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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ADRIANA DANIELA DA SILVA ARAUJO MEMÓRIA E DOCÊNCIA O PENSAR, O FAZER, O VIVER CAMPINAS 2006 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ADRIANA DANIELA DA SILVA ARAUJO MEMÓRIA E DOCÊNCIA O PENSAR, O FAZER, O VIVER Memorial apresentado ao Curso de Pedagogia – Programa Especial de Formação de Professores em Exercício nos Municípios da Região Metropolitana de Campinas, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, como um dos pré-requisitos para conclusão da Licenciatura em Pedagogia. CAMPINAS 2006 3 Dedico este memorial aos meus pais, meu irmão Fábio e amigos, que me ajudaram no momento mais difícil da minha vida, me incentivando a não desistir de um grande sonho. 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pela oportunidade de concluir mais essa fase na minha vida. Aos meus pais, pelo carinho e incentivo, com a qual partilho neste momento a realização de um sonho recíproco. Ao meu irmão Fábio, que com carinho e paciência me auxiliou durante os seis semestres do curso de Pedagogia. As minhas colegas de classe e especialmente ao grupo; Elaine, Eliane, Joselina, Renata e Simone à qual tenho o prazer de agradecer e manifestar a minha gratidão. A Aldaíza, pelas palavras de confiança e incentivo, me fazendo acreditar que seria capaz de vencer todos os obstáculos. A todos os professores e mestres que contribuíram para meu crescimento pessoal e profissional. Aos organizadores do curso Pedagogia – Programa de Formação de Professores em Exercício - pelo empenho e dedicação. 5 Compreendi, então. Que a vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem que ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, que a vida é um álbum de minisonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor Justifica a vida inteira... Rubem Alves 6 SUMÁRIO Apresentação .................................................................................................07 1. Breve Histórico – Infância e Adolescência................................................. 08 Ensino Fundamental e Magistério 1.1. Minha 1ª experiência como professora ...................................................10 2. Novos caminhos, novas experiências.........................................................26 2.1. A contribuição da Pedagogia ................................................................ 32 Um novo olhar sobre a Indisciplina 3. Avaliação e sua ideologia no sistema educacional.................................... 45 Considerações Finais..................................................................................... 55 Referência Bibliográficas................................................................................. 58 7 APRESENTAÇÃO Mediados por nossos registros armazenamos informações da realidade, do objeto em estudo, para poder refleti-lo, pensá-lo e assim aprendê-lo, transformá-lo, construindo o conhecimento antes ignorado. Madalena Freire Welfort Neste memorial relato um pouco sobre minha infância e a minha relação com a escola e com os meus ex professores. Posteriormente faço um paralelo entre a escola atual comparando com a escola tradicional em que estudei. Saliento as marcas que a escola deixou em minha vida. Conto os motivos que me levaram a me tornar professora e relato as diferentes experiências que tive exercendo a profissão de docente. Descrevo sobre minha primeira experiência como alfabetizadora de classes de Educação de Jovens e Adultos, que muito contribuiu com todo o meu processo de ensino - aprendizagem. Relato sobre a contribuição da Pedagogia em minha formação como professora, mudando o meu olhar sobre a indisciplina escolar, que apesar de ser uma questão recorrente ao longo da História da Educação, tornou-se nos últimos tempos um assunto que preocupa não só professores e pais, mas, de modo geral todos aqueles que estão interessados nos problemas da educação. Ao longo das páginas escrevo também sobre a questão da Avaliação, na qual a principal finalidade é a abordagem da avaliação do ensino de sistemas e instituições. A partir de um enfoque crítico, é possível compreender as relações entre escola e sociedade, a organização do trabalho da escola como princípio educativo bem como o papel da avaliação. Neste contexto, é possível compreender melhor a função ideológica da avaliação no sistema educacional. Portanto, caros leitores, deixo aqui registrados os meus pensamentos, incluindo diversos pesquisadores, o meu fazer em relação às minhas práticas cotidianas, e as vivências que em suma foram importantes para meu crescimento pessoal e profissional. 8 Capítulo I BREVE HISTÓRICO - MINHA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Ensino fundamental e Magistério Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. Ecléa Bosi* Infância sempre é um tema que nos remete a um universo mais prazeroso, claro que esta impressão pode não ser partilhada por todos, mas como farei aqui uma breve síntese de minha vida pessoal, estou me apegando aos meus prazeres, aos meus anseios e as minhas inquietações, como subsídios para descrever com clareza e objetividade as etapas que comporam a minha existência, desde o meu nascimento até os dias de hoje. Tenho muitas saudades de minha infância, sem preocupações e sem tantas responsabilidades. Contarei agora um pouco sobre ela: Nasci na cidade de São Paulo e morei lá até os três anos de idade, mas tivemos que nos mudar quando a empresa em que meu pai trabalhava foi transferida para Itatiba. Passamos a morar em uma casa cedida pela mesma, e foi neste lugar que passei parte de minha infância e começo da adolescência. Vivia cercada de amigos e brincava quase o tempo todo, brincadeiras que não vejo hoje em dia, como: pega – pega, esconde-esconde, ciranda, passa anel, etc. Fui crescendo, mas adorava esta vida sem muito compromisso, de caráter mais sério. Esta fase durou até os meus 16 anos. Estudei durante nove anos na mesma escola pública, E.M.E.F. Profº Basílio Consolini e com a mesma turma, onde a maioria pertenciam a zona rural. Os alunos eram bem comportados, sentávamos um atrás do outro e não podíamos em dia de prova nem sequer olhar para o teto, que a professora jogava na cabeça dos alunos um pedaço de giz. Tínhamos medo da professora e jamais ousávamos a respondê-la. Quando penso em Avaliação e Indisciplina lembro de meus ex professores. Os meus primeiros anos de escolaridade, no qual algumas professoras exigiam a memorização de datas importantes, tabuadas e muitas chegavam a dar tapas nos alunos * Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1995. 9 indisciplinados, gritavam com aqueles que não conseguiam acompanhar as matérias dadas. Na segunda série tive uma professora que fazia chamada oral da tabuada todos os dias, aqueles que respondessem errado ficavam sem recreio dentro da sala estudando, ou melhor decorando. Muitos alunos choravam, pois não queriam mais freqüentar a escola para não terem que passar por este constrangimento, o nervosismo e a timidez me faziam errar o resultado e quando a professora dizia: que hoje não haveria recreio, este era o pior dos castigos, começava a chorar sem parar . Apesar de alguns constrangimentos tenhoboas lembranças de alguns professores desta época, era um método tradicional, onde tudo era decorado, passavam-se as provas e não lembrava mais dos conteúdos estudados, pois muitas coisas não se relacionavam com a minha realidade. Gostaria de ter desenvolvido o gosto pela leitura, mas todas eram obrigatórias e cobradas por meio de provas, resultando em uma enorme dificuldade em estruturar textos com propriedade, pelo pouco repertório que adquiri ao longo de minha vida acadêmica. Minha formação na 8ª série, aconteceu no ano de 1991, e decidi fazer o magistério, pois queria ter uma profissão, além da formação do ensino médio, pois ambos poderiam ser feitos simultaneamente. Na cidade de Itatiba os únicos cursos profissionalizantes que existiam eram o Magistério, Contabilidade, Mecânica e Eletrônica. Como gosto de crianças e sempre tive muito “filling” com elas, não poderia ter escolhido outra profissão que se encaixasse melhor ao meu perfil, além da influência de meus pais e ex- professores que tiveram uma participação significativa na minha decisão. Em 1992, iniciei o Magistério na escola Estadual Manuel Euclides de Brito, também na mesma cidade . Durante o curso de Magistério ouvi falar muito sobre o “construtivismo”, onde as bases teóricas foram estruturadas na primeira metade do século passado com Piaget e os psicólogos soviéticos, entre os quais Lev Vyotsky é o mais divulgado no Brasil. Depois as pontes se consolidaram com Emília Ferreiro e seus colaboradores, a partir da década de 1970. Passei a ter uma visão diferente sobre ensino - aprendizagem, principalmente a não trabalhar com cartilhas, silabação e método fônico. Fiz alguns estágios de observação, participação e regência, durante o período em que cursava o Magistério. Em 1995, conclui o Magistério achando que estava preparada para exercer a função de docente, pois acreditava ter competência suficiente para trabalhar com o novo método “construtivista”, tendo o domínio teórico seguro. Quanta ilusão!!! 