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Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6583-7 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 8 3 7 Código Logístico 59177 Alfabetização e Letram ento: D esenvolvim ento e Apropriação LU C IAN E RO LIM D E M O U RA VILAIN A alfabetização é um assunto envolto em inúmeras dis- cussões, não apenas na esfera acadêmica, mas também entre os profissionais que se encontram em sala de aula. Essas discussões são abordadas, nesta obra, por meio do estudo do processo de alfabetização, dos conheci- mentos linguísticos essenciais ao professor alfabetizador e da abordagem psicogenética fundamentada na teoria da psicogênese da língua escrita. Esta obra traz também algumas questões práticas que contribuem para otimizar a atuação do professor, tor- nando-a mais significativa. Como o processo de alfa- betização está intimamente relacionado ao letramento, são discutidos alguns dos desafios em formar crianças leitoras e produtoras de texto que sejam protagonistas da própria aprendizagem. Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Luciane Rolim de Moura Vilain IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V745a Vilain, Luciane Rolim de Moura Alfabetização e letramento : desenvolvimento e apropriação / Luciane Rolim de Moura Vilain. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 92 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6583-7 1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Prática de ensino. I. Título. 20-62152 CDD: 372.416 CDU: 37.091.33:028.1 Luciane Rolim de Moura Vilain Especialista em educação infantil pela Universidade Positivo (UP). Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitário de Maringá (UniCesumar) e em Letras – Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Atualmente, é autora e editora de livros didáticos, além de professora dos anos iniciais do ensino fundamental. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Alfabetização: uma palavra, muitas representações 9 1.1 Concepções e métodos de alfabetização 9 1.2 Escrita alfabética como código ou sistema notacional 15 1.3 Aprendizagem inicial da língua escrita 19 2 Psicogênese da língua escrita 26 2.1 As ideias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky 26 2.2 Fases do processo de aprendizagem da escrita 31 2.3 Consequências das abordagens socioconstrutivistas 37 3 Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 41 3.1 Relações entre oralidade, leitura e escrita 42 3.2 Consciência fonológica e consciência fonêmica 46 3.3 Apropriação da ortografia 51 4 A prática alfabetizadora na atualidade 58 4.1 Questões práticas da alfabetização 58 4.2 Ludicidade e significatividade na alfabetização 67 4.3 Planejamento e organização do trabalho pedagógico 70 5 Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 75 5.1 Alfabetização e letramento como eixos norteadores da prática pedagógica 75 5.2 Crianças leitoras e produtoras de textos desde a tenra idade 80 5.3 Avaliação no processo de alfabetização e letramento 87 A alfabetização é um assunto envolto em inúmeras discussões, não apenas na esfera acadêmica, mas também entre os profissionais que se encontram em sala de aula – mesmo aqueles que já têm certa experiência profissional. Tais discussões se devem, em grande parte, aos recorrentes resultados insa- tisfatórios do Brasil em avaliações educacionais, em âmbito nacional e inter- nacional. Trata-se, portanto, de uma questão bastante ampla, que vai muito além da, assim chamada por alguns autores, questão dos métodos, pois não se reduz à simples escolha por um método ou outro. Nesta obra, veremos que o processo de alfabetização exige do professor muitos conhecimentos, e a maneira como esse processo é encarado pode gerar consequências diversas. Analisaremos a abordagem psicogenética, por intermédio do estudo da teoria da psicogênese da língua escrita e do deba- te acerca de suas consequências. Verificaremos quais são os conhecimentos linguísticos essenciais ao professor alfabetizador, além de algumas questões práticas que contribuem para otimizar suas intervenções e tornar sua atua- ção mais significativa. Por fim, debateremos como o processo de alfabetização está intimamente relacionado ao letramento, abordando alguns dos desafios em formar crianças leitoras e produtoras de texto que sejam protagonistas da própria aprendizagem. Bons estudos! APRESENTAÇÃO Alfabetização: uma palavra, muitas representações 9 Alfabetizar é um ato de muita satisfação para os educadores e, ao mesmo tempo, é algo extremamente desafiador. É de conhecimento geral que existem controvérsias no que diz respeito aos métodos de alfabetização, principalmente porque, no dia a dia da convivência entre aluno e professor, as teorias podem acabar não condizendo com a realidade. Neste capítulo, conheceremos alguns dos diversos conceitos e métodos de alfabetização, além de discutirmos as implicações de se adotar ou não determinadas concepções e o olhar de alguns teóricos sobre o tema. O objetivo aqui é trazer questões para refletirmos sobre as diferentes maneiras de se enxergar a escrita alfabética, assim como as consequências de estudar esse processo como sendo a aprendizagem inicial da língua escrita. Alfabetização: uma palavra, muitas representações 1 1.1 Concepções e métodos de alfabetização Vídeo Nesta seção, abordaremos alguns aspectos históricos da alfabeti- zação no Brasil para compreendermos a situação dela na atualidade. Trata-se de um assunto historicamente envolto em dificuldades, fra- cassos, controvérsias e polêmicas. As constantes mudanças de para- digmas, concepções e métodos de alfabetização ao longo do tempo no Brasil, sobretudo a partir das últimas décadas do século XIX, têm sido ensejadas pelos frequentes – e persistentes – baixos índices denuncia- dos por avaliações tanto de abrangência nacional, como o Sistema de 10 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Avaliação da Educação Básica (Saeb) 1 , quanto internacional, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2 . Primeiramente, é necessário conceituarmos o que é um método de alfabetização. De acordo com Soares (2017), essa expressão é comu- mente confundida com cartilhas, manuais didáticos, artefatos pedagó- gicos etc. Entretanto, método de alfabetização, segundo a autora, é um conjunto de procedimentos que devem estar fundamentados em teo- rias e princípios. Eles devem orientar a aprendizagem inicial da leitura e da escrita pela criança, ou seja, a alfabetização. No Brasil, durante décadas, vigorou a controvérsia sobre quais mé- todos seriam mais eficientes: se os métodos sintéticos, que começam a partir de fragmentos linguísticos, ou seja, que partem da letra, do fonema ou da sílaba para chegar à palavra, por exemplo soletração, silabação e métodos fônicos; ou os métodos analíticos (globais), que partem de unidades maiores da língua, como uma frase ou um conto, por exemplo. Entre os métodos analíticos destacam-se a palavração, a sentenciação e o método de contos (CARVALHO, 2008). Tal controvérsia se estendeu até os anos 1980, com sucessivas mudanças de metodo- logias, não apenas noâmbito da alfabetização, mas também na educa- ção como um todo. Exemplos de métodos sintéticos Com base na memorização, o método de soletração combina as letras do alfabeto a estímulos visuais e auditivos. O método de silabação apresenta listas compostas por sílabas de diferentes padrões – é o chamado ba-be-bi-bo-bu. Os métodos fônicos, por sua vez, chamam a atenção do aprendiz para a dimensão sonora da língua, explorando primeiro fonemas (sons) isolados, para depois partir para outras unidades linguísticas. Exemplos de métodos analíticos O método da palavração parte da análise de palavras-chave e da formação de novas palavras com as sílabas. Já o método da sentenciação parte da análise global de frases, para depois analisar palavras e em seguida suas sílabas. O método de contos, como o nome revela, trabalha primeiramente o conto, ou seja, uma breve história que, muitas vezes, é desmembrada em partes menores (facilitando assim sua me- morização), para depois passar à análise das palavras. O Saeb é “um conjunto de avaliações externas em larga escala que permite ao Inep realizar um diagnóstico da educação básica brasileira e de fatores que podem interferir no desempenho do estudante” (BRASIL, 2019c). 1 O Pisa “é uma iniciativa de ava- liação comparada, aplicada de forma amostral a estudantes matriculados a partir do 7º ano do ensino fundamental na faixa etária dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países” (BRASIL, 2019b). 