Yvonne Maggie, O Negro na Modernidade: Cor e Exclusão Simbólica na Novela das Oito, indica uma apreensão transversal dos conteúdos de um treinamento acadêmico, no IFCS e no CEAA, que combinava Estudos Afro-Brasileiros (Yvonne Maggie) e Sociologia das Relações Raciais (Carlos Hasenbalg). Em vez de desenvolver um estudo de audiência ou de texto que explicaria as ideias sobre a negridade que justificariam o fato de as novelas da época empregarem um número insignificante de atores negros e a maioria nos papéis típicos de empregada doméstica ou bandido. Eu reverti o movimento analítico e INTRODUÇÃO (Di)Ante(s) do Texto 34 35 para fazer o doutorado, eu acompanhei as revoltas em Los Angeles em resposta à absolvição dos policiais que bateram em Rodney King. No ano seguinte, 1993, acompanhei de longe a revolta dos residentes de Vigário Geral, em resposta ao assassinato de 21 pessoas por policiais militares. Outros casos de violência policial no Brasil e nos Estados Unidos, os quais receberam mais ou menos atenção. Entre eles, a tortura de Abner Loima por policiais de New York, em 1997, e o caso de Amadou Diallo, o qual foi morto com 41 tiros dados a queima roupa por quatro membros da Street Crime Unit do Departamento de Polícia de New York, em fevereiro de 1999. A lista continua. Nos vinte anos que separam aquele evento racial e este momento, em que escrevo esta introdução, muitos outros homens e mulheres, jovens, idosos, e crianças negras foram mortas ou deixadas morrer pela polícia e outras instituições de aplicação da lei. Na maioria desses casos, as cortes de administração de justiça não registraram essas mortes como crime em decisões que insistentemente mobilizaram a negridade (das vítimas ou dos lugares onde foram mortas) como evidência de que a violência total foi uma resposta lógica a uma situação de perigo mortal, ou seja, o fato de que os que dispararam os tiros se encontravam diante de uma corpo negro ou num território negro. Quando se contempla as operações da racialidade num contexto mais amplo, global, seria quase impossível não concluir que a mesma tem um papel crucial para o capital se a sua ferramenta mais consistentemente empregada no século XX, a diferença racial, não fosse tão eficaz ao transubstancializar os efeitos de mecanismos coloniais de expropriação em defeitos naturais (intelectuais e morais) que são sinalizados por diferenças físicas, práticas, instituições, etc. Se tomarmos, por exemplo, os últimos vinte anos, é possível compor uma lista longa de eventos globais, quase todos relacionados com as guerras locais e regionais que, embora causem o deslocamento de populações, não parecem ter qualquer efeito sobre a decidi examinar a imagem da sociedade brasileira expressa pela forma como as poucas tramas envolvendo personagens negros foram resolvidas. O principal argumento da dissertação de que a representação de negros nas novelas das oito da TV Globo, que foram ao ar entre 1979 e 1988, expressava um projeto nacional de modernidade vista como contingente no desaparecimento do negro, apesar da (então ainda) celebrada democracia racial. Entre outros argumentos, o Negro na Modernidade já apresentava uma versão da ideia que foi desenvolvida na minha tese de doutorado (publicada com o título de Toward a Global Idea of Race, em 2007), a de que, além da lógica da exclusão – a explicação sociológica da subjugação racial –, há uma lógica da obliteração que permeia as ferramentas do conhecimento racial. Isto, precisamente porque sem ela, a construção do sujeito moderno como uma coisa autodeterminada não se sustentaria, principalmente após a articulação hegeliana da razão transcendental como Espírito. Não há lugar para sumarizar os argumentos desenvolvidos nestes dois textos aqui. Só os menciono porque a mim surpreende o fato de que a mesma preocupação anima textos tão diferentes, e que respondem a circunstâncias aparentemente diferentes, como a minha dissertação de mestrado (Rio de Janeiro nos anos 80), a tese de doutorado (Estados Unidos, nos anos 90), e os experimentos poéticos (escritos nos últimos 5 anos) que compõem este volume. Infelizmente, os processos nacionais e globais por traz desta preocupação não são surpreendentes. Ao contrário. Já nos meados dos anos 80, a violência policial encabeçava a minha lista de evidências de subjugação racial. Para mim, pelo menos, fazia sentido, pois eu pertenço à geração de adolescentes negras, que viu aumentar, no final dos anos 70, a incidência de mortes de jovens negros devido à entrada de armas automáticas e cocaína e à violência policial, nas comunidades economicamente defasadas dos morros e periferias da cidade do Rio de Janeiro. Em 1992, quando tinha acabado de chegar aos Estados Unidos, para onde fui Sticky Note 36 37 começa com o reconhecimento de que o conceito do racial refigura ao nível do simbólico a violência total (colonial) que sustenta a expropriação (monetária e simbólica) da capacidade produtiva de terras e corpos não-europeus, e porque ele carrega em si este efeito do racial, este modo de intervenção, a poética negra feminista, pode se dar ao luxo de violar a regras do pensamento moderno. Na verdade, qualquer análise séria do modo corrente de operação do duo Estado-Capital exige uma atenção à gramática racial, porque esta organiza o espaço global, orientado pela realização da necessidade de dirimir e dissipar os efeitos da racialidade. A poética negra feminista vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual, desde a perspectiva do sujeito racial subalterno, requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido, isto é, do Mundo Ordenado diante do qual decolonização, ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos, é tão improvável quanto incompreensível. O que está em disputa? O que precisará ser renunciado para conseguirmos libertar a capacidade criativa radical da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo outramente? Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma. Os primeiros pensadores da filosofia natural (Galileu, 1564-1642 e Descartes, 15961650) e da física clássica (Newton, 1643-1727) herdaram a visão da Antiguidade sobre a matéria – a noção que compreende o corpo a partir de conceitos abstratos que estariam presentes no pensamento, como solidez, extensão, peso, gravidade e movimento no espaço e no tempo. De qualquer maneira, a afirmação de que a mente humana é capaz de conhecer as propriedades dos corpos com certeza, isto é, sem a mediação do divino regente e autor do Livro da Natureza, baseou-se em Os Três Pilares Ontoepistemológicos expropriação e exploração de terras e corpos. Nesta lista, eu incluo, por exemplo, a invasão do Afeganistão e do Iraque, no início deste século, os conflitos incessantes na República Democrática do Congo, e depois, no Sudão, Nigéria, Etiópia, Eritreia, e agora, a guerra na Síria, Yemen, e outros conflitos de baixa intensidade midiática, que se observam no Haiti, Jamaica, Colômbia, Venezuela, México, e nas comunidades economicamente despossuídas no Brasil e Estados Unidos. Em combinação com os desastres causadas pelo aquecimento global e pelas políticas neoliberais implementadas pelos governos, estas guerras estão por traz da última crise a atingir a Europa, a ‘crise dos refugiados’, a qual, entre outras coisas, facilitou tanto um endurecimento do aparato de policiamento das fronteiras, como o crescimento de discursos e práticas que mobilizam uma forma letal (branca) de política de identidade. De uma certa forma, A Divida Impagável oferece uma recomposição possível desta preocupação. Em vez de fornecer uma análise de casos específicos ou uma crítica das instituições de aplicação da lei, o que faço em outros textos, minha manobra aqui é começar com e, de uma certa forma, aceitar o fato de que a justiça falha diante