Buscar

RODRIGUEZ, Nelson. Beijos no asfalto

Prévia do material em texto

Beijos no asfalto
INTRODUÇÃO
ANÁLISE DA OBRA LITERÁRIA
Dados biográficos do autor
Nelson Rodrigues nasceu em Pernambuco (1912),
mudando-se com cinco anos para o Estado do Rio de Janeiro, onde
o pai fundou um jornal. Aos 13 anos, já trabalhava na redação,
encarregado das páginas policiais.
Algumas tragédias pessoais marcariam sua vida, talvez
contribuindo para o gosto pelo gênero. Perdeu um irmão,
assassinado dentro da própria redação do jornal; o pai morreu pouco
depois, de desgosto. Em virtude da posição política, o jornal foi
invadido e suas máquinas, todas destruídas. De repente, na miséria,
Nelson e um irmão contraíram tuberculose e tiveram de refugiar-se
em Campos do Jordão. Ali morreu o segundo irmão.
De volta ao Rio, capital federal, Nelson passou a escrever
para teatro e jornais, conseguindo, aos poucos, formar-se e viver
com dignidade do trabalho de escritor.
Características literárias do autor
O autor é um marco divisório na dramaturgia brasileira. Sua
produção estende-se de 1939 (A Mulher sem Pecado) até 1979 (A
Serpente). Como a dramaturgia segue caminho próprio, mais ou
menos, independente da poesia e da prosa, não se pode,
simplesmente, enquadrá-la nos tempos do Modernismo brasileiro.
Os anos dourados foram cenário para a sua obra. A
burguesia brasileira, principalmente nos dois grandes centros, Rio e
São Paulo, vivia uma grande festa, com as
naturais picuinhas políticas. Havia grande
valorização para a fachada: aparente
tranquilidade, religiosidade, segurança e falsa
estrutura familiar sólida. Basicamente contra
isso o autor se levantou, querendo desmascarar
a sociedade, uma espécie de anjo vingador.
Análise da obra O Beijo no Asfalto
Nelson Rodrigues classificou seu livro como tragédia carioca
em três atos. Tragédia é um gênero dramático antigo, que tem como
característica um final doloroso. Inicia-se, em geral, com a prática de
um ato vil por parte do herói; seguem-se dor, sofrimento e busca da
causa para isso; para haver recomposição da vida anterior, vem o
castigo, a morte. P teatro moderno não segue esses aspectos na
íntegra, mas assemelha-se à antiga forma.
Em O Beijo no Asfalto, o herói é Arandir. Ele comete um ato
vergonhoso ao quebrar um tabu da sociedade burguesa: beija, na
boca, um homem que fora atropelado, não se esclarecendo por quê.
O oportunismo de um repórter inescrupuloso faz o herói e toda sua
família sofrerem. Finalmente, ele é assassinado pelo sogro, por
ciúmes ¾ motivo que os outros, provavelmente, jamais saberão.
Nelson Rodrigues trabalha mais as revelações decorrentes
do ato vergonhoso do seu herói. As atitudes da mulher denunciam
não ser tão profundo seu amor pelo marido quanto ela proclamava
(Selminha); a cunhada é apaixonada por Arandir (Dália); o sogro,
homossexual (Aprígio). Isso reforça a ideia de que a família toda,
direta ou indiretamente, participa do ato delituoso.
O leitor está diante de uma peça dramática, destinada,
portanto, à representação. Só assim aceita a forma como é
apresentada. Deve lembrar-se que ela se destina a público mediano
em termos de conhecimento e cultura, para acatar a miniloquência
do texto. Precisa estar, também, previamente, instruído sobre o
gosto pelo grotesco da parte do autor, que desenvolve situações e
personagens que beiram ao surrealismo; não pode ser ingênuo a
ponto de não os considerar possíveis. Rudimentos de psicologia ¾
pelo menos as concepções freudianas ¾ podem ser úteis ao leitor /
espectador para melhor entender a obra de Nelson Rodrigues. Aliese
a tudo isso a conturbada biografia do Anjo Pornográfico e
entende-se melhor sua obra. Como tragédia, pretende, se não
mudar as atitudes, ao menos chamar a atenção para falhas
profundas, chagas horrendas que a sociedade hipócrita prefere não
ver.
Características da obra
Busca de novas formas para o teatro nacional pobre, que se
limitava a copiar e representar obras europeias.
Levantamento de temas desagradáveis que, em geral,
chocavam a sociedade burguesa.
Crítica às instituições e aos valores burgueses.
Fixação pela sexualidade, numa visão bastante freudiana do
tema.
Obsessão pela morte, que o perseguiu sempre e se
manifesta como solução em muitas de suas obras.
Caricaturização dos personagens, tornando-os, muitas
vezes, grotescos.
Frases curtas, reticentes, incompletas por representarem
diálogos, feitas para serem ouvidas e não lidas.
Personagens
Arandir ¾ jovem funcionário de repartição, recém-casado,
ingênuo e aparentemente bondoso.
Aprígio ¾ sogro de Arandir e viúvo.
Amado Ribeiro ¾ jornalista inescrupuloso e oportunista,
ávido por manchetes retumbantes, ainda que forjadas.
Cunha ¾ delegado violento e estúpido, dominado pelo
repórter.
Selminha ¾ mulher de Arandir, ingênua e insegura.