10 Depois de formada fui trabalhar num projeto que visava à alfabetização de Jovens e Adultos, em uma parceria entre a Universidade São Francisco e a Prefeitura Municipal de Itatiba onde durante um período de seis meses trabalhei como voluntária e somente depois passei a receber uma ajuda de custo, que em termos financeiros não compensava o trabalho, que demandava tempo e um empenho muito grande de minha parte, haja vista, que estes alunos demoram mais para assimilar o conteúdo apresentado. Mas mesmo assim, era muito prazeroso estar com estes adultos, que me ensinaram bastante com suas experiências de vida. 1.1 - Minha 1ª experiência como professora Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas também para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas. Albert Einstein Contarei com mais detalhes meu primeiro êxito pedagógico. Em 1997, tive o imenso prazer de participar do projeto que visava à alfabetização de Jovens e Adultos . Resolvemos interagir com este projeto, saímos na busca de alunos que tivessem o perfil que buscávamos, ou seja, vontade de aprender a ler e escrever. Um grupo de professoras começaram a percorrer os bairros da cidade de Itatiba, batendo de porta em porta à procura de pessoas interessadas. O trabalho não foi fácil, alguns não admitiam que não sabiam ler e escrever, sentiam se envergonhados, principalmente quando já conheciam o professor, ou melhor, os que moravam no mesmo bairro. Outros diziam que “papagaio velho não fala mais”. Foram dias e dias de trabalho, tentando convencer e mudar a opinião dessas pessoas, pois sabíamos que valeria a pena qualquer esforço, pois o analfabetismo continua sendo uma das maiores dívidas sociais do país, e exige uma política educacional que resgate a dignidade e a cidadania destes milhões de brasileiros: Hoje não há quem não reconheça e proclame a urgência salvadora do ensino elementar as camadas populares. O maior mal do Brasil contemporâneo é sua percentagem assombrosa de analfabetos ... O monstro canceroso, que hoje desviriliza o Brasil, é a ignorância crassa do povo, o analfabetismo que reina do norte ao sul 11 esterilizando a vitalidade nativa e poderosa de sua raça.( Carvalho, 1997, p.35). Como professora sentia que tinha uma grande responsabilidade ética com esse projeto, pois sei que somos capazes de transformar vidas, dando a cada um a oportunidade de construir uma vida, onde a felicidade seja uma conquista e não meramente sorte de cada um . Estamos no século XXI, e vivemos hoje transformações sociais, econômicas, educacionais e tecnológicas que exigem do homem contemporâneo adaptações e readaptações constantes. O ser humano de hoje não é mais o de antigamente, antes eles tinham o privilégio de utilizarem o tempo livre, para fazer suas reflexões e decidir pontos importantes e pertinentes da sua vida, em família, social e de suas atividades profissionais. Para exercer uma profissão era somente necessário que fosse treinado e que repetisse esse treino ao longo da vida. O que vemos hoje, é um mundo que pede indivíduos competentes, realizadores e competitivos e é claro, que um país em desenvolvimento como o Brasil, grande parte da população vive em condições sub humanas, ou seja, a margem da sociedade. Em momento de reflexão e debates, educadores, sociólogos, filósofos e outros profissionais vêem a solução na educação, mas pouco se tem feito ou quase nada nesta área. Surge então uma luz no fim do túnel, a proposta de alfabetizar indivíduos adultos, como forma de trazê-los a participar desse mundo que antes parecia a eles inacessível. Gostaria de ressaltar que este era meu pensamento naquela época: achava que poderia dar conta da parte política, econômica e social destes jovens e adultos, fazendo o papel que seria do poder público, ou melhor, diante das variadas funções que a escola pública assume, me sentia na obrigação de fazer muitas coisas que estavam além de minha formação como professora, ou seja, desempenhava funções de agente público, assistente social, enfermeira, psicóloga, entre outras. Tais exigências com certeza contribuem para um sentimento de desprofissionalização, de perda de identidade profissional, da constatação de que ensinar às vezes não é o mais importante. (Noronha, 2001) Portanto, sem esta visão crítica da realidade iniciamos o trabalho com alfabetização de Jovens e Adultos, ministrando aulas de segunda à sexta –feira, no período de duas horas diárias. 12 Antes de começar a descrever o meu trabalho com Alfabetização, farei um breve histórico sobre a educação de jovens e adultos no Brasil. O que contribuiu para uma melhor compreensão do meu trabalho e da minha prática em sala de aula. A história da educação de adultos começou no Brasil a partir da década de 30, quando finalmente começa a se consolidar um sistema público de educação básica no país. Um período em que a sociedade brasileira passava por grandes transformações, ligadas ao processo de industrialização e a concentração populacional nos grandes centros urbanos. A ampliação da educação elementar foi impulsionada pelo governo federal, que traçava diretrizes educacionais para todo país, determinando responsabilidades dos estados e municípios. Com o fim da Ditadura de Vargas em 1945, o país começa a viver um processo político de redemocratização, a educação de adultos ganhou destaque dentro da preocupação geral com a universalização da educação elementar. Era urgente a necessidade de aumentar as bases eleitorais para a sustentação do governo central, integrar as massas populacionais de imigração recente e incrementar a produção. Começaram a surgir campanhas nacionais de massa, no qual em um curto período de tempo, foram criadas várias escolas supletivas, mobilizandoesforços das diversas esferas administrativas, de profissionais e voluntários. Durante as campanhas idéias preconceituosas sobre adultos analfabetos foram criticadas, pois o analfabetismo era concebido como causa e não efeito da situação econômica, social e cultural do país. Essa concepção legitimava a visão do adulto analfabeto como incapaz e marginal, identificado psicologicamente e socialmente com a criança. Essa visão foi modificando-se e o adulto passou a ser reconhecido como um ser produtivo, capaz de raciocinar e resolver seus problemas. Teorias mais modernas da psicologia desmentiu postulados anteriores de que a capacidade de aprendizagem dos adultos seria menor do que a das crianças. No final da década de 50, denunciava-se o caráter superficial do aprendizado que se efetivava no curto período da alfabetização, a inadequação do método para a população adulta e para as diferentes regiões do país. Todas essas críticas convergiram para uma nova visão sobre o problema do analfabetismo e para consolidação de um novo paradigma pedagógico para educação de adultos tendo como referência Paulo Freire. 13 Com o golpe militar de 1964, os programas de alfabetização e educação popular que se haviam multiplicado no período entre 1961 e 1964 foram vistos como uma grave ameaça à ordem e seus promotores foram duramente reprimidos. O governo só permitiu a realização de programas de alfabetização de adultos assistencialistas e conservadores, até que, em 1967, ele mesmo assumiu o controle dessa atividade lançando o Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização. As orientações metodológicas e os materiais didáticos do Mobral reproduziram muitos procedimentos consagrados nas experiências de inícios dos anos 60, mas esvaziando-os de todo sentido crítico e problematizador. Propunha-se a alfabetização a partir de palavras-chave, retiradas “da vida simples do povo”, mas as mensagens a elas associadas apelavam sempre ao esforço individual dos adultos analfabetos para sua integração nos benefícios de uma sociedade moderna. Paralelamente, grupos dedicados à educação popular continuaram a realizar experiências pequenas e isoladas de alfabetização de adultos com proposta mais crítica, desenvolvendo os postulados de Paulo Freire. Essas experiências eram vinculadas a movimentos populares que se organizavam em oposição à ditadura, comunidades religiosas de base, associações de moradores e oposições sindicais. Desacreditado nos meios políticos e educacionais, o Mobral foi extinto em 1985. Seu lugar foi ocupado pela Fundação Educar, que abriu mão de executar diretamente os programas, passando a apoiar financeira e tecnicamente as iniciativas de governos, entidades civis e empresas a ela conveniadas. No âmbito das políticas educacionais, os primeiros anos da década de 90 não foram muito favoráveis. Historicamente, o governo federal foi a principal instância de apoio e articulação das iniciativas de educação de jovens e adultos. Com a extinção da Fundação Educar, em 1990, criou-se um enorme vazio em termos de políticas para o setor. Alguns estados e municípios têm assumido a responsabilidade de oferecer programas na área, assim como algumas organizações da sociedade civil, mas a oferta ainda está longe de satisfazer a demanda. A história da educação de jovens e adultos no Brasil chega, portanto, reclamando a consolidação de reformulações pedagógicas que, aliás, vêm se mostrando necessárias em todo o ensino fundamental. Do público que tem acorrido aos programas para jovens e adultos, uma ampla maioria é constituída de pessoas que já tiveram passagens fracassadas pela escola, entre elas, muitos adolescentes e jovens recém – excluídos do sistema regular. Esta situação ressalta o grande desafio pedagógico, em 14 termos de seriedade e criatividade, que a educação de jovens e adultos impõe: como garantir a esse segmento social que vem sendo marginalizado nas esferas sócio- econômica e educacional um acesso à cultura letrada que lhe possibilite uma participação mais ativa no mundo do trabalho, da política e da cultura. A imagem que os educandos têm da escola têm muito a ver com a imagem que tem de si mesmos dentro dela. Experiências passadas de fracasso e exclusão normalmente produzem nos jovens e adultos uma auto-imagem negativa. Nos mais velhos, essa baixa auto-estima se traduz na