar efeito à redenção de Cristo. Esta opinião é, pois, conhecida, não meramente pelo nome do seu autor como Amyraldianismo, mas tam bém, mais descritivamente como Redencionismo Hi potético, ou mais comummente, como Universalismo Hipotético. Transfere a questão que divide os partí- cularistas e os universalistas a respeito do plano da salvação como um todo, para a questão mais espe cífica do trabalho de redenção realizado por Cristo. E o centro exacto do problema vem, por consequên cia, a ser se o trabalho redentor de Cristo salva realmente aqueles por quem foi consumado, ou se apenas abre uma possibilidade de salvação para os tais. Os universalistas hipotéticos, sustentando que o objectivo da redenção visa todos os homens sem qualquer diferença e que nem todos os homens são salvos, não podem considerar a redenção como uma operação especificamente salvadora, e estão, por consequência, acostumados a falar dela como capaz de tornar a salvação possível para todos, como abrindo o caminho da salvação aos homens, como removendo todos os obstáculos à salvação dos ho mens, ou de outra maneira semelhante. Por outro lado, o particularista coerente é capaz de considerar a redenção realizada por Cristo como efectiva, e insiste em que ela é, em si mesma, um acto salvador que salva realmente e assegura a salvação daqueles a favor de quem foi realizado. AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 21 O debate vem assim a incidir sobre a natureza da obra redentora de Cristo, e os particularistas são capazes de tornar muito claro que qualquer coisa que lhe seja adicionada em extensão, lhe é tirada em intensidade. Por outras palavras, o assunto é aqui o mesmo do debate com o universalismo geral dos lute ranos e arminianos, nomeadamente, se as operações salvadoras de Deus realmente salvam; embora o ponto aqui se concentre só numa destas operações salva doras. Se as operações salvadoras de Deus salvam realmente, então todos aqueles em quem Ele opera para salvação, são salvos e o particularismo é apre sentado na própria natureza do caso, a menos que estejamos dispostos a seguir completamente o uni versalismo e a declarar que todos os homens se sal vam. Assim, no interesse do postulado fundamental do Supernaturalismo (que separa todo o cristianismo organizado do mero naturalismo) de que todo o poder exercido na salvação da alma vem de Deus — e da grande declaração evangélica Soli Deo Glória — é que o particularista consequente afirma que a exten são da redenção operada por Cristo não pode ir além do grupo daqueles que são realmente salvos, mas deve sustentar-se que é somente uma das operações pelas quais Deus salva aqueles a quem salva, e não eles a si próprios. E não são somente eles que o pre tendem mas nós devemos dar lugar ao particularismo tanto no processo como na realização da salvação; mas um lugar deve ser exigido para ele igualmente em todos os processos da salvação. É Deus, o Senhor, quem salva; e, em todas as operações pelas quais 22 O PLANO DA SALVAÇÃO realiza a salvação, não opera a favor de todos os ho mens e sobre todos eles indistintamente, mas só a favor e sobre alguns homens, nomeadamente aqueles a quem Ele salva. É esta a única maneira de preser varmos a Sua glória e de Lhe imputarmos a Ele, e tão-sòmente a Ele, toda a obra da salvação. 5 — As diferenças que temos enumerado esgotam as possibilidades de diferenças de grande importância dentro dos limites do plano de salvação. Os homens estão numa destas duas opiniões: ou são naturalistas ou supernaturalistas; e os supernaturalistas ou são sacerdotalistas ou do espírito evangélico; os do espí rito evangélico ou são universalistas ou particularis- tas; os particularistas devem-no ser acerca de algumas das operações salvadoras de Deus ou a respeito de todas elas. Mas os próprios particularistas consisten tes acham ainda possível a existência de diferenças entre eles próprios, não, em boa verdade, sobre os termos do próprio plano da salvação, sobre o qual têm todos a mesma opinião, mas no domínio dos pressupostos desse plano; e para completar a enume ração apresentada, é bom que a referida diferença seja também aqui mencionada. Nada tem que ver com o que Deus tenha feito no decorrer das suas operações salvadoras, mas, passando sobre o assunto da salvação, inquire se lidou em geral com a raça humana, como raça, no que diz respeito ao seu des tino. Estas duas facções são conhecidas na história do pensamento pelos nomes que exprimem o seu contraste, de Supralapsarianos e Sublapsarianos ou Infralapsaríanos. O ponto de divergência entre eles AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 23 é se Deus, ao tratar com os homens quanto ao seu destino, os divide em duas classes meramente, como homens, ou como pecadores. Isto é, se o decreto divino da eleição e preterição diz respeito aos homens considerados meramente como homens, ou conside rados já como homens pecadores, uma massa corrupta. O simples facto de pôr esta questão parece trazer em si a resposta. É que o que está em causa, a saber, a relação autêntica com os homens é condicionada pelo pecado, e isto a respeito das duas classes igual mente, tanto a dos que são eleitos, como a dos que são omitidos: não podemos falar de salvação nem de perdição sem levar em conta o pecado. O pecado pre cede necessàriamente em pensamento, não a ideia abstracta de discriminação, mas o caso concreto de discriminação que estamos a discutir, uma discrimi nação a respeito de um destino, que envolve ou sal vação ou punição. Tem de haver a perspectiva do pecado para o estabelecimento de um decreto de salvação, assim como para o estabelecimento de um decreto de punição. Não podemos, portanto, falar num decreto de discriminação entre homens, no que diz respeito a salvação e punição, sem pôr, como antecedente lógico, a consideração de que os homens são pecadores. O erro desta divergência de opinião que estamos agora a considerar está no facto de procurarem levantar a questão da discriminação que Deus faz entre os homens, dividindo-os em dois grupos, um, o dos que recebem o Seu imerecido favor e o outro, o dos que são objecto do Seu desagrado, procurarem 24 O PLANO DA SALVAÇÃO levantá-la, dizíamos, fora do domínio da realidade; assim se perdem em meras abstracções. Quando tra tamos deste assunto concretamente, vemos que se resume nisto: ou Deus faz discriminação entre os homens com o fim de salvar alguns; ou salva alguns com o fim de fazer discriminação entre os homens. A causa imediata que O leva a esse desejo abstracto de discriminação será a vontade de ter alguma varie dade nas suas relações com os homens ? E, por isso, unicamente para actuar segundo todas as suas possi bilidades, é que Ele torna alguns desses homens objecto do Seu favor inefável e trata outros em estrita concordância com os seus méritos pessoais ? Ou a causa imediata