Dália ¾ irmã mais jovem de Selminha, apaixonada pelo
cunhado.
ENREDO
Tudo começa quando Amado Ribeiro assiste a uma cena
inusitada na rua: um rapaz (Arandir) corre até um homem caído junto
ao meio-fio e beija-o na boca. Vê aí a oportunidade de um artigo
sensacionalista para o seu jornal. Dirige-se à delegacia e convence o
delegado a interrogar o autor do beijo. Ele pretende transformar o
episódio em algo que venda seu jornal. Aliado ao chefe de polícia,
força o rapaz a um interrogatório e publica foto e noticiário
escandaloso sobre ele. Arandir é humilhado no serviço; sua mulher,
sequestrada pelo delegado, que a interroga e a deixa nua; os
vizinhos se voltam contra Arandir.
Apavorado, ele foge e esconde-se num hotel.
Paralelamente, ocorre a desestruturação da família. Diante das
notícias e dos boatos, até os familiares de Arandir começam a
acreditar na versão da imprensa. Forçado por Selminha, seu pai,
Aprígio, procura o repórter e o encontra bêbado. A filha acusa o pai
de não gostar do genro.
Arandir revela seu paradeiro à mulher e quer que ela vá ao
seu encontro. Esta, envergonhada dele, nega-se a ir. Sua irmã,
Dália, no entanto, vai até onde está o cunhado, declara seu amor e
decide ficar com ele. Surge o sogro, Aprígio, que expulsa a filha e
também se declara apaixonado pelo genro, confessando ter ficado
morto de ciúmes por vê-lo beijar outro homem. (Arandir alegara
desde o início que só fizera aquilo porque o moribundo lhe pedira e
se sentira na obrigação de atender ao seu último pedido...)
Desvairado, Aprígio atira no genro e o mata.
ANTOLOGIA COMENTADA
PRIMEIRO ATO
(Distrito policial correspondente à Praça da Bandeira. Sala do delegado
Cunha. Este, em mangas de camisa, os suspensórios arriados, com um
escandaloso revólver na cintura. Entra o detetive Aruba.)
ARUBA (sôfrego e exultante) ¾ O Amado Ribeiro está lá
embaixo! (Cunha, que estava sentado, dá um pulo.
Faz a volta da mesa)
CUNHA ¾ Lá embaixo?
ARUBA ¾ Com o comissário. Disse que.
CUNHA Agarrando o detetive) ¾ Arubinha, olha. Você vai
dizer a esse moleque!
ARUBA ¾ Está com fotógrafo e tudo!
CUNHA ¾ Diz a ele, ouviu? Que se ele. Porque ele não me
conhece, esse cachorro! (Amado Ribeiro aparece.
Chapéu na cabeça. Tem toda a aparência de um
cafajeste dionisíaco)
AMADO (abrindo o gesto) ¾ O famoso Cunha!
CUNHA (quase chorando de ódio, e, ainda assim,
deslumbrado com o descaro do outro) ¾ Você?
AMADO ¾ Eu.
CUNHA (furioso) ¾ Retire-se!
AMADO ¾ Cunha, um momento! Escuta!
CUNHA (apoplético) ¾ Saia!
AMADO ¾ Tenho uma bomba pra ti! Uma bomba!
ARUBA (quer puxar Amado pelo braço) ¾ Vem, Amado!
AMADO (desprendendo-se num repelão) ¾ Tira a mão!
CUNHA (arquejante de indignação) ¾ Escuta aqui. Ou será
que você. (fala aos arrancos) Então, você me
espinafra!
AMADO (com cínico bom humor) ¾ Ouve, Cunha!
CUNHA ¾ Me espinafra pelo jornal. E ainda tem a coragem!
AMADO ¾ Com licença!
CUNHA (num berro) ¾ Não dou licença nenhuma! (muda de
tom) Estou besta, besta! Com o teu caradurismo! Tem
a coragem de pôr os pés no meu gabinete! Eu devia,
escuta. Devia, bom! (quase chorando) Por tua causa,
o chefe me chamou!
AMADO ¾ Cunha, deixe eu falar!
CUNHA ¾ O chefe me disse o que não se diz a um cachorro!
Na mesa dele, na mesa, estava a tua reportagem. O
recorte da tua reportagem!
AMADO ¾ Cunha, tenho uma bomba!
CUNHA (sem ouvi-lo) ¾ De mais a mais, vocêsabe, Amado.
O Aruba também sabe. Aquilo que você escreveu é
mentira!
AMADO ¾ Ó Cunha, sossega! O que é que há?
CUNHA (num crescendo) ¾ Mentira, sim, senhor! mentira! Eu
não dei um chute na barriga da mulher! Mentira sua! É
mentira! Dei um tapa! Um tabefe! Assim. O Aruba viu.
Não foi um tapa?
ARUBA (gravemente) ¾ Um tapa!
CUNHA (triunfante) ¾ Um tapa. Ela abortou, não sei por quê.
Azar. Agora o que eu não admito. Não admito, fica
sabendo. Que eu seja esculachado, que receba um
esculacho por causa de um moleque, de um patife
como você! Patife!
AMADO (com triunfal descaro) ¾ Eu não me ofendo!
CUNHA (desesperado com o cinismo) ¾ Pois se ofenda!
AMADO ¾ Acabou?
(...)
CUNHA ¾ Mas...
