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A desgraça do ateísmo na educação Felipe Sabino de Araújo Neto (org.) A educação das crianças para Deus é a tarefa mais importante desempenhada sobre a terra. Trata-se do único negócio para o qual a terra existe. A ela deveriam estar subordinadas a política, a guerra, a literatura e a produção de dinheiro em sua totalidade. Todo pai, a cada hora do dia, deveria sentir especialmente que, após assegurar a própria eleição e vocação, é este o fim para o qual Deus o mantém vivo — essa é a sua tarefa sobre a terra. R.L. Dabney Copyright © 2019 de Editora Monergismo Títulos dos artigos originais: On Secular Education, Politics and Education, Education and the Family, Sovereignty and Education, Christian Schools. ■ Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO SCRN 712/713, Bloco B, Entrada 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 71.760-620 www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2019 Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto e Fabrício Tavares de Moraes Revisão: Fabrício Tavares de Moraes e Felipe Sabino PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Araújo Neto, F. S. A desgraça do ateísmo na educação / Felipe Sabino de Araújo Neto (org.), tradução Felipe Sabino de Araújo Neto e Fabrício Tavares de Moraes — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. ISBN 978-85-69980-86-5 1. Educação 2. Humanismo 3. Ateísmo 4. Cristianismo I. Título CDD: 261 SUMÁRIO Prefácio do editor Parte I 1. Sobre educação secular Parte II 1. Política e educação 2. Educação e a família 3. Soberania e educação Parte III 1. Escolas cristãs PREFÁCIO Fumantes de cigarro encontram em cada maço uma advertência que fumar pode ser prejudicial à saúde deles. Ora, eu não sou fumante, mas ressinto-me diante da reivindicação superzelosa do Big Brother de dizer o que é bom ou ruim para nós. Em meu livro, esse poder pertence a Deus, não ao Estado. Além do mais, por que não colocar um aviso em cada edifício federal, afirmando: “Atenção! Um governo grande pode ser prejudicial à sua saúde”? Ou por que não avisar cada pai de um estudante: “Atenção! Escolas públicas podem ser prejudiciais à saúde do seu filho”?[1] Nesta nova coletânea sobre as sucessivas “desgraças” ocasionadas pela desobediência aos mandamentos divinos e apostasia modernas,[2] analisamos os efeitos deletérios do ateísmo (ou humanismo) na educação de nossos filhos. O livro está dividido em três partes, cada uma escrita por um autor distinto, abordando um assunto correlato aos problemas do secularismo[3] na educação, formando assim — apesar das diferentes abordagens — um todo coeso. Na primeira parte, intitulada “Educação secular”, Robert L. Dabney (1820- 1898) apresenta os problemas de uma possível secularização total das escolas, algo que já se tornou realidade em certas partes de nosso país (e quase plenamente nos Estados Unidos, cenário que Dabney está avaliando). Não bastasse a secularização, isto é, um ensino limitado “a disciplinas puramente seculares”, como Dabney chama, o que vemos hoje é uma militância aberta contra o cristianismo em geral e a moralidade judaico-cristão em particular. Tal desfecho era inevitável, pois todo ato de educar — que inclui, entre outras coisas, treinar os alunos para que sejam competentes em suas responsabilidades, seja na esfera civil, familiar, profissional e que tais — pressupõe uma base ética, e o Estado nunca reivindicou para si a mera tarefa de instruir, mas sim de educar nossas crianças e jovens.[4] Sendo assim, as escolas públicas (não obstante mesmo pais piedosos e preocupados com os seus filhos não verem dessa forma) tornaram-se muito mais prejudiciais do que o tabagismo. Essa visão profética de Dabney é reconhecida por Douglas Wilson: Há alguns anos fui apresentado aos escritos de R. L. Dabney. Em seu texto “secular” fiquei impressionado com o que só pode ser chamado sua visão profética. Embora estivesse envolvido nas controvérsias do último século, é bastante claro que ele entendia os princípios fundamentais envolvidos. Por ser um pensador de princípios, ele foi capaz de ver aonde o Estados Unidos estavam indo. Os anos têm provado que ele estava certo em muitas coisas.[5] É justamente por considerarmos o texto valioso ao público moderno que o incluímos nesta breve coletânea de artigos sobre educação. Prossegue Wilson: Pelo valor dos seus insights, julguei que seria proveitoso apresentar algo de sua obra ao público cristão moderno. Este artigo se provará especialmente útil àqueles cristãos que estão envolvidos na educação, quer em escolas privadas ou domiciliares.[6] Desnecessário dizer que não endossamos tudo o que Dabney diz, quer em suas críticas, quer em suas “soluções”. A ressalva de Wilson é salutar: Alguns podem achar a polêmica de Dabney contra a educação católica desagradável, e podem se perguntar o porquê de tê-la mantido. Há duas razões. A primeira é que a questão católica está tão ligada ao seu argumento, que não seria possível removê-la sem fazer considerável violência ao texto. A segunda razão é que acredito que o catolicismo romano de hoje é uma ameaça maior do que quando Dabney escreveu essas palavras e, portanto, não há necessidade de remover suas advertências. Aqueles que se impressionarem com a sua percepção sobre a natureza da “educação secular” podem talvez considerar que sua posição sobre a ameaça do catolicismo tenha algum peso.[7] Isso não significa que concorde com tudo no artigo. Por exemplo, não sou tão otimista quanto ele parece ser em relação à “lei natural” como a base do governo civil. Todavia, as reflexões que ele apresenta são dignas de nossa análise, particularmente quando consideramos a época em que escreveu. Estamos no meio das ruínas de um outrora orgulhoso sistema educacional público, e muitos cristãos ainda não perceberam o que Dabney percebeu no século passado. Confio que Deus usará seus pensamentos uma vez mais, e oro para que eles tenham, entre os cristãos, uma recepção melhor do que quando primeiramente publicado.[8] Esperamos que ao final deste artigo de Dabney percebamos a pertinência da afirmação de Machen: “Vejo pouca consistência num tipo de atividade cristã que prega o evangelho nas esquinas das ruas e até os confins da terra, mas negligencia os filhos da aliança abandonando-os a um secularismo frio e incrédulo”. [9] Na segunda parte deste livreto incluímos três artigos incisivos de R. J. Rushdoony, um profeta moderno que denunciou a secularização da educação, bem como o caráter messiânico que assumiu nos Estado Unidos (e, por certo, no Brasil). Em “Política e educação”, Rushdoony desenvolve as implicações de um mote (pronunciado, conforme ele explica, num contexto subversivo, porém contendo em seu núcleo uma poderosa intuição) para a realidade da educação e sua soberania dentro de sua esfera divinamente designada: “Mantenham a política fora da educação!”. De fato, Rushdoony, assumindo uma posição que talvez surpreenda aqueles ainda não familiarizados com seu pensamento, afirma que a educação deve livrar-se das cadeias não somente do Estado, mas também de quaisquer ditames eclesiásticos. Isto é, seguindo o que Kuyper fizera na Universidade Livre de Amsterdã, ao menos conforme inicialmente planejara, Rushdoony defende que a escola é um aspecto do Reino de Deus, e portanto submete-se diretamente à lei divina.Esta é a razão pela qual a soberania das esferas não se confunde jamais com a autonomia, que faz do homem e sua razão a fonte de toda norma. O autor nos lembra, contudo, que uma das questões aparentemente ignoradas ou suprimidas da discussão pública é a impossibilidade de uma educação neutra. Há — no debate de ideias brasileiros — uma real confusão entre neutralidade e objetividade. Com efeito, é impossível conceber um professor ou mesmo uma simples exposição neutra de qualquer tema concebível. A objetividade, por sua vez, é uma questão não somente metodológica, mas também virtuosa, isto é, fundamenta-se na honestidade, sinceridade e amor pela verdade. Não afirma um ponto de vista imparcial, ou uma perspectiva supra- pessoal (por si só uma contradição) que transcenda as “querelas” intelectuais, ideológicas e partidárias. Nisto torna-se evidente a importância da ética subjacente na prática educacional — sua fonte moral (vale dizer: sua religião) necessariamente permeia todo seu ensino. Com isso, obviamente, a educação estatal promove não só os interesses, mas os valores do Estado, dentre os quais sua supremacia moral sobre todas as demais instâncias e instituições. Nas palavras de Rushdoony: “Se o Estado ou a igreja controla a escola, então torna- se função da escola servir aos propósitos do Estado ou da igreja. A propaganda passa a governar a educação”. Em “Educação e a família”, por sua vez, Rushdoony retoma um dos aspectos que, recentemente, tem sido objeto de controvérsia mesmo em ambientes eclesiásticos. O “castigo”, disciplina e punição dos filhos é uma questão passível de contemporização ou um dever oriundo da prática e ensino bíblicos? Ora, desde Locke, passando por Dewey e Piaget, a noção que se tem da criança é geralmente a de um ente neutro, maleável e plástico, suscetível à modelação por parte dos educadores. Não há inclinação inata, nem pecado original; de modo que a criança é sempre presa das circunstâncias, um reagente em estado puro que não carrega consigo as tendências à rebeldia, revolta e desobediência comuns aos filhos de Adão. Contra isso, Rushdoony nos lembra o ensino e prática bíblicos, manifestos principalmente no livro de Provérbios, de que os verdadeiros pais, em semelhança ao Pai eterno, repreendem aquele que ama. No capítulo “Soberania e educação”, por seu turno, Rushdoony, retoma o tratamento sobre o mito da neutralidade da educação, que hoje em dia predomina mesmo entre os cristãos. É de fato estranho que mesmo cristãos versados na apologética pressuposicional — seja nos moldes de Van Til, Gordon Clark, Bahnsen ou John Frame —, um movimento intelectual que se opõe frontalmente à ideia da factualidade bruta virgemente acessível à interpretação desenviesada dos humanistas, não reconhecem, numa espécie de paralaxe cognitiva, que todo o sistema educacional em nossos dias é baseado numa “falsidade satânica”, como já dizia Cornelius Van Til e Louis Berkhof.