2 Assim como Soares (2017), apenas nesta seção e em outros poucos contextos trataremos a palavra alfabetização como sinônimo de aprendizagem inicial da língua escrita. O conceito é mais complexo e será abordado de modo mais amplo na seção 1.3. Importante Alfabetização: uma palavra, muitas representações 11 Braslavsky (1971 apud CARVALHO, 2008) afirma que os métodos evoluíram e ganharam legitimidade em vias alternativas mistas, os cha- mados métodos analítico-sintéticos, que buscam combinar aspectos de ambas as abordagens teóricas. De acordo com essa concepção, o traba- lho de compreensão do texto é feito paralelamente ao de identificação dos fonemas e explicitação sistemática das relações entre letras e sons. Ainda que guardem diferenças significativas, tanto os métodos sin- téticos quanto os analíticos, mesmo na versão híbrida mencionada no parágrafo anterior, limitam-se à aprendizagem do sistema alfabético- -ortográfico da escrita. De acordo com Soares (2017), isso significa di- zer que, nesses métodos, as palavras são selecionadas especificamente para serem objeto de análise, para serem decompostas em sílabas e fonemas de maneira descontextualizada. Do mesmo modo, as frases e os textos são criados artificialmente para serem decompostos em pa- lavras, sílabas e fonemas. A autora, ao discorrer sobre os métodos sintéticos e analíti- cos, prossegue: Assim, nas duas orientações, o domínio do sistema de escrita é considerado condição e pré-requisito para que a criança desen- volva habilidades de uso da leitura e da escrita, lendo e produ- zindo textos reais, isto é: primeiro, é preciso aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa tornar esses verbos transitivos, atribuir-lhes complementos: ler textos, livros, escrever histórias, cartas... (Soares, 2005). Também o pressuposto, nas duas orien- tações, é o mesmo – o de que a criança, para aprender o siste- ma de escrita, depende de estímulos externos cuidadosamente selecionados ou artificialmente construídos com o único fim de levá-la a apropriar-se da tecnologia da escrita. (SOARES, 2017, p. 19, grifos do original) Em meados dos anos 1980, surgiu o paradigma cognitivista, fun- dado na epistemologia genética de Piaget e difundido no Brasil espe- cialmente por intermédio dos estudos de Emilia Ferreiro. Nesse novo paradigma, oposto à ideia de que a aprendizagem na alfabetização depende da escolha do método, o foco deixa de recair no método e passa a se situar no aprendiz, que constrói progressivamente o princípio alfabético. Com essa nova visão construtivista, passa-se a requerer que sejam proporcionadas ao aprendiz situações em que ele Site No site Plataforma do letramento é possível visualizar o infográfico Das primeiras letras aos multiletramentos: caminhos na história e compreender a evolução das práticas de alfabetização no Brasil, desde o final do século XIX até os dias atuais. Disponível em: http://www. plataformadoletramento.org.br/ hotsite/infografico-letramento/. Acesso em: 20 out. 2019. A teoria de Piaget denomina-se epistemologia genética por ter como objetivo explicar a gênese do conhecimento. Piaget buscou compreender como o ser humano constrói suas estruturas de pensamento, uma vez que ao longo da vida o sujeito passa por diversas etapas de desenvolvimento, que vão desde o menor para o maior em níveis de complexidade. Saiba mais+ 12 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação interaja com materiais reais de leitura, e não forjados especificamen- te para essa finalidade. Em paralelo, segundo Alexandroff (2013), tomou força a corrente sociointeracionista, com a divulgação das ideias de Lev Vygotsky. De acordo com o psicólogo russo, o processo de apropriação da escrita se dá primeiro nas interações sociais, para depois ser internalizado pelo aprendiz. Para essa concepção, toda a aprendizagem, em um primeiro momento, é feita socialmente e, de maneira gradativa, vai se tornando uma construção individual. Com o tempo, a batalha que antes era entre métodos sintéticos e analíticos, denominados métodos “tradicionais”, transformou-se em oposição entre estes e a chamada desmetodização proposta pelo cons- trutivismo, ou seja, a desvalorização do método como elemento deter- minante para a alfabetização (SOARES, 2017). De acordo com Soares (2004), esse novo paradigma relacionado ao construtivismo, apesar de ter trazido importantes contribuições para os estudos da alfabetização, acabou levando a alguns equívocos em sua aplicação. Isso se deu em razão de falsas interpretações e inferên- cias, incluindo uma suposta incompatibilidade entre o paradigma con- ceitual psicogenético e a proposta de métodos de alfabetização. Em outras palavras, tal equívoco de interpretação levou a certa rejeição aos métodos, fossem eles sintéticos ou analíticos, como se a esses mé- todos, ditos tradicionais, se esgotassem todas as possibilidades meto- dológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. Ainda de acordo com a autora, dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do obje- to de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto linguístico constituído, quer se considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais e frequentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetiza- ção, obscureceu-se sua faceta linguística – fonética e fonológica. (SOARES, 2004, p. 11) Decorrente de tais interpretações errôneas, Soares (2004, p. 9) explica que vigorou o entendimento de que, por meio do “convívio intenso com o material escrito que circula nas práticas sociais, ou seja, do convívio com a cultura escrita, a criança se alfabetizaria”. A alfabetização acabou perden- Alfabetização: uma palavra, muitas representações 13 do sua especificidade, pois, nas palavras da referida autora, foi de certa forma obscurecida pelo letramento. Assim, o que era para ser uma mudança de paradigma benéfica para o objetivo de suplantar os resultados negativos em avaliações de níveis de alfabetização da população em processo de escolarização, acabou por agravar esse quadro. Em consequência disso, o movimento pendular de debates e alter- nância entre os métodos de alfabetização ressurgiu, sobretudo com a publicação do documentoPolítica Nacional de Alfabetização (PNA)(BRASIL, 2019d), instituído pelo Decreto n. 9.765 (BRASIL, 2019a). Ao priorizar o desenvolvimento de habilidades de consciência fonêmica e a decodifica- ção de palavras, a PNA põe o método fônico em evidência novamente, fundamentando-se nas ciências cognitivas, o qual até então não mais figurava no discurso acadêmico hegemônico, tampouco nas orientações curriculares – a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e mais recentemente da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), docu- mentos que consideram tanto o alfabetizar quanto o letrar. Soares (2004; 2017) assevera que é um equívoco dissociar alfabeti- zação e letramento porque o ingresso da criança no mundo da escrita ocorre simultaneamente por ambos os processos: alfabetização, isto é, aquisição do sistema convencional de escrita, e pelo letramento, ou seja, o desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema nas práti- cas sociais que envolvem a língua escrita. A solução dada pela autora é, portanto, conciliar os dois processos: o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reco- nhecimento da especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfa- bético e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência, a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento – entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos va- riados de leitura e de escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto a alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou facetas, a natureza de cada uma delas demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias [...]. (SOARES, 2004, p. 16) 14 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Então, de acordo com essa visão, é possível compreender que os métodos, em sua dimensão pedagógica, ou seja, na prática do contexto de ensino, são instrumentos que, sem se configurarem fatores deter- minantes, contribuem para a aprendizagem inicial da língua escrita em suas várias facetas, proporcionando ao aprendiz o exercício simultâneo de múltiplas e diferenciadas competências. Vale ressaltar que Soares (2017) cita as três principais facetas de inserção do aprendiz no mundo da escrita: Letramento Faceta interativa: considera a língua escrita como veículo de interação entre as pessoas, de expressão e de compreensão de mensagens. Faceta sociocultural: diz respeito aos usos, funções e valores atribuídos à escrita em contextos socioculturais. Faceta linguística: diz respeito à aprendizagem do sistema alfabético- -ortográfico. Alfabetização Soares (2017), ao abordar o que ela chama de a questão dos métodos, afirma que não há uma resposta única para essa questão, e sim várias. Se- gundo ela, a questão não se resolve com um método, e sim com múltiplos métodos, o que a levou a substituir a expressão métodos de alfabetização por alfabetizar com método, o que significa “orientar a criança por meio de procedimentos que, fundamentados em teorias e princípios, estimulem e orientem as operações cognitivas e linguísticas que progressivamente a conduzam a uma aprendizagem bem-sucedida da leitura e da escrita em uma ortografia alfabética” (SOARES, 2017, p. 331). Carvalho (2008, p. 19) propõe algumas questões a serem respondi- das quando, nas condições concretas da escola brasileira, o alfabetiza- dor escolhe por um ou outro método dentre os diversos disponíveis: • Em primeiro lugar, qual é a concepção de leitura e de leitor que sustenta o método? Estão combinados os objetivos de alfabetizar e letrar, isto é, a preocupação em ensinar o código alfabético é tão presente quanto o objetivo de desenvolver a compreensão de leitura? São previstas maneiras de sistematizar os conheci- mentos sobre as relações entre letras e sons? Há interesse em No vídeo Métodos de alfabe- tização, publicado pelo Canal Futura, podemos assistir à entrevista em que a professora Magda Soares (UFMG) responde a questionamentos sobre os métodos ideais para alfabetizar e comenta os