que a isso o impele será, por ventura, o não desejar que toda a humanidade morra nos seus pecados, e, assim, para actuar de acordo com tal compaixão, intervém para resgatar da sua ruína e miséria uma multidão numerosa que ninguém pode contar — de tantas pessoas para quantas, sob a pres são de Seu sentido de justiça, possa obter o consen timento de toda a Sua natureza para isentá-los das penas justas dos seus pecados — por um expediente em que se encontram e se conjugam a Sua justiça e a Sua misericórdia ? O que quer que possamos res ponder à primeirapergunta, o certo é que a última é aquela que se nos apresenta com uma orientação justa acerca das tremendas realidades da existência humana. Um dos motivos principais na estrutura do esquema supralapsariano é o desejo de preservar o princípio particularista através de todas as relações de Deus AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 25 com os homens; não apenas a respeito da salvação do homem mas através de todo o curso da acção divina para com o homem. Desde a própria criação, P como já foi dito, que Deus se relaciona com os ho mens como divididos em duas classes, os que recebem respectivamente o Seu imerecido favor e os que rece bem a Sua condenação bem merecida. De acordo com isto, alguns supralapsarianos situam o decreto da discriminação como o primeiro na ordem do pensa mento, antecedendo até o decreto da criação. Todos eles o situam, na ordem do pensamento, antes do decreto da queda. É, pois, oportuno salientar que esta tentativa de particularizar toda a relação de Deus com os homens não está, na verdade, cabal mente terminada. O decreto da criação do homem, e mais particularmente o decreto de permitir que o homem, cuja criação está planeada, caia no pecado são necessàriamente universalistas. Não foram criados apenas alguns homens, nem tão-pouco foram criados alguns homens diferentes dos outros; muito pelo contrário, toda a humanidade foi criada no seu pri meiro homem, e toda foi criada igual. Não foi pei- mitida a queda de só alguns homens; foi-o, pelo con trário, a todos os homens e a todos de igual maneira. A tentativa para expulsar o particularismo da esfera do plano da salvação, onde o problema é diferente (porque reconhecidamente só algumas pessoas se salvam) e de o introduzir na esfera da criação ou da queda, onde o problema é comum (porque todos os homens foram criados e todos os homens experimen taram a queda) é incapaz de resolver a própria neces 26 O PLANO DA SALVAÇÃO sidade do caso. O particularismo só pode vir à baila quando os diversos problemas exigem a postulação de diversas relações que encerram problemas varia dos. Não deve, pois, ser introduzido na região das relações divinas com o homem antes de o homem necessitar de salvação e dos tratos de Deus com ele a respeito de uma salvação que não é comum a todos. O supralapsarianismo erra, tanto, tão sèriamente num lado, como o universalismo no outro. O infralapsa- rianismo apresenta o único esquema consistente con sigo próprio e consistente com os factos. Há-de ser difícil ter deixado de notar que as várias concepções da natureza do plano de salvação que acabamos de passar em revista, não existem singela mente lado a lado como concepções variadas do refe rido plano, cada uma delas fazendo o seu apelo em oposição a todas as outras. Estão antes relacionadas umas com as outras como uma série progressiva de correcções de um erro original, atingindo de cada vez mais e mais consistência na corporização da ideia fundamental da salvação. Se queremos, então, abrir caminho entre elas, não o conseguiremos lançando-as indiscriminada e corrosivamente umas contra as outras, mas sim seguindo-as com regularidade ao longo da série. O Supernaturalismo deve ser, em pri meiro lugar, considerado como contrário ao Natura lismo; a seguir o Espírito Evangélico, como contrário ao Sacerdotalismo; depois, o Particularismo como contrário ao Universalismo. E assim chegaremos afinal à concepção do plano de salvação que faz inteira justiça ao seu carácter específico. É segundo AS DIFERENTES CONCEPÇÕES 27 esta perspectiva que dirigiremos a nossa atenção nas prelecções que se seguem. O diagrama que damos a seguir mostra numa visão sinóptica as várias conceções que acabam de ser enumeradas nesta prelecção; tal diagrama facilita a apreensão das suas relações mutuas.- II ÂUTOSOTERISMO Fundamentalmente só há duas doutrinas de salva ção (*): uma diz que a salvação vem de Deus; a outra diz que a salvação vem de nós próprios. A primeira é a doutrina geral da Cristandade; a última é a dou trina do paganismo universal. «O princípio do paga nismo», nota o Dr. Herman Bavinck (2), «é, negati vamente, a negação do verdadeiro Deus ê da dádiva da Sua graça; e, positivamente, a noção de que a salvação pode alcançar-se pelo poder e saber do pró prio homem. «Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo cume chegue até ao céu, e façamo-nos um nome» (Gén. 11:14). Quer as obras, pelas quais o paganismo busca o caminho da salva ção, tenham um carácter mais ritual ou mais ético, quer sejam de natureza mais positiva ou mais nega tiva, em qualquer caso, o homem continua sempre o seu próprio salvador; todas as religiões com excepção do Cristianismo são autosotéricas... E a filosofia não conseguiu superar isto: mesmo Kant e Schopenhauer, 30 O PLANO DA SALVAÇÃO os quais com a sua opinião acerca da maldade inata do homem, reconhecem a necessidade de uma rege neração, acabam, finalmente, por recorrer à vontade, sabedoria e poder do homem.» Foi, por conseguinte, com muita propriedade que Jerónimo chamou ao Pelagianismo, o primeiro sis tema organizado de salvação própria ensinado na Igreja, a «heresia de Pitágoras e Zenão» (3). Com •efeito o Pelagianismo foi a cristalização, em formas cristãs, da ética estóica largamente difundida e pela -qual o pensamento dos homens se tinha governado através de toda a precedente história da Igreja (4). À volta do princípio central da plena aptidão da von tade humana, sustentado com uma confiança com pleta e proclamado, não na fraca forma negativa de que a obrigação é limitada pela capacidade, mas na exultante forma positiva de que a capacidade é intei ramente competente para realizar toda a obrigação. Pelágio, não querendo sistematizar, constrói um sis tema autosotérico completo (5). Por um lado, este sistema ficou protegido pela negação de qualquer «queda» sofrida pela humanidade no seu primeiro chefe, e consequentemente de qualquer vínculo, quer de pecado, quer de mera fraqueza, derivado da sua história passada. Cada homem nasce na mesma con dição na qual Adão se criou; e cada homem contínua através da vida na mesma condição em que nasceu. Pela sua queda Adão, quando muito, deixou-nos um mau exemplo, o qual, contudo, não temos necessi dade de seguir a não ser que-o queiramos; e os nossos pecados