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SRLMR TRNNUS MUCHRIL FOÜCAULT. S1MPLESMENTE "" ,', ,. "" LEITURAS CI~G FILOSÓFICAS Aristóteles e o logos, Barbara Cassil1 Aristóteles no século XX, Enrico Berti Da nahneza, José Gabriel dos Santos Diálogos com a cultura contemporânea, W.M Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo Perine Filosofia a partir de seus problemas (A), 2" ed., Mario Ariei González Porta Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8" ed., Rubem Alves Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1 Foucault, simplemente - textos rennidos, Salma TamJUs Mucllail Metáfora viva (A), Paul Ricoeur \1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd l\'iilismo (O), Franco Volpi Ofício do filósofo estóico (O), RacheI Gazolla Ordem do discurso (A), 10" cd., Michell''oucault Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa Quc é a filosofia antiga? (O), Pierre Hadot Razõcs dc Aristóteles (As), 2" ed., Enrico Berti Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.' ed., Giovallni Reale Sete lições sobre o ser, 2" ed, Jacques Maritain Sobre O político de Platão, Comeljus Castoriadjs Sócrates ou o despertar da consciência, fean-Toel Duhot Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho, Carlos Arthur A. Nascimel1to Transformação da filosofia, vol. 1, Karl-Otto Apel Transformação clJ filosofia, vol. 2, Karl-Otto Apel Vontadc de crer (A), William James SRLMR TRNNUS MUCHRll FOUCRULT, SIMPLESMENTE ·~2xtQS :-eL:f"":id:i5 PUCRS/BCE 1111111111111111111111 0.968.999-2 PREPARAÇÃO: Marcelo Perine DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa REVISÃO: Maurício B. Leal "\ r " ,. •. ! L" . -'.' , ... - J P~CRS ' BIBLIOTECA 5: !..j0~1\I\ 5-ó2P J~ -' - Edições Loyola Rua 1822 n° 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP ® (11) 6914-1922 ® (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta ohra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico. incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 85-15-02992-8 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004 SUMRRIO Apresentação ................... . A TAAJETÓRIA DE MICHEL FOUCAULT .................. . A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA Filosofia e/ou história? O MESMO E O OUTRO Faces da história da loucura EDUCAÇÃO E SABER SOBERANO 7 9 21 37 49 o LUGAA DAS INSTITUiÇÕES NA SOCIEDADE OISClPLlNAA ... 59 DE PRÃTICAS SOCIAIS FI PRODUÇÃO DE SABERES 73 FOUCAULT E A LEITURA DOS FILÓSOFOS ................ .. 85 OLHARES E DIZERES .............. .. 97 , __ o, ,_ ... _. OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault e Cornelius Castoriadis ... o ••••••••••••• . .................... 109 ..... COMO NA OALA DO MAR. UM AOSTO DE AAEIA·· Notas sobre maio de 68 .. .......... ..... 115 MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO DO AUTOA ........... 123 BIBLlOGAAFIA ........... 133 RPRESENTRÇÃO o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento plural. Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação cuidadosa para que se possa enfrentar esta diversidade e, ao mesmo tempo, dar conta de sua inventividade e de sua densidade conceitual. Por outro lado, ao percorrê-los, o próprio pensamento é instigado a tornar-se múltiplo e igualmente afinado com a inventividade e o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter. Em sua maioria são conferências, artigos e capítulos de livros já publicados. Como reunião de textos dispersos, o livro compor- ta suas próprias diversidades, não deixando de formar, no en- tanto, uma unidade dotada de significado. Relativamente às diversidades, trata-se, em primeiro lugar, de um livro escrito em diferentes momentos. Os textos que o compõem expressam a marca temporal dos momentos em que foram produzidos, revelada por vezes na eleição dos Çlbjetos tratados e, por outras, na contextualização das análises. Tam- bém os temas discutidos são diversos. À semelhança dos escri- tos de Foucault, a abordagem de temas como o ensino, a cultu- ra, o poder, a história, a loucura, as instituições, a democracia, a filosofia, não permite que se determine, para este livro, a pre- apresentação ! 7 sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igual- mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois, tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros, mais específicos, realizam análises detidas sobre temas preci- sos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão pro- fundo e complexo quanto instigante. A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitu- ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault, este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes as- pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem o leitor a seu respeito. Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre- sente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversifi- cação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar. Márcio Alves da Fonseca Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP 8 I Foucault. simplesmente A TRAJETÓRIA DE MICHEL FOUCAULr Mas o que é filosofar hoje em dia ( ... ) senão o trabalho critico do pensamento sobre o pensamento? Senão ( ... ) tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de leptimar o que já se sabe? M. FOUCAULT, O uso dos prazeres, 13. A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984) pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu primeiro grande livro, e 1984, com seus últimos livros publicados. Os estudio- sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três momentos. O primeiro, conhecido como período da "arqueo- logia", é voltado principalmente para questões relativas à cons- tituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clí- nica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969). O segundo mamemo, conhecido como períodó da "ge- * Este texto é uma versão modificada de aula ministrada no curso "Michel Foucault - Razão e Desrazão", na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão, Belo Horizonte, PUC/MG, v. 2, n. 1, fev. 1992. a trajetória de Michel Foucault I 9 nealogia", é centrado sobre questões relativas aos mecanismos do poder e inclui os principais livros da década de 1970: Vigiar e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade, intitulado A vontade de saber (1976). O terceiro momento trata de questões relativas à constituição do sujeito ético e inclui os volumes II e III da História da sexualidade, intitulados, respectivamente, O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984( Tomando esta repartição como ponto de partida e roteiro, temaremos esboçar os traços que caracterizam esses três mo- mentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a transcrição da seleção de passagens em que, a cada vez, o pró- prio Foucault declara suas preocupações e seus propósitos, fa- remos iniciar a abordagem de cada um desses momentos.••• Em texto de 1968, assim descrevia Foucault os propósitos de suas primeiras investigações: "determinar, nas suas dimen- sões diversas, o que deve ter sido na Europa, desde o século XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos discursos científicos ( ... ) para que se constitua o saber que é nosso hoje e, de maneira mais precisa, o saber que se deu por domínio este curioso objeto que é o homem,,2. O primeiro momento de seus escritos tem, portanto, um enfoque explicitamente histórico ("na Europa, desde o século XVII" ... até "o saber que é nosso hoje") e a preocupação está 1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situações ocor- ridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos, aulas etc. que Foucault produzir~ e realizara em diversos países), e, ainda mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos), cuja publicação foi iniciada em 1997. 2. FOUCAULT, M., "Resposta a uma Questão", Revista Tempo Brasileiro, 28 (Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar, 1972.79. 10 I Foucault, simplesmente centrada na descrição dos discursos, não porém quaisquer dis- cursos, mas aqueles considerados científicos e, mais particular- mente, os das chamadas ciências humanas ("o saber que se deu por domínio este curioso objeto que é o homem"). Observe-se que esta descrição histórica dos discursos não é feita nem à maneira do "comentário", nem ao modo de uma análise lingüística. O comentário é uma espécie de discurso se- gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir alguma verdade implícita no dito explícito do discurso primei- ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen- contrada e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe, por ou- tro lado, que esta origem e este sentido - mais essencial e, ao mesmo tempo, mudo - de algum modo atravessam o sentido explícito, nele dormitam, a fim de que possam ser trazidos à luz pelo comentário. Supõe, pois, um conteúdo de significações "já-dito" e, simultaneamente, "jamais-dito"3. Nas análises de Foucault, ao contrário, os discursos são tomados em sua posi- tividade, como "fatos", e trata-se de buscar não sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim como as novas regras que presidem a formação de novos dis- cursos em outra época. A análise lingüística, por sua vez, diz respeito à língua como sistema formal que rege a formulação tanto de enunciados efetivamente realizados como a dos que, em tese e em número infinito, poderiam vir a ser constituídos. Já a descrição foucaultiana dos fatos discursivos se limita a enun- ciados já formulados que compõem as formações discursivas, e quer estabelecer não as regras formais de sua inteligibilidade, mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade do aparecimento, das transformações e do desaparecimento 3. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu- ralismo e Teoria da Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes, 1971, 21; ver também L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, 36. a trajetória de Michel Foucault ! 11 de tais ou quais discursos, e não de outros, numa época dada e numa dada sociedade, jogo este que é, portanto, variável num curso histórico marcado por diferenças e descontinuidades. Pode-se chamar a esse "jogo de regras" de epistéme de uma épo- ca, seu a priori histórico, ou ainda o solo onde são constituídas as formações discursivas historicamente realizadas e que com- põem as diferentes configurações no espaço do saber. Assim é, por exemplo, que em As palavras e as coisas as análises mostram como na Europa dos séculos XVII e XVIII emergem determina- das formações discursivas que vão constituir a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas, enquanto no século XIX vão surgir a filologia, a biologia e a economia, de que as primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo ou conjunto de regras que, numa determinada época e para uma determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições isso se vincula etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro e o que deve ser excluído como desqualificável, eis o procedi- mento que Foucault chama de "arqueologia". Mas não é, genericamente, de quaisquer discursos que Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do saber considerado científico e, dentro dele, a região das chamadas ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação desse donúnio é uma escolha de certo modo hipotética, "uma primeira aproximação" ou "um primeiro esboço,,4. Trata-se de uma circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por um lado, a demarcação do domínio não limita o ãmbito de aplicabilidade da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em outros campos do saber. Por outro, essa de~arcação não pretende definir, salva- guardar ou confirmar os contornos do próprio domínio escolhi- do; pelo contrário, o campo do saber assim assumido como obje- 4. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu- ralismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43. 12 I Foucault. simolesmente to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito da própria análise. "Nada me prova", diz Foucault, "que os reencon- trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação) ao termo da anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli- mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me prova que tal descrição poderá dar conta da cienrificidade (ou da não-cientificidade) desses conjuntos discursivos que assumi como ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre- sunção de racionalidade científica"s A escolha do domínio, por- tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio escolhido. Trata-se tão-somente de "um privilégio de partida,,6. ••• E contudo é um privilégio. Será nos escritos posteriores que se tornarão mais claros os motivos de semelhante eleição. Em uma passagem de 1976, a respeito dos escritos do segundo momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: "O que tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon- tos de referência, dois limites: por um lado, as regras de direito que delimitam formalmente o poder e, por outro, oS efeitos de verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez reproduzem-no,,7. Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre eles sobre "os que têm por domínio este curioso objeto que é o homem" - que melhor lhe permite trazer à tona "os mecanis- mos existentes" entre exercícios de poder e produção de sabe- res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do 5. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 53-54. 6. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutura- lismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43. 7. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder, trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979,179. a trajetória de Michel Foucault I 13 saber cujo terreno é mais movediço, mais claramente aberto a combates e cuja história, por isso mesmo, pode ter mais "eficá- cia política"8. Trata-se, agora, de evidenciar as articulações entre saber e poder, mediados, por assim dizer, pelo que podemos chamar de modos de produção da verdade. Por "verdade" deve-se entender não "o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar", mas "o conjunto de regras segundo as quaisse distingu~ o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efei- tos específicos de poder"9. E, assim como a "verdade" de que se trata não é nenhuma essência universal, mas "regras" historica- mente diferenciáveis, também o poder não deve ser compreen- dido como uma "idéia" ou uma "identidade teórica", mas como exercício, como prática, que só existe em sua "concretude", mul- tifacetado e cotidiano 10. Ora, compreende-se que é sobre os discursos científicos, e, particularmente sobre os das ciências humanas, que vai incidir a investigação, uma vez que, se toda sociedade tem seu regime de verdade com efeitos de poder, em nossa sociedade a produ- ção da verdade é regulamentada por regras que autorizam a eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conse- qüente exclusão de outros saberes, que qualificam os objetos dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições apropriadas, e cujos efeitos de poder, particularmente no caso das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar. Nesse momento de seus escritos, Foucault amplia o âmbi- to das análises: de análises quase sempre mais preocupadas com discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento 8. FOVCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 154. 9. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 13. 10. Ver, a este respeito, por exemplo, em Microftsica do poder:. "Introdu- ção" (de R. Machado), XVI; "Verdade e poder", 6; "Os Intelectuais e o poder", 75-76; "Poder-Corpo", 149; "Genealogia e poder", 175; "Soberania e discipli- na", 183-185; "O olho do poder", 221; "Sobre a história da sexualidade", 251. III I Foucault. Simplesmente com a trama das instituições e práticas sociais, como faz prin- cipalmente em sua história do nascimento das prisões (Vigiar e punir). Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção mais complexa de "dispositivo estratégico", entendendo-se que, enquanto a epistéme é também um dispositivo - ou, antes, um elemento prioritariamente discursivo do dispositivo -, o dis- positivo, prioritariamente de natureza estratégica, envolve arti- culações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradis- cursivos, tais como práticas jurídicas, projetos arquitetônicos, instituições sociais diversas. Quando Foucault passa a explici- tar esse momento de sua investigação, passa também a defini- lo menos como "arqueologia", para denominá-lo "genealogia". Assim, arqueologia e genealogia se distinguem ao mesmo tempo em que guardam, de certo modo, a mesma natureza e o mesmo teor. Mais de uma vez Foucault afirma que os propósi- tos explícitos nos escritos da fase genealógica já estavam pre- sentes, mas não percebidos, nos primeiros escritos. Mas adverte também que uma mudança ocorreu na condução das análises. "Enquanto a arqueologia", escreve ele, "é o método para a aná- lise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes liber- tos da sujeição que emergem desta discursividade"l1. Poder-se- ia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia constrói uma política de resistência e de luta. A denominação "genealogia" será mantida por Foucault ao referir-se ao terceiro e último momento de sua trajetória. Mas com outras transformações. *** Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, assim se exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: "Ten- 11. FOUCAULT, M., "Genealogia e poder", in Microftsica do Poder, 172. a trajeto ria de Michel Foucault I 15 to responder a um problema 'preciso: nascimento de uma mo- ral, de uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre o desejo, o prazer,,12. Entre a publicação do volume I da História da sexualidade - A vontade de saber (1976) - e a dos volumes II e 1II - O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984) - passaram-se oito anos. Neste intervalo, Foucault alterou radicalmente o plano inicial previs- to para a obra. Uma mudança importante ocorreu relativamen- te ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores, continua a fazer filosofia fazendo pesquisa histórica. Mas ago- ra a cronologia é outra. Até então as histórias que escrevera atravessavam, quase sempre, um percurso que ia desde o final do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa Moder- nidade (séculos XIX e XX), com realce para a chamada Idade Clãssica (séculos XVII e XVIII), buscando trazer à luz as trans- formações que marcaram a passagem do Renascimento à Idade Clássica e, principalmente, as que assinalaram a passagem do final da Idade Clãssica à Modernidade, na direção, pois, de com- preender nosso presente. O projeto inicial da História da sexua- lidade anunciava um percurso histórico semelhante. Porém, como reconhece o próprio Foucault, a pergunta que ele então se colocou - "Por que tínhamos feito da sexualidade uma expe- riência moral?" - levou-o a procurar mais "atrás" pelo "nasci- mento de uma moral", detendo-se então na Antiguidade grega e greco-romana, nos últimos séculos antes de Cristo e nos pri- meiros séculos da era cristã13. 12. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis· tas, org. de C. H. ESCOBAR, trad. Ana Maria de A Lima e M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75. 13. Cf. BARBEDEITE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier- últimas entrevistas, 136; R BELLOUR, "Um devaneio moral", in O Dossier - últi· mas entrevistas, 86; FOUCAULT, M., História da sexualidade, voI. 11, O uso dos praze- res, trad. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, "Introdu- ção", 16. 16 I Foucault. simplesmente A alteração na cronologia foi acompanhada por mudanças teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga- ções será o sujeito, não porém como aquele "curioso objeto" de um domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou- tros, enquanto "sujeito do desejo"14, como espaço de referência. Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini- doras do que é permitido ou interditado, mas a da conduta, do modo de comportar-se ou das posições em face de códigos e leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de "práticas de si", "técnicas da vida", "artes da existência"ls. Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação permite me- lhor aproximar dados da Antiguidade de problemas de nossa atualidade, mantendo, assim, a característica da genealogia de compreender o presente. A este propósito, eis algumas observa- ções de Foucaulr: "O que me impressionou é que na ética grega as pessoas se preocupavam com sua conduta moral, sua ética, suas ligações com elas próprias e com os outros muito mais do que com problemas religiosos ( ... ). A segunda observação é que a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou pelo menos legal-institucional ( ... ). O terceiro ponto a observar é que o que os preocupava, seu tema, era constituir um tipo de ética que era uma estética da existência". E as aproximações que em seguida faz: ''(. .. ) eu me pergunto se nosso problema atualmente não é, de certa maneira, semelhante a este, desde que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada na religião, e nem quer um sistema legal que interfira na nossa moral pessoal, privada ( ... ). Estou interessado nessa semelhança de problemas"16. 14. Cf. FOUCAULT, M., O uso do prazeres, "Introdução", 10-11. 15. Cf. ibid., 15. 16. DREYFUS, H. L. e RABINOW, P., "Sobre a genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento", in O Dossier - últimas entrevistas, 43-44. a traietória de Michel Foucault I 17 Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica, que o próprio Foucault faz questão de reconhecer. Aliás, ao pri- meiro tópico da "Introdução"de O uso dos prazeres dá o título "Modificações". Em outra passagem realça essas diferenças, jun- tando sugestivamente as duas pontas de sua trajetória, da Histó- ria da loucura à História da sexualidade: "A propósito da loucura, parti do 'problema' que ela podia constituir num certo contexto social, político e epistemológico: o problema que a loucura co- locava para os outros. Aqui, parti do problema que o comporta- mento sexual podia colocar aos próprios indivíduos ( ... ). Em um caso, tratava-se em suma de saber como se 'governava' os lou- cos, agora como 'governar-se' a si próprio". E conclui apontan- do para aproximações: "São, em resumo, duas vias de acesso inversas em direção a uma mesma questão: como se forma uma 'experiência' onde estão ligadas a relação a si e aos outros"l? Com efeito, na passagem dos momentos anteriores ao úl- timo, as semelhanças também existem. E elas têm pelo menos dois eixos comuns. Primeiro, há, em todos eles, um mesmo propósito de base: escrever "a história das relações que o pensa- mento mantém com a verdade"18. Dito de outro modo, todos os escritos são sustentados por uma mesma pergunta de fun- do: "Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco (A história da loucura), quando se olha como doente (O nascimento da clínica), quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser traba- lhador (As palavras e as coisas), quando se julga e se pune en- quanto criminoso (Vigiar e punir)? Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo (História da sexualidade)?"!'. 17. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier - últimas entrevis- tas, 76. 18. Ibid., 75. 19. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 12 (os títulos entre parênteses foram acrescentados por nós). 18 ! Foucault. simplesmente l Um segundo eixo desses escritos está em certo ângulo a partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio- nam a "problematizações". Aliás, o segundo tópico da "Intro- dução" de O uso dos prazeres tem por título "As formas de proble- matização". Eis ainda uma passagem em que esse eixo comum é explicitado: "Em A história da loucura a questão era saber como e porque a loucura, num dado momento, foi problematizada através de uma certa prática institucional e um certo aparelho de conhecimento. Do mesmo modo, em Vigiar e punir, tratava- se de analisar as mudanças na problematização das relações entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti- tuições penitenciárias no fim do século XVIII e no início do século XIX. Agora, como se problematiza a atividade sexual?,,20. Os dois eixos comuns, por sua vez ~ o propósito de fazer a história das relações entre pensamento e verdade e o ângulo das problematizações~, articulam-se entre si, já que por "problema- tização" deve-se entender "o conjunto de práticas discursivas ou não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui como objeto para o pensamentoJJ21 . ••• A partir daqueles eixos de aproximação pode-se, finalmen- te, compreender a reunião dos três momentos da trajetória de Foucault em um mesmo conjunto, sem contudo escamotear suas diferenças: o primeiro momento interroga o que habitual- mente se entende por "progresso do conhecimento", conduzin- do à análise das práticas discursivas constitutivas dos saberes reconhecidos como verdadeiros; o segundo interroga o que ha- bitualmente se entende por "poder", conduzindo à análise dos mecanismos de exercícios dos poderes relacionados à produção de saberes; o terceiro momento interroga o que habitualmente 20. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis- tas, 76. 21. Ibid., 76. a trajetória de Michel Foucault I 19 se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enu- merar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro po- lítico, outro étic023; ou trata-se, como se exprime o mesmo Fou- cault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e o da conduta individual"24. De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensa- mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensa- va antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê,,27. Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode cha- mar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habi- tual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e dispõe-se constantemente a se recompor. 22. Cf. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 11. 23. Cf. EWALD, F., "Michel Foucault", in O Dossier - últimas entrevistas, 71. 24. BARBEDElTE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier- últimas entrevistas, 129. 25. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis- tas, 74. 26. Ibid., 81. 27. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 13. 20 I Foucault. simplesmente 11 A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA Filosofia e/ou história?