desafios de ensi- nar em múltiplas linguagens. Disponível em: https://youtu. be/mAOXxBRaMSY. Acesso em: 20 out. 2019. Vídeo Alfabetização: uma palavra, muitas representações 15 motivar os aprendizes para gostar de ler? • A fundamentação teórica do método é conhecida e faz sentido? • As etapas ou procedimentos de aplicação são coerentes com os fundamentos do método? • O material didático é acessível, simples e de baixo custo? • Há evidências de que o método foi experimentado com êxito em um número significativo de turmas, em contextos escola- res diferentes? • O que dizem os professores e pesquisadores sobre a aplicação e os resultados? Ainda segundo Carvalho (2008), se as respostas encontradas forem satisfatórias, há possibilidade de que o método escolhido (se bem apli- cado) proporcione bons resultados. Afinal, mais do que se preocupar se o método escolhido é eficaz ou não, o professor precisa estar ciente de seus objetivos e seguro de suas opções metodológicas – o que por si é a própria confirmação de que vai obter êxito em sua missão de mediar as aprendizagens no processo de alfabetização. Segundo Magda Soares, o que são os métodos de alfabetização? Atividade 1 1.2 Escrita alfabética como código ou sistema notacional Vídeo Diversos autores, como Magda Soares e Artur Gomes de Morais, postulam a preferência da expressão sistema notacional para se referir à escrita alfabética, em detrimento de palavras como código, decodificar e codificar. Esses especialistas acreditam que essas três últimas trans- mitem uma ideia errônea e simplificada acerca do trabalho cognitivo que o aprendiz precisa fazer para se alfabetizar (MORAIS, 2012). Soares (2017, p. 46) elucida essa questão da seguinte forma: Na verdade, um código é, em seu sentido próprio, um sistema que substitui (como o código Morse, a escrita em Braille) ou esconde (como códigos de guerra, criados para garantir a se- gurança de comunicações) os signos de um outro sistema já existente – por exemplo, é possível criar um código para subs- tituir ou esconder os grafemas do sistema alfabético por outros signos. Consequentemente, se considera-se seu significado li- teral, o verbo codificar denota a utilização de um sistema de sinais ou sinos que substituem os grafemas do sistema alfa- bético, e o verbo decodificar denota, literalmente, a decifração de sinais ou signos traduzindo-os para o sistema alfabético. 16 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Assim, este, o sistema alfabético, é o sistema primeiro, não é um sistema de substituição de outro preexistente – não é um código, a não ser que se considerasse que os grafemas “substi- tuem” os sons da fala, o que não é linguisticamente verdadeiro: os grafemas representam os sons da fala, e o sistema de escrita alfabético foi inventado como um sistema de representação, não como um código. (SOARES, 2017, p. 46, grifos do original) A questão central é, portanto, refletir sobre o que é a escrita alfa- bética e o seu aprendizado. É necessário pensar sobre aquilo que se deseja registrar por meio da escrita alfabética: o significado da palavra ou a sua sequência de sons? O aprendiz não precisa somente memori- zar a letra e seu respectivo som, mas também compreender o que esse sistema registra no papel, quais são os significados ali presentes. Abordando as consequências práticas de se adotar uma ou ou- tra visão sobre a língua escrita, Ferreiro (2001) nos traz importantes ensinamentos a esse respeito. Para ela, se a escrita é vista como um código que transcreve as unidades sonoras em unidades gráficas,é evi- denciada apenas a discriminação perceptiva (visual e auditiva). Como consequência, basta realizar exercícios de discriminação para treinar a leitura e a escrita, pois a linguagem é reduzida a um amontoado de sons, anulando-se o signo linguístico 3Com base nos trabalhos de Ferdinand de Saussure, Emilia Ferreiro concebe o signo linguístico como a união indissolúvel entre significante (imagem acústica) e significado (conteúdo semântico) – por exemplo, a palavra cadeira (significante) e o conceito de cadeira (significado). 3 ao dissociar o significante sono- ro do significado. Por outro lado, se a aprendizagem da língua escrita é concebida como a compreensão do modo de construção de um sistema de re- presentação, Ferreiro (2001) assevera que a questão central é justa- mente compreender a natureza desse sistema de representação. Pois, ao compreender características do sistema de escrita (em vez de rea- lizar treinos de sons isolados e sem sentido), o aprendiz se torna cada vez mais apto a aplicar esse conhecimento nas mais variadas situações de contato com a língua escrita. Isso significa que o aprendiz se torna capaz de realizar abstrações, estendendo o que aprendeu a situações nunca vistas antes. Por exemplo, se ele sabe que gato se escreve com a sílaba inicial ga, consegue identificar que é preciso selecionar as letras g e a ao reconhecer que a palavra galo começa com essa mesma sílaba. De acordo com as premissas de Morais (2012), é necessário que o professor auxilie as crianças desde cedo a entenderem as propriedades do sistema alfabético e tenha sempre em mente que a consciência fo- nológica exerce um papel de destaque na caminhada da alfabetização. Por que a escrita alfabética deve ser considerada um sis- tema notacional e não apenas um código? Atividade 2 Alfabetização: uma palavra, muitas representações 17 O autor acredita que o desenvolvimento da escrita alfabética envolve um trabalho conceitual complexo, geralmente desconsiderado pelos métodos tradicionais de alfabetização. Cada criança reconstrói em sua mente o sistema alfabético. Usamos o termo reconstrução, pois não se trata de inventar um novo sistema ou de descobrir, pois esse último termo está vinculado à ideia errônea de que a criança deve descobrir tudo sozinha. A visão tradicional de alfabetização contempla a escrita como um simples código da língua oral, pressupondo que o aluno aprende por repetição e memorização. Acerca disso, ao comentar especificamente sobre os métodos fônico e silábico, Morais (2012) argumenta: Os dois métodos têm, portanto, uma visão adultocêntrica, isto é, enxergam o funcionamento infantil como idêntico ao adulto. Ambos partem do pressuposto de que as crianças, naturalmen- te e sem dificuldades, já pensariam, desde cedo, que as letras “substituem sons das palavras que pronunciamos”. Essa visão simplista é o que justificaria a solução de, simplesmente, trans- mitir-lhes, de forma pronta, as informações sobre correspondên- cias som-grafia. (MORAIS, 2012, p. 31) Assim, para os adeptos dos métodos tradicionais de ensino, uma boa cartilha e um plano de ensino bem controlado são a garantia para uma alfabetização satisfatória – e por essa razão são chamados de associacionistas ou empiristas. Porém, isso só funcionaria se a criança estivesse no estágio de prontidão para, em seguida, receber os ensi- namentos que lhe seriam transmitidos em doses homeopáticas. De acordo com essa concepção, a escrita alfabética seria reduzida a um código, o qual, para ser aprendido, dependeria de treinos e repetições das formas gráficas e seus respectivos sons. Morais (2012), recorrendo à teoria da psicogênese da língua escrita 4 Desenvolvida por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, essa teoria afirma que as crianças trazem consigo uma concep- ção sobre a escrita, e que, portanto, não procede a ideia de que os aprendizes precisam estar prontos (ter prontidão) para se alfabetizar. 4, ressalta que é necessário reconhecer que o aprendiz da escrita alfabéti- ca não tem na sua mente as propriedades do sistema de maneira pron- ta, dada ou disponível. Ele ainda não sabe como as letras funcionam e tem sobre a escrita uma visão diferente da que os adultos têm. É por isso que, em uma etapa inicial, não faz sentido ficar pronunciando fonemas isolados e repetindo a leitura de sílabas e palavras que comecem com determinado fonema. Desse modo, de acordo com a perspectiva psicogenética, o aprendiz precisa compreender as propriedades do alfabeto como sistema no- De acordo com a perspectiva associacionista/empirista, o mé- todo é fator determinante para o sucesso da alfabetização, uma vez que considera que o apren- diz adquire os conhecimentos por meio de transmissão, repetição e memorização. Saiba mais+ 18 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação tacional, para que possa dominar o sistema de escrita alfabética (SEA) (MORAIS, 2012). Nesse sentido, é sempre importante que o professor tenha em mente quais são as propriedades desse sistema (Figura 1) que o aprendiz precisa reconstruir, com a ajuda do professor por meio do ensino sistemático, para se tornar alfabetizado. Figura 1 Propriedades do sistema de escrita alfabética Escreve-se com letras que não podem ser inventadas, que têm um repertório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos. As letras têm formatos fixos e pequenas variações que produzem mudanças em sua identidade (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados (P, p, P, p). A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada. Casa ≠ Saca. Uma letra pode se repetir no interior de uma palavra e em diferentes palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras compartilham as mesmas letras. Nem todas as letras podem ocupar certas posições no interior das palavras, como a letra n antes de p e b, por