passados quando, claro, formos „chamados a AUTOSOTERISMO 31 prestar contas e tivermos que sofrer o justo castigo que é uma consequência deles, não podem de qual quer maneira diminuir ou limitar o nosso dever inerente de fazer o que é justo. «Declaro», diz Pelá- gio, «que o homem pode estar sem pecado, e que é capaz de guardar os mandamentos de Deus» (6). E esta capacidade permanece intacta depois, não só do pecado de Adão, mas também de todo e qualquer pecado cometido pelo próprio. «É», diz Juliano de Eclanum, «precisamente tão perfeito depois de pecar como era antes de pecar» (7). Por isso, em qualquer momento que queira, qualquer homem pode cessar de pecar e daí por diante ser e continuar a ser per feito. Por outro lado esta afirmação categórica da completa capacidade para cumprir toda a rectidão, está protegida pela negação de toda a «graça» no sentido de uma ajuda interior de Deus. Como tal ajuda da parte de Deus não é necessária, nem é dada, cada homem, no mais absurdo sentido, opera a sua própria salvação: seja com medo e tremendo ou não, isso dependerá unicamente do seu temperamento individual. Certamente que o termo «graça» está tão profundamente entranhado nas descrições das Es crituras que não pode ser banido completamente. Por isso os Pelagianos continuaram a empregá-lo mas explicaram-no de tal maneira que o esvaziaram do fecundo significado que tem nas Sagradas Escrituras Para eles a «graça» é o dom fundamental e consiste no seu livre arbítrio inalienável e também nos moti vos que Deus põe no homem para que ele use esta liberdade para o bem. 32 O PLANO JDA SALVAÇÃO O esquema Pelagiano,portanto, abrange os pontos que se seguem. Deus dotou o homem com um inalie nável livre arbítrio, em virtude do qual este é per feitamente capaz de fazer tudo quanto dele se exija. Deus acrescentou a esta grande dádiva as dádivas da Lei e do Evangelho para iluminarem o caminho da rectidão e para persuadirem o homem a andar nele; e até a dádiva de Cristo foi feita para suprir uma expiação pelos pecados passados daqueles que de sejam proceder rectamente, e especialmente para fornecer um bom exemplo. Aqueles que, por estes motivos e na posse da sua liberdade inextirpável, abandonam os seus pecados e fazem o que é recto, serão aceites pelo Deus justo e recompensados se gundo as suas obras. Foi este o primeiro esquema puramente autosoté- rico proclamado na Igreja, e é inteiramente distinto de todos os que se lhe seguiram de então para cá Pela providência de Deus a divulgação deste esquema autosotérico foi imediatamente combatida por uma defesa da doutrina da «graça» igualmente clara e consistentemente elaborada, de maneira que o grande conflito entre a graça e o livre arbítrio se travou na Igreja, de uma vez para sempre, nos começos do século V. O campeão da graça nesta controvérsia foi Agostinho; cujo sistema inteiro girava em torno da afirmação de a graça ser a única fonte de todo o bem no homem e isto de uma maneira tão sincera e completa como Pelágio fizera em roda da afirmação da plena capacidade da vontade humana, só por si, poder realizar toda a rectidão. Vê-se clara AUTOSOTERISMO 33 mente o alcance da afirmação de Agostinho pelas exigências do Concílio de Cartago (417 a 418 AD) o qual recusou dar-se por satisfeito a não ser com a confissão inequívoca de que «nós somos ajudados pela Graça de Deus, por meio de Cristo, não somente a conhecer o bem, mas a fazê-lo, em cada acto sim ples, de tal maneira que, sem a graça, somos inca pazes de ter, pensar, dizer ou fazer qualquer coisa que diga respeito à piedade. «Assim, a oposição entre os dois sistemas era absoluta. Num, tudò era atribuído ao homem; no outro, tudo se imputava a Deus. Nele^, duas religiões, basicamente as duas religiões possíveis, se encontraram em combate mortal: a religião da fé e a religião das obras; a religião que desespera do eu e põe toda a sua confiança em Deus, o Salvador, e a religião que põe toda a esperança no eu; ora, visto ser a religião, na sua própria natureza, com pleta dependência de Deus, religião na pureza da sua própria concepção não é mero moralísmo quase reli gioso. A batalha foi violenta mas o desfecho não foi, felizmente, duvidoso. Com o triunfo do Agostinia- nismo tornou-se claro, duma vez para sempre, que o Cristianismo continuaria como religião e uma reli gião para homens pecadores necessitados de salvação, e não se corromperia transformando-se num mero sistema ético que conviria somente para justos que não precisam de salvação. Mas como se costuma dizer, o preço da liberdade é uma vigilância contínua. Assim, a Igreja depressa descobriu que a própria religião só pode conservar-se à custa de uma luta contínua. O Pelagianismo difx- 34 O PLANO DA SALVAÇÃO cilmente morreu; ou talvez não tenha morrido com pletamente, mas apenas se tenha retirado da cena e aguarde o momento propício, e, entretanto, vai mo lestando a Igreja com formas suas disfarçadas apenas o bastante para escapar à condenação da Igreja. O Semipelagianismo tomou imediatamente o lugar do Pelagianismo; e, quando a controvérsia com este foi ganha, em seu lugar apareceu um Semi-semipelagia- nismo, que o Concílio de Orange introduziu, por traição, dentro da Igreja, o génio de Aquino siste matizou e o Concílio dé Trento, finalmente, prendeu com cravos de ferro àquela parte da Igreja que o seguiu. Como resultado da controvérsia Pelagiana, surgiu o reconhecimento da necessidade da graça; como resultado da controvérsia Semipelagiana, o da sua preveniência mas a sua completa eficácia, a sua «irresistibilidade», como lhe chamam os homens, foi negada pelo fatal compromisso de Orange e assim, a marcha conquistadora iniciada pelo Agostinianismo foi sustida e a confissão pura da salvação pela graça tornou-se para sempre impossível dentro daquela secção da Igreja cujo orgulho ostensivo se expressa em que ela é semper eadem. Na verdade, não mais foi legalmente possível, dentro dcxs limites da Igreja, atribuir ao homem, como fizeram os Pelagianos, a totalidade da salvação; nem mesmo, como os Semi- pelagianos, a iniciação da salvação. Mas também não foi mais possível legalmente atribuir a salvação tão completamente à graça de Deus que esta sozinha pudesse completá-la sem a ajuda da desacreditada vontade humana — na verdade esta ajuda surge AUTOSOTERISMO 35 somente como autorizada e impelida pela graça pre- veniente, mas não tão eficazmente impelida que não possa reter e anular as operações da graça salvadora. À tendência deste sistema Sinergista é, obviamente, descendente e por isso não nos surpreenderá saber que fàcilmente caiu no mencionado Semipelagia- nismo, o qual, a despeito da sua condenação oficial pela Igreja, parece ter constituído pràticamente a fé da maior parte dos homens da Idade Média, e neste, o acto que determina a salvação é atribuído, não à graça de Deus portadora da