AMADO ¾Não interrompe! Ou você não percebe? Escuta
rapaz! Esse caso pode ser a tua reabilitação e olha: ¾
eu vou vender jornal pra burro!
CUNHA ¾ Mas como reabilitação?
AMADO ¾ Manja. Quando eu vi o rapaz dar o beijo. Homem
beijando homem. (descritivo) No asfalto. Praça da
Bandeira. Gente assim. Me deu um troço, uma ideia
genial. De repente. Cunha, vamos sacudir esta cidade!
Eu e você, nós dois! Cunha.
CUNHA (deslumbrado) ¾ Nós dois? (Amado dá-lhe nas costas
um tapa triunfal. E começa a rir.
AMADO ¾ Nós dois! Olha: ¾ o rapaz do beijo, sim o que
beijou, está aí embaixo, prestando declarações! (ri
mais forte, apontando com o dedo para baixo) ¾
Embaixo! (primeiro, ri Amado. Em seguida, Cunha o
acompanha. Acaba a cena com a fusão de duas
gargalhadas)
Comentário:
Os diálogos são tensos, entrecortados e os personagens
agitados. Frases incompletas, próprias da linguagem coloquial.
De primeira, já se percebe que o jornalista Amado (Amado
Ribeiro) monta suas notícias como quer.
(Casa de Selminha no Grajaú. Presentes o pai de Selminha, “seu” Aprígio, e
a própria moça. Esta é a imagem fina, frágil de moça, de uma intensa
feminilidade.)
APRÍGIO ¾ Vim só te dar um recado do teu marido.
SELMINHA ¾ Mas entra, papai, entra.
APRÍGIO ¾ Selminha, escuta. Minha filha, o táxi está
esperando.
SELMINHA ¾ Despede o chofer!
APRÍGIO ¾ Escuta!
SELMINHA (para dentro) ¾ Dália! Dália! (para o pai) Eu fico
zangada! (para dentro) Dália!
APRÍGIO (angustiado) ¾ Outro dia... Prometo. Outro dia.
(...)
APRÍGIO ¾ Selminha, ó minha filha! Não faz confusão. Seu
Mario mandou avisar que vem mais tarde, hoje. Mais
tarde. Teve que ir ao distrito.
SELMINHA ¾ Distrito?
APRÍGIO ¾ Calma!
DÁLIA ¾ Por quê?
APRÍGIO ¾ Pelo seguinte. Nada demais. Teu marido assistiu
um desastre. Quer dizer, assistimos. Eu também. Um
desastre horrível, na Praça da Bandeira. Vimos um
lotação passar por cima de um sujeito.
SELMINHA ¾ Morreu?
APRÍGIO ¾ O cara?
DÁLIA ¾ Que coisa chata!
APRÍGIO ¾ Na hora. Morreu. Pau pra burro. Mas enfim! É por
isso que eu...
DÁLIA ¾ Uns criminosos esses lotações. Andam que!
APRÍGIO ¾ Teu marido foi servir de testemunha.
SELMINHA ¾ Mas papai, olha. Hoje eu fiz. Escuta. Fiz aquele
ensopadinho de abóbora. Deixa eu falar. A criada está
de folga e eu fui pra cozinha, papai!
APRÍGIO ¾ Hoje, eu não estou me sentindo bem. Sério. Escuta.
Vamos fazer o seguinte.
SELMINHA ¾ O senhor é amigo-da-onça.
APRÍGIO ¾ Um cafezinho, aceito. Café, topo.
SELMINHA ¾ Dália, faz um fresquinho.
APRÍGIO ¾ Mas depressa que o táxi está esperando.
SELMINHA ¾ Depressa!
DÁLIA ¾ Não demora. Um instantinho. (e então, sozinho com
a filha mais velha, Aprígio anda de um lado pra outro e
vai falando. Sente-se, em tudo o que começou a dizer,
uma certa perplexidade e, mesmo, uma surda irritação)
APRÍGIO ¾ Sabe que teu marido ficou tão. E teve um choque!
Interessante. Ele correu na frente de...
SELMINHA (interrompendo com outra irritação) ¾ Uma coisa,
papai. O senhor sabe que, desde o meu namoro, o
senhor nunca chamou Arandir pelo nome? Sério!
Duvido! Papai! O senhor dizia “seu namorado”. Depois:
¾ “seu noivo”. Agora é “seu marido” ou, então, “meu
genro”. Escuta, papai!
APRÍGIO (meio desconcertado) ¾ Ora, minha filha, ora!
SELMINHA (enfática) ¾ Tenho observado!
APRÍGIO ¾ Você acha então que. Nunca, minha filha! E por
quê?
SELMINHA (triunfante) ¾ Quer fazer uma aposta? Uma aposta?
Quero ver o senhor dizer “Arandir”. Diz: ¾ “Arandir”.
Diz, papai!
APRÍGIO (realmente confuso) ¾ Não tem cabimento e olha: ¾
deixa eu contar. Perdi o fio. Ah! Teu marido correu na
frente de todo o mundo. Chegou antes dos outros.
(com uma tristeza atônita) Chegou, ajoelhou-se e fez
uma coisa que até agora me impressionou pra burro.
SELMINHA ¾ Mas o que foi que ele fez?
APRÍGIO (contido na sua cólera) ¾ Beijou. Beijou o rapaz que
estava agonizante. E morreu logo, o rapaz.
SELMINHA (maravilhada) ¾ O senhor viu?
