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[1] Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade por Jorge Manuel Gonçalves Dissertação submetida à Universidade de Nova de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Geografia na especialidade de Gestão do Território. Departamento de Geografia e Planeamento Regional Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade de Nova de Lisboa Julho de 2004 [2] Universidade de Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Geografia e Planeamento Regional Os Espaços Públicos na Reconfiguração Física e Social da Cidade Jorge Manuel Gonçalves Tese de Doutoramento Orientadora: Prof. Drª Margarida Pereira Lisboa Julho de 2004 [3] No bairro do amor a vida é um carossel Onde há sempre lugar para mais alguém O bairro do amor foi feito a lápis de cor Por gente que sofreu por não ter ninguém No bairro do amor o tempo morre devagar Num cachimbo a rodar de mão em mão No bairro do amor há quem pergunte a sorrir: Será que ainda cá estamos no fim do verão? Eh, pá, deixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem No bairro do amor a vida corre sempre igual De café em café, de bar em bar No bairro do amor o sol parece maior E há ondas de ternura em cada olhar O bairro do amor é uma zona marginal Onde não há prisões nem hospitais No bairro do amor cada um tem que tratar Das suas nódoas negras sentimentais Eh, pá, seixa-me abrir contigo Desabafar contigo Falar-te da minha solidão Ah, é bom sorrir um pouco Descontrair um pouco Eu sei que tu compreendes bem Jorge Palma Aos meus pais [4] Agradecimentos É impossível elaborar um trabalho destes isoladamente. Assim como é impossível expressar apenas por palavras o reconhecimento que devo a um conjunto restrito de pessoas pois o termo que me merecem pelo seu contributo, directo ou indirecto, para este esforço não pode ser apenas gratidão. Concretamente estas pessoas são: - No plano pessoal, distingo a dedicação infinita da minha mãe que, antes de falecer, ainda teve oportunidade de contribuir objectivamente para a elaboração deste trabalho e o esforço da minha mulher, Ana Paula, na gestão familiar e doméstica, apesar desta tese ter atravessado períodos muito complicados na sua vida; - No plano académico, destaco a minha orientadora científica, a Professora Doutora Margarida Pereira, pois só com muitas dificuldades conseguiria descrever a forma como conduziu todo este longo processo, sem pressões, compreensiva face às naturais situações que surgem durante quase cinco anos, elegante no trato, célere no tratamento dos materiais e rigorosa na avaliação da qualidade do trabalho que ia sendo produzido. Merecem-me ainda palavras de agradecimento o Dr. Oliveira das Neves pela compreensão que revelou das minhas involuntárias mas, por vezes, incontornáveis variações na produtividade. Acresce ainda a sua permanente disponibilidade e até agrado com que discutiu o tema, possibilitando-me ainda o acesso a materiais fundamentais. Agradeço a todas as pessoas anónimas que colaboraram no processo de inquirição e de entrevista, em especial, o Professor Doutor João Ferrão, o Professor Doutor Manuel Teixeira, o Professor Doutor Horácio Bonifácio, o Professor Doutor Bragança de Miranda, o Arquitecto Paisagista Paulo Monteiro e o Arquitecto Manuel Salgado. Expresso aqui também [5] publicamente à colega Filipa Lourenço os esclarecimentos prontos que me prestou no sempre difícil campo da análise de conteúdo das entrevistas e do tratamento estatístico dos inquéritos. Finalmente, devo uma palavra a todos aqueles que em diversos momentos de elaboração deste trabalho me questionavam sobre o andamento dos trabalhos e revelavam interesse convicto sobre o tema. [6] Resumo [7] Abstract [8] ÍNDICE INTRODUÇÃO ................................................. 18 1. DISCUSSÃO EM TORNO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS (EPU): HIPÓTESES DE PARTIDA E ÁREAS CINZENTAS ..................... 23 1.1. OS EPU COMO METÁFORA DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS ............. 23 1.2. QUESTIONAR OS EPU OU OS MÚLTIPLOS CAMPOS DA URBANIDADE ....... 26 1.3. QUADRO CONCEPTUAL E METODOLÓGICO .......................... 