salvação, mas à anuência da vontade, que dá eficácia à omnipotente Graça de Deus. Eis aqui uma salvação pelas obras, tão genuína, embora tão grosseira, como a do próprio Pelagia- nismo puro; e, consequentemente, através de toda a Idade Média, o legalismo reinou soberanamente, um legalismo que produziu exactamente os mesmos efei tos que se manifestaram nos círculos judaicos de que saiu o apóstolo Paulo, tão vividamente descritos por Heinrich Weinel. «Só pode ser feliz debaixo da dis- pensação da lei» diz Weinel (8), «quem pode viver numa vida inteira de mentira... Mas as naturezas sólidas, altivas, sinceras, não podem ser espoliadas com uma mentira. Se são incapazes de resistir, mor rem da mentira; se são fortes, é a mentira que morre. A mentira inerente na lei, estava na presunção de que esta pode ser cumprida plenamente. Todos os companheiros de Paulo entendiam que os manda mentos não podiam ser guardados mas não aplicavam isto a si mesmos. O mais velho procedia na presença do mais novo como se os pudesse guardar; cria-se 36 O PLANO DA SALVAÇÃO nisto pela fortaleza de outrem e não se reconhecia a impossibilidade de si mesmo. Encobriam os pecados aos seus próprios olhos comparando-se com outros homens justos e recorrendo aos tempos remotos de Enoque, Noé e Daniel, para arranjarem advogados a favor das suas almas (9). Confiavam em que Deus consentiria que as boas obras dos santos cobrissem as suas deficiências, e não se esqueciam de, ocasional mente, implorarem perdão, embora, na generalidade, eles mantivessem a mentira e procedessem como se estivessem bem.» Eis um quadro verdadeiro da Idade Média. Os homens sabiam muito bem que não podiam alcançar a salvação por eles próprios, mesmo debaixo do inci tamento da Graça de Deus; sabiam muito bem que falhavam nas suas «boas obras» a cada passo; e, mesmo assim, continuavam a manter esta ficção ca davérica (10). Não havia então homens fortes «que derrubassem esta mentira» ? Realmente eles aparece ram em vários lugares, um Gottschalk no século IX, um Huss no XV, um tardio Jansen no XVII; mas, a despeito dos seus protestos, a mentira continuou viva, até chegar o último homem realmente forte, Martinho Lutero, que fez com que essa mentira mor resse. O Agostinianismo que tinha sido reprimido na Igreja de Roma não pôde ser suprimido. A Igreja tinha-se subordinado à doutrina que não podia admitir o Agostinianismo. Este não tinha, pois, outra solução a não ser queimar os laços que o uniam à Igreja e sair desta. A explosão surgiu com aquilo a que nós chamaAios a Reforma. A Reforma não é AUTOSOTERISMO 37 nada mais do que o Agostinianismo assumindo os seus direitos: o abandono detudo que é humano para apoiar-se somente em Deus no problema da salvação. Por isso, nada é tão fundamental na doutrina dos Reformadores como a consideração da completa inca pacidade do homem e da sua absoluta necessidade da Graça divina; e contra nada os Reformadores lutaram tão firmemente como contra a afirmação do poder inato de o homem realizar a sua justificação. Para Lutero, o Pelagianismo foi a heresia das heresias, equivalente, do ponto de vista religioso, à increduli dade; e, do ponto de vista ético, a um mero egotismo. Foi «para ele, o termo compreensivo de todas aquelas coisas que ele particularmente desejava atacar na Igreja Católica» (12). O seu tratado De Servo Arbitrio escrito contra a exaltação pelagirúazadova que Erasmo fez da capacidade humana foi considerado por ele o único dos seus livros, juntamente com o Catecismo, no qual não encontrou nada que corrigir (13). «Quanto à doutrina do livre arbítrio, como tinha sido pregada antes de terem aparecido Lutero e outros Reformado res», escreve Calvino (13 a) «o único resultado dela foi encher os homens de uma opinião presumida acerca da sua própria virtude, fazendo-os inchar de vaidade, e não dando nenhum lugar à Graça de Deus e ao auxí lio do Espírito Santo». «Quando dizemos a alguém», continua a escrever (14), «que busque a rectidão e a vida fora de si próprio, isto é, só em Cristo, visto esse alguém nada ter em si mesmo a não ser pecado e morte, imediatamente estala uma controvérsia sobre a liberdade e o poder da vontade. Pois se o homem 38 O PLANO DA SALVAÇÃO tem qualquer capacidade proveniente de si mesmo para servir a Deus, já não obtém a salvação inteira mente pela graça de Cristo, mas atribui-a, em parte, a si próprio. Embora não neguemos que o homem actua espontâneamente e de livre vontade, quando é guiado pelo Espírito Santo, mantemos que toda a sua natureza está tão imbuída de depravação que, por si só, não tem capacidade de actuar recta mente» (15). Não passou muito tempo, contudo, até nos próprios círculos de verificado Agostinianismo onde a atribui ção da salvação somente a Deus era uma paixão, para que o velho fermento da salvação pelo próprio começasse novamente a actuar (16). Foi nada menos do que por Filipe Melanchthon que esta nova «queda da graça» entrou, no pensamento da Reforma, posto que, por seu ensino só tenha feito um pequeno pro gresso. Três períodos se podem distinguir no desen volvimento desta sua doutrina (17). No primeiro, foi um Agostiniano puro, como Lutero ou o próprio Cal- vino. No segundo, que principia em 1527, começa a seguir Aristóteles na sua doutrina geral da vontade. No terceiro, de 1532 por diante, atribui à vontade do homem, embora só como poder puramente formal, algum lugar no próprio processo da salvação: isto pode colocar as qualidades espirituais, criadas unica mente pelo Espírito Santo, em cadeias ou no trono. A partir deste começo o sinergismo ganhou terreno, ràpidamente, na Igreja Luterana (1S). É verdade que encontrou oposição: os velhos Luteranos, um Ams- dorf, um Flacius, um Wigand, um Brenz, todos eram AUTOSOTERISMO 39 Agostinianos inteiramente convictos. Mas a oposição não foi tão calorosa como podia ter sido se a contro vérsia com os Calvinistas não estivesse no seu auge. Até Brenz admitiu que Strigel dele escarnecesse, na disputa de Weimar, com seu predestinacionismo, pois não tomou corajosamente a ofensiva. E assim Andrea pôde corromper a doutrina de Lutero, na Conferência de Mompelgard, em 1586, sem arguição (19); Aegidius Hunmius pôde ensinar abertamente a resistibilidade da graça (20); e John Gerhard pôde condicionar a eleição à presidência da fé (21). Quando Melanchthon se recreava com frases tão ambíguas como «Deus atrai a si aquele que o busca», «Livre arbítrio é o poder de o próprio homem buscar a graça», estava a brincar com o fogo. Cem anos depois os teólogos saxões Hoe van Hohenegg e Polycarp Leyser, na Conferência da Lípsia, em Março de 1631, podiam confiadamente apresentar como doutrina Luterana a declaração de que «Deus certamente nos elege pela graça de Cristo; mas isto teve lugar de acordo com a Sua presciência de quem podia, verdadeira e cons tantemente, acreditar em Cristo; e àqueles que Deus previu que podiam crer, a esses predestinou e elegeu para os tornar abençoados e gloriosos». A obra mara vilhosa da Graça de Deus, ressuscitadora dos mortos, a qual Lutero tão apaixonadamente proclamou, foi então posta completamente à disposição daquela von tade do homem que Lutero declarou estar totalmente escravizada ao pecado e ser somente capaz de rea lizar alguma coisa boa, quando a ela é levada pela graça que a faz nascer de novo (22). 