timidez, insegurança, bloqueios. Nos mais jovens, é comum que a baixa auto – estima se expresse pela indisciplina e auto afirmação negativa (“se não posso ser reconhecido por minhas qualidades, serei reconhecido por meus defeitos”). Em qualquer dos casos, será fundamental que o educador ajude os educandos a reconstruir sua imagem da escola, das aprendizagens escolares e de si próprios. Portanto, voltando a falar sobre o projeto que tem pontos em comuns com todo o contexto histórico citado acima, trabalhei como voluntária durante seis meses, enquanto tentávamos algum patrocínio, mas a maioria das empresas à qual recorremos não se interessaram pelo projeto, pois alegavam não contratar analfabetos ou pessoas com baixa escolaridade para o seu quadro de funcionários. Depois de seis meses trabalhando como voluntária a Prefeitura Municipal de Itatiba fez uma parceria com a Universidade São Francisco. Todas as professoras envolvidas no projeto começaram a receber uma ajuda de custo, ganhávamos como estagiárias, muitas pessoas quando ficava sabendo quanto ganhávamos, diziam que éramos “loucas” de dar aulas para ganhar aquela miséria. Agora consigo entender o porquê das críticas que recebíamos, pois até então não havia parado para pensar no pressuposto de que a educação é um direito de todos e como tal, deve ser assegurado pelo poder público. A Constituição Federal de 1988, estabelece que “a educação é um direito de todos e dever do estado e da família...” e ainda, ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive sua oferta garantida para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Sendo a educação, um direito de todos, é dever do Estado Democrático de Direito cumprir: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político( art. 1º da Constituição Federal).Constituem objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a 15 marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição Federal). Nesse sentido, a Democracia se torna um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania política organizada em partidos políticos, manifestada no processo eleitoral, na rotatividade de governantes e nas soluções técnicas (não políticas) para problemas sociais. Assim, de acordo com o economista, filósofo e sociólogo alemão Marx ( 1986), a Democracia é uma ideologia política, formalista, jurídica pelo direito de cidadania,ou seja, defende tais direitos em meio a uma sociedade estruturada de maneira que tais direitos inexistem para a maioria da população. Democracia formal, e não concreta. Na prática democrática há uma verdade que tal ideologia deixa transparecer. Primeiro, eleições são meramente a rotatividade de governos ou a alternância do poder. O poder se torna um lugar vazio preenchido por representantes periódicos, e não identificado com os ocupantes do governo. Situação e oposição, maiorias e minorias: a sociedade é tratada como internamente dividida (legitimamente) e essa divisão é publicamente expressa. A democracia, assim, é a única forma política que legaliza e legitima o conflito. Em segundo, igualdade e liberdade como direitos civis: ao tratar o cidadão um sujeito de direitos, se tais direitos não existem, é certo o direito (e o dever) de lutar por eles e exigi-los. Temos aqui o cerne da Democracia. Direito não é necessidade,carência ou interesse, características individuais que são tantas quanto os grupos sociais representados no país. Direito não é algo particular ou específico, mas sim geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Uma sociedade é realmente democrática quando, além de eleições, partidos políticos, três poderes, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui direitos. Quando a Democracia foi inventada pelos atenienses, originalmente defendia três direitos essenciais: igualdade, liberdade e participação no poder. Portanto, igualdade significa igualar os desiguais, seja por redistribuição de renda, seja por garantir a participação política. Mais a frente, Marx (1986) defendeu que só haveria igualdade se extinguissem escravos, servos e assalariados explorados. A mera declaração de igualdade não quer dizer que automaticamente todos são iguais, mas que deve se instituir um instrumento eficaz para aplicá-la. Já a liberdade significa o direito 16 de qualquer cidadão expor em público interesses e opiniões, debatê-los e acatar a decisão pública da maioria (sendo aprovado ou rejeitado). Após a Revolução Francesa, este direito se ampliou para a independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge - consequentemente, a recusa das hierarquias supostamente divinas ou naturais. Também se acrescentou o direito que todos são inocentes até que se prove o contrário perante tribunal (e liberação ou punição devem ser dadas perante a lei). Os movimentos sociais ampliaram a liberdade ao direito de lutar contra todas as tiranias, censuras e torturas, contra toda exploração e dominação, seja social, religiosa, econômica, cultural ou política. Percebo que estes fundamentos e princípios estão longe de serem expressão da realidade vigente, correspondem muito mais a metas, a grandes objetivos a serem alcançados. Relatarei um pouco sobre minha prática pedagógica em sala de aula e o método desenvolvido durante a alfabetização de jovens e adultos. Em 1.996 participei do Seminário de Capacitação de Alfabetizadores para o programa de Alfabetização de Adultos – Universidade Católica de Brasília - UCB – com diversas atividades, debates e exposições. Neste seminário fiquei conhecendo o método Dom Bosco, um método tradicional e muito parecido com a cartilha, que remetia lembranças da minha 1ª série, em que fui alfabetizada através da cartilha Caminho Suave. O método de Dom Bosco, não seguia a ordem da cartilha como por exemplo, começar pelas letras em ordem alfabética, existia uma palavra geradora , como por exemplo o TA de tatu , que era a primeira sílaba a ser ensinada, depois era o PA de panela, e assim por diante. A cada dia iniciava - se com uma nova família silábica. Ao todo eram 27 palavras-chaves. Inicialmente as sílabas-chave apresentavam apenas a vogal a, por ser considerada a mais freqüente de nosso idioma. Existia também o desenho gerador, que primeiro era feito em um cartaz e depois o professor explicava passo a passo para que os alunos também os fizessem, procurando ir bem devagar para que ninguém ficasse atrasado, mantendo sempre um clima de descontração, integrando aprendizagem com recreação, este era o objetivo proposto. Eram feitos também exercícios de coordenação motora, as famosas linhas inclinadas para a direita, para a esquerda, na horizontal, na vertical, bolinhas, etc. De acordo com o manual do curso o método Dom Bosco de Educação básica, não é totalmente original. Ele nasceu de um método denominado CIMA, surgido na 17 década de 50 em Goiânia, o qual utilizava a alfabetização pela imagem, de início, trabalhava apenas palavras com a vogal A. O método Dom Bosco, a partir de sua aplicação concreta, foi progressivamente adquirindo características próprias. (Dom Bosco, 1996, p.10). Segundo Barros, (1996), o método teve êxito em Belo Horizonte e em outros municípios de Minas Gerais. Mas em Itatiba, o método mostrou ser muito cansativo, tanto, para os professores como para os alunos. No início do projeto a Universidade São Francisco fornecia todo o material para ser utilizado com os alunos como, as folhas de atividades complementares a serem desenvolvidas de acordo com o método. Então, recém formada do Magistério achei que estava preparada para alfabetizar, depois de ouvir falar tanto em “construtivismo” a não alfabetizar utilizando cartilhas, famílias silábicas, frases soltas e aí por diante. E que o adequado seria utilizar textos bem escritos, coerentes, coesos e etc. Mas por ironia do destino comecei a alfabetizar utilizando as tão famosas famílias silábicas e o tema gerador. Ou melhor dizendo, não esqueci como fui alfabetizada e este me serviu como modelo, pois já estava enraizado em minha mente. “A elaboração de novas idéias depende da libertação das formas habituais de pensamentos e expressão. A dificuldade não está nas novas idéias, mas em escapar das velhas, que se ramificam por todos os cantos da nossa mente”. (Jhon Maynard Keynes) Alfabetizar utilizando sílabas não foi tão ruim assim, mas durante o percurso houve algumas controvérsias que relatarei adiante. Portanto, quando falo em tema gerador, alfabetização de jovens e adultos, lembro-me de Paulo Freire, o pernambucano que contribuiu com uma nova visão sobre o problema do analfabetismo e consolidou um novo paradigma pedagógico para a educação de adultos, como já foi mencionado anteriormente. Seu pensamento pedagógico, assim como sua proposta para a alfabetização de adultos, inspiraram os principais programas de alfabetização e educação popular que se realizaram no país no início dos anos 60. Enfatizava que o conhecimento não era algo pronto para ser “depositado” na cabeça de quem não sabia, ou seja, criticava o conhecimento “bancário”, mas salientava a necessidade do conhecimento para compreender e transformar a realidade. No que tange à educação, àquela que tem sido “bancária” deverá se contrapor a “educação libertadora”. Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimento’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação bancária, mas um ato cognoscente. Como 18 situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador de um lado, educandos do outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador- educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível (FREIRE, 1974, p. 78) O tema gerador é originalmente uma proposta pedagógica elaborada por Freire que diz; Uma palavra geradora é aquela que ( escolhida em função de certos critérios, ao ser decomposta em sílabas, possibilita, pela combinação das mesmas, a criação de outras palavras.