[10] Ora, “na grande batalha espiritual, as forças das trevas são organizadas contra o Senhor e seu Ungido. Qualquer organização que se diz neutra, como as escolas públicas e algumas organizações de trabalho, nega as exigências de Cristo de rendição absoluta a seu senhorio sobre todas as coisas. Dessa maneira, estão servindo à causa do anticristo. Negar tal fato é andar obstinadamente cego ou ser, infelizmente, ignorante quanto às intenções do maligno e às exigências de Cristo”.[11] Como disse Gordon Clark, … as escolas não são, obviamente, cristãs. Mas, com semelhante obviedade, não são neutras. As Escrituras dizem que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria — parte essencial do conhecimento; mas as escolas, omitindo todas as referências a Deus, passam aos alunos a noção de que o conhecimento é obtido sem qualquer relação a Deus. Elas ensinam, na realidade, que Deus não tem qualquer controle sobre a história; que não existe qualquer planejamento nos eventos operados por Deus; e que Deus não preordenou qualquer acontecimento… As escolas não são, nunca foram, nunca poderão ser neutras. O sistema escolar que ignora a Deus, ensina seus alunos a ignorarem a Deus. Isso não é neutralidade, é a pior forma de antagonismo, porque julga que Deus não é importante; ele é irrelevante à raça humana. Isso é ateísmo.[12] Na última parte deste livro incluímos um breve artigo do teólogo e filósofo John Frame sobre escolas cristãs. Cremos que o ensino de Frame é relevante ao público brasileiro por dois motivos: (1) Muitas escolas que arrogam para si o nome de cristã não passam de escolas seculares que incluem aqui ou acolá algum ensino “bíblico”, quiçá uma matéria sobre ensino religioso; (2) Muitos pais que têm testemunhado a calamidade do sistema educacional pensam que a única alternativa cristã seria o chamado homeschool (ensino no lar), quando, na verdade, a igreja, juntamente com os pais e todos os seus membros deveriam lutar para estabelecer escolas verdadeiramente confessionais, com preços acessíveis sobretudo aos seus membros, e na qual a Bíblia fosse de fato (e não apenas nominalmente) o fundamento de todo o currículo escolar. Mesmo que alguém favoreça, como Frame, o ensino no lar, isso não diminui a importância e a necessidade do estabelecimento de escolas que façam jus ao nome “cristã”. Que este livro possa despertar pais, pastores, professores, e cristãos em geral, acerca da urgente necessidade de uma educação distintamente cristã. Nosso Senhor não exige nada menos do que isso dos seus servos! — Felipe Sabino de Araújo Neto e Fabrício Tavares de Moraes Novembro de 2018 PARTE I 1. SOBRE EDUCAÇÃO SECULAR R. L. Dabney Quem deveria controlar a educação, e o que é uma educação apropriada? Estas duas questões são interdependentes. Ao longo da história, duas respostas têm sido apresentadas para a primeira questão — o Estado e a Igreja. Na Europa, o progressismo tem insistido no Estado, e busca secularizar a educação. Isto implica arrancar a educação do controle do catolicismo. Os esquerdistas veem claramente que, sob o controle católico, não existe nenhuma liberdade verdadeira na educação. Mas, conforme insistem também na secularização do Estado, sua ideia de uma educação livre é uma destituída de religião. Eles separam a cultura mental da espiritual. Dessa forma concluem que a educação deve abstrair-se de Deus a fim de ser livre. A Igreja Católica deve culpar a si mesma por isso — ela alega ser a única igreja cristã. Mentes independentes replicam: “Bem, então o cristianismo é perverso”. Se a educação católica fosse a única educação cristã possível, os homens livres teriam de rejeitar a educação cristã. Considere: se o juízo privado é pecado; se o professor é um verdadeiro sacerdote; se seu ensino é infalível; se o fim real da cultura é escravizar a alma a um sacerdócio com um cabeça exterior; se este cabeça é absolutamente superior às autoridades seculares, a educação baseada nesses princípios levará à escravidão civil. Não é estranho que homens em busca de liberdade a rejeitem. O engano reside em confundir educação eclesiástica com educação cristã. Que a Escritura seja ouvida: “O reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17.21). Ele consiste não numa hierarquia gananciosa, mas no governo da verdade. O clero não deve ser senhor sobre o povo de Deus, mas somente “ministros por meio de quem cremos” (1Co 3.5). A igreja não tem penalidades senão as espirituais. Ela não toca no direito civil de nenhum homem. Sua única outra função é ensinar, e seu ensino é obrigatórioapenas na medida em que a própria consciência do leigo responde à Palavra de Deus como esta é declarada. Ora, é dever da igreja instruir os pais sobre como Deus deseja que criem seus filhos, e impor o dever com sanções espirituais; mas aí termina seu poder oficial. Ela não usurpa o cumprimento da importante tarefa que instrui os pais a fazer. Como um cristão privado, o ministro empresta a outros pais seu conhecimento e exemplo para ajudá-los em sua obra. Mas tudo isso não constitui nenhum perigo à liberdade espiritual ou religiosa. Assim, seria bom que o esquerdista moderno parasse e se perguntasse se ele assegura algo mediante essa transferência de responsabilidade educacional da igreja para o Estado. Ele aponta para os resultados do ensino católico? Ali vemos uma erudição espúria e superficial, juntamente com uma consciência escravizada e mórbida, que não ousa sequer desejar quebrar seus grilhões. Há também a ganância insaciável da hierarquia por influência e dinheiro. O retrato é suficientemente repulsivo. Mas os clérigos católicos são os únicos gananciosos? Não são todos os homens depravados? O mesmo não se dá essencialmente com todos os homens? Então por que ficamos surpresos quando os clérigos agem de maneira similar aos outros homens, quando sujeitos às mesmas tentações? O esquerdista moderno deveria ser o último homem a ignorar esta verdade; ele já é cético de todas as profissões de princípios espirituais em clérigos. Ele já é propenso a atribuir motivos seculares. Ele deveria ser coerente e esperar que o demagogo exiba uma ambição imprudente exatamente como os sacerdotes. O que é um clérigo senão um demagogo espiritual? O demagogo é apenas um sacerdote no altar do Dinheiro. O progressista não perverte aquela outra agência educacional, a imprensa, tão violentamente como o jesuíta faz com a escola? Se ele vier a controlar o Estado, e este assumir a responsabilidade pela educação, existe, portanto, um grande risco de que a educação dos jovens será pervertida para servir a uma facção ideológica. Isto dar-se-á por odiosos meios de saturar suas mentes com erros e paixões ao invés da verdade e do certo. O resultado é o despotismo de uma facção em vez de um papa. Um pode ser tão ruim quanto o outro. Se o Estado tornar-se o educador na América, então a educação deverá ser inteiramente secularizada. Em teoria, nosso Estado é a instituição para a consecução da justiça secular. Ele se separou absoluta e igualmente de todas as religiões. Comprometeu-se para que nenhum dos direitos civis do indivíduo fossem modificados, ou que a igualdade fosse diminuída, em razão de sua religião, ou ausência dela. Proibiu o estabelecimento de qualquer religião por lei, bem como a imposição de qualquer fardo, por motivos religiosos, a qualquer pessoa. Ora, o professor da escola pública é um oficial do Estado, e ensina pautado em sua autoridade. Todos os funcionários da escola têm como fonte de sua autoridade as leis do Estado. Por conseguinte, todas suas funções são efetivamente ações do Estado — tais como a do xerife na execução pela forca, ou a do juiz ao sentenciar um assassino. Os fundos da escola, captados mediante a taxação, é propriedade comum e igual do povo. Porém os americanos se dividem em várias religiões, de modo que não se deve usar dinheiro nas escolas para o ensino de uma religião em detrimento das outras — assim como não seria usado para o estabelecimento de uma igreja. Certa feita, em estados como Connecticut, a população era tão homogênea, e os dissidentes tão poucos, que a religião dominante pôde ser ensinada por conta do Estado sem qualquer protesto inflamado que chegasse ao ponto da inconveniência. Mas a mistura de nosso povo, e especialmente a força e audácia do catolicismo, agora torna tudo isto muito diferente. Os católicos apresentam um argumento eficaz quando dizem que o Estado não deve usar o dinheiro do povo para um ensino que utiliza a versão King James da Bíblia, a qual eles, uma parte do povo, acreditam ser herética. Protestantes