40 O PLANO DA SALVAÇÃO Nada disto melhorou com o rolar dos anos. Até um dos mais considerados professores luteranos dos nossos dias, Wilhelm Schmidt, Professor de Teologia em Breslau, nos diz (23) que «o propósito e amor divinos só podem actuar precisamente através da vontade do ser a que se dirigem»; e «numa palavra, há em face dos sagrados decretos de Deus, uma liber dade estabelecida por Ele próprio, contra a qual tais decretos, muito frequentemente se quebram e podem, na verdade, quebrar-se em cada caso particular» í24'). Portanto não fica satisfeito com a rejeição da prae- destinatio stride dicta dos Calvinistas, e repudia igualmente a praedestinatio late dieta dos antigos teólogos luteranos, a qual sustenta a existência de um decreto de Deus pelo qual todos os homens designados para salvação, conforme uma vontade antecedente, enquanto que, por uma vontade conse quente, são postos à parte e destinados à salvação, todos os que Deus prevê que crerão, finalmente, em Cristo. «Porque», diz ele (25), «com a divina ou infalí vel presciência a respeito deles, as decisões do homem cessam de ser livres». Assim não só a predestinação divina, como também a presciência divina, são sacri ficadas no altar da liberdade humana e a conclusão de toda a matéria é enunciada nas palavras: «Todos os homens estão, no que diz respeito a Deus, escritos no Livro da Vida (benevolente universalis); mas no fim da jornada será determinado, finalmente quais os que, de entre todos estes, permanecem escritos nele». O resultado não pode ser conhecido antecipadamente nem mesmo por Deus (26). Não basta que a redenção AUTOSOTERISMO 41 comprometa a yontade, de maneira a poder-se dizer que não há redenção, «a não ser que o pecador nela coopere muito energicamente», mesmo se interpre tarmos isto como querendo significar «que ele próprio permite ser redimido» (2r). Devemos prosseguir e dizer que «a redenção falhará em alcançar o seu fim e ficará sem efeito, por mais que a vontade divina, de amor e conselho de salvação, possa desejar de outro modo, se não lhe é dada eficácia pelo íntimo do homem, fazendo-o realizar-se, ele agarra a mão salvadora e arrepende-se, abandona o seu pecado e passa a viver uma vida recta» (3S). Quando Schmidt chega, contudo, a falar da Aplicação da Salvação pelo Espírito Santo (20), é explícito em negar ao Espírito Santo qualquer poder para produzir a salvação numa alma que a não quer. «Mesmo o Espírito Santo» diz, «não pode, em face da livre vontade que por natureza pertence ao homem, compelir ninguém a aceitar a salvação. Até Ele, só pode realizar o Seu propósito de nos salvar, se nós não fizermos obstrução, não nos desviarmos d’Ele, não nos opusermos à Sua obra em nós. Temos poder para tudo isto e Ele é impotente (ohnmachtig) a este respeito, quando usarmos mal o nosso poder... Aquele que não quer ser salvo, não pode ser ajudado nem mesmo pelo Espírito Santo» (30). A afirmação da capacidade do eu dificilmente poderá ir mais longe; nem mesmo naqueles versos excitantes, mas, sem dúvida, algo jactanciosos de W. E. Henley. 42 O PLANO DA SALVAÇÃO Na noite que me cobre, Negra como a sepultura, de polo a polo, Agradeço o que quer que Deus possa ser Para a minha alma inconquistável.Ao sentir a garra dos acontecimentos, Não me tenho encolhido nem vociferado, Debaixo das mocadas da sorte, A minha cabeça sangra mas não se curva. Para além deste lugar de ira e lágrimas, Nada luz a não ser o horror das trevas, E mesmo assim a ameaça dos anos Encontra-me e encontrar-me-á sem medo. Não interessa quão estreita seja a porta, Quão cheio de punições seja o rol, Sou o senhor do meu destino; Sou o capitão da minha alma. Isto é, sem dúvida, um Pelagianismo sem pejo, a menos que prefiramos chamar-lhe paganismo puro. E. contudo, é citado com acalorada aprovação, por um considerado ministro da Igreja da Escócia, ao escre ver, absolutamente neste mesmo espírito, acerca do grande assunto da «Eleição». Usa-se, na verdade, directamente para sustentar a alegre afirmação do princípio fundamental do Pelagianismo de que a capa cidade limita a obrigação: «Aquela vida cônscia que se expressa dizendo “Tu deves”, acorda dentro de nós AUTOSOTERISMO 43 um eco não menos certo que diz: “Porque devo,. posso” . Aquele “posso” permanece para sempre por mais fraco que se possa tornar» (31) Pelágio não exigi' ria mais nada. Podemos inferir de tal fenómeno como o meneio- nado que as Igrejas Reformadas, embora retendo a sua confissão Agostiniana, o que as Luteranas não puderam fazer e, abandonando o Semi-pelagianismo Arminiano que brotou no começo do século XVII para os afligir como os Luteranos não o conseguiram fazer com o seu sinergismo, tem ainda nos nossos dias sido penetrado pelas mesmas concepções pelagiani- zadoras. Isto é tão grandemente verdadeiro, que nos encontramos hoje, de todos os lados, mesmo nas Igrejas Reformadas, com as mais ilimitadas afirma ções da independência humana, e da impossibilidade da acção da vontade humana ser governada ou pre vista. Os excessos a que isto pode conduzir por certo se vê em claro, pois que incidentalmente, nas obser vações feitas pelo Dr. David W. Forrest no infeliz livro a que chamou, por certo muito iludidamente «A Autoridade de Cristo» (1906). Nas suas mãos a liberdade humana tornou-se de tal modo toda-pode- rosa que claramente aboliu não só os princípios comuns à religião evangélica, mas toda a fé na pró pria providência divina. Adoptou de facto, acerca da livre agência, um ponto de vista que reserva ao homem uma independência completa e exclui todo o controle divino ou até presciência da acção humana. Incapaz de governar os actos de agentes livres, Deus é forçado a ajustar-se constantemente a eles. Por isso 44 O PLANO DA SALVAÇÃO tem que aceitar no Seu universo muitas coisas que preferiria que nele não estivessem. Está por exemplo neste caso toda a esfera do acidental. Se cooperarmos com outros em empreendimentos perigosos, ou, diga mos, se sairmos à procura de diversão numa caçada, podemos ser mortos por um acto de inexperiência dum companheiro ou por um tiro perdido dum ati rador descuidado. Deus nada pode fazer neste caso e de nada valerá apelarmos para Ele relativamente a isto. Pois, diz o Dr. Forrest (32), «Deus só poderia evitar que o mau companheiro ou atirador causas,;e a morte aos outros privando-o da liberdade de traçar o seu próprio destino. Não há, numa palavra, controle providencial, sejam quais forem os actos dos agentes livres. Consequentemente, diz-nos o Dr. Forrest (33) que um homem sensato não ficará surpreendido com o facto de sobreviverem crueldades trágicas no mundo, as quais o fazem parecer quase obscuramente errado: «reconhecerá as possibilidades de liberdade do homem quando desdenha da vontade de Deus, tanto por meio dos castigos aplicados por meio do sofrimento, quanto pela recusa de ser ensinado pelo sofrimento». Nem a graça de Deus pode intervir para sanar a imperfeição da Sua providência. A livre vontade humana interpõe uma barreira real ao ope rar da Sua graça; e Deus não tem poder para vencer a oposição do coração humano .