(1980, p.143) Há algumas críticas relacionadas ao trabalho com o tema gerador, pois alguns estudiosos acreditam que o tema em si não é motivador, onde geralmente este é apresentado pelo professor, sem a participação dos alunos. Depois de algum tempo trabalhando com os temas geradores e as famílias silábicas percebemos ( me refiro no plural porque foi a equipe toda) que algumas das palavras geradoras utilizadas não faziam parte do vocabulário dos alunos como talha, zarolho, nha de sinhá (senhora) ou Nhazinha, que são apelidos usados para iaiá, principalmente nos tempos da escravidão. Os alunos queriam aprender a ler e a escrever o nome do bairro, da rua onde moravam, dos filhos, marido, escrever uma lista de compra, ler rótulos e marcas que ressaltam nas prateleiras dos supermercados e na despensa da casa e, não palavras e frases que naquele momento pareciam descontextualizados . Os alunos queriam ir além das palavras geradoras que ensinava naquele momento, portanto, as idéiasde Freire(1978) contribuíram muito em minha prática pedagógica. Concordo com o autor quando diz, que o professor não é mais que o aluno porque sabe coisas que os alunos não sabem, mesmo porque os alunos sabem coisas que o professor não sabe. Freire (1974) sempre valorizou o conhecimento trazido pelos educandos. Considerava-os indispensáveis para a construção de novos conhecimentos. Foi baseada na troca entre educador e educando que comecei a realizar um trabalho com a classe sobre diferentes regiões, fazendo um levantamento para saber a origem de nascimento dos alunos, sendo que grande a maioria eram de outros estados como Bahia, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, etc. Através de conversas perguntava quais eram as comidas típicas da região onde moravam e conforme iam falando escrevia na lousa, portanto eu era a escriba. Utilizava os diferentes dialetos trazidos pelos alunos 19 e conversava com eles sobre a norma culta da língua, procurava demonstrar muito respeito pela cultura de cada um, mas ao mesmo tempo ensinava a maneira correta de escrever e falar. Naquele momento não tinha uma visão mais aprofundada sobre cultura, as aulas de multiculturalismo, especificadamente com a apresentação de um dos seminários sobre a cultura nas perspectivas de diferencialismo e universalismo foram importantes para que fizesse esta reflexão. A cultura é uma forma de expressão, na qual todos os povos possuem sua própria cultura, que são construídas através dos tempos. Desde o nascimento, os seres humanos são banhados por conhecimentos, que os povos vão inserindo aos poucos, deste modo ganham identidade e começam a transitar pelas diferentes manifestações culturais. A identidade nasce dos conhecimentos que vamos recebendo, criando e inventando, assim adquirimos maiores autonomia para entender as diferentes culturas. Hoje já se ampliaram o sentido de cultura, que já não é vista somente como cultivar, com sentido agrícola, mas como o compartilhamento e o respeito entre os significados diferentes de determinadas regiões. Cada grupo tem sua própria cultura e quando passamos a entender a cultura do outro, rompemos contra certos preconceitos, o que não quer dizer, que precisamos incorporar a cultura alheia, mas aceitá-la, pois é possível aprendermos novos modos de viver e assim conviver com o modo diferente dos outros. Talvez hoje minhas aulas fossem diferentes, ou seja, com mais riqueza de detalhes e informações, troca de experiências e conhecimentos, foi o que realmente me faltou naquelas aulas. Realmente estava começando a lecionar e muitas vezes me sentia insegura, sobre como abordar determinados assuntos, conteúdos, o que deveria falar e o que jamais poderia ser dito, mas a única certeza que eu tinha é que precisava saber ouvir a opinião dos alunos. Foi por onde comecei, ouvindo os meus alunos. Em 2000, realizei um trabalho com jornais o tema era sobre crianças e adolescentes. Comecei na semana das crianças, pois quase no final do ano alguns alunos já liam e escreviam, apesar da grande dificuldade. Entretanto pedi para que procurassem em jornais e revistas reportagens que falassem sobre crianças e adolescentes, pois o tema seria discutido em sala de aula . Iniciei este trabalho por considerá-lo oportuno naquele momento, pois despertaria a curiosidade dos alunos em ler jornais e revistas e seria um tipo de leitura 20 enriquecedora e prazerosa. Mas o objetivo maior era ajudar os pais e os avós na complicada relação entre pais e filhos, o primordial era esclarecer as dúvidas. Posteriormente, discutimos assuntos como: Gravidez na adolescência; A violência dentro de casa; Filhos de pais separados; Filhos indisciplinados; Limites; Problemas escolares envolvendo os filhos; Drogas; Conversamos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com algumas reportagens em mãos, fizemos um círculo e cada um falou sobre a reportagem que trouxe, fazendo comentários, dando a sua opinião. É claro que alguns alunos não conseguiram trazer nenhuma reportagem, pois jornais e revistas não faziam parte do cotidiano da grande maioria, no entanto, outros sentiram- se envergonhados e não quiseram falar, neste primeiro momento. Apenas alguns alunos conseguiram falar e outros complementavam as falas dos colegas. Apesar da timidez de alguns, percebi que estavam atentos e interessados no assunto. Depois de ouvi-los trouxe vários textos informativos sobre os temas em discussão. Portanto, não trabalhamos todos os textos de uma única vez, foi um trabalho extenso e demorado. Fui desenvolvendo outras atividades como a construção coletiva de pequenos textos falando sobre crianças e adolescentes, procurávamos no dicionário as palavras desconhecidas nas reportagens. Aos poucos fui ensinando-os a utilizar o dicionário, mostrando a sua importância para a escrita e a leitura. Na época poderia ter trabalhado melhor os procedimentos de um leitor de jornal como a seleção das notícias, olhar as fotos e o que diz a legenda, escolha dos cadernos de maior interesse. Enfim, mostrar aos alunos as possibilidades de manipular e ser um leitor de jornal. Pois a maioria dos alunos não tinha o hábito de ler revistas e jornais, principalmente porque estava aprendendo a ler. Muitos diziam que não tinham condições financeiras para comprar uma revista ou fazer a assinatura de um jornal. Era na escola que a maioria tinham a oportunidade de manusear uma revista ou um jornal. Este foi um trabalho significativo e muito prazeroso, recordo de um outro episódio que me marcou. Muitos alunos não conheciam o cinema, então surgiu a idéia de levá-los para conhecê-lo, apesar da resistência de alguns, que consideravam perda de tempo. Na época estava passando o filme Eu, Tu, Eles. Aproveitei o momento de lazer e descontração e abordei alguns assuntos relacionados com o filme como a relação de uma mulher com vários homens (maridos) e um filho de cada um, o retrato da pobreza, ou seja as dificuldades de uma família pobre que se vê obrigada a dar o filho, por não ter condições dignas de criá-lo, discutimos preconceitos, valores, ética ...Trabalhei 21 bastante a linguagem oral, deixando que falassem tudo o que estavam pensando e sentindo. Os alunos que foram ao cinema ficaram encantados e conseguiram mudar a opinião de alguns alunos que se mostravam totalmente avessos a assistirem filmes nos dias de aula. Me recordo também de um momento prazeroso que tivemos, ao assistir o filme “Central do Brasil” escrito por Walter Salles que arrematou vários prêmios internacionais e quase levou o Oscar, ao ser premiado com o Globo de Ouro pela crítica de New York. A escolha do filme foi justamente por retratar um pouco do analfabetismo no país. Como não achei registros da época em que passei este filme, não poderei detalhar com mais precisão tudo o que foi feito. Escrevendo este memorial percebo o quanto é importante o registro, pois muitas coisas que realizei com os meus alunos foram esquecidas no decorrer do tempo. Durante este período de 3 anos fizemos vários passeios. A Prefeitura Municipal de Itatiba levava as classes de alfabetização de Jovens e Adultos duas vezes ao ano para passeios culturais como: Visita ao Museu, ao Butantã, Parque do Ibirapuera, que procurávamos realizar estes passeios aos sábados e domingos para que todos os que trabalhavam durante a semana tivessem a oportunidade de participar. Os adultos estavam descobrindo um novo mundo, pois se encantavam com tudo o que viam nos passeios, foram vários os momentos agradáveis que passei ao lado destes alunos. Sentia uma imensa necessidade de aprender cada vez mais, portanto durante este período participei de alguns cursos de aprimoramento. Em 1998, participei do curso “O Processo de Ensino Aprendizagem na educação de Adultos” com carga horária de 120 horas-aula, ministrado pela profª Drª Sõnia Maria Vicenti Cardoso. No ano de 2000, concluí o PCN em Ação: módulo Alfabetização – Segmento: Ensino Fundamental- Educação deJovens e Adultos, realizado pela Secretaria da Educação do Município de Itatiba. Contudo, não foi somente através dos cursos que fui me aperfeiçoando e aprendendo, mas com os meus alunos, que me deram grandes lições de vida e minhas preocupações voltaram–se para a realidade destes alunos. Percebi que deveria evitar práticas que tornassem os adultos alfabetizados, com conhecimento apenas do código, mas incapaz de compreender o sentido dos textos. Minha preocupação era interagir estes alunos constantemente com os usos sociais da escrita. O importante não era simplesmente codificar e decodificar, mas ler e escrever textos significativos . 