APRÍGIO (sem ouvi-la e com mais vivacidade do que desejaria)
¾ Você não acha? Não acha que. Eu, por exemplo.
Eu não faria isso. Não faria. Nem creio que outro
qualquer. Ninguém faria isso. Rezar, está bem, está
certo. Mas o que me impressiona, realmente me
impressiona. É o beijo.
SELMINHA (com angústia) ¾ Mas eu até acho bonito!
Comentário:
Observar que o pai de Selminha já veio propenso a denegrir
o genro e a filha não se escandalizou com o beijo, só depois, com a
manipulação da imprensa, ficará contra ele.
Nesta cena ainda, Selminha diz ao pai ser feliz e que a irmã
Dália disse que se morresse, casaria com Arandir.
(Luz sobre o distrito policial. Arandir acaba de ser interrogado. Uma figura
jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atormentado e
puro. Arandir ergue-se no momento em que aparecem, na sala do
comissário, o Cunha e o Amado Ribeiro.)
ARANDIR ¾ Posso ir?
COMISSÁRIO BARROS ¾ Pode.
ARANDIR (recuando, com sofrida humildade) ¾ Então, boa
tarde, boa tarde.
CUNHA ¾ Um minutinho.
ARANDIR (incerto) ¾ Comigo?
CUNHA ¾ Um momento.
BARROS ¾ Já prestou declarações.
CUNHA (entre divertido e ameaçador) ¾ Sei. Agora vai
conversar comigo.
ARUBA (baixo e veemente para Arandir) ¾ O delegado.
AMADO ¾ Senta.
ARANDIR (sentindo a pressão de novo ambiente) ¾ Mas é
que eu estou com um pouquinho de pressa.
(Arandir começa a ter medo. Ele próprio não sabe
de quê)
CUNHA (com o riso ofegante) ¾ Rapaz, a polícia não tem
pressa.
AMADO ¾ Mas senta. (Arandir olha em torno, como um
bicho apavorado. Senta-se, finalmente)
ARANDIR (sem ter de quê) ¾ Obrigado.
BARROS (baixo e reverente, para o delegado) ¾ Ele é
apenas testemunha.
CUNHA ¾ Não te mete. (Arandir ergue-se, sôfrego)
ARANDIR ¾ Posso telefonar?
CUNHA ¾ Mais tarde. (Amado cutuca o fotógrafo)
(...)
CUNHA (exagerando) ¾ Por essas e outras é que a polícia
baixa o pau. E tem que baixar!
AMADO ¾ Cunha, espera! Se você não era nada do cara.
ARANDIR ¾ Nunca vi.
AMADO ¾ Então explica. Como é que você, casado há um
ano. Um ano?
ARANDIR ¾ Quase.
AMADO ¾ Praticamente em lua-de-mel. Em lua-de-mel! Você
larga a sua mulher. E vem beijar outro homem na
boca, rapaz!
ARANDIR (atônito) ¾ O senhor está pensado que...
AMADO (exaltadíssimo) ¾ E você olha. Fazer isso em público!
Tinha gente pra burro, lá. Cinco horas da tarde. Praça
da Bandeira. Assim de povo. E você dá um show! Uma
cidade inteira viu!
CUNHA (aos berros) ¾ Você não perdeu. Você jogou fora a
aliança!
AMADO (furioso) ¾ Escuta! Se um de nós, aqui, fosse
atropelado. Se o lotação passasse por cima de um de
nós. (Amado começa a rir com ferocidade) Um de nós.
O delegado. Diz pra mim? Você faria o mesmo? Você
beijaria um de nós, rapaz? (riso abjeto. Arandir tem um
repelão selvagem)
ARANDIR ¾ Era alguém! Alguém! Que morreu! Que eu vi morrer!
Comentário:
Arandir vai ser sabatinado pelo delegado, sofrendo
insinuações de ser homossexual.
ARANDIR (incoerente) ¾ Escuta. Vi o rapaz morrer, sim. Da
minha idade, mais ou menos. Selminha, ele estava em
cima do meio-fio. Esperando que o sinal abrisse.
(repete) Em cima do meio-fio. De repente, não sei
como foi: ¾ ele perdeu o equilíbrio. Caiu para frente
e... Vinha um lotação a toda velocidade. Bateu no
rapaz, atirou numa distância como daqui ali.
DÁLIA ¾ Gritou?
ARANDIR ¾ O rapaz?
SELMINHA (querendo aplacá-lo) ¾ Meu bem...
ARANDIR ¾ O atropelado não grita. Ou grita? Esse não gritou.
DÁLIA ¾ Era bonito?
ARANDIR (sem responder) ¾ O lotação passou por cima. Mas
morreu logo. Ainda viveu um minuto, talvez.Ou
menos. Um minuto.
SELMINHA ¾ E você que não pode ver sangue.
ARANDIR ¾ Eu corri. Cheguei primeiro que os outros. Me
abaixei, peguei a cabeça do rapaz. Gente assim.
Peguei a cabeça do rapaz e...
SELMINHA ¾ Beijou. (Arandir volta-se, com uma certa ira)
ARANDIR (agressivo) ¾ Você também sabe? (desesperado)
Todo mundo sabe!
11
SELMINHA ¾ Papai contou.
ARANDIR (fremente) ¾ Teu pai. É mesmo! Estava comigo e viu.