«Não há barreira à entrada do Espírito Santo no coração», nota o Dr. Forrest, com o ar de fazer uma grande confis são (34), «excepto aquela que é criada pela recusa do coração em recebê-LO», isto constitui, evidentemente, a u t o s o t e r i s m o 45 apenas uma outra maneira de dizer que a recusa do coração é uma barreira insuperável à entrada nele do Espírito Santo (35). Por consequência, o progresso do Seu reino no mundo não pode ser planeado, nos seus pormenores, por nosso Senhor, mas jaz na Sua mente só esboçado nas suas linhas gerais. «Viu», diz o Dr. Forrest, «que a “conversão” tinha o seu factor humano assim como o seu factor divino; e que as poderosas obras de Deus podem ser tornadas impos síveis pelas perversidades do homem incrédulo. Por isso, o curso detalhado do Reino no mundo é algo inescrutável...» (36). Mesmo na própria Igreja o pro pósito divino pode falhar, a despeito da prometida presença do Espírito de Deus nela: porque, embora o Espírito não falhe em guiar a Igreja, esta pode falhar em «preencher as condições dentro das quais ela pró pria utilizaria a direcção do Espírito» (37). Numa palavra, o Dr. Forrest é tão zeloso em emancipar o homem do domínio de Deus que chega quase a colo car Deus debaixo do domínio do homem. O mundo que Deus criou escapou ao Seu controle. Deus não tem mais nada a fazer senão aceitá-lo como ele se Lhe apresenta e ajustar-se-lhe o melhor que possa. Certa vez disseram a Tomás Carlyle que Margaret Fuller tinha declarado com a sua maneira solene: «Aceito o universo»; pois o simples comentário do sábio foi «Co’a breca, é o melhor que ela tem a fazer». Está Deus Omnipotente no mesmo caso ? Ora se Deus está neste caso, seja em que grau for, então não se pode falar de salvação do homem por Deus. Se, de qualquer maneira, o homem tem que ser salvo, embora 46 O PLANO DA SALVAÇÃO seja contestável se a palavra «salvação» é a que se deve usar neste caso, é claro que ele deve «salvar-se» ,a si próprio. Se pudermos ainda falar de um plano de salvação da parte de Deus, esse plano reduzir-se-á só a conservar o caminho da salvação aberto, para que o homem, que é senhor do seu próprio destino (38), não possa encontrar nenhum obstáculo quando esco lher seguir por esse caminho. Em boa verdade é esta concepção da «salvação» que, nos mais largos cír culos, é agora confíadamente proclamada. É este o gonzo em que gira todo o pensamento desse Novo Protestantismo que surgiu nos nossos dias, repudiando a Reforma e todas as suas obras como mero medie- valismo e agarrando-se antes ao lluminismo, como o nascimento de um novo mundo, um novo mundo em que só o homem governa como Senhor de tudo. Tem- -se chamado Racionalismo a todo este movimento e, como a um se segue outro, diremos: o Rationalismus Vulgarís de Wegscheider; o de Kant e seus seguido res; o das Escolas post-Kantianas; e agora o nosso «Novo Protestantismo», a que devemos ao menos con ceder o elogio de reproduzir o modelo com maravi lhosa fidelidade. Pensadores profundos como Kant, talvez possamos dizer, ainda mais pensadores de mentalidade espiri tual como Rudolfo Eucken, seriam incapazes de ava liar tão nèsciamente a natureza humana se vissem nela apenas o bem. Mas mesmo a percepção da radical depravação da natureza humana não pode libertá-los do círculo fixo de pensamento que afirma a existência da capacidade humana para toda a esfera da obriga AUTOSOTERISMO 47 ção humana como quer que essa capacidade seja arquitectada. «Como é possível que um homem natu ralmente mau se transforme a si mesmo num homem bom», exclama Kant (39), «isso frustra inteiramente o nosso pensamento, porque, como pode uma árvore má dar bom fruto ?» Mas, apesar de compreender a impossibilidade disto, ele acaba por adoptar a solu ção, ou talvez não seja solução, do fraco. «Deve ser- -nos possível tornarmo-nos melhores, mesmo se aquilo que nós somos capazes de fazer for insuficiente, e tudo o que podermos fazer for tomarmo-nos recep tivos de um auxílio mais alto, de natureza inescru tável» (40). Para além desemelhante apelo a um poder místico inescrutável que corre através da vida do homem que se esforça por se ajudar a si mesmo, nem mesmo um Rudolfo Eucken consegue ir. E, por isso, o nosso pensamento moderno só reproduz o antigo Pelagianismo, com um sentido de culpa menos pro fundo e um sentido mais profundo das dificuldades que o mal trouxe ao homem. Acerca da expiação nada se diz; e enquanto esta procura uma maneira de auxi liar, deve ser um auxílio que corre para a alma em resposta e paralelamente às directrizes dos seus pró prios esforços criadores. O espectáculo é ainda pior fora do ambiente das mais profundas filosofias, pois aí reproduzem-se as mais baixas formas do Pelagianismo com toda a in consciência da sua capacidade. A mais característica expressão deste ponto de vista geral é dada, talvez, na alegação corrente de que a parábola do Filho Pródigo engloba não meramente a essência mas a 48 O PLANO DA SALVAÇÃO totalidade do Evangelho. Preciosa como esta parábola é pela sua grande mensagem de que há alegria nos céus por um pecador que se arrepende, quando é des viada do propósito pelo qual ela foi proferida e feita como contendo todo o Evangelho (corruptio optimi péssima) torna-se o instrumento de destruição de todo o edifício do Cristianismo. Não há então expiação nesta parábola, e nem sequer Cristo, na função mais atenuada que poderia atribuir-se possivelmente a um Cristo. Não há graça criadora nesta parábola; e, em verdade, nem Espírito Santo em qualquer função, mesmo a mais ineficaz, que lhe possa ser atribuída. Não há, tão-pouco, nesta parábola, o amor de Deus que procura o pecador: o pai da parábola não presta absolutamente nenhuma atenção ao seu filho errante, mas deixa-o só, e aparentemente não se interessa por ele. Considerada como uma representação pictórica do Evangelho, o seu ensino é unicamente este e nada mais: que quando alguém, inteiramente por sua pró pria resolução, escolhe levantar-se e ir ter com Deus, será recebido com aclamação. É com certeza um evangelho muito lisongeiro. É lisongeiro dizerem-nos que podemos levantar-nos e ir ter com Deus todas as vezes