31 1.3.1. Objectivos ...................................... 31 1.3.2. Defender uma tese ou teses? ...................... 34 1.3.3. Sequência metodológica ........................... 44 2. ELEMENTOS DE UMA CRISE ANUNCIADA ........................ 47 2.1. INTRODUÇÃO ............................................ 47 2.2. AS DINÂMICAS URBANAS RECENTES: EMERGÊNCIA DO HÍBRIDO E DA DESTERRITORIALIZAÇÃO ......................................... 56 2.2.1. A fluidez espacio-temporal da noção de cidade .... 56 2.2.2. Transformações da cidade física ................................................ 57 2.2.3. O estilhaçar da imaterialidade urbana ............ 62 2.3. CONTRIBUTOS PARA UMA TEORIA DOS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS ...... 63 2.3.1. Espaço Público: crise ou novas lógicas? .......... 63 2.3.2. Estratégias de Substituição e Sedução ............ 70 2.3.3. Dos Espaços Públicos aos Espaços Colectivo: que consequências para as sociedades urbanas? ............... 75 2.4. PROPOSTAS DE TIPOLOGIA .................................. 81 2.4.1. Segmentando a análise ............................ 81 2.4.2. Espaços de recreio e lazer ....................... 82 2.4.3. O espaço público nas cidades portuguesas ......... 84 2.4.4. Ensaio tipológico para os EPU .................... 85 3. NO CAMPO DO ACTOR E DO SEU CENÁRIO ...................... 92 3.1. NOTAS PRELIMINARES ..................................... 92 [9] 3.2. O CRESCENTE INVESTIMENTO NO SELF .......................... 94 3.3. A CIDADE COMO TERRENO NARCÍSSICO ......................... 100 3.4. TRANSFORMAÇÕES E MUTAÇÕES SOCIAIS E URBANAS ................ 104 3.4.1. O paradoxo urbano-metropolitano ................ 104 3.4.2. Territórios da Alegria .......................... 106 3.4.3. Cidades da Angústia ............................. 109 3.4.4. Cidade dos Extremos ............................. 111 4. OS ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS NA MULTIPLICIDADE DOS OLHARES 112 4.1. CIÊNCIAS SOCIAIS E DA COMUNICAÇÃO ........................ 112 4.2. URBANISMO, ARQUITECTURA E PAISAGISMO ..................... 119 4.3. HISTÓRIA ............................................ 123 4.4. SÍNTESE ............................................. 127 5. O PERCURSO HISTÓRICO DO EPU ............................ 139 5.1. INTRODUÇÃO ........................................... 139 5.2. ATÉ AO PERÍODO ROMANO .................................. 140 5.2.1. Ambiente económico .............................. 141 5.2.1.1. A Cidade Ancestral .......................... 141 5.2.1.2. Polis grega e cidade romana ................ 146 5.2.2. Política, cultura, e religião ................... 148 5.2.2.1. A cidade ancestral .......................... 148 5.2.2.2. Polis Grega e Roma Imperial ................. 152 5.2.3. Das formas urbanas dos Espaços Públicos ......... 154 5.3.PERÍODO MEDIEVAL ....................................... 160 5.3.1. Ambiente económico ............................. 160 5.3.2. Política, cultura, e religião .................. 162 5.3.3. Das formas urbanas dos Espaços Públicos ........ 164 5.4. PERÍODO RENASCENTISTA – CIDADE CLÁSSICA E BARROCA ........... 168 5.4.1. Ambiente económico .............................. 169 5.4.2. Política, cultura e religião .................... 172 5.4.3. Das formas urbanasdos espaços públicos ......... 177 5.5. CIDADE MODERNA ........................................ 184 5.5.1. Ambiente Económico .............................. 184 5.5.2. Política, cultura e religião .................... 189 [10] 5.5.3. Das Formas Urbanas dos Espaços Públicos ......... 198 5.6. A “HISTÓRIA” QUE SE ESTÁ A ESCREVER ...................... 204 5.6.1. Recomendação do Comité de Ministros dos Estados Membros da Comunidade Económica Europeia ............... 205 5.6.2. A Nova Carta de Atenas .......................... 208 5.6.3. Regulamentos e manuais municipais de utilização dos EPU .................................................... 210 6. AVERIGUAR A PRÁTICA: A OCUPAÇÃO DO TEMPO E A UTILIZAÇÃO DOS EPU ................................................... 220 6.1. O USO DO TEMPO EM PORTUGAL .............................. 