(com desespero) Teu pai disse que eu... (muda de
tom) Antes de morrer. O rapaz ainda estava vivo.
(inocente) O interessante é que na polícia só me
falaram nisso!
SELMINHA ¾ Meu bem, agora chega. Descansa um pouco.
ARANDIR (sem ouvi-la) ¾ Dália, a polícia pensa. Ainda está
pensando. E não se convence, Dália. Pensa que eu
conhecia o rapaz. Tomaram meu nome, endereço. Fui
interrogado duas vezes. E vão me chamar outra vez.
DÁLIA ¾ Você conhecia.
ARANDIR ¾ Oh, Dália!
DÁLIA ¾ Nem de vista?
ARANDIR (na sua cólera, apontando para a cunhada) ¾ Era
assim que a polícia perguntava. Nem de vista, nem de
nome? Martelavam. Mas olha! O que foi. O rapaz
estava morrendo. Morrendo junto ao meio-fio. Mas
ainda teve voz para pedir um beijo. Agonizava pedindo
um beijo. Na polícia, o repórter disse que era hora de
muito movimento. Toda a cidade estava ali, espiando.
E viu quando eu...
TREVAS
FIM DO PRIMEIRO ATO
Comentário:
Dália, cunhada de Arandir, era apaixonada por ele.
SEGUNDO ATO
O segundo ato começa com a vizinha Dona Matilde trazendo
para Selminha o recorde do jornal, onde saiu a notícia do
atropelamento e do beijo no asfalto. De malas prontas para morar na
casa da avó. Dália desiste de viajar para continuar com a família –
irá se saber depois que ela ficou para ajudar a paixão de sua vida,
Arandir. Já neste primeiro contato com a versão do jornal sobre o
acontecido, Selminha passa a duvidar do marido e a recusar seus
beijos. Este segundo ato termina com Selminha evitando Arandir. O
espectador já criou sua expectativa: será que ninguém se
posicionará do lado de Arandir?
SELMINHA (numa explosão) ¾ Então que se dane e... (d. Matilde
entra com um jornal na mão)
D. MATILDE ¾ Licença?
SELMINHA ¾ Ah, entre, d. Matilde. (d. Matilde entra e faz um
cumprimento apressado)
D. MATILDE ¾ Bom dia! Bom dia!
DÁLIA (com frívola desenvoltura) ¾ Estou de saída!
D. MATILDE (indicando o jornal) ¾ Já leu?
SELMINHA ¾ O resultado das misses?
D. MATILDE ¾ Não leu?
SELMINHA (já com uma curiosidade nova e inquieta) ¾ Não vi o
jornal!
D. MATILDE (radiante por ser portadora da novidade) ¾ O retrato
do seu marido, d. Selminha!
SELMINHA (ao mesmo tempo que apanha o jornal) ¾ Onde?
DÁLIA ¾ De Arandir?
D. MATILDE (apoplética de satisfação) ¾ Primeira página!
SELMINHA (sôfrega) ¾ É mesmo! (Dália olhando por cima do
ombro da irmã)
DÁLIA (no seu espanto) ¾ Última Hora1!
D. MATILDE (eufórica) ¾ O título!
SELMINHA (lenta e estupefata) ¾ O beijo no asfalto! (muda de
tom) O retrato do atropelado! E aqui o Arandir na
delegacia!
D. MATILDE (melíflua e pérfida) ¾ Aí diz uns troços que!
DÁLIA ¾ Deixa eu ler!
SELMINHA ¾ Dália, não amola!
Comentário:
Diálogos sincopados, muitas rubricas, dão um tom nervoso à
narrativa.
(Trevas sobre as três. Luz na firma, onde Arandir trabalha. O rapaz acaba
de chegar. É cercado pelos colegas.)
WERNECK (com um humor bestial) ¾ Mas então, seu Arandir! O
senhor!
SODRÉ ¾ Você não diz nada pra gente?
ARANDIR (já inquieto) ¾ O que é que há?
WERNECK ¾ Você fica viúvo e não avisa, não participa?
ARANDIR ¾ Isola!
1 Última Hora: um dos mais importantes jornais da época, fundado pelo
jornalista Samuel Wainer (1912-1980). Nelson Rodrigues foi um de seus
colunistas e lá escreveu, por exemplo, A vida como ela é... Próximo ao
governo de Getúlio Vargas, Última Hora mantinha forte oposição ao jornal
Tribuna da Imprensa.
PIMENTEL (batendo-lhe nas costas) ¾ Nem me convidou!
ARANDIR (atônito e meio acuado) ¾ Que piada é essa?
WERNECK ¾ Piada, uma ova! Batata!
SODRÉ ¾ Viúvo, rapaz! (Werneck com as duas mãos apanha
e aperta a de Arandir)
WERNECK ¾ Meus pára-choques!
ARANDIR ¾ Mas qual é a graça? E isso não é brincadeira!
(olhando as caras que o cercam) Não faz assim que eu
não gosto! Werneck, pára, sim? Essas brincadeiras
comigo! (Werneck rompe, com uma boçalidade feroz e
jocunda)
WERNECK ¾ Rapaz! A tua viuvez está aqui! Em manchete!
(Werneck sacode o jornal) Em manchete, rapaz!
ARANDIR (exasperado) ¾ Você pára ou não pára!?
WERNECK (triunfante) ¾ Lê! Lê! Beijo no asfalto! Está aqui! Traz
no jornal! O título é ¾ “Beijo no asfalto”!
