A lb er to A bu ch ai m Alberto Abuchaim “Fernão Gaivota desco- briu que o tédio, o medo e a ira são as razões por que a vida de uma gaivota é tão curta ...” A presente contribuição tem por finalidade abordar alguns as- pectos que julgamos importantes no livro Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach (1974), e pontos de vista, que se acham presentes no li- vro, em forma literária, consideran- do-os sob o enfoque psicodinâmico. Especificamente, visamos a enfatizar aspectos do crescimento global do indivíduo, a solução gra- dual dos conflitos como forma de amadurecimento pessoal e a libera- ção do potencial criador da pessoa. Queremos ressaltar, tal como percebemos no livro, o valor da individuali- dade, do desenvolvimento dos aspectos originais da personalidade do indi- víduo e das relações deste com o grupo, bem como o fato de que tais rela- ções só podem ser adequadas quando se encontram devidamente equacionados os aspectos pessoais. A narrativa mostra um estreito paralelismo entre o que se passa com o personagem central e o que ocorre com o indivíduo no processo evolutivo de superação de seus conflitos, de compreensão de seus aspectos internos, de reconhecimento de suas tendências, potencialidades e receios, enfim, o que se passa no indivíduo, nesse processo contínuo de amadurecimento pessoal, que dura toda a vida. O autor é escritor e piloto, de condição social modesta, pai de seis filhos. Dadas as suas profissões paralelas, não é de surpreender o simbolis- mo de haver escolhido, como personagem de seu livro, uma gaivota, cujo interesse primordial é o vôo, a liberdade, a busca da perfeição. O autor não menciona a infância do personagem, mas começa a des- crever toda a sua evolução a partir dos conflitos da adolescência – a busca da individualidade e a decisão de defendê-la e preservá-la a todo custo. Quando os propósitos se opõem aos objetivos de auto-realização e liberda- de de Fernão, este resolve separar-se do seu grupo familiar e social, apesar do sofrimento que isso lhe causa. Ele se isola, por ser isto necessário, treina o seu modo de viver, empreende uma exercitação contínua e adquire uma experiência excepcional, nunca antes alcançada em seu bando. É descrita a maneira pela qual o personagem, havendo alcançado a maturidade biológica, não considerou atingida a plena capacidade psicoló- gica, pois, para ele, a vida, a liberdade e a ânsia de aprender não tinham limites. Passou a repartir sua experiência de vida com outras gaivotas que, como ele, achavam que esta nova maneira de viver e voar constituía o seu maior objetivo. O ensino, a capacidade de dedicar-se aos outros do grupo à sua volta, fazendo com que seus componentes cresçam com ele, são bem descritos no livro, que expõe a evolução da vida de um indivíduo, bem como narra a sua adolescência, maturidade e velhice, abrangendo as suas A lb er to A bu ch ai m principais vivências, seus conflitos, seus aspectos criadores e as relações entre esse indivíduo e o grupo, sempre ressaltando a individualidade do personagem como algo fundamental e capaz de influir poderosamente no grupo. Fernão Capelo Gaivota sentiu que tinha de se separar do grupo, quan- do percebeu que este interferia na sua possibilidade de realização e postu- lava princípios irracionais: “A vida é o desconhecido e o incognoscível ... estamos neste mundo para comer e nos mantermos vivos”. Aos argumen- tos de Fernão, o bando se mostra impenetrável, como pedra. Pensamos que esta forma de funcionar, irracional e baseada no temor, é o que se observa em todo indivíduo, quando tenta vencer suas próprias resistências internas e se modificar, bem como ela faz com que levemos em consideração que o maior temor do ser humano é o da morte; talvez seja por isto que no livro foi entendido como uma elegia à espiritualidade e ao desprendimento ma- terial, mostrando a evolução do espírito e não de um desenvolvimento nor- mal. E a maioria do grupo se petrifica diante