222 6.2. UTILIZAR OU NÃO OS ESPAÇOS PÚBLICOS? EIS A QUESTÃO .......... 238 6.2.1. Processo de Inquirição aos Cidadãos de Lisboa ... 238 6.2.1.1. Introdução .................................. 238 6.2.1.2. Processos de inquirição ..................... 253 6.2.1.3. Dimensões e grau de pertinência da amostra .. 254 6.2.1.4. Modelo e estrutura de inquérito ............. 255 6.2.1.5. Caracterização dos inquiridos ............... 258 6.2.2. Das teses à realidade ........................... 269 6.2.3.1. Em busca de um significado para os EPU ...... 269 6.2.3.2. A distância entre a representação e a realidade ..................................................... 315 6.2.3.3. O apagamento dos EPU no Urbanismo Contemporâneo ..................................................... 348 7. CONCLUSÃO .............................................. 365 8. BIBLIOGRAFIA ........................................... 371 [11] Índice de Quadros Quadro 1 - Classificação de áreas recreativas .............. 83 Quadro 2 - Especialização funcional dos EPU ................ 85 Quadro 3 - Ensaio de tipificação dos EPU ................... 87 Quadro 4 - Domínios e conceitos fixados para a análise quantitativa das entrevistas ........................... 130 Quadro 5 - Matriz relativa ao domínio Cidadania (‰) ....... 133 Quadro 6 - Matriz relativa ao domínio Comunicação (‰) ..... 134 Quadro 7 - Matriz relativa ao domínio Elementos de Composição ....................................................... 136 Quadro 8 - Matriz relativa ao domínio Complementaridades .. 137 Quadro 9 – Distribuição geográfica da Amostr .............. 225 Quadro 10 - População com mais de 15 anos que efectuou passeios a pé, um dia médio ............................ 228 Quadro 11 - População que efectuou passeios a pé, por grupo etário, num dia médio .................................. 229 Quadro 12 - População que efectuou passeios a pé, por tipologia de família, num dia médio .................... 230 Quadro 13 - População que efectuou passeios a pé, por escalões de rendimento líquido mensal, num dia médio ............ 231 Quadro 14 - Variação na estrutura etária da cidade de Lisboa ....................................................... 242 Quadro 15 - Agrupamentos de Freguesia adoptados ........... 250 Quadro 16 - O género na Amostra ........................... 258 Quadro 17 - Indivíduos com filhos até 10 anos na Amostra .. 260 Quadro 18 - Indivíduos com cão na Amostra ................. 260 Quadro 19 - Nível de Instrução dos Indivíduos na Amostra .. 262 [12] Quadro 20 - Naturalidade dos inquiridos ................... 263 Quadro 21 - Distribuição das Freguesias do local de trabalho ou Estudo .............................................. 267 Quadro 22 - Principais utilizadores dos EPU (%) ........... 270 Quadro 23 - Modo de deslocação (%) ........................ 292 Quadro 24 - EPU mais importantes para o inquirido ......... 313 Quadro 25 - Importância concedida aos EPU ................. 316 Quadro 26 - Intensidade de uso dos EPU .................... 319 Quadro 27 - EPU mais frequentados ......................... 320 Quadro 28 - Termos de caracterização dos Espaços Públicos de Lisboa(%) .............................................. 326 Quadro 29 - Síntese do posicionamento face à Rua (%) ..... 330 Quadro 30 - Síntese de posicionamento face ao Jardim ...... 331 Quadro 31 - Síntese de posicionamento face ao Parque Verde Urbano ................................................. 332 Quadro 32 - Qualidade da iluminação nos jardins ........... 339 Quadro 33 - Espaço mais utilizado fora do tempo das obrigações ....................................................... 345 Quadro 34 - Aspectos mais negativo nos EPU (%) ............ 350 Quadro 35 - Ver televisão ................................. 352 Quadro 36 - Leitura de jornais, revistas ou livros ........ 353 Quadro 37 - Conversar em família ou com os amigos ......... 353 Quadro 38 - Navegar na Internet ........................... 354 Quadro 39 - Comunicar on-line (chats, e-mail) ............. 355 Quadro 40 - Jogos electrónicos ............................ 355 Quadro 41 - Programas culturais e recreativos ............. 