que o queiramos, e que ninguém nos impor tunará por causa disso. É lisongeiro dizerem-nos que quando resolvermos ir ter com Deus podemos esperar uma excelente recepção e nada nos será perguntado. Mas é este o Evangelho de Jesus Cristo ? Todo o ensino de Jesus Cristo se resumirá nisto: que as portas do céu permanecem abertas e que qualquer pessoa que o queira pode entrar por elas em qualquer altura ? AUTOSOTERISMO 49 Este é, contudo, todo o sistema dos nossos modernos teólogos liberais: os nossos Harnacks e Boussets e os seus inumeráveis discípulos e imitadores. «Inumeráveis» discípulos e imitadores, disse, pois, que estes ensinos se espalharam, sem dúvida, por todo o mundo. Erick Schader diz-nos que durante toda a sua vida de professor não conheceu nenhum aluno que não tivesse sido profundamente impressionado, durante mais ou menos tempo, com o facto de ver nas duas parábolas — a do Fariseu e do Publicano em oração no templo e a do Filho Pródigo — que o per dão de Deus não é condicionado por coisa nenhuma e que não há necessidade de Expiação (41). Como se vê é um Pelagianismo que ultra-pelagianiza Pelágio. Este admitia em parte a culpa do pecado e reconhecia também em parte a obra expiatória de Cristo ao fazer a expiação pela dita culpa. Ora esta teologia não admite nada disto. Sem um sentido real de culpa, e sem o mínimo sentimento de falta de capacidade que nos vem do pecado, põe complacentemente o perdão de Deus à disposição de quem quiser dignar-se rece bê-lo das Suas mãos. À visão de Deus implícita nestas opiniões, alguém chamou, com propriedade embora sarcasticamente, «a concepção de Deus como animal doméstico». Assim como vós cuidais das ovelhas para obterdes a lã, e das vacas para obterdes o leite, assim também cuidais de Deus para d’Ele obterdes o per dão. O alcance disto é horrivelmente ilustrado pela história do pobre Heinrich Heine debatendo-se na agonia do seu leito de morte, que ao ser interrogado por uma visita caridosa se tinha esperança de lhe 50 O PLANO DA SALVAÇÃO serem perdoados os seus pecados, replicou com um relance de zombeteira amargura «Porque não! Cer tamente que sim: para isso é que Deus existe». Para isso é que Deus existe ! É assim que a nossa moderna teologia liberal considera Deus. Este não tem senão uma função e só num ponto entra em contacto com o homem: existe para perdoar os pecados. Num espírito semelhante ouvimos soar por toda a parte da Terra em proclamação apaixonada daquilo a que os seus aderentes gostam de chamar um «evan gelho de todo aquele que o quer». Sem dúvida o que se pretende enfatizar é a universalidade da oferta do evangelho. Mas não estamos a ultrapassar as marcas quando parecemos fazer depender a salvação pura mente da vontade humana ? E não deveríamos nós deter-nos na consideração de que se desta maneira parecemos por um lado abrir o caminho da salvação a «todo aquele que o quer», por outro lado abrimo- -lo somente a «todo aquele que o quer ?» E quem há neste mundo de morte e pecado, já não digo mera mente que queira mas que possa querer o bem ? Não é uma verdade eterna que não se colhem uvas dos espinheiros nem figos dos abrolhos ? Que só a árvore boa pode dar bom fruto e que a árvore má dá sem pre, e em qualquer lugar, somente mau fruto ? Não é só o Black Giles de Hannah More, no seu livro «Caçador Furtivo» que pode por acaso achar difícil arrepender-se no momento em que o desejar». De nada serve falar da salvação como sendo para «quem quer que a queira» no mundo de um universal «não quero». Eis aqui o ponto verdadeiramente difícil: AUTOSOTERISMO 51 como e onde podemos nós obter a vontade P Deixemos os outros regozijarem-se com um «evangelho de todo aquele que o quer»: para o pecador que se reconhece como tal e sabe o que é ser pecador, somente bastará um evangelho de «Deus quer». Se o evangelho tem que ser confiado às vontades mortais dos homens pecadores, e não há nada superior ou para além, quem então pode ser salvo ? Como um escritor moderno, que não faz grandes reivindicações para uma ortodoxia especial mas tem algum discernimento filosófico, assinala «o eu que determina é o mesmo eu que é determinado»; «o eu que, de acordo com Pelágio deverá fazer melhorar alguém e o mau eu que necessita ser tornado bom». «A doença reside no querer, não em qualquer parte de nós próprios mas no querer que a vontade pode controlar. Como é que a própria doença pode rea lizar a cura ? (42). O problema situa-se nas nossas von tades: podemos ser bons se quisermos, mas não o queremos; e não podemos começar por querer isto, a não ser que nós assim queiramos começar, isto é, a não ser que nós sempre queiramos isto. «Quem me livrará do corpo desta morte ? Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor». Dizem-me que me arre penda se quero ser perdoado; mas como posso arre pender-me ? Eu só faço o que está errado porque gosto disso e não consigo deixar de gostar disso ou gostar de algo melhor lá porque me dizem para eu assim fazer, nem mesmo que me provem que isso será melhor para mim. Se tenho que ser transformado, algo deve apossar-se de mim e transformar-me» (4S). 52 O PLANO DA SALVAÇÃO «Pode o pêssego renovar a frescura perdida R» Per gunta Cristina G. Rossetti, mais poèticamente, mas com a mesma agudeza pungente: Pode o pêssego renovar a sua frescura perdida, Ou a violeta o seu perdido perfume, Ou a neve manchada tornar-se branca como na noite [tínterior ? O homem não pode alcançar isto, contudo nunca temais: 0 leproso Naamã Mostra-nos o que Deus quer e pode. O Deus que então operou, opera agora aqui; Por isso não deixeis que o opróbrio anuvie a vossa [fronte. Deus que operou então, está a operar agora. O pecador só pode confiar na misericordiosa omni potência de Deus e no Seu amor omnipotente, «Cristo», brada CarlosSpurgeon (44j, «é não só “capaz de salvar” aqueles que se arrependem, mas é também capaz de fazer com que os homens se arrependam; levará aos céus aquele que crê; mas, além disso, tem poder para criar corações novos nos homens e para operar neles a fé. É poderoso para fazer com que o homem que detesta a santidade, a ame, e para cons tranger a dobrar os joelhos diante d’Ele, aquele que despreza o Seu nome. Mas nisto não está tudo ô que Ele é, porque o poder divino se vê igualmente na obra que se segue a estas coisas... Ele é poderoso para conservar puro o Seu povo depois de assim o ter tornado, e para preservá-lo em temor e amor até à consumação da sua existência espiritual no céu». AUTOSOTERISMO 53 Se assim não fosse, a condição do pecador seria desesperada. O pecador só pode esperar numa graça toda-poderosa; pois só esta é capaz de ressuscitar os mortos. De que serve mandar um pregoeiro entre as / 'v p i * -p o r l o r í i l o i v r i n d q « A o n r v v l - r i n y~J r\ / - i / i t ú f f n n abertas; qualquer pessoa que queira pode entrar» ? A pei*gunta