22 Aliás, muitos alunos diziam que o problema mais triste do mundo é não saber ler ou que não saber ler é a mesma coisa que ser cego. De fato, o analfabeto nos dias de hoje é um cego social. Num mundo em que a informação tornou-se a ferramenta mais preciosa para se obter poder e riqueza, saber ler e escrever é, antes de qualquer coisa, uma questão de sobrevivência. Seja para conferir um anúncio de emprego ou verificar o prazo de validade de um iogurte, o analfabeto é quase tão dependente dos outros quanto uma criança. Atividades prosaicas mas cruciais no dia- a- dia de qualquer pessoa, como tomar condução ou ler placas de ruas para achar um endereço, transformam-se num verdadeiro martírio . Esse tipo de cegueira tem um sério agravante. Diferentemente de qualquer forma de deficiência física, o analfabetismo é um obstáculo à dignidade, um entrave aos mais elementares direitos de cidadania. O analfabeto sente-se humilhado por não se considerar igual às outras pessoas, impedido de desempenhar atividades simples, como tirar carteira de habilitação. Aprender a ler e escrever depois de adulto requer um esforço tão descomunal quanto comovente . Um depoimento que me marcou foi de uma senhora, minha aluna que disse: “A falta de dinheiro, era o nosso maior problema, vivia brigando com o meu marido, pois ele estava desempregado e eu com três filhos pequenos, não tinha como trabalhar para ajudá-lo. Passamos muitas dificuldades, chegou um tempo em que não tínhamos o que comer e nem onde morar. Eu e meu marido começamos a nos agredir fisicamente. Meu marido chegou a passar uma noite na cadeia, após ter me agredido. O desespero foi tanto que meu marido tentou se suicidar. Amarrou uma corda ao telhado da casa e se jogou. Meus filhos viram tudo, corri e cortei a corda, ele já estava roxo, mas felizmente sobreviveu. Fiquei com medo de que meus filhos crescessem revoltados com o que tiveram que presenciar. Mas hoje estou muito contente, tenho a minha casa própria, meu marido arrumou um emprego e não brigamos mais como antes, meus filhos estão adultos e ajudam nas despesas. Estou contente em voltar a estudar mesmo depois de velha”. Este depoimento foi em 1.999, registrei-o quando participava de um curso, pois fazíamos relatórios constantes sobre os alunos e também da prática pedagógica. No depoimento desses alunos dá para perceber que a sociedade brasileira carrega uma marca autoritária: já foi uma sociedade escravocrata, além de ter uma larga tradição de relações paternalistas e clientelistas, com longos períodos de governos não – democráticos. A sociedade é marcada por relações hierarquizadas e por privilégios que 23 reproduzem um alto nível de desigualdade, injustiça e exclusão social. Na medida em que boa parte da população brasileira não tem acesso a condições de vida digna, encontra-se excluída da plena participação nas decisões que determinam os rumos da vida social. Com a democratização do ensino, pregam que a educação é um direito de todos, mas a mesma continua sendo privilégios de poucos e mesmo os que logram acesso a ela não são educados para uma prática libertadora, pois ao invés de formar o indivíduo acabamos por excluí-lo. Como está exclusão é reproduzida no âmbito educacional? As desigualdades presentes no campo social apresentam-se nas escolas sob a forma de reiteradas reprovações, sucessão de abandonos e retornos e, por fim, a exclusão definitiva. É formado assim, o ciclo das desigualdades; baixa escolaridade, falta de qualificação profissional, falta de emprego. Portanto, não faltam motivos para estes alunos desistirem. Muitos desistem pelo cansaço, o desemprego, o fato de morar longe e a própria falta de auto-estima do aluno, ou seja, desistem porque também são vítimas de toda esta desigualdade social, política e econômica, que são fatores cruciais na produção e reprodução deste ciclo. Mas mesmo assim, apesar dos obstáculos muitos alunos continuaram freqüentando as minhas aulas após jornadas extenuantes em empregos mal remunerados, mas com uma disposição quase juvenil. Nestes três anos, houve muitas desistências, mas muitos continuaram até o fim do projeto, portanto considero muito difícil mudarmos a realidade de uma sociedade que é construída com base nessas desigualdades. Como já mencionei anteriormente, quando iniciei neste projeto era recém formada do curso de Magistério, e os alunos que freqüentavam a minha sala diziam que era muito jovem e não teria paciência para ensiná-los, muitos sentiam-se envergonhados quando me aproximava para ajudá-los nas tarefas dos conteúdos programados, pois tinham em casa filhos alfabetizados e com a minha idade mas que não tinham a mínima paciência. No começo, tive que conquistá-los dia –a – dia, precisava ganhar a confiança de todos antes que desistissem, sem ao menos tentarem. Foi um grande desafio. Finalmente consegui conquistar a confiança e o respeito de todos, por meio de um trabalho sério e respeitoso onde muitos passaram a me considerar uma grande amiga, chegando a me contar detalhes íntimos de sua vida pessoal. Além de conquistar a confiança destes alunos também me preocupava com sua vida pessoal que interferia na aprendizagem. Portanto, não poderia deixar de falar sobre 24 a coordenadora do projeto, um ser humano incrível, uma mulher sábia, inteligente, justa, como poucas que já conheci ao longo de minha carreira no Magistério. Como recebíamos uma ajuda de custo pela prestação de nossos serviços, nossa coordenadora não ficava com o dinheiro para si, ajudava a suprir as necessidades de todos os pólos onde havia classe de alfabetização de jovens e adultos, ela realizava um trabalho voltado mais para o voluntariado, pois já era aposentada. Ajudava com cestas básicas as famílias carentes, doava roupas e sapatos aos mais necessitados, marcava consultas com oftalmologista e providenciava óculos. Duas vezes ao ano no final de cada semestre fazia um almoço para todos os alunos envolvidos no projeto. As professoras ajudavam no dia do almoço a preparar as refeições e a servir para os alunos, que neste dia sentiam se como “reis” e “rainhas”. Sempre sobrava muita comida que era distribuída para todos os alunos levarem para casa. A felicidade estampada no olhar de cada aluno, comovia toda a equipe. Sei que éramos muito paternalista, mas era impossível não se encantar por estes alunos. Encontrávamos muitos casos entristecedores e fazíamos o possível para ajudá- los. Eram problemas econômicos, sociais, fisiológicos, mas a fome era um dos fatores destrutivos das salas de aula. Pessoas honestas, simples, trabalhadoras, mas que sentiam-se envergonhadas em assumir que estavam passando fome. Este era um dos fatores que dificultava a alfabetização. Para que estes alunos não desistissem de estudar a nossa coordenadora começou a dar uma quantia em dinheiro aos pólos com o maior número de problemas para que fossem servidos pães aos alunos. Gostaria de ressaltar que alguns pólos funcionavam em centros comunitários e outros em escolas Municipais, onde somente estes alunos participavam da merenda servida pela Prefeitura . Apesar de todo o meu encantamento diante destes alunos, não conseguia ter um olhar crítico para toda esta situação relatada. Apelávamos ao voluntariado, ao paternalismo, assistencialismo, esquecendoos verdadeiros princípios dos Direitos Humanos, como já foi citado anteriormente, ou seja, no âmbito educativo, se identificava um processo de desqualificação e desvalorização dos professores envolvidos no projeto, pois nos sujeitávamos a ganhar pouco, e não reivindicávamos melhores condições de trabalho. “...o aumento do assalariamento e a entrada dos profissionais em organizações teriam como principal conseqüência a 25 proletarização técnica- perda do controlo sobre o processo e produto do seu trabalho – e ou/ proletarização ideológica- que significa a expropriação de valores a partir de controlo sobre o produto do trabalho e da relação com a comunidade”.( RODRIGUES, 2002, p.73) Mesmo diante desta situação difícil e precária sentia que nossos esforços eram recompensados a cada dia, percebíamos os progressos dos alunos através da avaliação contínua e diária, contudo por menores que fossem eram comemorados com alegria e satisfação, não éramos obrigadas a entregar notas ao final de cada bimestre. A avaliação de forma a medir a inteligência, o desempenho, de determinar quem “passa de ano” e quem é retido, quem são os melhores e os piores, os inteligentes e os incapazes, os esforçados e os preguiçosos, os educados e os indisciplinados, ou seja, a classificação, a seleção e quantificação não faziam parte do meu dia – a – dia. Nunca precisei chamar atenção dos alunos por mau comportamento em sala de aula, os alunos iam para a escola porque realmente queriam aprender e apesar de toda dificuldade, se esforçavam e me respeitavam como professora e ser humano. Fiquei lecionando em classes de alfabetização de Jovens e Adultos durante três anos, quando o projeto chegou ao fim. Fiquei muito feliz por ter conseguido fazer com que estes alunos, que chegaram à escola sentindo –se marginalizados, frustrados e incapazes saíssem da sala de aula com outro pensamento, sentindo –se verdadeiros seres humanos, pois já conseguiam ver o mundo de outra forma, ou seja, desempenhando atividades simples como ler o nome da condução, das placas nas ruas, tirando a tão sonhada carteira de motorista, ou então lendo a bíblia, que era o livro que a maioria tinha vontade de ler. Depois de tanto tempo fui obrigada a me despedir. Mas até hoje quando encontro com estes alunos percebo o quanto fui importante em suas vidas, só não sei se sabem o quanto também foram importantes para mim em meu crescimento profissional e pessoal. Trabalhar com Educação de Jovens e Adultos foi uma terapia, pois todo e qualquer tipo de problema que podia vir a ter era esquecido quando entrava na sala de aula e durante os três anos em que estive envolvida neste projeto foi muito significativo, pois aprendi mais do que propriamente ensinei, talvez este tenha sido o maior pagamento que tive durante todo este tempo. Gostaria de encerrar este trecho de minha 1ª experiência como alfabetizadora de classes de educação de Jovens e Adultos com o fragmento do grandioso Paulo Freire. 