356 Quadro 42 - Praticar desporto ou cultura física ........... 356 Quadro 43 - Ver montras comerciais ........................ 357 [13] Quadro 44 - Jardins e parques urbanos ..................... 358 Quadro 45 - Cafés / Esplanadas ............................ 359 Quadro 46 - Namorar ....................................... 359 Quadro 47 - Passear ....................................... 360 Quadro 48 - Não tem tempos livres ......................... 360 [14] Índice de Figuras Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada .... 19 Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual .. 44 Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos ................................................ 54 Figura 4 - A transição urbana .............................. 58 Figura 5 - O humor nos olhares sobre os EPU ............... 122 Figura 6 – Oposição nas representações dos EPU ........... 123 Figura 7 - Cidade de Nippur: A primeira planta urbana ..... 144 Figura 8 - O Berço da Civilização Urbana .................. 151 Figura 9 - Níveis de conhecimento dos EPU ................. 156 Figura 10 - Planta da Babilónia ........................... 157 Figura 11 - Mileto e a Àgora como charneira urbana ........ 159 Figura 12 - Praça central de Siena ........................ 168 Figura 13 - Monsaraz ...................................... 179 Figura 14 - Exemplo da intervenção de Haussman em Paris ... 194 Figura 15 - Extensão e tipos de intervenção de Haussman e . 194 Figura 16 - Recomendações e princípios constantes na Recomendação NºR(86)11-CEE ............................. 207 Figura 17 - Manual de Utilizador dos Parques de Lisboa .... 214 Figura 18 - Perfil de ocupação da população com mais de 15 anos, num dia médio .................................... 227 Figura 19 - População com 15 ou mais anos que realizou actividades de lazer, dia médio ........................ 232 Figura 20 - População com mais de 15 anosque anda apressada 232 Figura 21 - População empregada que anda apressada, por grupo etário, por percepção do tempo na vida particular ...... 235 [15] Figura 22 - A Área Metropolitana de Lisboa ................ 240 Figura 23 - Variação da população por concelhos, 91-01 .... 241 Figura 24 - Estrutura etária do Parque Habitacional de Lisboa ....................................................... 244 Figura 25 - As 53 freguesias de Lisboa .................... 248 Figura 26 - Agrupamentos de freguesias de Lisboa .......... 251 Figura 27 - Agrupamentos de Freguesias por população, 2001 252 Figura 28 - Os espaços público/colectivos mais referidos em Lisboa ................................................. 253 Figura 29 - Distribuição da amostra por grupos de idades .. 259 Figura30 - Número de Passeios com o cão ................. 261 Figura 31 - Local dos passeios com o cão .................. 261 Figura 32 - Habilitações dos inquiridos ................... 263 Figura 33 - Naturalidade dos inquiridos ................... 264 Figura 34 - Distribuição relativa pelas principais freguesias de residência .......................................... 265 Figura 35 - Freguesias de residência dos inquiridos ....... 266 Figura 36 - Principais freguesias dos locais de trabalho .. 268 Figura 37 - Local de trabalho ou estudo por agrupamentos de freguesia na distribuição da amostra ................... 268 Figura 38 - Utilizadores habituais como perturbadores do uso mais alargado dos EPU .................................. 284 Figura 39 - Limitações a um uso mais frequente dos EPU .... 288 Figura 40 - Deslocações para compras ...................... 298 Figura 41 - Deslocações para obrigações diversas ......... 301 Figura 42 - EPU como modalidade de Ocupação dos Tempos Livres ....................................................... 302 Figura 43 - Utilização dos EPU após as 23h ................ 305 [16] Figura 44 - Locais mais inseguros de Lisboa ............... 307 Figura 45 - Locais identificados como mais importantes de Lisboa ................................................. 311 Figura 46 - Opinião sobre o volume de EPU ................. 318 Figura 47 - Frequência de deslocação aos locais que mais gosta ....................................................... 