zelosos, em geral defensores fervorosos das escolas públicas, tentam refutar essa argumentação. No entanto, consentiriam eles que seus filhos, com seu dinheiro, fossem ensinados a partir de uma versão bíblica que diz: “Mas se não fizerdes penitência, pereceis todos do mesmo modo”? Eles afirmam: “Trata-se de uma versão equivocada, ao passo que a King James é fiel”. Teologicamente, isso é decerto verdade. Porém, deve-se designar o Estado para julgar se tal afirmação é verdadeira? Na esfera pública, nossa obrigação é respeitar os pontos de vista religiosos dos católicos, do mesmo modo que exigimos que eles respeitem os nossos. Suponhamos, então, que, certo dia, uma maioria num Estado, tão numerosa quanto os protestantes o são na Nova Inglaterra, busquem tornar compulsório o estudo de uma versão católica da Bíblia em escolas públicas. A menos que admitamos que nosso poder cria o direito, não convém impor tais erros sobre os judeus, os muçulmanos, os ateístas e os budistas que vivem conosco, simplesmente porque são menos numerosos. Busca-se desviar-se dessa conclusão do seguinte modo: Embora todas as religiões sejam iguais, e nenhuma seja estabelecida, o Estado não é uma instituição ateísta. Fundamenta-se na vontade de Deus, que é o padrão de todos os direitos. O Estado é uma instituição ética, e existe para fins éticos. Consequentemente, ele implementa o Sabbath, pune a blasfêmia etc. O Estado, embora não estabeleça uma religião em detrimento das demais, deve ensinar as verdades divinas comuns a todos, mediante o uso não sectário da Bíblia. Mas seja esta a base justa ou não de uma nação, nossos estados não a reconhecem declaradamente. Em segundo lugar, a questão diz respeito à versão que se deve utilizar, dentre outras versões concorrentes. Em vista disto, tal questão ascende disputas sectárias. Em terceiro lugar, não cremos — não mais do que esses sofistas — que o Estado possa ser ateísta. É uma instituição ética, e a vontade divina é a única norma ética válida. Todavia, o Estado encontra seu fundamento teísta na teologia natural. A prova é que os Estados pagãos, assentando-se somente num teísmo natural, eram autênticos e possuíam legitimamente a obediência dos próprios cristãos (Romanos 13.5). Evadir-se da questão é, pois, fútil. Mas independentemente da lógica da questão, a consequência visível é certa. Os católicos inevitavelmente cumprirão seu objetivo, assim como já fizeram em várias partes. Que triunfarão em qualquer outro lugar em que se importem de tentar, é evidente pela crescente tibieza dos evangélicos, pela pobreza dos acordos que oferecem e pela indiferença cada vez maior das massas em relação ao valor do ensino bíblico. De fato, considerando-se as premissas americanas, os evangélicos não têm argumento senão um apelo piedoso ao preconceito. Cedo ou tarde, as considerações lógicas, que são tão claras, deverão asseverar sua força. A dificuldade do problema pode ser vista nas complicações que também afetaram outros governos livres, como a Grã-Bretanha e a Holanda. No tocante à educação pública, há quatro soluções possíveis ao problema. A primeira é a injusta solução de forçar a religião da maioria sobre a minoria. A segunda é aquilo que é chamado na Grã-Bretanha de plano de “financiamentos concorrentes”. Cada denominação pode ter suas próprias escolas financiadas pelo Estado e ensinar nelas sua própria religião juntamente com o aprendizado secular. Este é praticamente o esquema que apaziguou em parte os católicos de Nova York. É rejeitado, com razão, por protestantesde toda parte, devido a uma série de razões. Em primeiro lugar, porque não oferece solução exceto onde haja várias denominações grandes o suficiente para sustentarem, nessas localidades, uma escola para cada uma de si. Em segundo lugar, o Estado não tem direito de afirmar o valor igual de credos opostos, cuja verdade de um pode implicar a falsidade positiva do outro. Em terceiro lugar, o Estado não tem o direito de afirmar, seja de um credo ou de outro, o que é ou não verdadeiro e proveitoso. Em quarto lugar, o protestantismo promove mais parcimônia e riqueza do que os restantes credos equivocados. Consequentemente, determinado número de protestantes pagará mais impostos destinados às escolas do que o mesmo número de pessoas que se encontram no erro, de maneira que esse plano usa uma parte de seu dinheiro para impulsionar credos que os protestantes conscientemente consideram perniciosos. Em quinto lugar, concede ao erro um apoio moral e financeiro além daquele que seria recebido pelo zelo espontâneo de seus adeptos. E, por fim, causa desunião à população ao treinar os jovens em campos religiosos hostis. Católicos irlandeses e americanos declararam sua aprovação, porque ganham com esse plano. Porém, quem se ilude que, caso fossem a maioria, eles estariam dispostos a ver o “bom dinheiro católico” sendo gasto para o ensino da heresia protestante? O terceiro plano propõe dar instrução a religiões não sectárias no primeiro horário da manhã, ao passo que os pais que discordassem disso tivessem autorização de não manter seus filhos na escola até o fim desse período. Isto equivale a estabelecer uma religião e usar o dinheiro do povo para ensiná-la, embora permitindo a discordância sem qualquer outra penalidade que não a taxação em prol de um propósito religioso que o contribuinte condena. Em outras palavras, coloca a questão na mesma posição em que a Inglaterra coloca sua religião estabelecida desde que o “Ato de Tolerância” de Guilherme III e Maria Stuart livrou os dissidentes das penalidades pela ausência aos cultos das igrejas anglicanas. Mas o ponto reivindicado pelos americanos é a liberdade, e não a tolerância. Eles negam o direito do Estado de escolher uma religião como a verdadeira e a mais importante, para quem quer que seja, deliberadamente ou não. Aqueles que discordam dessa religião escolhida negam que o Estado possa então dispender o dinheiro público como uma isca para induzir pais incautos ou equivocados a submeterem seus filhos à inculcação do erro. A única alternativa restante é a secularização total do ensino nas escolas púbicas, limitando-o a disciplinas puramente seculares, deixando aos pais ou à igreja suplementarem-no com o ensino religioso que lhes apraz ou nenhum. Alguns cristãos, impelidos pelas dificuldades criadas pelas escolas públicas, adotam essa conclusão. No entanto, a maioria, não obstante essa dificuldade, rejeita-a energicamente. Vejamos se esse plano é possível ou admissível. Essa é de fato a questão vital, porém não pode ser discutida até chegarmos a um acordo sobre o que é a educação e assim afastar concepções equivocadas e enganadoras sobre o tema. De modo conveniente, educa-se o homem ou a pessoa em sua integralidade; no entanto o objeto principal do trabalho de educação é o espírito. A educação é o treino e o desenvolvimento do homem inteiro para seu fim apropriado. Este fim deve ser corretamente concebido para que se compreenda o processo, e mesmo o fim terreno do homem é preponderantemente moral. Se a destreza em qualquer arte, como o manuseio de um tipo da prensa, de um arcabuz ou de um tear, fosse educação, sua secularização poderia ser tanto possível quanto apropriada. Ora, não é uma confusão neste ponto a fonte de grande parte do argumento em defesa desse tipo de educação pública? Por exemplo: “Por que o Estado não pode ensinar a ler e a escrever sem qualquer viés religioso? Por que não o fazer tal como o mecânico ensina seus aprendizes a limar, delinear e martelar?”. Porque a destreza numa arte não é educação. Esta última nutre a alma, a outra apenas exercita um órgão do sentido ou um músculo; uma tem uma finalidade mecânica, a outra, um propósito moral. A resposta não pode satisfazer simplesmente com a afirmação: “Concordemos então que o Estado está somente ensinando a destreza nas letras”. O Estado recusa-se a ser concebido dessa forma. Ele afirma educar, e isto pode ser visto no argumento universal dos defensores da educação pública. Essa perspectiva pressupõe que o Estado possui o direito e o dever de possibilitar que os jovens cidadãos sejam competentes em suas responsabilidades enquanto cidadãos. Todavia, essa responsabilidade é por natureza ética. Novamente, se o Estado afirma conceder a mera destreza e não educação, a igualdade exigiria a concessão de mais do que simples habilidade nas letras. Todas as demais artes úteis teriam de ser incluídas. As crianças teriam o direito igual de serem ensinadas nas demais artes que podem trazer-lhes o sustento, e o governo teria de abraçar o comunismo mais feroz. Não, o Estado não pode adotar essa evasiva. A menos que afirme educar, não há nada que possa fazer. É preciso também aqui salientar que as artes da leitura e da escrita são antes meios de educação do que educação em si, e não necessariamente são os mais eficazes. Conforme Macaulay demonstrou, em resposta ao dr. Johnson, o segmento iletrado dos atenienses eram, em alguns aspectos, altamente instruídos. Também vemos muitas pessoas, que embora letradas, são contudo desinstruídas. À vista disso, uma educação secularizada é possível ou admissível? 