da irremovível finitude, e vai encontrar solução metafórica: “não teve uma vida, teve mil vidas”. Sabemos que, para que o indivíduo supere a indecisão e a submissão irracional, determinada por seus conflitos internos, é necessário que possa antepor o princípio da realidade à tendência comodista do princípio do pra- zer, pois, quando este é seguido de maneira cega, a pessoa se torna incapaz de almejar objetivos mais elevados e, na realidade, termina se destruindo e impedindo o progresso. “Fernão Gaivota descobriu que o tédio, o medo e a ira são as razões por que a vida de uma gaivota é tão curta e, sem isso a lhe perturbar o pensamento, viveu uma vida longa e feliz”. A história de Fernão Capelo Gaivota apresenta também, de maneira clara, os conflitos da adolescência. Quando ele se põe a treinar o vôo pelo simples prazer de voar e pensa que, para uma gaivota, o mais importante é saber voar bem, seus pais se mostram muito preocupados: “ ‘Por quê, Fernão, por quê?’ – perguntava-lhe a mãe. ‘Por que é que lhe custa tanto ser igual ao resto do bando? Por que você não deixa os vôos baixos para os pelicanos, para o albatroz? Por que não come? Filho, você está que é só pêlo e osso.’ ‘Escute, Fernão’ – disse-lhe o pai com bondade – ‘o inver- no não está longe ... não esqueça que a razão por que você voa é comer’ ”. Essa situação mostra o conflito que se estabelece no indivíduo quando se defronta, por um lado, com seus ideais e, por outro, com as tendências dos pais e, mais importante, com as figuras internalizadas desses, com toda a carga de ansiedade, depressão e culpa que isso pode causar. Mostra como os objetos internos e o superego podem participar deste conflito da adoles- cência, procurando fazer com que o adolescente se deprima com as preocu- pações dos pais e com o temor de perdê-los; mostra como o superego pode fazer ameaças paralisadoras ao progresso pessoal. Também, nessa passa- gem, parece claro que, para amadurecer emocionalmente, a pessoa tem que lutar, inclusive, com as tendências herdadas e determinadas pela carga ge- nética. Na realidade, quando Fernão Capelo Gaivota decidiu colocar em execução sua nova maneira de encarar a vida, ele se antecipou, realizou um progresso de mil anos ou de mil gerações. “A única resposta que encontro é que você é um daqueles pássaros que se encontram num milhão ... quase todos nós percorremos um longo caminho ... esquecendo de onde viéra- mos, não nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente ... até ter a primeira intuição de que há na vida algo mais do que comer, ou lutar, ou ter uma posição importante dentro do bando ... Mil vidas, Fernão, dez mil! E depois mais cem vidas, até começarmos a aprender que há uma coisa chamada perfeição, e outras cem, para nos convencermos de que o nosso objetivo na vida é encontrar a perfeição e levá-la ao extremo.” Essa passagem, em que o instrutor fala a Fernão, mostra-nos a longa evolução que ocorre dentro do indivíduo, tanto do ponto de vista filogenético quanto ontogenético, e pela qual passa desde um nível de pura sobrevivência – a do bando – até o nível de realizações pessoais superiores: a tarefa de vencer o tempo e a tendência biológica, genética, a tendência à inércia passiva, a tarefa de controlar e manejar a tendência do instinto da morte. É o reconhecimento de que o ideal do ego é algo que impulsiona o indivíduo na direção do progresso. As palavras do instrutor também revelam como é transmitida, através A lb er to A bu ch ai m das gerações, a busca da eternização (perfeição). Esta se faria vencendo o seu principal temor, que não é a castração, mas o medo da morte real. Na alusão das mil vidas se vê a procura permanente do ser humano expressa em toda conjuntura social, religiosa e cultural, sempre afastando de si a contingência da realidade: o finito ser humano. “Escolhemos o nosso próprio mundo através daquilo que apren- demos nele. Não aprender nada significa que o próximo mundo será igual