ARANDIR ¾ Que jornal?
WERNECK ¾ Aqui. (Arandir apanha o jornal)
ARANDIR (lendo, estupefato) ¾ Beijo no asfalto!
Comentário:
A partir de premissas falsas, a vida de Arandir vira uma
tragédia. As cenas alternam-se entre o emprego e a casa de
Selminha, tudo demarcado pelo jogo de luz.
O final do segundo ato termina com a polícia batendo na
porta de Arandir.
SELMINHA (soluçando) ¾ Oh, cala a boca!
ARANDIR (com um súbito pânico) ¾ Barulho. Está ouvindo?
SELMINHA ¾ Nada.
ARANDIR (recuando) ¾ Abriram o portão. Alguém entrou.
SELMINHA (com surda irritação) ¾ Não é ninguém. (Dália
aparece)
ARANDIR ¾ Oh, Dália.
DÁLIA (surpresa para a irmã) ¾ Chorando por quê?
ARANDIR ¾ Nervosa.
DÁLIA (para Arandir) ¾ Eu não vou mais, Arandir. (para a
irmã) Sua boba! Parece até nem sei! Faz como eu.
Olha! Agora mesmo, eu disse à d. Matilde. Ouviu,
Arandir? Quando eu vinha voltando da igreja, encontrei
a d. Matilde. D. Matilde, essa de. Disse a ela o que não
se diz a um cachorro. Quase que. Disse: ¾ Olha!
Limpe a boca, limpe a boca. E fique sabendo que meu
cunhado é muito mais, mas muito mais homem que
seu marido! (toca a campainha)
ARANDIR (sob o impacto) ¾ Agora estão batendo!
SELMINHA (também em sobressalto) ¾ Dália, vai atender, vai.
Arandir não está.
DÁLIA ¾ Não está?
ARANDIR ¾ Ninguém, pra ninguém!
SELMINHA ¾ Anda. (Dália abandona a sala)
ARANDIR (sôfrego) ¾ Diz que me ama!
SELMINHA (saturada) ¾ Você sabe.
ARANDIR Mas eu queria que você repetisse. Me ama? Você não
é capaz de repetir que me ama? (entrou Dália)
Dália ¾ Polícia!...
TERCEIRO ATO
No terceiro ato já deixa claro desde o início que o “beijo no
asfalto” condenou Arandir à eterna solidão. Selminha é plenamente
convencida pelo delegado que seu marido era amante do
atropelado. Arandir sai de casa e vai se esconder num hotel
ordinário. Sua mulher se recusa a visitá-lo e quem vai é Dália, a
cunhada que se assume apaixonada. Arandir não tem tempo nem de
pensar na declaração de amor de Dália, pois seu sogro Aprígio
empunha um revólver, fala que sempre o amou, e assassina o
genro. Resta à plateia tentar refazer a peça mentalmente, pois o
homossexualismo de Aprígio, revelado na última cena, dá a O Beijo
no Asfalto um sentido completamente novo à peça.
(O delegado Cunha e Amado Ribeiro estão na casa de um amigo, em Boca
do Mato. Entram o investigador Aruba e Selminha. (Esta vem
assustadíssima) Só vê-la, o delegado Cunha, em mangas de camisa, os
suspensórios arriados, um vasto revólver na cinta, vem ao seu encontro.
Exuberante e sórdida cordialidade de cafajeste.)
CUNHA ¾ Tenha a bondade, minha senhora! Tenha a
bondade!
SELMINHA (quase chorando) ¾ O senhor que é o comissário?
CUNHA (numa mensura subserviente) ¾ Delegado!
ARUBA ¾ O doutor!
SELMINHA (fremente) ¾ Eu fui ameaçada! Ameaçada!
CUNHA ¾ Mas minha senhora!
SELMINHA (apontando) ¾ Esse moço me ameaçou!
ARUBA (numa gesticulação de cafajeste) ¾ Ela quis botar
banca! Não queira vir! Resistiu, já sabe!
SELMINHA (ora para um, ora para outro) ¾ Mentira. (para
delegado) Doutor, eu apenas, olha. Apenas perguntei:
¾ “Pra onde o senhor me leva?”
CUNHA (com um descaro grandiloquente) ¾ Aruba! Você
maltratou essa senhora, hem, Aruba?
ARUBA ¾ Não!
SELMINHA (chorando de humilhação) ¾ Disse que. Disse! Que se
eu gritasse, que eu apanhava na boca! E me torceu o
braço. (para o investigador) ¾ torceu!
AMADO (intervindo pela primeira vez) ¾ Minha senhora, isso é
um cavalo! Uma besta!
Comentário:
O repórter Amado, além de manipular fatos, incita o pai de
Selminha, Aprígio a dar um tiro no genro.
O final da peça se dá entre Dália, Arandir e Aprígio.
ARANDIR(gritando) ¾ Você é como os outros. Igual aos outros.
Não acredita em mim. Pensa que eu. Saia daqui. (mais
forte num berro de louco) ¾ Saia! (Aprígio entra)
APRÍGIO ¾ Saia, Dália! (Dália abandona o quarto, correndo, em
desespero. Sogro e genro, face a face) Vim aqui para.
ARANDIR (para o sogro, quase chorando) ¾ Está satisfeito?
APRÍGIO ¾ Vim aqui.