real e de premente necessicfefejí; Quem pode dar vida a estes ossos secos ? A^ratóáontra tojctó ̂ o ensino que tenta levar o homá&V-confiar mesmo como podendo re a liz^ ^ u m a coi t^ipiesmo a mais pequenina part^riá^^a salvação^o^ristia- nismo ordena-lhe quç^(|u|raieta intei&@ente a Deus. É Deus e só Detts^qtfetn salva, em cada ele mento do procè^so'/da salva^^Dj'« Se houver, ainda que seja u^sè^ònto», diz:^|pr%e()n com inteligência, que possa«na vçsnm em a ceiestiaKCía nossa rectiaao, ser \da^^’ or nós, estamos perdidos». III SACERDOTALISMO O testemunho consistente da Igreja universal é que a salvação vem de Deus e só de Deus. E por isso a tendência que constantemente se manifesta igual mente em todos os sectores da Igreja, de se conceber a salvação, de uma maueúa ou de outva, wum grau maior ou menor, como vinda do homem, é estigma tizada pelo próprio testemunho oficial de toda a Igreja como um resíduo de paganismo ainda não inteiramente eliminado do pensamento e sentimento daqueles que se declaram e se chamam a si mesmos Cristãos. A reaparição incessante desta tendência, debaixo de uma ou de outra forma, por toda a Igreja, é evidência bastante, contudo, da dificuldade que os homens sentem em preservar na sua pureza, a atri buição cristã da salvação unicamente a Deus. E esta dificuldade intromete-se de uma ou outra maneira por meio da diferença grande e de longo alcance que se levantou nas afirmações elaboradas pela própria Igreja, a respeito do modo divino de operar ao rea lizar a salvação do homem. 56 O PLANO DA SALVAÇÃO Embora se declare que a salvação vem de Deus, que só Ele pode salvar, ensina-se, contudo, numa grande parte da Igreja (modernamente na maior parte), que Deus ao operar a salvação não o faz direc tamente na alma humana, mas indirectamente, isto é. por meio de instrumentos que estabeleceu como meios pelos quais a Sua Graça salvadora é comunicada aos homens. Como estes instrumentos são confiados a mãos humanas para serem administrados por elas, assim se introduz um factor humano entre a graça salvadora de Deus e a sua acção efectiva nas almas dos homens; e este factor humano é, na verdade constituído como factor determinante da salva ção ('''’). Toda a Igreja Protestante, em todas as suas partes componentes, Luterana, e Reformada, Calvinista e Arminiana, se levanta, num protesto apaixonado, contra este sistema sacerdotal, como apropriadamente se lhe chama. Segundo o puro supernaturalismo da salvação, insiste-se que Deus, o próprio Senhor, opera pela Sua graça imediatamente nas almas dos homens e que não faz depender a sal vação de nenhum homem, da fidelidade ou capricho dos seus semelhantes. Como diz o velho John Hooper que condena como «uma opinião ímpia» a noção «que atribui a salvação do homem à recepção de um sacramento externo», «como se o Espírito Santo de Deus, não pudesse ser levado pela fé à consciência arrependida e aflita, excepto sempre que é transpor tado por esse veículo sacramental externo» (46). Em oposição a esta «opinião ímpia» o Protestantismo faz depender o bem estar da alma directa e unicamente SACERDOTALISMO 57 çla Graça de Deus, sem absolutamente quaisquer intermediários, A essência do sacerdotalismo encontra uma expres são cabal no sistema da Igreja de Roma inteiramente desenvolvido e logicamente arrumado. De acordo com este sistema, Deus, o Senhor, nada fez para a salvação do homem directa e imediatamente: tudo o que faz para salvar os homens, fá-lo por mediação da Igreja, à qual depois de a ter investido com os poderes adequados para essa tarefa, confiou toda a obra da salvação (47). «Não será incorrecto dizer», nota o Dr. W. P. Paterson ao expor a doutrina da Igreja Romana acerca deste assunto «que na concepção do Catolicismo Romano o carácter predo minante da religião Cristã está na instituição sobre natural que representa Cristo, a qual leva por diante a Sua obra e actua como mediadora virtual das bên çãos da salvação. A sua vocação ou comissão não é senão o perpetuar da obra do Redentor. Claro que não substitui a obra de Cristo. Pressupõe que Cristo, o Filho Eterno de Deus, assentou o fundamento da Sua obra na Sua Encarnação e na Sua morte expia tória, que todo o poder, autoridade e graça, vêm finalmente d’Ele; e que, assim como todas as bên çãos espirituais procedem d’Ele, também só a Ele pertence toda a glória. Mas na dispensação presente, a Igreja, numa grande escala, tomou sobre si a obra de Cristo. Ela é, num sentido real, a reincarnação de Cristo com o fim de continuar e completar a Sua missão redentora. Através da Sua Igreja continua a realizar as funções de Profeta, Sacerdote e Rei. Ela 58 O PLANO DA SALVAÇÃO perpetua a sua função de Profeta testemunhando a verdade uma vez entregue aos santos, e, interpre tando e determinando, com uma autoridade infalível, a doutrina que tem a mesma importância e firmeza que a Sua própria revelação original. A Igreja é a Sua sucessora na terra no exercício da função sacer dotal. Representa-O tão completamente na Sua fun ção sacerdotal de mediação entre Deus e os homens que, não obstante não haver outro nome dado entre os homens a não ser o de Jesus, pelo qual podemos ser salvos, contudo não há promessa de salvação fora da organização visível de que Ele é o Cabeça invisí vel. Além disso, entende-se que ela O representa como sacerdote sacrificador pela repetição perpétua na Missa do sacrifício que Ele uma vez ofereceu na Cruz. Neste sacrifício divino que é celebrado na Missa, ensina-se (49) «que o próprio Cristo está con tido e imolado duma forma incruenta no altar da cruz; e que este sacrifício é verdadeiramente propi ciatório. E, finalmente, que ela administra o régio poder de Cristo na terra. Tem direito absoluto pois a reivindicar a obediência dos seus membros em todos os assuntos da fé e prática com o direito e dever de punir os desobedientes pela infracção das "suas leis, e de coagir os contumazes». Numa palavra, a Igreja neste sistema é considerada cõmo sendo o próprio Jesus Cristo na sua forma ter rena, e, por conseguinte, sua substituta como objecto próximo da fé dos Cristãos (50). «A Igreja visível» diz Mohler (51), «é o Filho de Deus como aparece, con tinuamente, como sempre se repete a si mesmo e SACERDOTALISMO 59 eternamente renova a Sua Juventude entre os homens em forma humana. É a Sua encarnação perene». É então à Igreja que os homens devem recorrer para encontrarem a salvação; somente através da Igreja e dos seus ritos é que essa salvação é transmitida aos homens; numa palavra, a salvação dos homens é mais atribuída à Igreja do que a Cristo ou à graça de Deus. Somente «por meio dos santíssimos sacra mentos da Igreja», declara-se abertamente (52), é «que toda a verdadeira justiça ou começa ou, tendo come çado, se desenvolve; ou tendo sido perdida é recupe rada».
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