1. Antes de nós, nenhum povo de qualquer época, religião ou civilização jamais pensou que o fosse. Contra o presente esforço, certo ou errado, impõe-se todo o senso comum da humanidade. Pagãos, católicos, muçulmanos, gregos e protestantes — todos rejeitaram qualquer educação não fundamentada na religião como algo absurdo e maligno. Um exemplo pode ser visto na controvérsia em relação ao Testamento de Gerard. Com o intuito de excluir o cristianismo de uma faculdade, exigia-se que nenhum ministro jamais entrasse em seus domínios. O sr. Webster argumentou contra o testamento da seguinte maneira: o fideicomisso cujo cumprimento era ali proposto opunha-se de tal modo a toda jurisprudência civilizada, que se tornava ilegal e portanto nulo. O argumento pareceu tão formidável aos advogados, que o advogado de defesa, o sr. Horace Binney, dirigiu-se à Inglaterra para espoliar as leis britânicas de fideicomisso. Foi ao instar nesse ponto que o sr. Webster pronunciou estas memoráveis palavras: Em que época, qual culto, onde, quando, por quem a verdade religiosa foi excluída da educação da juventude? Nenhures. Nunca! Por toda parte, e em todos os tempos, foi tida como essencial. É da essência, da vitalidade da instrução valiosa. Não foi uma declaração do sr. Webster, o político, mas do douto advogado, frente a frente a oponentes muito capacitados. Naquele momento, realizava um dos esforços forenses mais respeitáveis de sua vida. Ele sabia que exprimia a densa voz da história e da jurisprudência. Ouçamos outra testemunha, de igual erudição e caráter superior. John B. Minor disse o seguinte acerca dessa questão: Deve-se reconhecer como um dos fenômenos mais notáveis de nossa humanidade pervertida o fato de que, dentre um povo cristão, e numa terra protestante, tal discussão [se a educação dos jovens pode ser secularizada] não devesse soar tão absurda quanto indagar se as salas de aula deveriam localizar-se sob a água ou em cavernas escuras! O judeu, o muçulmano,o seguidor de Confúcio e o seguidor de Brama, cada um deles e portanto todos cuidam de instruir os jovens de seu povo nas doutrinas das religiões que professam, e não se contentam até que, por ensino direto e reiterado, eles tenham se familiarizado com pelo menos os traços gerais dos livros que contêm, de acordo com suas crenças, a vontade revelada de Deus. Por que os cristãos são tão indiferentes a esse dever tão óbvio, que é tão patentemente reconhecido pelo judeu e pelo pagão? Estamos lutando, pois, em prol de uma inovação absoluta. Mas não pode a árvore ser conhecida pelos seus frutos? A educação estatal entre os americanos tende a ser inteiramente secularizada. Qual é o resultado disso? Neste país, há uma revolta generalizada para com a fé cristã, ainda que o país esteja repleto de igrejas, pregadores e um excesso de literatura cristã. E o que preparou tantos para as deprimentes absurdidades do materialismo? Por que os jornais que almejam a circulação nacional pensam que é de seu interesse afetarem irreligião? Por que tantas lamentações a respeito das corrupções públicas e populares? Observando a corrente de opinião, percebe-se que os mais sábios possuem muitas reservas quanto aos frutos de nossos presentes métodos de educação pública. A título de ilustração, analisemos estas palavras. O governador Rice de Massachusetts “ergueu uma voz de alerta, com relação à inadequação e perigos de nosso moderno sistema unilateral de educação, que supostamente poderia desenvolver a natureza humana e a cidadania somente a partir do cultivo mental”. 2. A verdadeira educação é, em certo sentido, um processo espiritual. É o treinamento de uma alma. A educação é o treinamento de um espírito que é racional e moral, no qual a consciência é a faculdade reguladora e imperativa. O propósito característico da consciência, mesmo neste mundo, é moral. Mas Deus é o único Senhor da consciência; a alma é sua semelhança em miniatura. A vontade divina é a fonte das obrigações da alma, e a semelhança a Deus é sua perfeição. A religião é a ciência das relações da alma para com Deus. Reunamos essas declarações, e os processos teológico e educacional mostram-se tão intimamente relacionados a ponto de não poderem ser separados. É por essa razão que o senso comum da humanidade sempre invocou a orientação de um ministro da religião para a educação da juventude. Na Índia é o brâmane, na Turquia, o imã, no judaísmo, o rabi, e nas terras cristãs, o pastor. Do mesmo modo, os livros sagrados sempre foram os principais livros didáticos. A única exceção no mundo é a que Roma estabeleceu para si mesma por meio do abuso intolerável de seus poderes. A alma é espiritualmente indivisível. Esses poderes, que nomeamos como faculdades separadas, são apenas modos diferentes de funcionamento. O poder central é ainda uno. Partindo destas verdades, aparentemente a alma não poderia ser cultivada com êxito mediante parcelas. Não é possível ter o trabalhador intelectual polindo-a num lugar e o trabalho espiritual, em outro. Pode-se apresentar uma sucessão de objetos à alma a fim de evocar e disciplinar suas potências; contudo, a unidade do ser demonstraria a necessidade de uma unidade em sua educação bem-sucedida. Os conceitos cristãos são os que mais estimulam e enobrecem a alma. Aquele que os omite de seus ensinamentos vê-se privado da destra de sua força. Onde há de extrair uma definição semelhante de virtude, tal como a que nos é apresentada no caráter revelado de Deus? Onde há outra representação tão enobrecedora da benevolência como a demonstrada no sacrifício de Cristo por seus inimigos? A concepção de espaços interestelares pode expandir a mente tanto quanto o pensamento de um Deus infinito, de uma existência eterna e de um destino sempiterno? Toda linha de conhecimento genuíno deve encontrar sua completude na sua convergência em Deus, assim como todo raio de luz do dia conduz o olhar ao sol. Se se exclui a religião do estudo, todo processo de pensamento será interrompido antes de alcançar seu fim apropriado. A estrutura do pensamento deve continuar sendo um cone truncado, privado de seu vértice superior. 3. Se é para tornar a educação secular consistente e honestamente não cristã, então deve-se omitir todos os principais ramos, ou deve-se mutilá-los e falseá- los, o que é muito pior do que a omissão absoluta. O instrutor deve ensinar história, cosmogonia, psicologia, ética e as leis das nações. Pode ele fazer isso sem dizer nada favorável ou desfavorável acerca das crenças dos cristãos evangélicos, católicos, socinianos, deístas, panteístas, materialistas ou animistas, todos os quais exigem direitos iguais sob a autoridade das instituições americanas? O ensino desse instrutor será de fato “a peça de Hamlet, omitindo- se as partes de Hamlet”. A educação secular deixará o cidadão jovem totalmente ignorante de suas próprias origens? Como ele aprenderá a narrativa das lutas por meio das quais os ingleses alcançaram as liberdades que as colônias herdaram, sem o entendimento das ferozes perseguições aos protestantes da parte de Maria, a Sanguinária? Como os filhos dos huguenotes em Nova York, na Virgínia ou na Carolina do Sul saberão a razão por que seus pais deixaram a bela França, esconderam-se em meio às nevascas do Norte ou nos bosques assolados pela malária do Sul? Eles não leram algo sobre a violação do “Édito de Nantes”, as “Dragonadas” e o massacre indiscriminado da Noite de São Bartolomeu, em honra do qual um predecessor “infalível” do papa entoou o Te Deum e cunhou medalhas? Se o médico tenta olhar para os primórdios da história do homem, ele pode apresentar a gênese da terra e do ser humano sem indicar se é Moisés ou Julian Huxley seu profeta? É possível estabelecer a ciência do imperativo moral sem qualquer referência a Deus? Não é preciso indagarmo-nos se sua vontade define ou não todo dever humano? O etnólogo é capaz de determinar os direitos da natureza e das nações sem afirmar ou negar, juntamente com o apóstolo, que “de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” (Atos 17.26)? E quanto da mais nobre literatura deveria ser excluído caso esse plano fosse sistematicamente levado a cabo? O professor da escola pública não deve mencionar Shakespeare a seus alunos, nem Bacon, nem Milton, nem Macauley. A censura da livre democracia será mais rigorosa do que a da Roma despótica! Porém não é preciso multiplicar os exemplos. Eles demonstram que as verdades e os fatos cristãos estão tão entrelaçados na tessitura do conhecimento dos americanos, que consequentemente constituem uma parte benéfica e essencial de nossa civilização. O professor da escola pública que imparcialmente evita tanto a afirmação ou a negação dessas verdades e fatos deve reduzir seu ensino a uma modesta concessão dos rudimentos insuficientes. Tais rudimentos, conforme vimos, não são conhecimento, mas meros indícios de conhecimento. Alguém pode dizer que se trata de um exagero. Por que um professor não pode simplesmente apresentar uma matéria secular, sem mutilar o conteúdo ou o cristianismo? Se seu ensino é de fato mais do que uma simples frivolidade numa área da educação, perceberemos que será, pois, tacitamente anticristão. Não há ataques diretos, porém, há uma evasão calculada que é, com efeito, hostil. Não é possível haver posição neutra entre esses dois extremos, que têm um “grande golfo fixo” entre si. 4. No tocante à ação humana, a vontade e a consciência devem ser purificadas e iluminadas. Aumentar o vigor das demais ações da alma por meio do treinamentonada mais é do que um malefício supérfluo. Se, num navio, a bússola está danificada e o piloto é cego, é preferível que não haja uma grande força a mover seu maquinário. Quanto mais potente seu movimento, maior a