exemplo, e nem todas as letras podem vir juntas de quaisquer outras. As letras notam ou substituem a pauta sonora das palavras que pronunciamos e nunca levam em conta as características físicas ou funcionais dos referentes que substituem. Alfabetização: uma palavra, muitas representações 19 As letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que pronunciamos. As letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um valor sonoro, como a letra s, e certos sons, como /ç/, poderem ser notados com mais de uma letra, ss, como em posso. Além das letras, na escrita de palavras usam-se, também, algumas sinais (acentos) que podem modificar a tonicidade, omo em ô e ó, ou o som das letras ou sílabas onde aparecem. As sílabas podem variar quanto às combinações entre consoantes e vogais, mas a estrutura predominante no português é a sílaba CV (consoante-vogal), onde todas as sílabas contêm, ao menos, uma vogal. Fonte: Elaborada pela autora com base em Morais, 2012, p.51. Com base nessas propriedades, fica claro que um novo conhecimen- to do sistema alfabético não emerge simplesmente do mundo exterior, a partir das informações transmitidas pelo professor. Tal conhecimen- to “pressupõe um percurso evolutivo, de reconstrução, no qual a ativi- dade do aprendiz é o que gera, gradualmente, novos conhecimentos rumo à ‘hipótese alfabética’” (MORAIS, 2012, p. 52). Portanto, classificar o sistema de escrita como um código, portanto, além de um equívoco, trata-se de um reducionismo, pois não leva em conta toda a complexidade e o desafio que a escrita representa para o aprendiz. 1.3 Aprendizagem inicial da língua escrita Vídeo Em virtude do desenvolvimento social, cultural, econômico e políti- co pelo qual o Brasil passou durante o século XX, os limites do ensino e aprendizagem da língua escrita foram se ampliando gradativamente. Isso ocasionou a introdução, na década de 1980, do conceito de letra- mento, que diz respeito às práticas sociais da leitura e da escrita. 20 Alfabetização e letramento:desenvolvimento e apropriação Ao comentar a respeito, Soares pontua: Surge então o termo letramento, que se associa ao termo alfabe- tização para designar uma aprendizagem inicial da língua escrita entendida não apenas como a aprendizagem da tecnologia de escrita – do sistema alfabético e suas convenções –, mas também como, de forma abrangente, a introdução da criança às práticas sociais da língua escrita. (SOARES, 2017, p. 27, grifo do original) Dessa maneira, a expressão aprendizagem inicial da língua escrita é abrangente e tem sido usada por diversos teóricos para designar a práti- ca que considera os processos de alfabetização e letramento de maneira simultânea e indissociável, ainda que mantenham suas especificidades. Pode-se considerar que tal expressão, por sua amplitude, abarca as três facetas de inserção no mundo da escrita, já mencionadas ante- riormente: 1) a faceta linguística, que diz respeito à aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico; 2) a faceta interativa, que considera a língua escrita como veículo de interação entre as pessoas, de expres- são e de compreensão de mensagens; e 3) a faceta sociocultural, que se refere aos usos, funções e valores atribuídos à escrita em contextos socioculturais. A primeira faceta se refere à alfabetização, a segunda e terceira são relativas ao letramento e as três, em conjunto, formam um todo que se denomina aprendizagem inicial da língua escrita. Ainda que mantenham contato com a língua escrita antes de atingi- rem a idade escolar, as crianças geralmente ingressam na escola sem entender que escrevemos com letras e que as letras representam sons. É necessário, pois, ensinar essas relações a elas, o que nos faz questio- nar: Quando começar o ensino sistemático do sistema de escrita alfa- bética? Existe uma idade certa para alfabetizar? Iniciamos a resposta a essas indagações mencionando alguns mar- cos legislativos importantes: • A Lei n. 11.274/2006 alterou diversos artigos da Lei n. 9.394/1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional. Com essa alteração, a du- ração do ensino fundamental passou de oito para nove anos, com matrícula obrigatória das crianças a partir dos seis anos de idade. • O Pacto Nacional para Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) foi criado em 2012 com o objetivo de fornecer formação docente e Alfabetização: uma palavra, muitas representações 21 garantir que todas as crianças soubessem ler e escrever até os 8 anos, ou seja, ao concluir o 3º ano. • A meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE), implementado pela Lei n. 13.005/2014, prevê a alfabetização de todas as crian- ças até o fim do 3º ano do ensino fundamental. • A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê a alfabetização nos dois primeiros anos do ensino fundamental. • A Política Nacional de Alfabetização (PNA) tem como uma de suas diretrizes a priorização da alfabetização no 1º ano do ensi- no fundamental. De acordo com a BNCC (BRASIL, 2017), mesmo que a criança par- ticipe de diferentes práticas letradas desde o nascimento e nos anos que passa na educação infantil, é nos dois primeiros anos do ensino fundamental que há a expectativa de alfabetizá-la de fato. O referido documento afirma que nesse período a alfabetização deve ser o foco da ação pedagógica, com o ensino do alfabeto e da mecânica da escri- ta/leitura. Assim, conforme a BNCC, para que alguém se torne alfabeti- zado, deve haver: o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos fonemas do português do Brasil e de sua organização em segmentos so- noros maiores como sílabas e palavras) e o conhecimento do al- fabeto do português do Brasil em seus vários formatos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além do estabe- lecimento de relações grafofônicas entre esses dois sistemas de materialização da língua. (BRASIL, 2017, p. 88) Ao se examinar a parte da BNCC que se refere à educação infantil, é possível encontrar objetivos de aprendizagem como os exemplificados no quadro a seguir: Quadro 1 Objetivos de aprendizagem (4 anos a 5 anos e 11 meses). Campo de experiências “escuta, fala, pensamento e imaginação” Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento Crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses) (EI03EF03) Escolher e folhear livros, procurando orientar-se por temas e ilustrações e tentando identificar palavras conhecidas. (EI03EF05) Recontar histórias ouvidas para produção de reconto escrito, tendo o professor como escriba. (Continua) 22 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Campo de experiências “escuta, fala, pensamento e imaginação” (EI03EF06) Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa. (EI03EF08) Selecionar livros e textos de gêneros conhecidos para a leitura de um adulto e/ou para sua própria leitura (partindo de seu repertório sobre esses textos, como a recuperação pela memória, pela leitura das ilustrações etc.). (EI03EF09) Levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e textos, por meio de escrita espontânea. Fonte: Brasil, 2017, p. 47-48. Ao ler tais objetivos, que se destinam a crianças que estão concluin- do a educação infantil, percebemos claramente a onipresença do le- tramento. Não há, porém, nenhum indício de ensino sistemático do funcionamento do sistema de escrita. Por outro lado, essa sistematização fica muito clara em diversas ha- bilidades apresentadas para o 1º ano do ensino fundamental. É pos- sível verificar, no Quadro 2 a seguir, as habilidades relacionadas às convenções da escrita e à correspondência entre fonemas e grafemas. Quadro 2 Objetivos de aprendizagem (1º ano do ensino fundamental). Práticas de linguagem Objetos de conhecimento Habilidades 1º ano Leitura/escuta (compar- tilhada e autônoma) Protocolos de leitura (EF01LP01) Reconhecer que textos são lidos e escritos da esquerda para a direi- ta e de cima para baixo da página. Escrita (compartilhada e autônoma) Correspondência fonema-grafema (EF01LP02) Escrever, espontaneamente ou por ditado, palavras e frases de forma alfabética – usando letras/grafemas que representem fonemas. Análise linguística/semió- tica (Alfabetização) Construção do sistema alfa- bético (EF01LP05) Reconhecer o sistema de es- crita alfabética como representação dos sons da fala. Fonte: Brasil, 2017, p. 96-97. Importantes teóricos da área da alfabetização, como Morais (2012), defendem que, para o enfrentamento da desigualdade existente na educação brasileira, é necessário que as escolas, ao fim da educação infantil, disponibilizem um ensino que permita aos alunos não apenas conviver e desfrutar diariamente de práticas de leitura e produção de texto, mas também refletir sobre as palavras, brincando com suas di- Alfabetização: uma palavra, muitas representações 23 mensões sonora e gráfica. Essa reflexão, porém, se dá sem iniciar o en- sino explícito e sistemático das relações fonema-grafema, o que deve ficar reservado ao ensino fundamental. Essa opção visa respeitar as características dos alunos da educação infantil, assegurando-lhes o direito de conviver com a escrita e de refle- tir sobre ela. Assim, de acordo com Morais (2012): desde o final da Educação infantil, as crianças podem ser aju- dadas a desenvolver uma série de conhecimentos sobre aspec- tos conceituais e convencionais da escrita alfabética. A reflexão sobre a dimensão sonora das palavras, apoiada em sua notação escrita, de modo a promover determinadas habilidades de cons- ciência fonológica, nos parece a estratégia principal [...]