26 “[...] é da intimidade das consciências, movidas pela bondade dos corações, que o mundo se refaz. E, já que a educação modela as almas e recria os corações, ela é a alavanca das mudanças sociais. Em primeiro lugar, porém, é preciso que a educação dê carne e espírito ao modelo de ser humano virtuoso que, então, instaurará uma sociedade justa e bela. Nada poderá ser feito antes que uma geração inteira de gente boa e justa assuma a tarefa de criar a sociedade ideal[...]” ( FREIRE,1986, p.32,33) 27 Capítulo II Novos caminhos , novas experiências ... Cabe a nós encontrar os acordes, escrever a partitura, dar vida à sinfonia, dar aos sons uma forma que, sem nós, não existiriam. François Jacob Após esse período passei um ano, fazendo substituições eventuais que foi mais um aprendizado, pois tive a oportunidade de trabalhar com várias séries desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental ( 1ª a 4ª série ). Mas ao mesmo tempo não tinha um acompanhamento da vida escolar dos alunos, pois a cada dia ia substituir em uma escola diferente, faltava um vínculo afetivo maior, devido a grande rotatividade de minha parte enquanto professora eventual. No ano de 2002, prestei o processo seletivo na cidade de Jundiaí, e fui trabalhar com Educação Infantil, no começo foi muito difícil minha adaptação, achei que não seria capaz de fazer tantas coisas ao mesmo tempo, estava acostumada a trabalhar com adultos, num projeto sem aquele caráter burocrático, portanto, quando comecei a trabalhar com crianças de 3 e 4 anos, onde a maioria estava tendo o seu primeiro contato com a escola, pensei que iria enlouquecer com os 24 alunos chorando durante às 5 horas. Quando um parava de chorar, logo começava o outro. Pensei que alguns alunos não iriam se adaptar, na verdade eu também estava com dificuldades em me adaptar, novamente aquele sentimento de insegurança voltou, juntamente com um outro sentimento: o de incapacidade. Além de não saber como trabalhar com aqueles alunos passei a me preocupar com a parte burocrática ( PDU - Plano de Desenvolvimento da Unidade - plano de curso, plano de ensino, currículo, avaliação, perfil da classe, projetos, seqüências de atividades, rotina informatizada). Escutava a diretora falar, os professores nervosos com tantas coisas para serem entregues em um curto prazo de tempo. A maioria dos professores eram efetivos e estavam mais adaptados com aquela burocratização. Mas até então não sabia o que era o PDU, para que servia, como era elaborado, eram muitas as minhas dúvidas. Descobri que essa situação de dependência é provocada pela falta de saber, e que remete a uma dificuldade no fazer, que só será revertida no momento em que passamos a acreditar em nós mesmos, investindo nas nossas próprias potencialidades, na capacidade de desvelar o desconhecido. 28 Diante da compreensão do mundo, o ser humano se portará de maneira altiva e determinante, sendo o sujeito da situação e não o objeto. A situação contrária implicaria uma posição de inferioridade do sujeito, uma relação de dominação, de insegurança. Era o que sentia a cada minuto, “insegurança”, “incapacidade”, “frustração”. Somente com a realização de um trabalho em equipe com ajuda de todos os professores, da direção, coordenação e inclusive da minha família consegui lograr êxito e enxergar os resultados do meu trabalho. Depois de várias noites sem dormir, aprendi a controlar um pouco minha ansiedade, tentando não me desgastar tanto mediante a um cotidiano enfrentado também por outras pessoas que se encontravam na mesma situação que eu . Posteriormente, passei por outra experiência, que me deixou angustiada. No segundo semestre, comecei a lecionar em uma 4ª série, com mais ou menos 24 alunos, a quantidade de alunos na sala era satisfatório, não havia super lotação. Mas o problema da indisciplina era assustador. Este aluno que chamarei pelo nome fictício de João apresentava muitos problemas de indisciplina como mau comportamento na sala de aula, rebeldia, desrespeito às normas da sala e da escola, não fazia as lições, era muito agressivo e falava diversos palavrões. Para meu total desespero, não sabia como agir com esse aluno . Peguei está sala em setembro, portanto comecei já com o “bonde” andando. A professora titular da sala tirou licença prêmio até o final do ano, estava com esgotamento físico e mental. Percebi que João era o líder negativo da sala, todos faziam o que ele queria, pois tinham medo de apanhar na hora da saída. Ele transformou os alunos da sala em crianças agressivas, não apresentavam respeito entre si e não se interessavam pelas aulas. Foi um final de ano extremamente difícil e complicado, pois sinceramente estava desesperada e com vontade de não voltar nunca mais naquela sala. Mas, alguma coisa precisava ser feita e imediatamente. Então, primeiramente procurei saber sobre a história de vidado João, algum motivo teria para ser tão indisciplinado. Descobri que era filho adotivo, não tinha limites em casa, vivia na rua, não tinha hora para chegar em casa e com 11 anos já fumava maconha. Durante um tempo, João deixou de freqüentar a escola. Foi acionado o Conselho Tutelar, ele voltou para escola ainda pior, mais agressivo, não fazia nenhuma atividade, não participava das aulas, a única coisa que tinha prazer em fazer era atrapalhar a aula e 29 ameaçar os outros alunos. Durante este período em que estive lecionando nesta sala os responsáveis pelo menino não compareceram à escola. No final do ano no dia do Conselho de classe relatei que João não fazia as atividades e que não tinha condições de freqüentar uma 5ª série. O Conselho decidiu aprová-lo. Portanto, não achei justo com os outros alunos, que acompanhavam também o seu desempenho no dia- a – dia. Entretanto, o problema da avaliação e da indisciplina começaram a me afligir, pois comecei a ficar incomodada com algumas atitudes que tinha que tomar e fazer, mesmo contra a minha vontade, portanto passei a enfrentar muitos desafios no cotidiano escolar . Depois de alguns anos encontrei novamente João em uma outra escola, participando de um projeto da prefeitura. Quando olhei para ele senti um arrepio, sei que também me reconheceu apesar dos anos que se passaram, ele estava enorme, já se tornara um homem. Mas o comportamento estava ainda pior, a professora da sala reclamava todos os dias, apesar de sempre conversar com muita paciência, ele era muito agressivo. Um dia na hora da saída, João arrumou uma briga com outro aluno, sua professora e a coordenadora tentaram separar, mas ficaram machucadas e cheias de arranhões e hematomas pelo corpo. Naquele dia não estava mais na escola quando o fato ocorreu, fiquei sabendo no dia seguinte, aquilo me chocou profundamente, pois é um assunto que me deixa inquieta. Muitas vezes me sinto com um sentimento de impotência e sei que este sentimento é aprendido no cotidiano social, onde, num caldo cultural de colonialismo e paternalismo, parece que tudo só pode ser resolvido pelos "grandes"; o cidadão comum nada pode. Como professora diante do problema disciplinar, me senti muitas vezes impotente onde a maioria das decisões muitas vezes, é partir para uma atitude extrema: se livrar, expulsar o aluno. E foi o que aconteceu com o João, foi suspenso e não retornou mais para a escola. Décadas atrás julgava-se que a razão do sucesso era o trabalho em equipe. Hoje, as demissões em massa em grandes organizações sinalizam que a noção de equipe se modificou. A dupla mensagem não é gratuita: faz parte de uma lógica inversa e perversa- a lógica do capital e da sedução. Quando a organização ordena: envolva-se, aproxime-se de mim, ao mesmo tempo está implicitamente sinalizando para a possibilidade da demissão e quanto mais o 30 trabalhador se envolve afetivamente, mais medo acaba tendo da perda do emprego, do trabalho, da perda dos colegas e amigos- perda afetiva. E quanto maior o medo, maior a dedicação e maior (às vezes) a sensação de exploração.