probabilidade de o navio ir celeremente de encontro às rebentações. Certamente isto basta para demonstrar à mente reflexiva que não é possível separar a instrução moral correta nesse ponto, ou em qualquer outro, do treinamento intelectual, sem que haja grande dano. Uma pequena porém óbvia aplicação dessa verdade dá-se em relação à própria disciplina da escola. Não se desenvolve nenhuma faculdade sem algum governo. Para o professor que omite completamente todo recurso à religião, sobre que base moral se assenta sua autoridade a ser exercida na sala de aula? Ele perceberá que é necessário dizer ao pupilo: “Seja diligente. Seja obediente. Não minta”. Isto deve ser feito de maneira que o estudante possa adquirir o conhecimento secular. Mas com base em que autoridade? Por qual padrão? Há apenas um fundamento da obrigação moral — a vontade de Deus. Entre as pessoas deste país, aquela que não se depara com o desvelamento dessa vontade nas Escrituras no mais das vezes também não a encontra em outra parte. Contudo, o professor não deve imprimir no espírito de seu pupilo os ensinamentos da Bíblia. Por conseguinte, seu poder somente deve produzir o direito — ou também o poder dos pais, ou do magistrado, para cuja autoridade delegada ele aponta. Ou seu apelo deveria ser ao interesse próprio do aluno? Esse governo será salutar à alma do jovem? Quando cresce, o aluno torna-se um cidadão. Passa a ter obrigações maiores e mais complexas. O propósito das escolas públicas é equipá-lo para isso. A mesma questão vem à tona novamente. Em que base se assentam esses deveres? Quando homem crescido, é presumível que ele agirá tal como fora ensinado em sua infância. Segue-se, pois, que os fundamentos da obrigação que lhe foram apresentados na escola devem ser aqueles que reconhecerá na vida adulta. Na escola pública, é possível que lhe tenha sido dado apenas um padrão não cristão. Não se pode esperar que agora seja elevado a um padrão superior, embora seja possível degradar-se a um padrão inferior, visto que o que lhe fora dado primeiramente não possui um fundamento subjacente. Qual é o resultado? Jovens americanos devem assumir suas responsabilidades com os costumes morais pagãos, pois é somente isto que a razão humana obtém sem a revelação de Deus. Será o suficiente para sustentar as instituições americanas? Possivelmente dirão que o teísmo natural é capaz de deduzir um código moral bastante elevado, conforme evidenciado na filosofia grega clássica. Um homem que entende corretamente os dados de sua consciência pode ser um ateu, e mesmo o ateísta é capaz de encontrar neles alguma prova da necessidade de governar-se a consciência. Mas não é assim que funciona na prática. Passemos a legislar para o povo conforme este deveria ser ao invés de como ele é de fato, e assim teremos um belo castelo de cartas! De fato, não há americanos, considerados aqui no modo que com eles habitualmente nos deparamos, cujas restrições morais não provenham da Bíblia. Se, quando treinarmos moralmente os jovens, abrirmos mãos do “Assim diz o Senhor”, não teremos mais o governo. O ensinamento que não fundamenta o dever no cristianismo é, para nós, praticamente imoral. Se é preciso um testemunho, citemos o dr. Griffin: “Educar a mente de um homem mau sem corrigir sua moral é colocar uma espada nas mãos de um maníaco”. John Locke tratou dessa mesma questão. “É a virtude, pois, a virtude direta, que é a parte difícil e valiosa que a educação deve visar. Se a virtude não se arraigar no aluno, excluindo assim todos os hábitos viciosos, toda a educação no mundo nada fará senão tornar o estudante pior ou mais perigoso”. Escutemos o dr. Francis Wayland: “O cultivo intelectual pode existir facilmente sem a existência da virtude ou do amor à retidão. Neste caso, seu único efeito é incitar o desejo; e este, sem as restrições do amor à retidão, deve, por fim, transtornar o tecido social que o cultivo intelectual num primeiro momento havia construído”. E, por fim, deveríamos considerar o que Washington disse em seu discurso de despedida. Ele ensinou-nos que a virtude dos cidadãos é a única base para a segurança social, e que a religião cristã é a única base adequada para essa virtude. No entanto, o cultivo mental não é, em si mesmo, enobrecedor? É-nos difícil desistir desse conceito, porque até aqui a educação foi relativamente cristã. O ministro foi o diretor da escola americana. Mas os mais educados não são também os mais elevados? Sim, isto é verdade pela razão que acabamos de apresentar. Há outra ainda. Não é que o cultivo da mente dos alunos os fez buscar uma moralidade superior; antes, sua moralidade superior (e a de seus pais) os fez buscar o cultivo mental. Somos propensos a pôr a carroça na frente dos bois. Novamente é preciso retornar às evidências. O conhecimento não governa o coração. Se algo o faz, é a consciência. O simples conhecimento, sem o temor a Deus, faz com que o desejo se desenvolva mais rapidamente do que a prudência. Sir Henry Bulwer coloca isso da seguinte maneira: “Não deposito muita confiança no filósofo que finge que o conhecimento que desenvolve as paixões seja um instrumento para sua supressão, ou que onde há mais desejos, é provável que haja mais ordem, e também maior abstinência na gratificação desses desejos”. A alma deve desenvolver-se simetricamente. Se os ramos de uma árvore crescem, ao passo que as raízes (inteiramente saudáveis) não se expandem, será derrubada no primeiro vendaval em razão da desproporção de suas partes. 5. Precisamos dos melhores homens ensinando nossas crianças. Porém os melhores são os cristãos genuínos, que carregam sua religião consigo em todas as coisas. Esses homens não podem se comprometer a serem professores de preciosas almas pelas quais Cristo morreu e não fazer quaisquer esforços para salvá-las. Desse modo, a tendência necessariamente será a entrega das escolas públicas nas mãos dos cristãos titubeantes ou nas mãos de descrentes insolentes. É possível sequer confiar em tais pessoas com uma tarefa secular importante? As ferrovias persistem em transgredir o Dia do Senhor; desse modo elas têm de empregar exclusivamente transgressores profanos do Dia do Senhor ou adeptos transigentes da religião. Qual é a consequência? São atormentados com oficiais negligentes, engenheiros bêbados e caixas desonestos. Assim, nossas escolas públicas cairão nas mãos de professores que nem mesmo ministrarão honestamente o ensino secular. Dinheiro será desperdiçado, e as escolas tornar-se-ão, para seus próprios pupilos, exemplos corrompedores de trabalho desleixado e abuso de fideicomissos. 6. Para cada cidadão cristão, o argumento conclusivo contra a educação escolar está presente em seu próprio credo no que se refere à responsabilidade humana. De acordo com este credo, a obrigação para com Deus envolve a totalidade dos atos e do ser de cada homem. Mesmo as melhores tentativas serão julgadas imperfeitas. “A lâmpada do perverso… é pecado” [Provérbios 21.4]. O fim deliberado para o qual nossos atos se dirigem determina derradeiramente sua (dos atos) compleição moral. Nosso Salvador também afirmou que não há neutralidade moral — aquele que não é por ele é contra ele. Juntamente a isto, consideremos que todo homem nasce num estado de alienação em relação a Deus. A inimizade e ateísmo práticos são o desenvolvimentonatural dessa disposição. O único remédio para essa doença natural do espírito do homem é a verdade do evangelho. A comparação dessas verdades tornará perfeitamente claro que o ensino não cristão deve ser literalmente um ensino anticristão. Eis, portanto, o argumento conclusivo. A réplica já foi lançada: “Não é verdade que os cristãos não sustentam essa teologia como membros da igreja, e não como cidadãos? Tu mesmo não disseste que o Estado não é um agente evangélico, e sua função apropriada não é a conversão de almas de seu pecado original?”. É verdade, mas o Estado também não tem o direito de tornar-se uma agência antievangélica, impondo resistência ao trabalho da comunidade espiritual. Embora o Estado não autorize as crenças teológicas dos cidadãos cristãos, também não possui o direito de travar guerra contra elas. Não obstante o fato de não termos o direito de pedir ao Estado para difundir nossa teologia, temos, contudo, o direito de exigir que não se oponha a ela. E educar almas dessa maneira é opor-se à nossa teologia. Eis a razão por que um ensino não cristão é um ensino anticristão. Pode-se apresentar ainda outro argumento contrário: “Essa consequência, embora maligna, não será mitigada caso o Estado cesse por completo de ensinar, pois então o ensino dos jovens será, ao menos no que lhe diz respeito, igualmente não cristão”. A resposta: uma coisa é tolerar um erro cometido por alguém sobre o qual não temos autoridade legal, e outra inteiramente diferente é cometermos nós mesmos esse erro. Pois o Estado fazer aquilo que lhe cabe a fim de condenar os pais ímpios (embora ele não tenha autoridade para interferir) seria o pecado de “forjar o mal, tendo uma lei por pretexto” [Salmo 94.20]. Esta é a própria característica de um “trono da iniquidade”, com o qual o Senhor não pode ter comunhão. Outra objeção é que se o Estado deve governar e punir — ambas as quais são funções morais —, ele também deve ensinar. Se estamos preparados para a ideia totalitária de Estado, que faz deste a instituição humana universal, então podemos chegar a essa conclusão acima. Entretanto, o Estado deve