. O traba- lho com palavras estáveis, como o nome próprio, e a prática de montagem e desmontagem das palavras, com o alfabeto móvel, também têm se revelado boas alternativas para auxiliá-las a avançar na apropriação do SEA [...]. A priorização de atividades que enfoquem palavras, obviamen- te, não implicaria perdermos de vista que queremosensinar o sistema alfabético e letrar, ao mesmo tempo, sempre. (MORAIS, 2012, p. 117-118) A professora Magda Soares, que em 2006 idealizou o projeto Alfa- letrar, cujo objetivo é promover ações para alfabetização em todas as escolas da rede municipal de Lagoa Santa (MG), também defende a al- fabetização e o letramento desde a educação infantil, ensejado a partir de atividades lúdicas – por exemplo, cantigas e parlendas. Desde que feito com método, como observamos no item 1.1, o pro- fessor pode contribuir para a aprendizagem da língua escrita pela crian- ça desde a educação infantil. Soares afirma que as crianças chegam às instituições educativas com diversos conhecimentos e cabe a tais insti- tuições “dar prosseguimento a esses processos, pois seria prejudicial ao desenvolvimento e aprendizagem da criança interrompê-los, impedi-los, correndo o risco de fazê-los retroceder” (SOARES, 2017, p. 343). O professor, portanto, consciente de todos os processos envolvidos na aprendizagem inicial da língua escrita, pode e deve realizar ações sistemáticas no sentido de fazer seus alunos despertarem para a leitu- ra e para a escrita desde a educação infantil. Dessa forma, ele contribui para que esse processo se consolide posteriormente, de maneira pro- gressiva, célere e tranquila. No vídeo Leitura e escrita na educação infantil, publicado pela Nova Escola, Emilia Ferreiro, em entrevista concedida em 2013 à especialista brasileira em alfabetização Telma Weisz, comenta o que e como as crianças podem aprender na educação infantil sobre leitura e escrita. Disponível em: https://youtu. be/0YY7D5p97w4. Acesso em: 20 out. 2019. Vídeo Por que alguns autores preferem usar a terminologia aprendiza- gem inicial da escrita em vez de alfabetização? Atividade 3 24 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente, a forma de enxergar o processo de ensino e aprendi- zagem da leitura e da escrita passou por diversas transformações, acar- retando alterações nas políticas e principalmente nas práticas escolares. Essas transformações vão desde a visão de alfabetização como acú- mulo de informações transmitidas pelo professor e assimiladas passiva- mente pelo aprendiz, até a visão que revela a postura ativa do aprendiz, como alguém capaz de refletir e criar hipóteses sobre o sistema de escri- ta; desde a concepção desta como código até sua concepção como siste- ma notacional. Contudo, ainda hoje parece haver um descompasso entre a teoria e a prática das salas de aula. Por se tratar de um fenômeno que, segundo Soares (2004), tem muitas facetas, o ensino e aprendizagem da língua escrita demanda metodolo- gias específicas que precisam ser articuladas pelo professor alfabetizador. Assim, seu papel deve ser o de mediador desse processo, acompanhando a criança na construção de suas hipóteses de escrita, na reflexão sobre o sistema alfabético e na compreensão de suas propriedades. Pautando-se pelas determinações legais, o professor deve estar atento aos conhecimentos que as crianças já trazem sobre o funciona- mento do sistema de escrita e ajudá-las a avançar rumo à aquisição da escrita convencional. REFERÊNCIAS ALEXANDROFF, M. C. Retomando o fio da meada: a história dos métodos de alfabetização no Brasil. Plataforma do letramento, 2013. Disponível em: http://www.plataformadoletramento. org.br/download/c52c5ef42c0ad85ebe21de23d2d8a31f.pdf. Acesso em: 26 out. 2019. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394. htm. Acesso em: 10 dez. 2019. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. 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Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). 2019b. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/pisa. Acesso em: 6 out. 2019. BRASIL. Ministério da Educação. Inep. Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). 2019c. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/educacao-basica/saeb. Acesso em: 6 out. 2019. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização. 2019d. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ images/banners/caderno_pna.pdf. Acesso em: 9 dez. 2019. CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. Trad. de Horácio Gonzalez et al. 24 ed. São Paulo: Cortez, 2001. MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012. SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, jan./fev./mar./abr. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ rbedu/n25/n25a01.pdf/. Acesso em: 16 out. 2019. SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2017. GABARITO 1. De acordo com Soares, a expressão método de alfabetização se refere a um conjunto de procedimentos que devem estar fundamentados em teorias e princípios, os quais devem orientar a aprendizagem inicial da leitura e da escrita pela criança, e não cartilhas, manuais didáticos, artefatos pedagógicos etc. 2. Porque o sistema alfabético não é um sistema de substituição de outro preexistente, como ocorre com o código Morse ou a escrita em Braille. Seria um código se considerássemos que os grafemas substituem os sons da fala, o que não é linguisticamente verdadeiro: os grafemas representam os sons da fala e, portanto, trata-se de um sistema de representação ou um sistema notacional. 3. A terminologia aprendizagem inicial da escrita é defendida por diversos autores por ser mais abrangente e designar a prática que considera os processos de alfabetização e letramento de modo simultâneo e indissociável, ainda que esses dois processos mantenham suas especificidades. 26 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Durante muitos anos, no Brasil, as discussões relacionadas à área da alfabetização giravam em torno da adoção de métodos sintéticos e analíticos, cujas abordagens se diferenciam no que diz respeito ao ponto de partida – seda parte para o todo (métodos sintéticos) ou do todo para a parte (métodos analíticos). Porém, foi somente a partir da década de 1980 que novas pesquisas entraram em cena, trazendo novos entendimentos para os estudos do processo de alfabetização. O objetivo deste capítulo é apresentar esses estudos sobre a abordagem psicogenética de aquisição da língua escrita e debater suas implicações pedagógicas. Psicogênese da língua escrita 2 2.1 As ideias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky Vídeo Na apresentação da edição brasileira do livro Psicogênese da lín- gua escrita, a pesquisadora brasileira Telma Weisz relata que os es- tudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky representaram um divisor de águas no cenário educacional brasileiro e, em especial, na história da alfabetização. Segundo Weisz (1999, p. vii), essa obra “documenta uma investigação que tornou possível, pela primeira vez, a descrição do processo de aquisição da língua escrita”. As ideias de Ferreiro e Teberosky chegaram ao Brasil em 1984 e transformaram o entendimento até então preponderante – que des- considerava a atividade do aprendiz e questionava apenas como ensi- nar e qual o melhor método de alfabetização – em uma percepção que passou a dar importância para o papel do aluno, questionando como a criança aprende. Psicogênese da língua escrita 27 É preciso ressaltar que não se trata de um método de alfabetização, e sim de uma complexa pesquisa que desencadeou uma revisão sobre como enxergamos a criança, colocando-a no centro do processo de aprendizagem, e como ela se relaciona com a língua escrita. Ferreiro e Teberosky (1999) fazem duras críticas aos métodos tradi- cionais de alfabetização e à forma como a escola tem tratado as crian- ças das classes populares, principalmente quando fracassam. Segundo as pesquisadoras, a escola esquece que a criança já possui conceitos sobre a escrita, mesmo antes da escolarização. As psicolinguistas asseveram que os métodos sintéticos e analíticos, ao darem ênfase às habilidades perceptivas do aprendiz, descuidam da competência linguística da criança e das suas capacidades cognosciti- vas. Por isso, as autoras trazem diversos contrapontos a tais métodos, chamados tradicionais, e aos estudos relacionados à linguagem infantil, que, até então, concentravam-se na quantidade e na variedade de pa- lavras utilizadas pela criança. Segundo as autoras, Nenhum conjunto de palavras, porém, por mais vasto que seja, constitui por si mesmo uma linguagem: enquanto não tivermos regras precisas para combinar tais elementos, produzindo ora- ções aceitáveis, não teremos uma linguagem. Precisamente, o ponto crítico no qual os modelos associacionistas 1 fracassam é este: como dar conta da aquisição das regras sintáticas? Hoje em dia, está demonstrando que nem a imitação nem o reforço seletivo – os dois elementos centrais da aprendizagem associati- va – podem explicar a aquisição das regras sintáticas. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 24) Ferreiro e Teberosky (1999) prosseguem expondo que, em realida- de, o que existe é uma criança que não espera passivamente, e sim que procura de maneira ativa compreender a natureza da linguagem e que constantemente formula e testa hipóteses, busca regularidades e cria sua própria gramática. O artigo Emilia Ferreiro, a estudiosa que revolucionou a alfabetização, do autor Márcio Ferrari, publicado na revista Nova Escola, em 1º de outubro de 2008, apresenta uma breve biografia sobre a psicolinguista argentina Emilia Ferrei- ro, considerada a estudiosa de maior influência sobre a educação brasileira nos últimos 30 anos. Acesso em: 6 jan. 2020. https://novaescola.org.br/conteudo/338/emilia-ferreiro-estudiosa-que-revolucionou-alfabetizacao Artigo A obra Psicogênese da lín- gua escrita foi um marco para a educação e você pode aprender muito com ela. FERREIRO, E.; TEBE- ROSKY, A. Porto Alegre: Artmed, 1999. Livro Nos modelos associacionistas, o método é considerado fator determinante no processo de aprendizagem da língua escrita. 1 28 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Exemplo disso é o fato de ser comum ouvirmos de crianças na faixa etá- ria entre dois e três anos construções como “eu fazi” (em vez de “eu fiz”) e “eu cabo” (em vez de “eu caibo”). De acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), situações como essas, que são classificadas como “erros” na visão tradicio- nal, motivam a análise da natureza de tais equívocos, pois é um comporta- mento recorrente que as crianças tratem todos os verbos como se fossem regulares, em uma tentativa de parametrizar conjugações verbais. Ainda de acordo com as autoras: Uma criança não regulariza os verbos irregulares por imitação, posto que os adultos não falam assim [...]. São regularizados por- que a criança busca na língua uma regularidade, uma coerência que faria dela um sistema mais lógico do que na verdade é. [...] fatos como este demonstram também que existe o que poderíamos chamar erros construtivos, isto é, respostas que se separam das respostas corretas, mas que, longe de impedir al- cançar estas últimas, pareceriam permitir acertos posteriores. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 25) Pensando especificamente na escrita, podemos tomar como exem- plo uma criança já nos primeiros anos do ensino fundamental, que escreve bolu para registrar a palavra bolo. O professor precisa estar atento ao raciocínio que ela fez, pois, assim como o som /b/ é registra- do com a letra b, ela usou a letra u para registrar o som que é ouvido como /u/, e não como /o/. Nesse caso, o docente, sem classificar a si- tuação simplesmente como erro, precisa aproveitar essa oportunidade para orientar a criança de que há um combinado na língua portuguesa para escrevermos essa palavra com a letra final o, independentemente de o som final ser pronunciado como /o/ ou /u/. Assim, a criança terá condições de estender essa regularidade para outras palavras, dando mais um passo em sua aprendizagem. Portanto, é fundamental permitir que a criança escreva como sabe – o já conhecido “escreva do seu jeito”, “escreva como souber” ou escrita espontânea –, isto é, de acordo com suas próprias hipóteses, a fim de fornecer subsídios para que o professor compreenda as reflexões que ela faz sobre a língua escrita e quais intervenções ele precisa fazer para ajudá-la a avançar e evoluir no processo. Diante dessas premissas, a pesquisa de Ferreiro e Teberosky (1999) refuta conceitos como prontidão ou pré-requisitos para se alfabetizar. Elas também negam que crianças de menor poder aquisitivo são me- Psicogênese da língua escrita 29 nos capazes. Segundo as autoras, todas as crianças, de todas as clas- ses sociais, trazem consigo uma concepção sobre a escrita. Ainda que muitas crianças das classes privilegiadas possam ingressar na escola já em processo final de alfabetização, enquanto aquelas de classes menos abastadas chegam na fase inicial, para todas o caminho é igualmente árduo. Por isso, de acordo com as autoras, é imprescindível respeitar as crianças como sujeitos cognoscentes, ou seja, sujeitos que aprendem criticamente, que têm curiosidade e formulam questionamentos sobre o mundo que os rodeia. Elas elucidam o conceito de sujeito cognoscente, oriundo da teoria de Jean Piaget, da seguinte maneira: O sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é aquele que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não é um sujeito o qual espera que alguém que possui um conheci- mento o transmita a ele por um ato de benevolência. É um su- jeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias catego- rias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 29) Tomando a teoria de Piaget como referência, Ferreiro e Teberosky (1999) estabeleceram relações e formularam a teoria da psicogênese da língua escrita. De acordocom essa teoria, a criança, enquanto su- jeito cognoscente piagetiano, ao se deparar com situações de conflito cognitivo que lhe causam uma perturbação, como escrever uma pa- lavra que ainda não sabe, é compelida a modificar seus esquemas de ação para assimilar 2 o que não conseguia fazer. Diante desse desafio, o professor precisa permitir que a criança passe pelo erro construtivo, por meio do qual poderá formular hipóteses com base em seus conhe- cimentos prévios. Quanto a isso, as autoras afirmam: Esta noção de erros construtivos é essencial. Para uma psicologia (e uma pedagogia) associacionista, todos os erros se parecem. Para uma psicologia piagetiana, é chave o poder distinguir entre os erros aqueles que constituem pré-requisitos necessários para a obtenção da resposta correta. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 33, grifos do original) Outra constatação importante sobre a psicogênese da língua escri- ta é que a aprendizagem da criança é uma construção progressiva de conceitos e não ocorre linearmente. Portanto, as hipóteses da criança Aqui é importante trazer o conceito de assimilação, de Piaget, que consiste em uma ação externa, ou seja, o sujeito utiliza esquemas de ação (atitudes de classificar, ordenar, relacionar, entre outras maneiras de interagir com o mundo) para compreender determinado conceito. Já a acomodação, um processo interno, se refere à construção de novas estruturas cognitivas, que ampliam as estruturas preexistentes. A combinação desses dois processos leva à equilibração, por intermédio da qual a criança arranja constantemente suas estruturas cognitivas buscando adaptar-se ao meio. 2 30 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação não seguem a lógica do sistema de escrita, e sim a sua própria lógica diante das reflexões que faz sobre o sistema. Então, para além dos mé- todos, dos manuais e dos recursos didáticos, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1999) mostraram que há um sujeito em busca de conhe- cimento, que havia sido esquecido pelos métodos tradicionais, o qual não é uma folha em branco e que requer uma atuação do professor muito mais significativa e menos repetitiva e mecânica. Como já mencionado anteriormente, as autoras não pretendem criar um método ou dar uma receita pronta de como ensinar, pois é justamente isso que criticam. Elas acreditam que a criança tem a inten- ção de comunicar, mas não apenas um punhado de letras, de sílabas ou de palavras descontextualizadas. Por isso, é preciso superar a visão adultocêntrica, segundo a qual é o adulto que define a priori o que o aluno deve aprender, e voltar a atenção para o sujeito. Soares e Batista (2005, p. 35) fazem uma síntese das principais ideias que sustentam os estudos sobre a psicogênese da linguagem escrita: • A criança não começa a aprender a escrita apenas quando entra na escola; desde que, em seu meio, ela entra em contato com a linguagem escrita, começa seu processo de aprendizado. • Esse aprendizado não consiste numa simples imitação mecânica da escrita utilizada por adultos, mas numa busca de compreen- der o que é a escrita e como funciona; é por essa razão que se diz tratar-se de um aprendizado de natureza conceitual. • Ao buscar compreender a escrita, a criança faz perguntas e dá respostas a essas perguntas por meio de hipóteses baseadas na análise da linguagem escrita, na experimentação de modos de ler e de escrever, no contato ou na intervenção direta de adultos. • As hipóteses feitas pela criança se manifestam muitas vezes em suas tentativas de escrita (muitas vezes chamadas de escritas “espontâ- neas”) e, por isso, não são “erros”, no sentido usual do termo, mas sim a expressão das respostas ou hipóteses que a criança elabora. • O desenvolvimento das hipóteses envolve construções progressi- vas, por meio das quais a criança amplia seu conhecimento sobre a escrita com base na reelaboração de hipóteses anteriores. Partindo dessas ideias, Ferreiro e Teberosky (1999) demonstra- ram que as crianças desenvolvem hipóteses sobre a escrita, as quais são bastante recorrentes. Na próxima seção, essas hipóteses serão melhor apresentadas. Atividade 1 Em termos gerais, no que consiste a teoria da psicogênese da língua escrita? Psicogênese da língua escrita 31 2.2 Fases do processo de aprendizagem da escrita Vídeo Apesar de não tratar apenas sobre a escrita – há diversos capítulos relacionados à leitura, inclusive –, o livro Psicogênese da língua escrita tornou-se popular no Brasil sobretudo graças ao Capítulo 6, intitulado “Evolução da escrita”. Ferreiro e Teberosky (1999) realizaram, na década de 1970, diversos testes com crianças e organizaram os resultados