( Heloani, 1997, p.150) Em 2003 prestei o concurso na cidade de Itatiba e consegui passar, não me efetivei, mas estou contente de estar trabalhando na cidade onde moro. Trabalhei dois anos consecutivos na mesma escola e com a 2ª série. Em uma das 2ª séries tive dificuldades em relação à aprendizagem e indisciplina. Alguns alunos não estavam alfabetizados, e se mostravam imaturos, sem interesses pelas atividades desenvolvidas, baixa assiduidade, falta de concentração nas aulas, não apresentavam respeito pelos colegas e nem pela professora. Para superar estas dificuldades utilizei diferentes estratégias como: conversas com o aluno sobre o seu aproveitamento, trabalhos diversificados individuais e coletivo( escritas, reescritas, produções de textos diversos, englobando leitura de músicas conhecidas, parlendas, piadas, contos, poesias, etc), atividades para fortalecer a auto-estima, estabelecimento de vínculos afetivos e de trocas entre adultos e crianças, planejamento e aplicação de exercícios adicionais, jogos. Contei também com a ajuda de boa parte da equipe escolar, pois procurávamos nos unir para resolver os problemas corriqueiros encontrados no dia a dia de uma unidade escolar de médio porte, que têm não só problemas internos de organização mas também externos, afinal trabalhamos com crianças e adolescentes que na sua maioria vem para a escola com problemas familiares que demanda por parte do professor uma atenção especial, desgastando ainda mais não só o nosso físico mas também o nosso lado psicológico. Apesar do meu esforço e o de toda a equipe (diretor, coordenador e demais funcionários) terminei o ano frustrada, os alunos apresentaram progressos significativos, mas não o suficiente para freqüentar uma 3ª série. Gostaria de ressaltar que eram três 2ª séries na escola, todas elas apresentavam basicamente o mesmo problema. Neste ano o índice de repetência foi maior. Os alunos foram para a recuperação de ciclo, que fizeram por um ano. No ano seguinte foram reclassificados novamente na 2ª série. Como mudei de escola, acompanho o desenvolvimento deles à distância, este ano de 2006, a maioria dos alunos estão freqüentando a 3ª série. Gosto do que faço, adoro estar com as crianças, mas acho que ser professor nos dias atuais não vem sendo uma tarefa fácil. Os alunos com certeza não são mais os mesmos da minha época, onde é preciso fazer “malabarismos” para conquistá-los, dar uma boa aula sem muitos recursos, sem materiais, com alunos indisciplinados, sem 31 educação, sem base familiar, sem perspectiva de vida tornam a tarefa do professor ainda mais complicada . Por esse motivo e que procurei cursar uma faculdade, pois acredito que somos capazes de fazer a diferença na vida de cada um de nossos alunos. Se tivermos dentro de nós que a vida é um aprendizado constante e que a cada dia aprendemos algo novo, acrescentamos alguns conhecimentos e experiências e por isso que procuro manter a mente aberta para aprender cada vez mais. Dessa forma estou adquirindo sabedoria, enriquecendo de maneira prazerosa o meu repertório de experiências e ganhando maturidade a cada dia. Portanto, trabalhando de 1ª à 4ªsérie, não mais com adultos, mas com crianças e alguns adolescentes passei a enfrentar outros desafios, ou seja outra realidade, como já foi mencionado anteriormente. Muitos problemas me deixavam inquieta como a baixa qualidade educacional oferecida pelo ensino público, as mudanças educacionais que vivemos e que se constituem quase sempre em decisões ou pacotes prontos, ou seja, impostos a toda rede de cima para baixo. Dificilmente os “pacotes” são adequados a todas as situações e especificidade que caracterizam as diferentes regiões escolares do país ( realidade da clientela ). Como estes assuntos se interligam gostaria de mencionar mais pautadamente neste memorial a questão da Indisciplina e da Avaliação com sua ideologia no sistema educacional. Portanto, neste primeiro momento enfocarei a questão da indisciplina. Pois, em quase todas as escolas que já lecionei a grande reclamação dos professores é em relação à indisciplina em sala de aula e na escola, principalmente nas escolas públicas, pois não tenho experiências em escolas particulares . Este depoimento abaixo retrata exatamente as reclamações que tenho ouvido durante todos os anos de magistério, com crescente agravante nos últimos anos é exatamente a realidade das escolas que trabalhei e que trabalho, portanto é a fala da maioria dos professores em relação aos alunos. “A falta de interesse pela escola. Os alunos estão dispersos, não respeitam mais o professor . A tecnologia avançou demais e o professor infelizmente não acompanhou, ficou desinteressante para eles. Eles estão acostumados a apertar botão de videogame, de computador, a ver televisão e aí aparece o professor com apagador e giz... O professornão está conseguindo ter domínio, as aulas estão muito no passado, muito antigas. Os meios de comunicação ao invés de ajudar estão atrapalhando: programas muito violentos. Não está existindo liberdade com responsabilidade. As crianças de hoje são mais espertas do que antigamente. A família não tem colaborado; os alunos vêm sem limites de casa. Geralmente 32 há até conivência dos pais: o professor nunca tem razão. Há muitos problemas familiares. A própria família não sabe o que fazer; a mãe fala: “o que eu faço com ele? Vou matar?. Eu não sei o que fazer com a classe. Às vezes, o professor é completamente ignorado na sala de aula; você entra e parece que não entrou ninguém. Por que se dá tanta regalia para os alunos e o professor é tão esfolado em sala de aula? Como manter uma aula decente se você não tem material pedagógico, não tem condições de trabalho, não tem nada? Você vai tentar punir o aluno, não pode porque a direção não deixa, o Estado não permite, os pais não permitem... Há também a indisciplina social. Há muita impunidade na sociedade: as pessoas fazem coisas e não acontece nada com elas. Falta perspectiva ao jovem: não sabe para que estudar. Aluno diz: “eu vou ser jogador de futebol, não preciso de estudo! Vai ganhar muito mais do que eu... As vezes, muitos de nós, profissionais da área, ficamos desmotivados pois o professor não ganha tão bem. O professor também se desmotiva: Ah, para que eu vou mudar? Para que fazer meu planejamento assim? Ah, uso o do ano passado! Como explicar que a classe é disciplinada com determinado professor e não é com outro? É preciso ver a postura do professor, o método que utiliza. Continuamos com métodos elitistas e arcaicos? O que é para nós disciplina? É a prática do silêncio?”.(Vasconcellos, 1996 , p.248) Percebo alguns focos da queixa: o aluno, seu desinteresse, decorrente da tecnologia a que tem acesso fora da escola; os meios de comunicação, a sua influência negativa; a família, não cumprindo seu papel; a escola, que não apoia o professor; a sociedade, sua (des)organização; e, depois de um certo tempo, chega-se a colocarem em questão a própria relação pedagógica. Tinha um grande desejo de responder à todas estas questões mencionadas acima, mas como? Foi quando apareceu à oportunidade para freqüentar uma Universidade fiquei dividida, principalmente em fazer Pedagogia, pois pensava em mudar de profissão, e por outro lado sentia insegura só de pensar nas provas, na avaliação dentro de uma faculdade. Pois no método tradicional, sempre fui obrigada a decorar, mesmo não entendendo o que estava estudando e o que aquilo acrescentaria em minha vida. Apesar de algumas dúvidas, no fundo tinha certeza que para resolver os obstáculos, os desafios do dia-a-dia era necessário uma boa formação. No segundo semestre de 2003 iniciei no curso de Pedagogia (Formação de Professores em Exercício) que vem me ajudando a superar minhas inquietações, e a ter uma visão mais crítica sobre a realidade que nos cerca. Gostaria de ressaltar as disciplinas que contribuíram significativamente para um novo olhar e o que elas acrescentaram em meus conhecimentos e na minha prática em sala de aula. 33 Sei que a questão da avaliação e da indisciplina para seu enfrentamento, precisa da ajuda de um conjunto de áreas do conhecimento, como a Sociologia, Antropologia, Psicanálise, Ética, Política, Psicologia, Economia, História, Tecnologia, Comunicação Social, além dos próprios saberes pedagógicos. Como o assunto é amplo enfocarei o que for mais relevante para este memorial no momento. 2.1 - A contribuição da Pedagogia Refletir quer dizer, ao mesmo tempo; a) pesar, repesar, deixar descansar, imaginar sob diversos aspectos o problema, a idéia; b) olhar o seu próprio olhar olhando, refletir-se a si mesmo na reflexão. É preciso alimentar o conhecimento com a reflexão; é preciso alimentar a reflexão com o conhecimento. Edgar Morin As aulas de Sociologia contribuíram de forma significativa em minha prática, tanto na escola com meus alunos, como na vida pessoal, pois passei a ter uma visão mais ampla de alguns comportamentos que estão arraigados em nossas escolas. Contudo, as principais teorias sociológicas clássicas estiveram e estão interessadas principalmente nos problemas da relação entre indivíduos e sociedade nas quais as ações de indivíduos e de grupos de indivíduos só podem ser compreendidas nas suas inter-relações recíprocas. Ou seja, essas ações presentes no cotidiano da vida em sociedade, não dizem respeito apenas à ação individual, mas também, à ação social e, por isso, são objetos de estudo . Percebi durante as aulas que a Sociologia volta-se o tempo todo para os problemas que o homem enfrenta no dia - a - dia de sua vida em sociedade. Assim todos possuem um certo senso comum acerca da sociedade – ou seja, uma série de conhecimentos adquiridos na prática de como agir em situações coletivas. Nesse sentido, a Sociologia está próxima de nossos problemas diários. Mas por outro lado a Sociologia não se limita a repetir os ensinamentos do senso comum. Ela pretende ser um conhecimento científico sobre a realidade social e, enquanto tal, visa estabelecer teorias, bem como confrontá-las com a realidade. Essas teorias já não são tão simples como as idéias que temos sobre a sociedade. As teorias implicam conceitos, ou seja, a representação dos objetos reais por meio de palavras que os definem e caracterizam. 