* A título de introdução, lembremos um conhecido problema afrontado por Husserl e muitas vezes explorado por Merleau- Ponty. Poderia receber ele formulações diversas, todas elas, po- rém, contrapondo dois pólos ou dois termos: trata-se do anta- gonismo ou da correlação entre idéia e fato, ou entre essência e experiência, ou ainda entre interioridade e exterioridade, ou mes- mo entre subjetividade e objetividade, e que constituiria a base do antagonismo ou da correlação entre o pensamento filosófi- co e a elaboração científica. Esta, como se sabe, é uma questão a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti- cularmente das relações entre a filosofia e as ciências humanas. Basta evocar, por exemplo, Le philosophe et la sociologie, Éloge de la philosophie, Risumés de cours) como ainda os opúsculos Les sciences de l'hommeet la phénoménologie e Le métaphysique dans l'homme. Ne- * Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen- tada no V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó- ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em Cadernos PUC, n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi republicado com o acréscimo de "Discussão" em Epistemologia das Ciências Sociais, (FAVARETIO, C. F., BOGus, L. N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984. a filosofia como critica da cultura I 21 les, o autot aborda aquela questão do ângulo das relações entre, por um lado, a filosofia e, por outro, a psicologia, as ciências da linguagem, a história, a sociologia. Em quase todos esses en- saios, retoma a questão desde onde Husserl a tinha levantado e a conduz na direção da superação do impasse. Interessa-nos, para introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posi- ção a respeito da filosofia e da história. Primeiramente, Mer- leau-Ponty rejeita certas alternativas que confundem ou falseiam O conceito de história e que fazem da filosofia e da história "tra- dições rivais"l. Não há que escolher, por exemplo, entre uma filosofia que postula uma consciência fora do tempo, "desliga- da de todo interesse pelo fato", e as '''filosofias da história', que, ao contrário, inserem no curso das coisas uma lógica oculta", como que a predeterminá-I02• Alternativas deste teor podem in- corporar seja uma "ilusão retrospectiva",projetando as catego- rias de hoje na leitura do passado, seja uma "ilusão prospecti- va", reduzindo os fatos à imediatez de seu presente sem qual- quer abertura para o futur03• Ademais, pressupõem isolados entre si "o fato e o homem interior", "a história e o intempo- ral,,4, elegendo, numa verdadeira "guerra fria", ou bem o "mito da filosofia" ou bem a "idolatria da objetividade"5. Em contra- partida, Merleau-Ponry afirmará que é precisamente pela nossa inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção numa cultura particular, que podemos realizar o movimento de com- L MERLEAu-PONTY, M.) Éloge de la philosophie, in Éloge de la philosophie et autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da "rivalidade" aparece igual- mente em outros textos. Por exemplo, em "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1965, 171; ou em "Le philosophe et la socio- logie", in Éloge de la philosophie et au"tres essais, 112. 2. MERLEAU-PONIT, M., "Máteriaux pour une théorie de l'histoire", in Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43. 3. Ibid., 45. 4. Ibid., 43. 5. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge. 113-114; "Le métaphysique dans l'homme", in Sensetnon-sens, 160. 22 I Foucault, simplesmente preensão de outras situações e de outras formações culturais. Se nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o único meio de acesso à compreensão de outras situações parti- culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian- tes da nossa6• Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados, pela qual vivenciamos uma "co-existência histórica"?, que impe- de, por um lado, a submissão da história à força de uma lógica todo-poderosa e atemporal e, por outro, a sua redução a uma reunião de fatos circunstanciais e sem significação. Nessa medi- da, história e filosofia serão não apenas solidárias, mas ainda mutuamente indispensáveis. Uma história que se estreitasse a um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a significação através do concurso da filosofia "não saberia, lite- ralmente, do que ela fala", assim como uma filosofia que sobre- voasse os fatos "só desembocaria em verdades formais, isto é, em erros"s. Assim, se para Merleau-Poncy só "haverá história na medida em que houver uma lógica na contingência, uma razão na desrazão"9, pode-se completar que só haverá filosofia se os sentidos ou as verdades que ela busca forem procurados no seio do devir, na trama histórica dos acontecimentos. Merleau-Ponty atribuía assim certa inerência entre o tra- balho do historiador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira nem a última vez que um pensador travou relações entre filoso- fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos, em que neste caso as relações não são tão sistemáticas a ponto de conduzir finalmente à anulação de uma sob o jugo da outra; e sobretudo 6. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge 137; "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-sens, 162; Ciências do homem e fenomenologia, trad. S. T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61. 7. MERLEAU-PONTY, M., Ciências do homem e fenomenologia, 69. 8. MERLEAU-PONTY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non- sens, 171. 9. MERLEAU-PONTY, M., "Matériaux pour une théorie de l'histoire", in Résumés des Cours, 46. a filosofia como critica da cultura I 23 nem tão precisas que desfaçam certa ambigüidade a atravessar, na prática, o intercâmbio entre ambas. Ora, a nosso ver, é essa certa ambigüidade que, além de marcar uma postura fortemen- te anti dogmática, parece abrir espaço para a possibilidade da eventual reunião das duas atividades numa mesma prática. E é essa a prática que, ao que parece, é executada nos escritos his- tórico-filosóficos de Michel Foucault. A partir destas considerações iniciais, tentemos ver como o próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e enquanto história e, em seguida, em que sentido se poderia di- zer que algo como uma crítica da cultura permeia esse trabalho. É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Fou- cault em classificações estabelecidas do saber, buscando dese- nhar seus traços eventualmente inalteráveis ou circunscrever características invariáveis. Questões dessa ordem são ampla- mente discutidas por estudiosos de Foucault. Não nos importa aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo dessa "resistência" à classificação. É que esses e~ritos assumem um caráter por assim dizer flutuante, que atesta uma evasão sadia em relação a todo dogmatismo. Podemos dizer que Pou- cault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questioná- lo. Já no final da "Introdução" de A arqueologia do saber escrevera ele: "Não me perguntem quem sou e não me digam para per- manecer o mesmo: isso é moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever"lO. E num debate a propósito do primeiro volume da História da se- xualidade, depois de a ele referir-se como um "livro-programa tipo queijo gruyere, cheio de buracos para que neles possamos nos alojar", escreve: "Não quis dizer - 'Eis o que penso', pois ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei ( ... ). O que existe de incerto no que escrevi é certamente incerto ( ... ). E 10 FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, Paris, Gallimard, 1969,28. 2'-1 j Foucault, Simplesmente não estou certo quanto ao que escreverei nos próximos volu- mes"; chama-o de "discurso hipotético" e, mais de uma vez, de "jogo"ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e zigue- zagueante de suas investigações12. Noutra ainda, justifica ter gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de opinião "entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas obser- vações, não será porém artificioso afirmar que os escritos de Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia. Ele próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são pou- cas as vezes em que se refere a seu trabalho de historiador. Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de "con- selheiro" na militância política e designando-lhe, ao contrário, a função mais modesta de "fornecer os instrumentos de análi- se", conclui dizendo ser "este, hoje, essencialmente, o papel do historiador"14. Por outro lado, quando, durante uma entrevis- ta, após a observação de que "em muitos momentos você se definiu como historiador", lhe é perguntado por que 'historia- dor' e não 'filósofo"', sua resposta indica que a questão da filo- sofia hoje não deixa de ser igualmente uma questão de história: "é a questão deste presente que é o que somos,,15. Noutra oca- sião, já mais claramente afirmará: "E mesmo que eu diga que não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar de tudo filósofo", realçando porém que a questão da verdade que ele coloca é a de perscrutar "qual é sua história, quais são seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poderJJ16. Ou ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem- 11 FOUCAULT, M., "Sobre a História da sexualidade", in Microfisica do poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 19'(9, 243. Ver também 259. 12 Cf. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfisica do poder, 180. 13 FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 164. 14. FOUCAULT, M., "Poder.Corpo", in Microfisica do poder, 151. 15. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 239. 16. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 156. a filosofia como crítica da cultura I 25 po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu propósito fazer "a história da 'verdade' - do poder próprio aos discursos aceitos como verdadeiros"!7. Eis,pois, que filosofia e história se entrelaçam num mesmo trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas que história e que verdade? Ou melhor, de que tipo de história esse filósofo que se ocupa da verdade é hoje o historiador? Afastemos, de início, os traços de uma história que Fou- cault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da clínica (1963) aponta dois recursos tradicionais que rejeita e chama-os de "es- tético" e "psicológico". O primeiro consiste em descrever uma história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando de- tectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no âmbito interno de uma época (buscando captar seu espírito, sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "inter- pretar" os fatos no sentido de encontrar como que por detrás deles suas razões mais secretas, uma lógica escondida, como se os fatos fossem sempre uma espécie de "alegoria" a dizer outra coisa que não eles próprios!8. É basicamente a esses mesmos recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a elaboração da história tanto por um método que procede pelo "recurso histórico-transcendental" (isto é, que quer encontrar, por meio de todo acontecimento, de toda manifestação histó- rica, as linhas de sua origem, apontando assim em direção a um horizonte sempre longínquo e cada vez mais recuável) como por um método que procede pelo "recurso empírico ou psico- lógico" (isto é, que quer "interpretar" as significações explícitas dos fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um "sentido 17. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfúica do poder; 239-23l. 18. FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII. 26 I Foucault. simplesmente oculto" de que supostamente estariam carregadosr9. Esses pro- cedimentos têm em comum o uso da técnica que lhes é apro- priada, a saber, o tratamento dos textos na forma de "comentá- rios", capazes que seriam de trazer à luz a suposta origem e o suposto segredo que o discurso explícito implicitamente conte- ria. Mais ainda, esses procedimentos cunham a história com a marca unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios às histórias "do espírito" e às histórias "globais". Com efeito, uma "história do espírito" é precisamente aquela que, median- te a "decifração" dos textos, quer desvelar a "consciência", as "intenções" ou o "espírito" que os teriam inspirado20; uma "his- tória global" é precisamente aquela que, na dispersão dos fatos e documentos, quer encontrar "vestígios" que permitam traçar uma linha contínua, uma direção única, que expliquem, de mo- do uniforme e homogêneo, as multiplicidades e as transforma- ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou "progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti- nuidades ininterruptasJJ2 ! de uma teleologia segura. Ainda mais, assegurando a linearidade do progresso, essas histórias salva- guardam a unidade soberana do sujeito, "consciência históri- ca" que se constitui em núcleo unificador ou centro originário capaz de reunir em si a explicação e, portanto, a dissolução da heterogeneidade, da multiplicidade, da dispersão. Ao se salvar a linha segura da continuidade histórica, de algum modo salva- se ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: "Querer fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciên- cia humana o assunto originário de todo devi r e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensament,?JJ22. 19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a uma questão", Tempo Brasileiro) 28, Rio de Janeiro, 1972,59. 20. Ibid., 65. 21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, 21. 22. Ibid., 22. a filosofia como critica da cultura I 27 Nem histórias do espírito, nem histórias globais, as históri- as que Foucault escreve são, como ele mesmo as chama, "histó- rias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua sin- gularidade de acontecimentos, em suas correlações, em suas transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que, no lugar de uma teleologia da continuidade e do progresso, buscam antes "detectar a incidência das interrupções"24, de sor- te que se antes a descontinuidade equivalia ao "impensável", que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado me- diante sua integração numa explicação continuísta, passa agora a ser "um dos elementos fundamentais da análise histórica"25. O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra to- dos os fenômenos em torno de um centro único - princípio, significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dis- persão"26. Concomitantemente, as histórias que Foucault escre- ve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as aná- lises dos discursos considerados quer em suas correlações inter- nas, isto é, interdiscursivas, quer em suas relações com o extradis- cursivo, isto é, com as práticas e as instituições sociais. À prática desse procedimento Foucault chamou primeira- mente "arqueologia" e posteriormente "genealogia". Sem dúvi- da, reporta a Nietzsche não só o termo "genealogia", como o modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreen- dida como "história efetiva" (Wirkliche Historie) à história tra- dicional dos historiadores. Faz ver que esta última "reintroduz (e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história que reria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma 23. Cf. ibid., 17. 24. Ibid., I!. 25. FOVCAULT, M., "Réponse au Cercle d'épistémologie", Cahiers pour l'analyse, 9, Paris, Seuil, 1968, 10. 26. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 19. 28 I Foucault. Simplesmente história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconcilia- ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva", ao contrário, a genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado imortal no homem"; reintroduz "o descontínuo em nosso pró- prio ser,,28. A história tradicional, em sua perseguição da origem (Ursprung), considerando "acidentais todas as peripécias que pu- deram ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces"29, pretende recuar ao reencontro de uma identidade enfim desve- lada, essência única e sempre a mesma. Para a genealogia, ao contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida- de pura de um sentido ou de uma essência; o que existe é preci- samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca- ras sob as quais não há um rosto a ser desmascarado: "A genea- logia é um carnaval organizado"30. Recolhamos estes traços da história praticada por Foucault na seleção de algumas passa- gens em que ele explicita o perfil da genealogia. Primeiro, ela recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias: "A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profun- da do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da 'origem"'31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em direção aos discursos que compõem os saberes: "É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí- 27. FOUCAULT, M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microftsica do poder, 26. 28. Ibid., 27. 29. Ibid., 17. 30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc. 31. Ibid., 16. a filosofia como crítica da cultura I 29 nios de objeto etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vaziaao longo da história"32. Ter- ceiro, ela não está preocupada com o "progresso": "Tenho esta precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressivi- dade que se dá por princípio não tomar o ponto em que nos encontramos por final de um progresso que nos caberia recons- tituir com precisão na história. Isto é, ter em relação a nós mes- mos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceti- cismo que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou que é mais do que o passado ( ... ). E não digo que a humanidade não progrida. Digo que considero um mau método colocar o problema 'por que progredimos?'. O problema é 'como isto se passa?'. E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito cons- tituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma histó- ria marcada pela descontinuidade dos acontecimentos, enten- dendo-se por "acontecimento", "não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças", forças que "no jogo da história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta", acaso do jogo que "não é simples sorteio", mas antes "risco sempre renovado ( ... )"34. Mas a prática deste procedimento na escrita da história não é também movida ao acaso de um capricho. Afinal, por que tantas "inversões"? Com efeito, não se trata pura e simplesmen- te de efetuar substituições de algum modo arbitrárias: a conti- nuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a linearidade pela diferença; nem de trocar o núcleo "consciência" por outro chamado "discursos". Ao contrário, essa orientação 32. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 7. 33. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder; 140. 34. FOUCAULT, M., "Nierzsche, a genealogia e a história", in Microfoica do poder, 28. 30 ! Foucault. simplesmente conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser inocente, funciona como uma "estratégia" porque calcada num comprometimento crítico com pretensões a uma eficácia políti- ca. Ouçamo-lo mais uma vez: "Uma edição do Petit Larousse que acaba de sair diz: 'Foucault: um filósofo que funda sua teoria da história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado ( ... ). Meu problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade, estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é possível que se tenha, em certos momentos e em certas ordens do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu- ção, estas transformações que não correspondem à imagem tran- qüila e continuísta que normalmente se faz? Mas o importante em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu- de, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros"35. Ora, é precisamente a eleição, para domínio da investiga- ção histórica, daquilo que é aceito "como cientificamente ver- dadeiro" que nos encaminha à abordagem dos vínculos dessa história com a questão da verdade enquanto assunto da filoso- fia, e daí à compreensão do que chamamos seu comprometimen- to crítico com a cultura. Com efeito, ao privilegiar os acontecimentos discursivos como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es- tudos: entre os discursos, aqueles que são reconhecidos como científicos e, entre estes, os que compõem a região mais cam- biante e imprecisa que é constituída pelos saberes das chamadas ciências humanas. Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E essa estratégia se aloja no ponto de cruzamento entre a questão da verdade e os mecanismos do poder. Por um lado, ocupar-se, enquanto filósofo, com a questão da verdade significa aqui não ir em busca de uma essência a ser descoberta, mas descrever e 35. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microftsica do poder, 3-4. a filosofia como crítica da cultura j 31 analisar os modos como a "verdade" vem sendo historicamente produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento do jogo de regras - regras que são transformáveis de uma socieda- de para outra, de uma época para a outra - que autoriza a qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a pro- dução de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado, e ao mesmo tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a ques- tão da verdade encarada segundo seus modos históricos de pro- dução é ocupar-se também do vínculo circular que ela mantém com os modos de exercício do poder: "o exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder"36. Assim, podemos dizer que, se a "verdade" é "efeito" do po- der das regras segundo as quais determinados saberes têm a competência para a verdade, essa competência lhes atribui, por seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue não só o verdadeiro e o falso, como o permitido e o interditado, o correto e o errado, o normal e o patológico etc.). Eis a pergun- ta de "filosofia política" que Foucault se coloca: "Em uma socie- dade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir dis- cursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?,,37 Ora, posto que em nossas sociedades ocidentais são os discursos reconhecidos como científicos os que compõem os saberes aceitos como verdadeiros, é desses saberes que tratará a genealogia. E posto que é a região das chamadas ciências hu- manas a que melhor ou mais claramente permite fazer ver aquele entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder, na medida em que ela envolve saberes cujo "perfil epistemológi- co", por ser "pouco definido"38, abriga "combates, linhas de força, pontos de confronto, tensões"39, é sobre ela que vai par- ticularmente recair a invesrlgação. 36. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder, 142. 37. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder, 179. 38. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, l. 39. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 154. 32 I Foucault. Simplesmente Nesse sentido pois, ocupando-se da análise das relações entre saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro- duzem e se reproduzem, a genealogia pretende constituir-se em foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor "um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti- cas atuais,,40. E isso duplamente. Busca, por um lado, recuperar, num trabalho que exige paciência e erudição, conteúdos histó- ricos que foram subestimados ou silenciados pelo saber "quali- ficado" das histórias tradicionais: mostra, por exemplo, de que modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin- do ao sujeito detentor do conhecimento sobre o homem a "com- petência" que autoriza o domínio de seus "objetos", dissociando assim o sujeito do conhecimento que "possui a verdade" de seus "objetos" que "nada sabem"; descreve, em face das histórias da Razão e do mesmo, a história da Desrazão e do Outro, revelan- do os mecanismos correlatos de exclusão, de enclausuramen- to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci- mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po- der na forma da disciplina etc. Por outro lado, é aliada da recu- peração de saberes considerados "ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade" (por exem- plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.)". "A genea- logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico."42 Mais ainda: lembremos que enquanto a arqueologiapre- tendia realçar principalmente as epistémes) isto é, o nível das 40. FOUCAULT, M.) "Genealogia e poder", in Microfísica do poder, 171. 41. Ibid., 170. 42. Ibid., 172. a filosofia como critica da cultura I 33 correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as estruturas sociais. Lê-se, por exemplo, numa passagem de Vigiar e punir: "O sistema carceral reúne numa mesma figura discur- sos e arquiteturas, regulamentos coercitivos e proposições cien- tíficas ... ,,43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação que lhe é dirigida por um entrevistador: "Você mostrou como o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclu- são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia política a estrutura da fábrica"44. Entende-se assim que, ao esta- belecer a história da constituição dos saberes explicitando seu vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como peças nas tramas de uma rede - por ele chamada de "disposi- tivo" - que envolve tanto as inter-relações dos saberes como suas articulações com as práticas institucionais. Ora, sem entrarmos na pluralidade possível de acepções que podem ser cobertas pelo termo "cultura", nem nos diferen- tes ângulos sob os quais pode ser abordado e, menos ainda, nas muitas questões que suscita, poderíamos considerar "cultura", de um modo tão geral quanto simples, o conjunto de saberes teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam as possibilidades de "nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos histórico- filosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar uma crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura "qualificada". E, finalmente, não há que se esquecer que, contudo, essa crítica da cultura, esse trab~lho filosófico de constituição de 43. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,276. 44. Cf. "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 16l. 45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, Préface, 11. É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente usado neste Prefácio. 34 I Foucau!t. simplesmente um "saber histórico das lutas" é, ele próprio, (saber", partícipe da "história" e da "cultura". Daí o cuidado insistente de Fou- caulr em não se vir a rransformar a análise realizada pelas ge- nealogias em outro saber centralizador ou monopolizador da "verdade" e, portanto, habilitado para o poder. Assim, em opo- sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem um caráter local e específico46• Em oposição ao teórico "legislador", Fou- cault sonha "com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades"47. "Neste sentido", escreve Roberto Machado, «nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se consti- tuir como sistema: o programa que elas formulam é o de reali- zar análises fragmentárias e transformáveis."48 Essa mobilidade que é constitutiva da postura mesma das investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E permite que reencontremos, a respeito da filosofia e da histó- ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que apontávamos em nossas primeiras considerações em torno de Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter- nativa entre uma história atravessada por um sentido teleológi- co e uma história desprovida de sentido porque concebida como um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen- te tanto a ininteligibilidade da história como as pretensões "de uma História Universal inteiramente desdobrada diante do his- toriador como o seria sob o olhar de Deus,,49. As histórias que Foucault escreve, além de avessas a qualquer aspiração de uni- versalidade, assumem, na prática, aquela simultaneidade entre 46. Cf. principalmente "Verdade e poder", "Genealogia e poder", "Os intelectuais e o poder", in Microfísica ... 47. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 242. 48. MACHADO R., "Introdução", in Microfísica do poder, XIII. 49. MERLEAU-POl\.'TY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non·sensJ 158, Ver também, Éloge ... , 59. a filosofia como crítica da cultura I 35 a ausência de um sentido único e a presença de inteligibilidade, agora, porém, conduzindo este aparente paradoxo a uma nova direção: "A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas"50. Segundo, e conseqüentemente, afirmando que é pela inerência a uma situação histórica particular que podemos compreender a sig- nificação de outras situações que compõem a trama da histó- ria, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal de um espectador abso- luto, de um conhecimento sem ponto de vista,,51. Afinal, nem "ilusão retrospectiva", nem "ilusão prospectiva". "Saber pers- pectivo", eis como Foucault (na descrição da genealogia nietzs- chiana) caracteriza a história: os historiadores que perseguem a neutra objetividade de uma consciência isenta e soberana "pro- curam, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua pai- xão"; já o "saber perspectivo", ao contrário, "sabe que é perspec- tivo", "olha de um determinado ângulo, com o propósito deli- berado de apreciar, de dizer sim ou não", "é um olhar que sabe tanto de onde olha como o que olha"52. Por ser "perspectivo", e se saber assim, elaborado a partir da cultura que o torna possível, olha-a criticamente, mas a olha de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu mesmo olhar crítico, de sorte que, se provoca deslocamentos, há que se dispor, ele próprio, a deslocar-se. 50. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, 5. 51. MERLEAu-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge .. , 136. 52. FOUCA.uLT, M., "Nieczsche, a genealogia e a história", in Microfoica do poder, 30. 36 I Foucault. Simplesmente 111 O MESMO E O OUTRO Faces da história da loucura* De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida nos quais a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. M. FOUCAULT, o uso dos prazeres, 13. Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histó- rias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai desde o fi- nal do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a chamada Idade Clássica (séculos XVII e XVIII). É possível sugerir que a questão que, genericamente, po- demos denominar "do outro e do mesmo" se estenda como um pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por propô-la, partindo de uma ilustração que está nas primeiras ... Conferência apresentada na VII Semana de Estudos em Filosofia da Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995. o mesmo e o outro j 37 páginas do Prefácio de As palavras e as coisas. Trara-se da rero- mada de uma classificação dos animais, citada por Jorge L. Borges, supostamente extraída de uma enciclopédia chinesa. Segundo esta classificação, "os animais se dividem em: a) per- tencentes ao imperador, b) embalsamados,c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluí- dos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel fino de pêlo de camelo, I) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscasJ11. Esta classificação reúne de modo incongruente categorias sem nexo que, a nós, parecem impossíveis de "nomear, falar, pen- sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de "nomear, falar, pensar" podem ser analisadas em torno de três termos: ordem) lugar, espaço. Com efeito, há uma ordem que, naquela classifica- ção, parece vincular a seqüência das classes nela reunidas, a sa- ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta ordem que ali pa- rece não "caber". A estranheza da ordem está em sua articulação com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e sua ordenação, ainda que meramente alfabética: "O absurdo ar- ruína o e (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade o em (lugar) onde se repartem as coisas enumeradas"3. Ordem e lugar, porém, dependem de um espaço homogê- neo e comum dentro do qual somente ou sobre o qual as coisas possam ser localizáveis e ordenáveis, espaço que torna possível nomeá-las, dizê-las, pensá-las. Assim, é a justaposição desse e (ordem), desse em (lugar) e desse sobre (espaço) que instaura, para nós, a estranheza dessa classificação4 . Estranhe- za, porém, para nós. Afinal, aquela classificação de animais 1. FOUCAULT, M., I..es mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, "Préface", 7. 2. Ibid., 11. 3. Ibid., 9. 4. Ibid., 8. 38 I Foucau!t. simplesmente não é, por assim dizer, "ausente" de espaço; antes, repousa sobre outro espaço: "A China ... não é justamente o lugar privi- legiado do espaço?JJ5 Eis o "outro" em seu sentido mais amplo: limite de pensa- mento e de linguagem para uma cultura, aquilo que a circunda por fora e lhe escapa, simultaneamente, estranho e exterior. Mas, a partir daí, pode-se também entender o "outro" em seu sentido estrito: aquilo que, de dentro dos quadros de uma cultura, a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simul- taneamente interna e estrangeira. É nesse sentido que a Histó- ria da loucura é uma história do "outro": história daquilo que pertence à nossa cultura - pensável, nomeável, dizível portan- to -, mas constantemente ameaçado de submissão aos crité- rios do "mesmo", precisamente porque ameaçador; história "da- quilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estra- nho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo inte- rior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade)"6. Nossa exposição pretende tão-somente retraçar, em resu- mo, alguns aspectos dessa história7• No conjunto do livro, a descrição da experiência da loucura durante o período renas- centista ocupa não mais que as 55 páginas do capítulo inicial. É à experiência clássica - cuja vertente institucional é o Hospi- tal Geral - e à experiência moderna - cuja vertente institucio- nal é o Asilo - que, substancial e minuciosamente, se dedicam as mais de 600 páginas do livro em suas três partes (as duas primeiras ocupando-se da Idade Clássica e a terceira da nossa Modernidade). Nas pretensões reduzidas desta exposição - 5. Ibid., 10. 6. Ibid., 15. 7. Para uma reconstituição mais completa do livro, leia-se MACHADO, R., Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982 (cf. "Arqueologia da percepção", 57-95). Também ROUANET, S. P., "A gramática do homicídio", in O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Fou- cault), Rio. de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971. o mesmo e o outro I 39 pincelar algumas faces ou facetas da história desse "outro" que é a loucura no Ocidente -, escolhemos tratar os três períodos em proporções diversas às do livro. Por isso mesmo, e evitando o risco de um resumo por demais empobrecedor, a aborda- gem da Idade Clássica e da Modernidade será apenas pautada em algumas passagens em que o próprio Foucault fornece des- crições mais amplas desses dois momentos. Por motivos análo- gos, a recomposição dessas "facetas" será organizada em dois tópicos ou subi tens. ••• Leprosários e navios Ao término da Idade Média, nos limiares do Renascimento (por volta dos fins do século XIV), começa o esvaziamento da- quelas casas de "exclusão" e "purificação"s que se haviam multi- plicado às portas das cidades medievais: os leprosários. A lepra regride, não como resultado de práticas médicas, antes por força da segregação dos leprosos (e, portanto, do contágio) e do final das Cruzadas (e, portanto, do contato com focos de infecção do Oriente). Com efeito, a lepra não era experimentada como "as- sunto médico", a ser "suprimida" e "curada". Era, antes, uma espécie de testemunho do mal ao mesmo tempo que de sua ex- piação. Requeria, pois, o gesto ritual da cisão, rito que segregava e, simultaneamente, sacralizava, gesto que excluía e, simultanea- mente, purificava: "O pecador que abandona o leproso à sua porta abre-lhe a salvação,,9. A lepra regride, os leprosários se esvaziam. Porém, os "valo- res" e as "imagens"lO, as "estruturas" e as "formas"ll que, du- 8. FOUCAULT, M., Historie de la falie à l'âge classique, 2 a ed., Paris, Galli- mard, 1972, 13. 9. Ib;d., 16. Ia. Ib;d., 15. 11. Ib;d., 16. 40 I Foucault. Simplesmente rante a Idade Média, estão vinculados à instituição do leprosário e ao personagem do leproso vão persistir; exclusão e purifica- ção, segregação e sacralidade, reclusão e salvação serão trans- postas, séculos mais tarde, para outras instituições - muitas vezes nos mesmos lugares que antes abrigavam os leprosos - e para outros personagens. Entre eles, o louco. Assim, a loucura, de certo modo, assumirá, no decurso de uma longa sucessão histórica, uma espécie de papel de herdeira da lepra!'