ARANDIR (na sua cólera) ¾ Está satisfeito? O senhor é um dos
responsáveis. Eu acho que é o senhor. O senhor que
está por trás...
APRÍGIO ¾ Quem sabe?
ARANDIR ¾ Por trás desse repórter. O senhor teve a coragem, a
coragem de. Ou pensa que eu não sei? Selminha me
contou. Contou tudo! O senhor fez insinuações.
Insinuações! A meu respeito!
APRÍGIO ¾ Você quer me.
ARANDIR (sem ouvi-lo) ¾ O senhor fez tudo! Tudo pra me
separar de Selminha!
APRÍGIO ¾ Posso falar?
ARANDIR (erguendo a voz) ¾ O senhor não queria o nosso
casamento!
APRÍGIO (violento) ¾ Escuta! Vim aqui saber! Escuta! Você
conhecia esse rapaz?
ARANDIR (desesperado) ¾ Nunca vi.
APRÍGIO ¾ Era um desconhecido?
ARANDIR ¾ Juro! Por tudo que há de mais! Que nunca, nunca!
APRÍGIO ¾ Mentira!
ARANDIR (desesperado) ¾ Vi pela primeira vez!
APRÍGIO ¾ Cínico! (muda de tom com uma ferocidade) Escuta!
Você conhecia o rapaz. Conhecia! Eram amantes! E
você matou. Empurrou o rapaz!
ARANDIR (violento) ¾ Deus sabe!
APRÍGIO ¾ Eu não acredito em você. Ninguém acredita. Os
jornais, as rádios! Não há uma pessoa, uma única, em
toda a cidade. Ninguém!
ARANDIR (com a voz estrangulada) ¾ Ninguém acredita, mas
eu! Eu acredito, acredito em mim!
APRÍGIO ¾ Você, olha!
ARANDIR ¾ Selminha há de acreditar!
APRÍGIO (fora de si) ¾ Cala a boca! (muda de tom) Eu te
perdoaria tudo! Eu perdoaria o casamento. Escuta!
Ainda agora, eu estava na porta ouvindo. Ouvi tudo.
Você tentando seduzir a minha filha menor!
ARANDIR ¾ Nunca!
APRÍGIO ¾ Mas eu perdoaria, ainda. Eu perdoaria que você
fosse espiar o banho da cunhada. Você quis ver a
cunhada nua.
ARANDIR ¾ Mentira!
APRÍGIO (ofegante) ¾ Eu perdoaria tudo. (mais violento) Só não
perdôo o beijo no asfalto. Só não perdôo o beijo que
você deu na boca de um homem!
ARANDIR (para si mesmo) ¾ Selminha!
APRÍGIO (muda de tom, suplicante) ¾ Pela última vez, diz! Eu
preciso saber! Quero a verdade! A verdade! Vocês
eram amantes? (sem esperar a resposta, furioso) Mas
não responda. Eu não acredito. Nunca, nunca, eu
acreditarei. (numa espécie de uivo) Ninguém acredita!
ARANDIR ¾ Vou buscar minha mulher. (Aprígio recua, puxando
o revólver)
APRÍGIO (apontando) ¾ Não se mexa! Fique onde está!
ARANDIR (atônito) ¾ O senhor vai.
APRÍGIO ¾ Você era o único homem que não podia casar com
a minha filha! O único!
ARANDIR (atônito e quase sem voz) ¾ O senhor me odeia
porque. Deseja a própria filha. É paixão. Carne. Tem
ciúmes de Selminha.
APRÍGIO (num berro) ¾ De você! (estrangulando a voz) Não de
minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o
teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim
mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero
que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Por que
beijaste um homem na boca? Mas eu direi o teu nome.
Direi teu nome a teu cadáver. (Aprígio atira, a primeira
vez. Arandir cai de joelhos. Na queda, puxa uma folha
de jornal, que estava aberta na cama. Torcendo-se,
abre o jornal, como uma espécie de escudo ou de
bandeira. Aprígio atira, novamente, varando o papel
impresso. Num espasmo de dor, Arandir rasga a folha.
E tomba, enrolando-se no jornal. Assim morre)
APRÍGIO Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto) Arandir!
(Cai a luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevas.)
FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
É BOM SABER...
· A identificação do espaço não tem qualquer importância na
história. As ações se passam no Rio de Janeiro, cenário comum
das suas obras. Nomes de locais são citados (Praça da Bandeira),
mas sem qualquer ênfase à cor local. O que importa são os
espaços da peça colocados no palco: a delegacia, a casa de
Arandir, a casa da Boca do Mato, que são iluminados
sucessivamente, criando a sensação de deslocamento, técnica
revolucionária para a época.
· Um dos pontos altos do teatro de Nelson é a ação movimentada,
às vezes até exagerada. Os diálogos são tensos, entrecortados e
os personagens agitados, atingindo quase o histerismo. Nas
recomendações aos atores ¾ colocadas entre parênteses no texto
¾ são comuns termos como urrando, agarrando, ofegante,
sôfrego, que bem demonstram a intensidade da ação. Predomina
a ação linear, seqüencial dos fatos.
· O tema principal do livro é o poder da imprensa, quando um
repórter forja uma história que leva a consequências trágicas.