em cinco níveis, os quais, no Brasil, ficaram conhecidos de acordo com a respectiva hipóte- se principal: pré-silábica (que se desmembra em duas), silábica, silábi- co-alfabética e alfabética. Para descrever esses cinco níveis, as autoras usam a terminologia níveis estruturais da linguagem escrita para explicar as diferenças individuais e os ritmos dos alunos. A compreensão dessas etapas pelo professor é fundamental, mas vale ressaltar que não se trata de um processo uniforme ou linear, uma vez que a aprendizagem como um todo não é um processo linear, pois possui constantes avanços, interrupções e, até mesmo, retrocessos. A passagem por esses níveis é um percurso dinâmico e, por vezes, ir- regular. A mesma criança pode, por exemplo, pular uma das etapas ou voltar a uma fase anterior, julgada já superada. Discorreremos agora sobre cada um dos níveis ou etapas de aprendizagem da língua escrita, tal como concebidos pela psicogênese. • Nível 1 (conhecido como hipótese pré-silábica 1 ou garatuja): de acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), para o aprendiz, escre- ver é reproduzir os traços típicos da escrita e é necessário certo número de caracteres. Se o aluno identifica a escrita de imprensa, os grafismos serão separados entre si, formados por linhas retas e curvas. Se ele identifica a forma cursiva, os grafismos são ligados entre si, compostos por linhas fechadas ou semifechadas. Não se trata de uma escrita convencional, e a criança não reconhece o vínculo entre fala e escrita. Por isso, é comum haver o chamado realismo nominal, ou seja, para registrar o nome de objetos/seres grandes, a criança usa palavras grandes; para objetos/seres pe- quenos, palavras pequenas. Ela demonstra intenção de escrever, porém só ela sabe dizer o que está escrito. Assim, nessa fase, a 32 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação intenção subjetiva da criança ao fazer o registro conta mais que as diferenças objetivas no resultado. Nesse caso, o professor precisa perguntar o que o aluno quis escrever. Na Figura 1, o aprendiz A., de 3 anos e 9 meses, escreveu a palavra boneca. Figura 1 Exemplo de escrita própria do nível 1 Lu ci an e Ro lim d e M ou ra V ila in • Nível 2 (conhecido como hipótese pré-silábica 2): conforme Ferreiro e Teberosky (1999), para interpretar e produzir textos (atribuir sig- nificados diferentes) é preciso haver diferenças objetivas nas escri- tas (grafismos diferentes). O aprendiz geralmente começa a criar hipóteses a partir do próprio nome, isto é, ele usa letras ou partes do próprio nome para escrever outras palavras. Nessa fase, ain- da é necessário perguntar à criança o que ela quis escrever. Na Figura 2, podemos observar que T., com 4 anos e 2 meses, ao ser convidada a escrever a palavra boneca, usou a letra inicial do seu nome. Figura 2 Exemplo de escrita própria do nível 2 Lu ci an e Ro lim d e M ou ra V ila in • Nível 3 (conhecido como hipótese silábica): conforme Ferreiro e Teberosky (1999), o aprendiz tenta atribuir um valor sonoro a cada uma das letras que compõem uma escrita. Ele tem cons- ciência de que existe uma relação entre fala e escrita e supõe que a menor unidade da língua é a sílaba (apesar de ainda não compreender o conceitode sílaba), portanto usa uma letra para representar cada emissão sonora. Na Figura 3, podemos obser- No vídeo Construção da escrita: primeiros pas- sos, publicado pelo canal Telma Weisz e produzido para o Programa de For- mação de Professores Alfabetizadores (PROFA), no início dos anos 2000, a professora Telma en- trevista crianças para saber o que elas pen- sam e o que sabem so- bre o sistema de escrita. Disponível em: https://youtu.be/ mdd3MuUJjXI. Acesso em: 20 nov. 2019. Vídeo Psicogênese da língua escrita 33 var a escrita da palavra boneca pelos aprendizes F., de 5 anos e 5 meses (à esquerda), e M., de 4 anos e 9 meses (à direita). Figura 3 Exemplos de escritas próprias do nível 3 Lu ci an e Ro lim d e M ou ra V ila in Como desdobramento das pesquisas iniciais de Ferreiro e Teberosky, foram desenvolvidos os conceitos de hipótese silábica sem valor sonoro convencional (segundo a qual a criança, apesar de relacio- nar a quantidade de letras à quantidade de sílabas e de variar as letras ao escrever, ainda não usa as letras correspondentes para escrever as palavras) e hipótese silábica com valor sonoro convencional (que repre- senta um avanço em relação à anterior, pois a criança faz escolhas mais pertinentes ao usar uma letra – vogal ou consoante – para representar cada sílaba). O artigo Aprendizado inicial da língua escrita: uma proposta de sistematização, da autora Magda Soares, publicado na Plataforma do letramento, foca em algumas regularidades no processo de aprendizagem da língua escrita. Nele, você pode escolher uma palavra para exemplificar as possíveis etapas do pro- cesso de aprendizagem da criança. Acesso em: 20 nov. 2019. http://www.plataformadoletramento.org.br/hotsite/aprendizado-inicial-da-escrita/# Artigo • Nível 4 (conhecido como hipótese silábica-alfabética): de acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), trata-se da passagem da fase silábica para a alfabética. O aprendiz passa a ter consciência de que nem sempre uma letra é suficiente para representar uma sílaba e começa a estabelecer a relação grafema-fonema, ainda que não o faça corretamente. Na Figura 4, podemos observar a escrita da palavra boneca pelo aprendiz L., de 5 anos e 7 meses. 34 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Figura 4 Exemplo de escrita própria do nível 4 Lu ci an e Ro lim d e M ou ra V ila in • Nível 5 (conhecido como hipótese alfabética): Ferreiro e Teberosky (1999) consideram como o final da evolução da escrita, pois a criança compreendeu que cada letra corresponde a um valor so- noro menor que a sílaba e realiza uma análise sistemática dos fonemas. Ela passa a entender que a escrita tem uma função social. Pode ainda omitir letras ou mesmo misturar as hipóteses anteriores e ainda não tem domínio da ortografia. Na Figura 5, a seguir, a criança K. (com 6 anos e 1 mês) escreveu a palavra boneca. Figura 5 Exemplo de escrita própria do nível 5 Lu ci an e Ro lim d e M ou ra V ila in Observe o Quadro 1 para exemplificação e melhor visualização das fases de desenvolvimento da escrita: Quadro 1 Resumo e exemplos das hipóteses de escrita ETAPA O QUE A CRIANÇA GERALMENTE PENSA COMO SÃO AS PRODUÇÕES DA CRIANÇA (NÍVEL 1) HIPÓTESE PRÉ- -SILÁBICA 1 OU GARATUJA Ela tenta diferenciar o desenho da escrita, per- guntando-se: “o que é possível ler?”. Não há correspondência sonora, mas há intenção de imitar o ato de escrever. Uso aleatório de letras (pode haver preferência por algumas letras, prin- cipalmente as do próprio nome). (Continua) Psicogênese da língua escrita 35 ETAPA O QUE A CRIANÇA GERALMENTE PENSA COMO SÃO AS PRODUÇÕES DA CRIANÇA (NÍVEL 2) HIPÓTESE PRÉ-SILÁBICA 2 OU PRÉ-SILÁBICA É necessário usar certa quantidade mínima de letras diversificadas. Ainda podem ser encontrados ele- mentos gráficos além de letras, como números e rabiscos. Nessa fase, as crianças podem revelar co- nhecimento de algumas característi- cas do sistema de escrita. (NÍVEL 3) HIPÓTESE SILÁBICA Passa da fase da escrita não fonetizada para a escrita fonetizada, pois começa a representar cada emissão sonora com uma letra (vogal ou consoante). Hipótese silábica sem valor sono- ro: usa uma letra para cada sílaba, mas ainda não faz uso das letras correspondentes para escrever as palavras. Hipótese silábica com valor sonoro: é considerada um avanço em relação à hipótese silábica sem valor sono- ro, pois cada sílaba é representada por uma letra que busca expressar o som correspondente. (NÍVEL 4) HIPÓTESE SILÁBI- CA-ALFABÉTICA Compreende que es- crever é representar as partes sonoras das pala- vras, ainda que continue cometendo alguns equí- vocos. A criança passa a colocar mais letras em seus registros silábicos, às vezes usando as letras de modo pertinen- te, outras escolhendo letras aleato- riamente, a fim de resolver a ques- tão da quantidade. (NÍVEL 5) HIPÓTESE ALFABÉTICA Produz registros que podem ser lidos por outras pessoas e, mui- tas vezes, começa a se questionar sobre a for- ma correta de grafar as palavras. A criança pode escrever diversas palavras convencionalmente, mas em alguns casos pode se equivocar, principalmente quando se trata de letras em situações regidas por con- venções ortográficas (das quais vai se apropriar em momento posterior). Fonte: Elaborado pela autora com base em Ferreiro; Teberosky, 1999. O papel do professor é muito importante para que a criança possa desenvolver suas hipóteses. Para isso, ele pode trabalhar com grupos heterogêneos, proporcionando interações entre crianças de diferentes níveis e preparando o ambiente para promover tais interações, além de permitir que o aprendiz cometa os erros construtivos. A pontuação e a ortografia, que não estão previstas nas etapas elencadas por Ferreiro e Teberosky (1999), devem ser trabalhadas gradativamente, em momento posterior ao desenvolvimento da hipó- tese alfabética, ou quando surgirem dúvidas por parte do aprendiz. 