. Contudo, numa sucessão histórica longa, isto é, cer- ca de dois séculos mais tarde (por volta da segunda metade do século XVII e no século XVIII), na chamada Idade Clássica. Antes disso, porém, no intermédio entre o final da Idade Média e o início da Idade Clássica, ou seja, no chamado período renas- centista (por volta dos séculos XV a XVII), ela ocupará outra posição, ou melhor, circulará sem posição fixa. Era freqüente nas composições literárias e pictóricas do Renascimento a imagem de navios que transportavam "heróis imaginários", "modelos éticos", "tipos sociais" cuja viagem sim- bolizava seu "destino" ou sua "verdade"I3. Assim, títulos de obras literárias incluíam, por exemplo, a Nau dos principes e das batalhas de nobreza, a Nau das damas virtuosas, como também a Nau dos loucos. Mas, em meio a essa onda literária e pictórica, a Nau dos loucos guardava uma singular peculiaridade: a de existir real- mente. De fato, expulsos das cidades, entregues a mercadores, peregrinos ou marinheiros, os loucos vagavam, numa existên- cia "errante"14. Para Foucault, esse "gesto que expulsa" está pró- ximo do "rito,,15; a figura da nau carrega o simbolismo da água que purifica e da navegação que é passagem. Água e navegação cumprem, assim, o papel de manter o louco como "prisioneiro em meio à mais livre e mais aberta das rotas: solidame~te preso 12. Ib;d., 18. 13. Ib;d., 19. 14. Ib;d., 19. 15. Ib;d., 16. o mesmo e o outro I 41 à infinita encruzilhada. Ele é o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da Passagem,,16. A ambigüidade dessa simbologia corresponde à ambigüi- dade da experiência renascentista da loucura, uma experiência que envolvia duas vertentes simultâneas: um lado trágico, fas- cinante e cósmico; um lado crítico, irônico e moral. O "fascínio do trágico" transparece sobretudo nas imagens pictóricas: são figuras fantásticas, humano-animalescas, que mostram a bestia- lidade presente no coração do homem, impregnadas de um saber hermético que anuncia a ameaça da desordem e do fim do mundo e ao qual só os loucos têm acesso. Ao mesmo tempo, a "ironia dacrítica", que transparece sobretudo nas composi- ções literárias e filosóficas, no verbo, no texto, na palavra: ali, a loucura aparece como motivo de sátira ou de escárnio, não mais como detentora dos segredos ocultos do cosmos, mas co- mo mal e fraqueza humanos, de onde nascem a ambição dos políticos, a avareza dos ricos, a presunção dos sábios (O Elogio da loucura, de Erasmo, por exemplo, reserva, "na ronda de lou- cos, um largo lugar para homens de saber" - gramáticos, poe- tas, escritores, jurisconsultos, filósofos, teólogos etc.).l? As duas vertentes da experiência renascentista da loucura, simbolizadas pictórica e literariamente, certamente se entrecru- zam: há temas morais nos quadros de]. Bosch; e Montaigne sugere que loucura é fiar-se apenas na razão ls. Gradativamente, porém, os dois pólos se distanciam e o elemento crítico ganha relevo sobre o trágico. A ironia crítica, prioritária no texto, no verbo, na palavra, voltada para a racionalidade e a moralidade 16. Ibid., 22. 17. Ibid., 34. Entre as expressões pictóricas incluem-se obras de]. Bosch, Brueghel, Dürer; entre as expressões lingüísticas, obras de Brant, Erasmo, Montaigne. 18. O mastro da Nau dos Loucos de]. Bosch é a figura da árvore: árvo- re proibida da sabedoria à qual só os loucos têm acesso; mas é também árvore "moral" do bem e do mal. 42 1 Foucault. simplesmente humanas, ocupa cada vez mais o primeiro plano na experiência da loucura, deixando na sombra o silêncio verbal e fascinante das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas. Sem dúvi- da, observa Foucault, essa ocultação jamais abolirá inteiramen- te a experiência do trágico: "esse desaparecimento não é uma derrocada"l9. Nos séculos seguintes e até hoje, o trágico da lou- cura subsistirá na obscuridade, como que "nas noites dos pen- samentos e dos sonhos", como que "às escondidas" e "em vigí- lia", de tal modo que, malgrado o predomínio cada vez maior do racional, a presença subterrânea do trágico será pressentida e testemunhada como que em erupções esporádicas (Nietzs- che, Van Gogh, Artaud, Goya, Sade são alguns exemplos desses pressentimentos e testemunhos). Mas, no curso da história, a predominância do saber críti- co sobre o trágico, marcando o domínio da razão sobre a lou- cura, assinala o fim da experiência renascentista, abrindo o li- miar da Idade Clássica e, a partir dela, os caminhos que condu- zirão à experiência moderna da loucura, num deslocamento que vai da Nau ao Hospital, do Hospital ao Asilo. Hospitais e asilos No começo do século XVII a loucura adentrou os muros da cidade; internalizada, torna-se "familiar" em um mundo que lhe é "estranhamente hospitaleiro"20. Não mais vagará: "Ei-la amar- rada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e mantida. Não mais nau, mas hospital"21. Não mais, com Mon- taigne, a crítica à presunção da razão, mas, com Descartes, o banimento da loucura do caminho que conduz à certeza22 • A 19. FOUCAULT, M., Historie de la folie .. ,39. 20. Ibid., 54-55. 21. Ibid., 53. 22. Enquanto em Montaigne a loucura é incorporada ao caminho que conduz à verdade, em Descartes são incorporados os erros dos sentidos e a ilusão dos sonhos, mas a loucura é excluída. o mesmo e o outro I 43 , t:..' '.""" L __ ":iJt" '.' desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racio- nal. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmuta- rá em doença mental. No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que cons- tituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma única administração estabelecimentos já existentes com fins diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abri- gava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher invá- lidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alema- nha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamen- to, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluís- sem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não tinham propósito terapêutico: "O classicismo inventou o internamento um pouco como a Ida- de Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu: são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste ges- to de banimento que abria espaços malditos. O gesto que inter- na não é mais simples: ele também tem significações políticas, sociais, religiosas, econômicas, morais,>23. Os "novos personagens" que ocupam esses estabelecimen- toS são apresentados em diversas passagens e em listagens mais ou menos longas. Com base nessas várias referências, podem ser assim identificados: pobres, v~gabundos, correcionários, desem- pregados, jovens que perturbam o repouso da família ou dilapi- dam seus bens, devassos, pródigos, enfermos, libertinos, filhos ingratos, pais dissipadores, prostitutas, homossexuais, mágicos, 23. Ibid., 64. 44 I Foucault. simplEsmente suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alqui- mistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alie- nadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des- razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram "portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25. Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga", mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamen- te a cisura entre a razão e a desrazã026• É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isola- da" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes grupos com que até então se avizinhava. A designação poste- rior e moderna da loucura como alienação e depois como doença mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segrega- ra, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Moder- nidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento, numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e da doença mental: "anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proi- bições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensa- mento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo- 24. Ibid., II 7. 25. Ibid., 1I9. 26. Ibid., 117. o mesmo e o outro I 4S ral da desrazão que serve, no fundo, de solo para o nosso conhe- cimento 'científico' da doença mental. Por esse distanciamento, por essa dessacralização, perfaz ele uma aparência de neutralida- de que já é comprometida, porque só alcançada no propósito ini- cial de uma condenação"27. Assim, não se pode pretender simplesmente que a loucura será um dia tornada "objeto" de conhecimento por ter sido, então, liberada das "velhas participações religiosas e éticas em que a Idade Média a tomava,,2B. Antes de se tornar ~'objeto" de conhecimento e ser configurada como patologia, ela passou pelo internamento do período classicista, e o internamento não consistiu numa forma possível de "conhecimento" da loucura, mas em seu exílio e em seu silêncio: "Não é importante para a nossa cultura que a desrazão só tenha podido tomar-se objeto de conhecimento na
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