fazer tudo, desde reparar uma estrada e drenar um pântano até apoiar uma religião? Mas então a coerência fará com que adicionemos às escolas públicas uma religião governamental, um clero sustentado por impostos, um exame religioso para cargos públicos, e o Estado empunhando seu poder para suprimir tanto o erro teológico quanto o social. Novamente, embora o governo e punição seculares sejam funções éticas, eles estão suficientemente fundamentados à luz do teísmo natural. No entanto, o ensino é uma função espiritual — no sentido acima definido. Para o ensino de indivíduos caídos e moralmente arruinados, o teísmo natural é totalmente inadequado, conforme vê-se no Estado da sociedade pagã. Os cidadãos cristãos estão autorizados por Deus (e não pelo Estado) a sustentar que o único ensino adequado para uma alma caída é o ensino da redenção. Mas disto o Estado, enquanto tal, nada sabe. Como instituição de Deus para a consecução da justiça secular, o Estado sabe o suficiente da retidão moral para honrar aqueles que fazem o bem e para trazer terror aos malfeitores. A evasiva mais plausível que se possa apresentar é esta: “Visto que a educação é tão abrangente, por que não podemos ter uma ‘divisão de tarefas’? Deixem o Estado educar o intelecto, enquanto os pais cristãos e a igreja educam a consciência e o coração, tanto em casa quanto no local de adoração”. Muitos cristãos julgam essa solução satisfatória. É claro que tal arranjo não seria tão maligno quanto a negligência para com a educação do coração por parte do Estado e dos pais. Essas objeções, contudo, já foram respondidas. Uma vez que a consciência é a faculdade reguladora de todas as demais, o professor que não pode lidar com a consciência não pode também lidar adequadamente com qualquer outra coisa. Visto que a alma é indivisível, não se pode equipá-la em diferentes partes e em momentos e locais diferentes do mesmo modo que um homem pode comprar seu chapéu numa loja e suas botas em outra. Tendo em vista que todas as verdades se convergem em Deus, o professor que não pode mencionar o nome de Deus necessariamente ministra um ensino fragmentado. Ele é capaz de construir somente uma figura truncada. Na história, na ética, na filosofia e na jurisprudência, os fatos e pressupostos religiosos são absolutamente inseparáveis do conteúdo que se tem em mãos. A disciplina necessária de uma sala de aula e a fidelidade secular dos professores exigem a religião. E nenhuma pessoa ou instituição tem o direito de dizer a uma alma responsável, imortal: “Nesta extensa porção intelectual e ética de tua vida, estás autorizado a ser ímpio”. A escola pública não deve sequer ousar negar a seu pupilo o estabelecimento de sua própria atividade. Essa negação seria, por si mesma, uma inculcação religiosa! Porém, há mais ainda. Por que as pessoas desejam que o Estado interfira na educação? A resposta é que ele possui o poder e os recursos para melhor fazê-lo. Mas então, a menos que sua intervenção seja uma fraude, sua educação secular deve, com efeito, ser algo que exerça profunda impressão. Isto significa que essa impressão — que, de acordo com a teoria, será não cristã —, terá um efeito maior na alma do jovem. E é o ensino mais fraco ministrado na Escola Dominical que deverá contrabalancear isso. O coração natural é carnal e naturalmente se inclina para longe do evangelho. Para o jovem, quando inspirado por seus estudos, o professor é geralmente um deus; e, neste estado de coisas, será, para o estudante entusiasta, uma divindade completamente pagã. O lado cristão do professor, caso exista, não poderá mostrar-se a esse adorador! Se estas coisas de fato ocorrem, quão pálido e frio parecerá o raro raio de evangelho, quando vier sobre o jovem aos domingos! Em resumo, ao estudante de sucesso que está sob a autoridade de um professor competente, a escola é seu mundo. Torne a escola irreligiosa, e a vida do estudante tornar-se-á irreligiosa. Perguntemos novamente: “Por que o Estado não se poupa de problemas simplesmente deixando toda educação aos pais?”. A resposta que nos chega é a seguinte: “Porque muitos pais são incapazes ou descuidados para que possamos confiar a eles essa tarefa”. Evidentemente se a maioria dos pais cumprissem o trabalho de forma satisfatória, o Estado não teria razão para intrometer-se. Mas então a própria razão para a existência da escola pública é essa ampla classe de pais negligentes. Porém, o homem é um ser carnal, alienado da piedade. Consequentemente, todos aqueles que negligenciam o desenvolvimento mental de seus filhos também negligenciam seu cultivo espiritual. Portanto, devemos supor que, na própria classe que serve de pretexto para a intervenção do Estado, o desenvolvimento fatalmente parcial que ele fornece permanecerá sendo parcial. O Estado não tem direito de presumir nada diferente disso. No entanto, alguém pode replicar: “Nisto, não cabe à igreja assumir esse trabalho, negligenciado tanto pela escola pública secularizada quanto pelos pais ímpios?”. A resposta é que a escola secular não pode declarar a igreja como um aliado. Ademais, se a igreja se encontra suficientemente onipresente, disposta e eficiente ao redor de todo o país para que se possa confiar nela, por que ela não inspirará, nos pais e indivíduos filantropos, zelo suficiente para cuidarem de toda a educação da juventude? Assim, mais uma vez, desaparecerão todas as razões para a intervenção do Estado. Todavia, a igreja de fato não repara, nem é capazde fazê-lo, o agravo que está sendo causado pelo seu mais rico e poderoso rival. O Estado secular está fornecendo, sob o disfarce de uma educação não cristã, uma educação anticristã. É também um fato bastante conhecido aos homens práticos que as escolas públicas obstruem os empenhos dos pais e de filantropos. Desse modo, caso não houvesse interferência, pais seguiriam o impulso de cristãos iluminados, seus próximos e seus guias naturais, criando assim escolas privadas para seus filhos. As escolas seriam tanto primárias quanto clássicas. Porém, agora invariavelmente oferecem apenas a educação primária. “O imposto referente à escola deve ser pago de qualquer modo, e é pesado. Isso é tudo que podemos fazer”. No passado, filhos de pais pobres que demonstravam aspiração para a aprendizagem encontravam sua oportunidade para receber a instrução clássica perto de seus lares, nas incontáveis escolas privadas criadas pela iniciativa de pais e pelo espírito público. A caridade da vizinhança jamais permitiu que tais jovens merecedores fossem impedidos pela simples falta de instrução. Uma vez que os melhores homens são líderes naturais de seus próximos, eles trariam uma grande parte das crianças das classes próximas a eles para as escolas privadas criadas para suas próprias famílias. Essas, por essa mesma razão, seriam certamente escolas cristãs. No entanto, o objetivo da educação pública é trazer um grande número de crianças para as escolas primárias e reduzir de algum modo a iliteracia — o que é um grande deleite para filantropos superficiais. Porém o número de jovens educados para além dos meros rudimentos, e especialmente aqueles que passaram por educação cristã cotidiana, é diminuto. Dessa maneira, a secularização efetiva e consistente da educação não deve ser tolerada. Mas quase todos os homens públicos e pregadores declaram que as escolas públicas são a glória da América. Elas são uma finalidade, e de modo nenhum deve-se abrir mão delas. Vimos que sua secularização total é logicamente inevitável. Os cristãos devem preparar-se, então, para as seguintes consequências: todas as orações, catecismos e Bíblias serão, por fim, retiradas das escolas. Mas isto não satisfará os católicos, que obstinadamente — e caso sua religião estivesse certa, corretamente — insistem que a educação para suas crianças deve ser cristã. Esse poder sobre as esperanças e medos dos demagogos assegurar- lhes-á aquilo que os protestantes não podem exigir por coerência — uma verba separada retirada dos fundos públicos. Portanto, em relação ao protestantismo, Roma desfrutará de uma grande vantagem na corrida do propagandismo. A humanidade sempre perceberá, mais cedo ou mais tarde, que não pode subsistir sem uma religião, e isto fará com que assuma preferencialmente uma religião falsa em lugar de nenhuma. Infidelidade e impiedade práticas tornar-se-ão cada vez mais predominantes entre os jovens protestantes, e nossas igrejas enfrentarão uma dificuldade maior para seu crescimento, quando não para sua existência. Talvez os protestantes americanos possam ser conduzidos não ao abandono, mas à revisão de suas opiniões no tocante à educação. Eles poderiam relembrar as condições sob as quais a teoria da educação pública veio a ser primeiramente aceita neste país. Deu-se nas colônias que, ao mesmo tempo, advogavam firmemente a união entre igreja e Estado. As colônias de Massachusetts e Connecticut, por exemplo, honoráveis pioneiras na educação pública desta nação, eram resolutamente teocráticas em sua constituição. A religião reformada fora estabelecida por lei. O mesmo sucedeu em todos os países protestantes da Europa, cujos exemplos bem-sucedidos são sempre citados. Escócia e Prússia, por exemplo, têm a fé protestante como religião estabelecida. Essa união igreja/Estado e a educação pública primária sempre foram parte de um sistema coerente nas mentes de seus governantes na igreja e no Estado. Uma educação secular, tal como esta que resultará