34 Assim, quando um sociólogo fala em fatos sociais, não está apenas usando uma palavra no sentido corriqueiro, mas utilizando um conceito que designa alguns aspectos da realidade social . Vivenciamos situações em que nossas decisões sempre têm relações com outras decisões que foram tomadas anteriormente, seja em níveis próximos, seja em níveis distantes do nosso dia-a-dia. Exemplos: As leis que definem como se organiza as escolas, que definem as estruturas dos conteúdos, dos currículos, etc. Muitas vezes não sabemos como essas leis foram feitas, nem tampouco quais os interesses envolvidos. Entretanto, todas elas nos atingem diretamente e alteram nossas vidas particulares, ainda que de forma desigual, é claro, uma vez que os indivíduos se distribuem também de forma desigual na sociedade. Foi a partir dessas aulas que comecei a refletir sobre o cotidiano escolar, quais eram as ideologias que estavam por trás das ações escolares e principalmente de nossas ações enquanto professores. A escola é uma instituição que produz a adaptação, o conformismo e a adesão às regras. Se a escola é realmente assim, como entender a questão da indisciplina escolar? O que está por trás da manifestação do problema? Como afirmava Durkheim as escolas visam a formação de alunos quietos, educados, ordeiros, submissos, onde quem tem o domínio do conhecimento é o professor e o aluno é uma tábula rasa, à qual irá ser modelado de acordo com o que a sociedade quer, vê-se obrigado a edificar partindo do zero. As normas, regras, ordens, são repassadas aos indivíduos de geração em geração. Precisam ser inculcadas no indivíduo de forma coercitiva, mesmo contra a sua vontade. Com esta visão com certeza teremos no futuro adultos passivos, submissos e alienados. Pensando e estudando sobre o sociólogo Émile Durkheim, consegui compreender melhor a maneira de ser, pensar e agir das minhas professora de infância. Pois, apesar do contemporâneo Durkheim ter escrito sua teoria e seus conceitos a muito tempo atrás, suas idéias continuam se perpetuando até os dias atuais, em várias instituições escolares. Descobri depois das aulas de Sociologia que inúmeras vezes tive atitudes durkheimiano, agindo tradicionalmente e fazendo as mesmas coisas que meus ex professores. Inculcava nas crianças sentimentos de obediência e de punição com quem não cumprisse com as regras. Então comecei a pensar que disciplina eu desejo enquantoprofessora? 35 Primeiramente fui buscar o significado da palavra disciplina, que em sua etimologia tem a idéia de “ordem”, “respeito”, “ obediência às leis”, que o seu antônimo é “desobediência”, “insubordinação”, “rebelião”. Acredito que a indisciplina constitui um fator de stress, pois afeta emocionalmente e às vezes até mais que os problemas de aprendizagem enfrentado no dia – a –dia . A indisciplina se manifesta nos mais diversos modos e graus de intensidade e são diversos os fatores, alguns de ordem social, familiar e pessoal e outros de ordem escolar. As desigualdades sociais e econômicas, a crise de valores e os conflitos de gerações, são fatores que afetam a vida social, a vida escolar e interfere na questão da disciplina escolar. A indisciplina passa a ser vista como um problema quando a sala começa a “pegar fogo” e percebida na “bagunça” no barulho”, na “falta de atenção” e muitas vezes se manifesta na “agressividade”. Exemplo do caso que relatei sobre João, mas já presenciei muitos professores separando brigas de alunos dentro da sala de aula ou no ambiente escolar. Procurei observar porque os alunos conversam tanto nas aulas e cheguei em alguns pontos como: às vezes querem mostrar que fazem parte do grupo, desejam relatar assuntos exteriores à sala de aula e muitas vezes é para mostrar oposição à autoridade do professor ou para esclarecer e compreender o que o professor acabou de dizer ou então, mostrar o seu descontentamento com a disciplina do professor. Percebo que a equipe escolar ( direção, coordenação, professores, pais) sem saber o que fazer com tanta violência, indisciplina, buscam alternativas para tentar resolvê-las. Escuto falar muito que é importante a linguagem e o discurso adequado, pois são instrumentos capazes de alterar alguns comportamentos. Saber diferenciar as aulas indo ao encontro das necessidades dos alunos, ou seja, propor atividades diferenciadas, momentos diversificados - englobando aulas expositivas, introdução dos conteúdos, interações, questões, respostas, dúvidas, reflexões e principalmente saber escutar as participações e opiniões dos alunos. Na prática muitas vezes englobar tudo isto é difícil, acredito que seja preciso construir junto com os alunos um acordo em que ambas as partes discutam e construam seu papel, sabendo como acatar as sanções na eventualidade de um descumprimento. Dentro de uma sala de aula o aluno precisa participar da elaboração das regras do aprender, mas, antes disso, o professor precisa despertá-lo para que sinta necessidade 36 de assumir responsavelmente o processo educativo, fazer - se sujeito ativo, ou seja, precisa-se de uma direção e coerção, mas construídas organicamente e não arbitrariamente impostas. O professor é colocado como um estímulo, como “guia” e, ao mesmo tempo que apresenta orientações, envolve o educando nas ações e decisões. É uma intervenção, aparentemente coercitiva, mas substancialmente libertadora, provocativa, desafiadora para a elevação social . Durkheim (1977) acreditava num processo educativo disciplinador que conforma os indivíduos aos grupos sociais a que pertencem, fazendo com que internalizem as regras vigentes e os valores estabelecidos para atingir a autonomia da vontade ou a verdadeira liberdade: “A liberdade e a filha da autoridade bem entendida. Porque se livre, não é fazer aquilo que apraz; é ser mestre de si e saber agir pela razão e fazer seu dever”.( Durkheim, 1935, p.73). A liberdade é interpretada como sendo uma perversão que expressa o medo da regulamentação social . Se as crianças do século XXI não são mais as mesmas de 100 anos atrás, nossos modelos de educação nas instituições escolares deveriam ser outros. Portanto qual a melhor solução atualmente, para nossas escolas., mesmo sabendo que não somos as redentoras da nação ? Considerando os conceitos de “autonomia” e “liberdade” acredito que a concepção dos pensadores e seguidores de Marx sejam mais plausível. Pois a coerção só terá sentido e obterá resultados se o professor tiver garantida a sua “autoridade” na ação, porém sem se impor pelo autoritarismo no seu desempenho com os educandos. O professor deverá construir a partir do elemento espontâneo que o aluno apresenta, o elemento consciente, ou seja, do pré conceito do senso comum, construir o saber elaborado e, assim, a elevação do nível de compreensão do mundo. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o ser social que inversamente, determina a sua consciência. (Marx, 1997, p 23) A partir da construção do desenvolvimento da autonomia, é possível formar alunos capazes de coordenar suas próprias ações e decidir sobre elas. Esta autonomia só pode ser construída em ambientes escolares cooperativos, dificilmente conseguiremos construir autonomia se os alunos apenas se limitarem a obedecer regras ditadas pelos professores. 37 Em minha concepção, a escola deve pensar o aluno que tem diante de si, de um lado desenvolvendo suas habilidades e capacidades próprias de conhecimento, de observação e de liderança e, de outro, despertar-lhe a consciência de que este conhecimento individual só terá real sentido e valor se colocado de forma efetiva, na natureza. Não cabe à escola apenas a função de informar o educando sobre o passado histórico, mas situá-lo no âmbito real, conhecendo e transformando as circunstâncias e sendo por elas transformado numa relação com base no diálogo. Assim, desenvolve suas potencialidades individuais num processo dinâmico e participativo que parte do “eu individual” para a realização do “eu coletivo” no convívio social. Nos dias atuais a crise na escola se manifesta de muitas formas, mas com certeza uma das mais difíceis de enfrentar é a absoluta falta de sentido para o estudo por parte dos alunos. A pergunta "estudar para quê"? A famosa resposta dada por séculos era “estudar para ser alguém na vida", chega a provocar risos nos alunos, ante a clara constatação de inúmeras pessoas formadas, porém desempregadas ou muito mal- remuneradas. Estamos vivendo a queda do mito da ascensão social através da escola. Segundo pesquisas recentes existem mais alunos formados e menos empregos ou seja, mais alunos com diplomas na mão, mas infelizmente desempregados. Durante muito tempo o "projeto educativo" de milhares de educadores, era levar os alunos a acreditarem nesta mobilidade social, ter em mente a perspectiva de uma recompensa mais tarde. Hoje, os alunos continuam não vendo sentido nas práticas de sala de aula, e não vislumbram mais um futuro promissor pelo diploma. E, o que é pior, como professora percebo que não estamos conseguindo articular outro sentido para o conhecimento, a escola, o estudo: “É provável por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural”. (Bourdieu, p.41, 2001) O sistema escolar apesar da ideologia da mobilidade social contínua sendo altamente seletista e conservador. O acesso à escola não garante igualdade de oportunidades. A escola ficou protegida de suas contradições internas por muito tempo em função de sua relação de "parceria" com o mercado de trabalho. Esta motivação exterior 38 - já que não estava assegurada na própria relação pedagógica encobria e tornava "suportável" o que lá acontecia, tendo em vista o prêmio posterior ("Sofro agora, mas depois terei um bom emprego, serei alguém na vida"). Estamos diante do autêntico problema, que não é absolutamente novo, mas que agora finalmente, me parece que tem de ser enfrentado. Sair da situação de professor alienado, não é fácil, pois continuamos fazendo o que nos mandam (“Tenho de cumprir o programa", “Tenho de dar tarefa, senão os pais reclamam” etc.). Pois, o
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