Poderia ser, também, uma acusação contra a leviandade humana,
mostrando que o homem (Aprígio, Selminha, os colegas de
serviço) se deixa levar pelas aparências. Mesmo sem provas,
passa a duvidar dos outros e condená-los. Existe, ainda, um alerta
contra o preconceito, especialmente de ordem sexual: o burguês
não aceita a homossexualidade, mesmo quando, no íntimo,
deseja-a (Aprígio). Pode ser visto também como um libelo contra
as arbitrariedades cometidas pelas autoridades ¾ arrogantes,
prepotentes, amorais e imorais. Não seria demasiado afirmar que
um dos temas centrais é o sexo ou a sexualidade conduzindo as
ações humanas, pois o comportamento de todos os personagens
está ligado a ele: do repórter, do delegado, de Aprígio, de Dália...
· A fragilidade humana também é uma das certezas de Nelson
Rodrigues nesta peça. Não foi necessário muito esforço para que
se mudasse completamente a imagem pública de Arandir: de
marido devotado ele passou, num passe de mágica, a
homossexual enrustido.
· A peça tem um clima de pesadelo. Todas as pessoas que
envolvem Arandir voltam-se contra ele depois da publicação da
foto do beijo no jornal. Werneck, colega de escritório, lidera o coro
dos detratores e começa a constranger Arandir no dia seguinte à
manchete do Última Hora. Dona Judith, a datilógrafa, acha que um
dia um homem parecido com o atropelado foi até o jornal e
transforma sua dúvida em certeza absoluta. A posição da viúva é
ainda pior: com medo de ver publicado no jornal o fato de ter um
amante, testemunha contra Arandir, chegando até mesmo a forjar
um banho dele junto com o seu ex-marido. É justamente através
de seu falso testemunho sobre a ligação dos dois homens que a
polícia consegue a prova que necessitava para dar
verossimilhança à farsa. O detetive Aruba representa o policial
burro, que não consegue acertar uma única vez. E dona Matilde,
vizinha, simboliza o coro dos fofoqueiros, típicas figuras que
adoram bisbilhotar a tragédia alheia.
· A surpresa é um elemento bastante explorado por Nelson
Rodrigues em O Beijo no Asfalto. Desde o início está sugerido que
Aprígio nutre um amor incestuoso pela filha. Os motivos mostrados
à plateia não são poucos: ele nunca chama Arandir pelo nome, ele
evita visitar a filha depois que ela se casou, ele fez Selminha
acreditar nas manchetes do jornal. Quando ele diz que sua
verdadeira paixão é o genro, a plateia toda fica surpresa. A
revelação é quase uma brincadeira de Nelson Rodrigues, uma
deboche à própria norma de vínculos familiares. Como se ele
quisesse mostrar ao público que não é tão simples assim ser
Nelson Rodrigues: para se ter o seu talento, é preciso ter sempre
uma carta escondida na manga.
· Além da paixão de duas irmãs pelo mesmo homem, tema sempre
recorrente em sua obra, Nelson Rodrigues retratou mais uma vez
a imprensa. Criticando o Jornalismo onde ele próprio se criou, o
autor pinta o retrato de uma imprensa sem um mínimo de
qualidade e ética. O que há em comum entre a imprensa de O
Beijo no Asfalto, Viúva, porém honesta e Boca de Ouro é a
presença de jornais que prestigiam o sensacionalismo criminoso
dos seus repórteres, abrindo vastas manchetes a “acontecimentos”
não raramente forjados. A imprensa criada por Nelson Rodrigues
não tem limites no exercício ilegal de seu poder.
· Como tiro de misericórdia, o repórter incita Aprígio, pai de
Selminha,a dar um tiro no genro. Durante toda a história, a plateia
tem a impressão que Aprígio ama a filha como um homem ama
uma mulher. Ele nunca pronunciou o nome do genro e quase não
visitou a filha após o casamento. Na última cena de O Beijo no
Asfalto, porém, ele vai até o quarto do hotel onde Arandir está
hospedado e lhe aponta o revólver. Arandir diz que sempre
desconfiou do ódio dele e que sempre achou muito exagerado o
amor que ele sentia pela filha. Aprígio começa a rir
descontroladamente e diz que seu verdadeiro amor é ele, Arandir,
e não a filha. O verdadeiro homossexual de O Beijo no Asfalto
atira no genro e, com ele nos braços, grita bem alto, pela primeira
vez. Arandir! Arandir!
· Escrita em apenas 21 dias, a peça O Beijo no Asfalto foi inspirada
na história de um repórter do jornal “O Globo”, Pereira Rego, que
foi atropelado por um arrasta-sandália, espécie de ônibus antigo.
No chão o velho jornalista percebeu que estava perto da morte e
pediu um beijo a uma jovem que tentava socorrê-lo.
Nelson Rodrigues mudou “um pouquinho” da história. Na trama
do dramaturgo, o atropelado da praça da Bandeira pede um beijo
a Arandir, figura jovem e de coração puro e atormentado. Amado
Ribeiro, repórter do jornal “Última Hora” retratado por Nelson no
folhetim Asfalto Selvagem, presencia o beijo na boca entre os dois
homens e, junto com o delegado corrupto Cunha, transforma a
história do último desejo de um agonizante em manchete principal.
O sensacionalismo da “Última Hora” muda completamente a
história, retratando Arandir como um criminoso que empurrou o
amante e depois o beijou. A vida do jovem se transforma num
inferno e nem mesmo sua mulher acredita que ele é inocente.
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/o_beijo_no_asfalto

Continue navegando