de nosso sistema escolar público, teria sido repudiada com indignação pelos Winthrops e Mathers, os Knoxs, os Melvilles e os Chalmers. Pode-se até mesmo dizer com segurança que os Tholucks e os Bismarcks, que são apontados como precedentes e modelos, condenariam tal coisa. Será de fato honesto os defensores da escola pública citarem as opiniões e ações de todos esses grandes homens, para algo que é inteiramente diferente daquilo que defendiam? John Knox, por exemplo, insistia na educação primária para cada criança na Escócia por parte do Estado. Mas isto porque o Estado que ele havia auxiliado a reconstruir na Escócia estava revestido do poder legitimado para ensinar a religião reformada (por meio da igreja aliada), e porque era assim competente para ensinar as crianças a lerem e de igual modo ensiná-las as Escrituras e o Catecismo da Assembleia [de Westminster]. Se Knox tivesse testemunhado uma ruptura entre igreja e Estado (a qual ele teria condenado como maligna e pagã) conduzindo a uma educação secular, e que educasse o intelecto sem a consciência ou o coração, sua língua heroica não teria pronunciado palavras inseguras. Vemos, pois, que homens bons e sábios adotaram e desenvolveram com êxito esse sistema. Mas eles o fizeram somente por comunidades que uniam igreja e Estado, e a educação mental com a espiritual. A questão para consideração honesta é, pois, a seguinte: “Que modificações a teoria da educação pública deveria receber, quando é importada para comunidades cujos governos civis secularizaram-se de forma absoluta, tornando ilegal e impossível a união entre os poderes secular e espiritual?”. A resposta talvez possa ser encontrada ao retrocedermos ao primeiro princípio sugerido no início desta discussão. A educação das crianças é uma função cívica ou eclesiástica? Não é propriamente uma função doméstica que cabe aos pais? Primeiramente, lemos nas Escrituras que Deus estabeleceu a família pela união de uma mulher com um homem, numa só carne, para a vida, para o fim declarado de “buscar a descendência que prometera” [Malaquias 2.15]. Isto não implica que Deus olha para os pais, nos quais se fundamenta a família, como os agentes responsáveis desse resultado? No Quinto Mandamento, Deus vinculou o filho não com o presbítero ou o magistrado, mas com seus pais, o que evidentemente confere a estes a autoridade apropriada e primacial. Esse argumento aparece novamente na própria ordem da gênese histórica da família e do Estado, assim como da igreja visível. A família foi estabelecida em primeiro lugar. Os pais, no princípio, foram os únicos chefes sociais existentes. A criação correta das crianças por parte deles foi necessária para a constituição correta de duas outras instituições. Consequentemente, a autoridade dos pais sobre as crianças aparentemente não pôde ter se originado pela delegação do Estado ou da igreja visível — não mais do que a água na fonte procede do reservatório inferior. Em segundo lugar, o modo como Deus opera no curso da natureza demonstra onde estão depositados o poder e o dever da educação. Deus determinou que os pais decidam em que momento a criança iniciará sua carreira adulta. O filho herda a fortuna, a posição social, a responsabilidade, ou a má reputação de seu pai. Em terceiro lugar, Deus deu aos pais influências sociais e morais tão singulares, tão extensas, que nenhum outro poder terreno, ou todos os demais poderes juntos, podem substituí-los na formação do caráter da criança. O exemplo doméstico, fortalecido pela venerável autoridade do pai e da mãe, repetido continuamente em casa e reforçadopela reverência filial, deveria ter a força suprema sobre o caráter. Deus preservou esse poder ímpar por meio da afeição natural, a mais poderosa e mais altruísta que ainda se mantém no coração do homem caído. Até que o magistrado seja capaz de sentir o amor, sendo por este animado para um cuidado e trabalho abnegados iguais ao de um pai e ao de uma mãe, ele não pode apresentar nenhuma razão para assumir qualquer função parental. O melhor argumento neste ponto é o próprio instinto do coração. Pais nenhuns podem deixar de ressentir-se pela intrusão de qualquer autoridade entre sua consciência e convicções e a alma de seu filho. Se o pai conscientemente acredita que seu próprio credo é verdadeiro e justo e impreterível perante Deus, então ele deve intuitivamente considerar como usurpação a intrusão entre ele e seu filho por parte de qualquer poder que busca promover a rejeição desse credo. Somente a liberdade da mente do filho, quando se tornar um adulto, pode legitimamente interpor-se. Se essa usurpação é cometida pela igreja visível, é uma caminhada em direção ao catolicismo. Se é cometida pelo magistrado, é uma caminhada em direção ao despotismo. Pode-se objetar que essa teoria torna os pais soberanos durante a menoridade mental e moral da criança. Isso afeta a formação das opiniões e caráter da criança, e visto que os pais são falíveis e podem ensinar o filho equivocadamente, é necessário que haja uma autoridade superior para supervisionar e intervir. A resposta para isso é que a suprema autoridade deve ser colocada em algum lugar. Deus indicou que, em geral, nenhum lugar é tão seguro para isso quanto os braços dos pais, os quais possuem o amor maior pela criança e as melhores oportunidades. Mas, os pais não podem, no entanto, negligenciar ou perverter esse poder? Sim, mas acaso o Estado jamais negligencia ou perverte seus poderes? Com as lições da história para nos ensinarem acerca dos abusos de poder horríveis e quase universais nas mãos de governantes civis, essa questão é conclusiva. No caso de um Estado ímpio ou injusto, o mal seria universal e enorme. Não há dúvida de que Deus depositou o dever da educação no lugar mais seguro. As competições entre Estado e igreja pelo poder sobre a educação têm sido tão absorventes que quase nos esquecemos dos pais, o terceiro e legítimo competidor. E agora muitos olham para a reivindicação dos pais quase com desprezo. Uma vez que as esferas da igreja e do Estado são muito mais amplas e mais populosas do que a esfera dos pais, eles estão inclinados a considerá-la em tudo inferior. No entanto, não vimos que o menor círculo é, de fato, o original e mais autorizado dentre os três? Qualquer homem que faça uso mínimo de seu intelecto dirá que seu direito de casar-se e ser um pai advém da permissão do Estado? Há aqui um equívoco em relação à autoridade do Estado, porque as constituições civis conferem ao Estado certas funções policiais relativas ao casamento e às famílias. Do mesmo modo, há leis relativas a certos pertences eclesiásticos. Mas por que os protestantes supõem, a partir disto, que seus direitos religiosos são conferidos ou podem ser legitimamente retirados pela autoridade civil? A verdade é que Deus instituiu imediata[13] e fidedignamente três organismos para o homem na terra — o Estado, a igreja visível e a família. Eles são coordenados em seus direitos e mútua independência. O Estado ou a igreja não têm mais direito de invadir a esfera parental do que os pais de invadirem as suas esferas. A justa distribuição de todos os deveres e poder entre os três círculos seria a solução completa desse problema de bom governo que jamais foi resolvido com êxito total. O que é essencial para uma teoria genuína dos direitos humanos? A independência real do menor porém mais elevado domínio — o domínio dos pais — deve ser respeitada. Não ficou provado que a direção da educação é uma de suas prerrogativas? Mas o direito que o Estado tem de existir não implica o direito de assegurar todas as condições de sua existência? Acaso não existe a possibilidade de os pais perverterem ou negligenciarem de tal modo a educação ao ponto de criar uma geração que não tem a competência para preservar nossas instituições civis? Isto não dá ao Estado o controle sobre a educação? A primeira resposta é que isso não é sequer um pretexto para a invasão por parte do Estado à esfera parental para além do que diz respeito à existência de uma negligência destrutiva. Isto é, o Estado deve estimular, ou ajudar, ou coagir somente os pais negligentes. Em segundo lugar, este mesmíssimo argumento pode autorizar o Estado a intrometer-se no círculo espiritual e estabelecer e ensinar uma religião. Há aqui um sofisma. Pressupõe-se que uma forma particular de instituições civis tem um direito prescritivo de perpetuar-se a si mesma. Não há direito algum desse tipo. Essa é a abordagem americana — as pessoas possuem um direito inerente de mudarem suas instituições. Porventura nossos pais republicanos sustentaram que quaisquer pessoas possuem o direito de subverter a ordem moral da sociedade ordenada por Deus e pela natureza? Certamente não. Neste ponto, então, a distinção entre a ordem moral e qualquer ordem civil particular é-nos desvelada. E isto é frequentemente ignorado. Não é verdade que a autoridade civil está autorizada a moldar um povo que a ela se ajuste. O oposto é verdadeiro: o povo deve moldar a autoridade civil. Trata-se de uma máxima na filosofia política, assim como na mecânica, que quando um organismo é utilizado numa função para a qual não fora projetado, ele é danificado e a função é realizada de modo precário. Pensemos num fazendeiro que tem um moinho projetado e bem ajustado para moer seu grão. Ele resolve, no entanto, que o moinho também há de debulhar seus feixes. O resultado é uma debulha horrível e um moinho avariado. Repito: Deus designou o Estado como o órgão para assegurar a justiça secular. Quando ele se volta para o ensino ou a pregação, ele reproduz a experiência do fazendeiro. O governo afeta poderosamente o caráter nacional pela maneira que realiza suas funções designadas. Se a administração é justa, pura e livre, ela engradece o povo. Mas isto se dá mediante influência indireta, e é tudo que a administração pode fazer bem. O resto de qualquer elevação nacional (um resultado que todo homem bom tem de desejar) deve proceder de outras agências. Devemos olhar para as obras da Providência todo-poderosa. Devemos buscar as ideias férteis e os atos heroicos com os quais Deus inspira os grandes homens que ele soberanamente concede às nações que pretende abençoar. Devemos também buscar a energia da divina Verdade e as virtudes cristãs, que são vistas primeiramente nos indivíduos, em seguida nas famílias, e por fim nas igrejas visíveis. Suponhamos que tanto o Estado quanto a igreja reconheçam os pais como o poder educador. Suponhamos, além disso, que eles assumam em relação aos pais uma atitude comedida porém prestativa — ao invés de uma atitude de dominação. O Estado deveria encorajar os esforços individuais e voluntários ao preservar o escudo imparcial da proteção legal sobre toda propriedade que possa ser dedicada à educação. Deveria encorajar todos os esforços privados, e poderia ajudar aqueles cuja pobreza e adversidades incapacitaram-nos a criar adequadamente seus próprios filhos. Desse modo, os problemas relativos à religião nas escolas públicas seriam resolvidos. O Estado não é o criador responsável das escolas, mas sim os pais. Nosso sistema educacional teria uma simetria menos mecânica, porém seria mais flexível, mais prático e muito mais proveitoso. PARTEII 1. POLÍTICA E EDUCAÇÃO[14] R. J. Rushdoony Nos primeiros meses de 1967, estudantes em Berkeley manifestaram-se contra a possibilidade de uma mensalidade, e uma frase excelente foi cunhada por alguns dos manifestantes: Mantenham a política fora da educação. É tempo de pensar seriamente sobre esse princípio. Precisamos manter a política fora da educação. O Estado não possui o direito de governar as escolas, assim como não possui o direito de governar as igrejas, e não tem mais fundamentos para financiar a educação do que tem para financiar igrejas. O que precisamos urgentemente é o disestablishment[15] das escolas — a separação da escola e o Estado. A educação não é função do Estado; é função dos educadores. Um advogado, barbeiro, ministro, geólogo de petróleo ou pecuarista — todos agem sem o benefício de qualquer subsídio de alguma agência do governo civil. Eles sobrevivem porque, primeiro, seus serviços são necessários, e, em segundo lugar, porque seus serviços são melhores do que aqueles dos seus competidores. Um subsídio destrói a qualidade; ele impede que os fracassos num campo de atividade paguem pelo preço do fracasso, que abandonem o negócio. Visto que o subsídio permite que um fracasso continue, ele sustenta a incompetência viva e a torna pelo menos igual à competência. Certamente, a educação é necessária para a sociedade, mas igrejas também são muito necessárias, assim como médicos, advogados, mecânicos e muitas profissões e ofícios. A necessidade qualifica-os, pois, para o recebimento de um subsídio? Um subsídio é uma forma de establishment[16]; é também uma forma de aprisionamento. Sempre e onde quer que um governo civil financie qualquer tipo de atividade, ele tem o direito legal e moral de controlar essa atividade. Se o Estado financia as igrejas, ele tem o direito de controlar as igrejas. Se o Estado financia as escolas, faculdades e universidades, ele tem o direito e o dever de controlá-las. Alguns objetarão, contudo, que nem todos podem pagar pela educação. A resposta é que antes do Estado começar a financiar a educação nos Estados Unidos, todas as crianças americanas eram educadas. Os filhos dos pobres e dos imigrantes eram educados por sociedades missionárias educacionais. Além disso, é um engano pensar que não pagamos pela educação quando esta é custeada pelo Estado. Não só pagamos, mas pagamos mais. Recentemente, duas escolas foram construídas em uma comunidade, para um número quase igual de crianças, mas o custo da escola cristã era metade daquele da escola estadual e oferecia uma educação de maior qualidade. Deve-se também acrescentar que a carga tributária educacional sobre o pobre é bem mais pesada do que mensalidade de qualquer escola cristã; ele paga esse imposto direta ou indiretamente, quase a cada momento do dia. A educação custeada pelo Estado é uma educação totalitária. A essência do totalitarismo é simplesmente esta: ele afirma que o Estado tem todas as respostas para a vida, e que praticamente toda esfera da atividade humana deve ser governada pelo Estado. O totalitário crê que a educação, a economia e o comércio, a família, o bem-estar da criança e do idoso, a medicina, a ciência e tudo o mais precisa da mão controladora e orientadora do Estado. Há diferentes tipos de totalitarismo — marxista, democrático, fascista, fabiano e assim por diante — mas suas diferenças não são essenciais, ao passo que suas correspondências o são. Comum a todas as formas de totalitarismo é a crença no controle da educação pelo Estado. Desde o projeto de Platão para um Estado comunista até os dias de hoje, o planejamento totalitário tem investido de forma pesada sobre o controle da educação. O libertarianismo cristão é hostil à política na educação. Ele também não é a favor da igreja na educação. A escola, sob Deus, é uma agência tão livre quanto a igreja e o Estado. Nem a igreja nem o Estado têm qualquer direito de controlar o outro, nem possuem qualquer direito de controlar a família, a economia, a cultura, a arte ou qualquer outra esfera de atividade humana. Nenhuma instituição tem o direito de fazer o papel de deus e de guardiã de todas as outras instituições na sociedade. A reivindicação desse direito por qualquer instituição se configura como totalitarismo. A família não pertence à igreja nem ao Estado; ela é uma instituição separada, estando diretamente sob a autoridade de Deus. Da mesma forma, a escola tem o direito a uma existência livre e separada. Ela é um reino independente, com uma função marcadamente diferente daquela da igreja e do Estado. A função da escola e do professor é ensinar, educar. Se o Estado ou a igreja controla a escola, então torna-se função da escola servir aos propósitos do Estado ou da igreja. A propaganda passa a governar a educação. Em vez de servir à função primária da escola ou da faculdade, o professor serve então ao propósito primário do Estado ou igreja controladores. Além disso, a qualidade da escola declina, pois a escola nesse caso existe por meio de um subsídio de outra instituição, não por estar fazendo um trabalho bem-sucedido. Uma escola verdadeira bem-sucedida é aquela cujos propósitos e ensinos agradam tão fortemente certo grupo de pessoas, que elas voluntariamente a apoiam, pagam as mensalidades para matricularem-se nela, e julgam que sua existência é importante o suficiente para promovê-la. Sob o sistema de escolas livres — escolas não subsidiadas — algumas escolas ensinarão com base na fé cristã, outras, com base no humanismo, mas cada escola dependerá de seus méritos e do apoio popular para manter-se em funcionamento. Essa é exatamente a forma como as igrejas sobrevivem, e não nos faltam igrejas. É assim também que o negócio sobrevive, atendendo à demanda pública com um produto superior que venda facilmente. A educação não estatal hoje é o movimento social que mais cresce na América. Todo o ano mais e mais escolas cristãs e privadas estão sendo estabelecidas, e muitas têm longas listas de espera. Essas escolas não representam apenas as classes mais ricas. Uma das melhores escolas que visitei havia se estabelecido numa pequena cidade, e a maioria das crianças eram de famílias que trabalhavam em moinhos, quase todas com rendas muito modestas. Essas escolas estavam sendo estabelecidas porque os pais estavam exigindo uma educação que satisfizesse seus requerimentos, e não os do Estado. Hoje entre 25% e 30% de todas as crianças do ensino fundamental não estão em escolas públicas; elas estão em escolas privadas, paroquiais e cristãs. E 10% de todos os estudantes do ensino médio nos Estados Unidos também estão em escolas não estatais. E a percentagem está crescendo rapidamente. Essa é a maior revolução social dos nossos dias, e todavia os jornais raramente a mencionam. Desde 1950, o cenário educacional tem visto um grande deslocamento da educação estatal no ensino fundamental e médio, mas poucos estão cientes desse fato revolucionário. No ritmo atual de crescimento, até o final do século a escola pública terá sumido e a escola independente tê-la-á substituído. O slogan: Mantenham a política fora da educação é ao mesmo tempo bom e necessário. A educação precisa de liberdade para sobreviver. O mundo acadêmico tem também sido há muito tempo um refúgio para excêntricos que prosperam num mundo subsidiado. O professor mediano de hoje não é um scholar. Ele está disposto a fazer uma pesquisa apenas se lhe for necessária para uma promoção. Tão logo se torna um professor titular e efetivo, desinteressa-se em aprender, pois o seu mundo é um lugar melhor para se esconder da educação do que um lugar para a educação.
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