325 Figura 48 a) b) c) d) - Opinião sobre a iluminação nos EPU 337 [17] Índice de Fotografias Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna) ........................................................ 35 Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1) 35 Fotografia 3 - Calçada do Combro.As novas muralhas da cidade(2) ............................................... 36 Fotografia 4 - A Expo’98 .................................. 107 Fotografia 5 - Os Estádios do Euro 2004 ................... 108 Fotografia 6 - Porto - Capital Europeia da Cultura. Casa da Música. ................................................ 108 Fotografia 7 - Chelas ..................................... 108 Fotografia 8 - O Passeio Público: Rua Central e Passeios Laterais ............................................... 246 [18] Introdução Escrever uma tese significa defender e explicitar convicções recorrendo a uma metodologia e linguagem aceites pela comunidade científica. Representa também caminhar no sentido da obtenção de um conhecimento mais aprofundado sobre determinado objecto, recorrendo à reapreciação de reflexões efectuadas em domínios conexos aos Espaços Públicos Urbanos por outros autores e ainda a um investimento renovado na recolha de novos elementos capazes de trazer um contributo significativo para a compreensão do tema. Este objectivo geral não ajuda a entender as causas mais profundas que conduziram à adopção dos Espaços Públicos Urbanos como fundamento de uma tese de doutoramento. Esta é uma das principais preocupações da presente Introdução: Como se seleccionou um tema de natureza geográfica e urbana ao qual um candidato ao grau de doutorado passa a dedicar mais de quatro anos a investigar, a recolher, a apreciar documentação, a entrevistar, a inquirir e, finalmente, a tratar e discutir toda a informação que lhe vai chegando. A paixão sobre cidades, pessoas e quotidiano foram a matriz inicial dessa motivação aliás, já reflectida, num primeiro trabalho académico 1 , onde o problema da participação pública em matéria de questões territoriais havia sido debatida. Neste caso, o interesse pelo Espaços Públicos para além de se inscreverem na dimensão urbana e social permitiam também uma (re)leitura das formas de utilização quotidiana da Cidade medindo as causas e consequências das suas transformações. A interacção entre estes elementos tinha, desde os finais dos anos 90, vindo a ganhar expressão na literatura científica nacional, em especial no domínio da sociologia, mas também nas páginas de jornais e ecrãs de televisão onde apareciam 1 Dissertação de mestrado ReciproCidade: Apropriação e Exclusão em Urbanismo, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1996. [19] insistentes reivindicações pela protecção e criação dos Espaços Públicos Urbanos. Entre os muitos exemplos é incontornável não apresentar aquele que talvez tenha exercido um maior poder de questionamento e de mobilização para o estudo do tema: Projecto Lisboa – Capital do Nada, que decorreu numa freguesia de Lisboa – Marvila - de 1 a 31 de Outubro de 2001. Um conjunto de artistas e especialistas de várias áreas disciplinares encarou como uma oportunidade a possibilidade de intervir no espaço urbano da freguesia para o que contou com o apoio dos órgãos autárquicos locais e com as populações. Esta intervenção suscitou-nos múltiplas interrogações mas entre as quais ganhou força a que questionava a forma, admitindo a existência de uma crise do espaço público, como operar a sua reanimação ou recentramento no quotidiano dos espaços e comunidades urbanas. Ou seja, como é que espaços onde o vazio e o nada marcam o tempo podem ser revertidos de modo a possibilitar, como afirma Teresa Alves, “(...)a criação de um sentimento de comunidade através da mobilização das populações de forma a que estas reivindiquem o espaço público como um bem colectivo de promoção da qualidade vida” (AAVV: Figura 1 - Elemento gráfico de lisboa – Capital do Nada [20] 2002; 12). Estes espaços públicos de Marvila não são mais que uma metáfora de uma qualidade urbana paupérrima e de frágeis dispositivos de promoção da