36 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação A alfabetização é um processo complexo que se desenvolve de acordo com a criança, podendo ser diferente de uma para outra, portanto, não se esgota no 1º ano do ensino fundamental. Segundo Coutinho (2005), é necessário que o educador tenha sem- pre em mente que a psicogênese da escrita é uma importante teoria psicológica que aborda como os alunos se apropriam da escrita alfa- bética. Porém, conhecê-la não é suficiente para o trabalho na fase de alfabetização. Segundo a autora, É necessário o desenvolvimento de um trabalho sistemático e diário que leve os alunos a refletir sobre os princípios desse sistema. E, nesse trabalho, as atividades realizadas no nível da palavra (composição e decomposição de palavras em sílabas e letras, comparação de palavras quanto à presença de sílabas e letras iguais etc.) e as de análise fonológica são fundamentais. (COUTINHO, 2005, p. 67-68) Estudando a teoria da psicogênese da língua escrita e analisando seus desdobramentos, Frade (2005) ressalta que se trata de princípios que levam o professor a deixar antigas visões sobre o processo de en- sino e aprendizagem e ter outra postura perante o aluno. A autora cita que o aprendiz, segundo as ideias de Ferreiro e Teberosky, é visto como um sujeito que: • tem acesso à escrita na sociedade antes de passar por um pro- cesso sistemático de ensino na escola; • tem um processo lógico de pensamento, de modo que cada “erro” de escrita que produz indica uma hipótese sobre o conteú- do do sistema alfabético de escrita; • “constrói conhecimentos em situação espontânea, desde que conviva com o sistema de escrita e obtenha algumas informações sobre seu funcionamento” (FRADE, 2005, p. 40). Com base nesses princípios, Frade também ressalta que é necessá- rio que a escola compreenda que: • um método ou uma única direção não é determinante da apren- dizagem e que é preciso considerar o processodo aprendiz; • o contexto escolar deve propiciar a experimentação em torno da escrita, sem provocar nos alunos o medo de avaliação de “erros”; • o material usado na escola deve ser aquele que representa a di- versidade de uso da escrita existente na sociedade; • é necessário, antes de iniciar o ensino e durante o processo, saber em que nível de compreensão da escrita o aluno se encontra; Atividade 2 Segundo Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1999), quantos e quais são os níveis estruturais da linguagem escrita? Psicogênese da língua escrita 37 • para acompanhar o processo de aprendizagem, é crucial que a escola construa instrumentos que permitam ao aluno expressar, sem medo, o que sabe; • é fundamental que o professor conheça as teorias sobre o “como se aprende” para interpretar os resultados apresenta- dos pelos alunos; • a escrita e a leitura devem ser aprendidas em uso social (FRADE, 2005, p. 40). Portanto, ciente de toda a complexidade do seu papel no processo de alfabetização, cabe ao professor conhecer a fundo as características das etapas de aquisição da escrita pelas crianças e de como elas apren- dem, além de conhecer e saber avaliar as hipóteses de seus alunos, a fim de identificar quais são as intervenções adequadas. 2.3 Consequências das abordagens socioconstrutivistas Vídeo Em primeiro lugar, é necessário esclarecer o uso do termo constru- tivismo por diversos autores para se referir à teoria da psicogênese da língua escrita. Soares (2016) qualifica como discutível tal denominação na área de alfabetização, uma vez que esse termo diz respeito, mais amplamente, a uma teoria da aprendizagem e seu uso para referir-se a uma concepção do processo de alfabetização pode conduzir a uma suposição equivocada de que o construtivismo é uma teoria da alfabe- tização e, mais grave ainda, um método de alfabetização. Ainda assim, no Brasil, essa denominação ficou consolidada, havendo uma ampla apropriação dela pela área da alfabetização. Portanto, deve ser usada sob tais advertências. Feitas as ressalvas iniciais, o paradigma construtivista busca identi- ficar as hipóteses construídas pela criança sobre o sistema de escrita (conforme visto na seção anterior), cabendo ao professor acompanhá- -la nesse processo. Segundo Soares (2016, p. 335, grifos do original), esse acompanhamento traduz-se: em provocação e orientação na estruturação, desestruturação, reestruturação de hipóteses e conceitos sobre a língua escrita. O/a alfabetizador(a) não propriamente ensina, mas guia a criança em seu desenvolvimento: processos internos que levam à for- mulação de hipóteses e à formação de conceitos sobre um objeto de conhecimento com o qual se defronta – a língua escrita. 38 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação Portanto, um professor que se autodenomina construtivista, deve ter em mente a progressão natural a ser percorrida pela criança. De acordo com Ferreiro e Teberosky (1999, p. 290), Para chegar a compreender a escrita, a criança pré-escolar ra- ciocinou inteligentemente, emitiu boas hipóteses a respeito do sistema de escrita [...] superou conflitos, buscou regularidades, outorgou significado constantemente. A coerência lógica que elas exigiram de si mesmas desaparecem frente às exigências do docente. A percepção e o controle motor substituirão a necessidade de compreender; haverá uma série de hábitos a adquirir no lugar de um objeto para reconhecer. Haverá que deixar o próprio saber linguístico e a própria capacidade de pensar até que logo se descubra que é impossível compreender um texto sem recorrer a eles. Aproveitando o ensejo dado pela visão de professor como um guia, posto anteriormente na citação de Magda Soares, é necessário trazer à tona também o conceito de mediação, advindo da concepção de Vy- gotsky (1984), segundo a qual a cultura e o grupo social são elementos constitutivos de cada indivíduo. Para Vygotsky, o professor representa um elo intermediário entre o aprendiz e o conhecimento disponível no ambiente, por meio das interações sociais – daí advém o prefixo socio- muitas vezes associado ao termo construtivismo (socioconstrutivismo). Além disso, a teoria da psicogênese da língua escrita tem diversos outros pontos de contato com as postulações de Vygotsky, dentre eles o fato de ambas considerarem a escrita como um sistema de represen- tação da realidade. Por fim, vale trazer a visão de Morais (2012) acerca da adoção de um enfoque construtivista na alfabetização. Para o autor, essa questão está relacionada à crença de que essa perspectiva é a que, atualmente, melhor explica o que é a escrita alfabética e como os aprendizes dela se apropriam, permitindo-nos colocar em prática os seguintes princípios de ordem filosófica: • Formar pessoas não conformistas, críticas, que lutam por seus direitos. • Formar pessoas que não só repetem, mecânica ou ordeira- mente, o que lhes é transmitido, mas que criam ou recriam conhecimentos e formas de expressão. Psicogênese da língua escrita 39 • Formar pessoas que se regem por princípios éticos de justiça social, de redução das desigualdades socioeconômicas, de respeito à diver- sidade entre os indivíduos, grupos sociais e povos. • Formar pessoas respeitando suas singularidades, seus ritmos de apren- dizagem, e levando em conta em quê, especificamente, necessitam ser ajudadas, para que possam avançar nas aprendizagens. Para Morais (2012, p. 114), em uma escola que almeje tais objetivos, a perspectiva construtivista, na qual a psicogênese da língua escrita se enquadra, é absolutamente adequada. A adoção de uma perspectiva (socio)construtivista, portanto, traz consequências tanto para a atuação docente, que precisa ser readequada e ajustada para respeitar a ma- neira como o aluno aprende, quanto para a formação de cidadãos crí- ticos, contribuindo, assim, para uma sociedade mais justa e igualitária. Atividade 3 Por que Magda Soares qualifica como “discutível” o uso do termo construtivismo para se referir à área da alfabetização? CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, percebe-se que a teoria da psicogênese da língua escrita causou uma verdadeira revolução no processo de alfabe- tização como um todo, trazendo muitos desdobramentos significativos. Essa teoria alterou drasticamente a questão central vigente até a década de 1980 no campo da alfabetização no Brasil, cujas discussões giravam em torno de qual era o melhor método para ensinar a leitura e a escrita. Houve um deslocamento, portanto, da discussão sobre como se ensina, que passou a questionar sobre como se aprende. De acordo com o paradigma trazido por Ferreiro e Teberosky, é pre- ciso ressignificar a maneira de enxergar o aprendiz, que deixa de ser al- guém que apenas recebe o conhecimento passivamente e precisa ser visto como sujeito cognoscente, cujos “erros” são, na verdade, preciosas demonstrações de como o conhecimento está sendo elaborado. Nesse sentido, então, as práticas pedagógicas devem ser constante- mente repensadas e transformadas de acordo com as mudanças sociais que o mundo contemporâneo exige. REFERÊNCIAS COUTINHO, M. L. Psicogênese da língua escrita: O que é? Como intervir em cada uma das hipóteses? Uma conversa entre professores. In: MORAIS, A. G.; ALBUQUERQUE, E. B. C.; LEAL, T. F. Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 40 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999. FRADE, I. C. A. S. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de fazer de professores. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012. SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016. SOARES, M.; BATISTA; A. A. G. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005.
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