coesão social. Marvila era assim um espaço ideal para desencadear inovadoras formas de intervenção em Espaços Públicos, a propósito de um movimento artístico, novos comportamentos colectivos, marcados pela participação, pela observação e pelo envolvimento. Os seus organizadores não esconderam estes propósitos justificando a escolha de Marvila porque “é uma zona mal amada; porque é um conjunto de bairros com muita história mas também muito futuro; porque é um território rico e variado, onde há pessoas e colectividades de grande dinamismo” (AAVV: 2002; 13). Os objectivos centrais situavam- se na mudança da imagem negativa do bairro através da arte e de intervenções várias contando com a participação cidadã. O “Nada” inscrito no título do projecto seria a matéria de partida que conduziria à inversão do passado. O impacte e a visibilidade que este projecto teve junto dos meios artísticos não encontrou correspondência na realidade local. Todavia, a fugaz intervenção de um mês e a bondade do emprenho colocado no projecto não podem apagar décadas de esquecimentos e erros urbanísticos. Daí a importância conferida a este evento pois a sua avaliação exige que se questione sobre as melhores formas de intervir sobre o espaço público, o que exige a explicação para o seu declínio. Como mérito do projecto salientam-se as temáticas da participação e envolvimento público em matéria de Espaços Públicos Urbanos convencendo-nos em definitivo que esta será uma das matérias cruciais para a sobrevivência da ideia de Cidade sedimentada ao longo de centenas de anos. Se estes acontecimentos ajudaram a consolidar o tema e os conteúdos a tratar as vicissitudes, as limitações de ordem [21] diversa e até a incongruência de algumas tarefas concebidas inicialmente não alteraram o rumo traçado mas introduziram novos contornos nos conteúdos face ao esperado. Isto é o que sucede quando o objecto de estudo se refere a mudanças que ainda estãoa decorrer, por isso, parte das suas consequências permanecem invisíveis. É o que sucede com os Espaços Públicos Urbanos e a forma como hoje se inscrevem na cidade e no imaginário das suas comunidades de utilizadores. Qualquer uma das dimensões de motivação atrás enunciadas (cidade, pessoas e quotidiano) estão especialmente bem reflectidas na temática dos EPU: ► O mundo urbano com as suas infinitas possibilidades de libertação e de composição dos elementos que os constituem; ► Os EPU na construção da aprendizagem social suportada na relação com o espaço e na relação com o outro; ► O quotidiano feito de mudança e acaso ganha novo protagonismo nestes tempos de aceleração física e imaterial. Como interagem, como mudam, como são vistos e consequências têm estes aspectos tornou-se quase uma obsessão para o que se recorreu a listagens infindáveis de actividades e tarefas. Algumas delas abandonadas, outras começadas sem se prever, um pouco de tudo aconteceu durante a elaboração da tese. Dito de outro modo, a estrutura a que se chegou é apenas o resultado de um desbaste muito mais amplo e dispersivo que encontrou finalmente um ponto de equilíbrio sustentado. Dessa estrutura é possível apresentar os seus três pilares maiores: ► Reflexão conceptual ► Dimensão Histórica [22] ► Auscultação do território A organização formal e sistematizada encontrada para a adequada explicitação destes conteúdos exigiu que fossem elaborados seis capítulos, excluindo a introdução e a conclusão. O primeiro ficou reservado para a discussão dos objectivos e teses em torno dos quais se construirá este trabalho académico. O segundo capítulo detém-se na ideia de crise dos Espaços Públicos Urbanos dado que esse será a sua grande motivação. O protagonismo passa do espaço para o utilizador e os seus comportamento que moldam parte do quotidiano urbano. O capítulo quatro envereda pela exploração das leituras múltiplas que são feitas dos EPU a partir de sensibilidades e preocupações disciplinares diferentes. Pensar o futuro e as tendências significa saber gerir um passado que em matéria de Espaços Públicos é muito rico e diversificado, sendo este o centro de interesse do capítulo 5. Finalmente, no capítulo seis trabalhou-se dados recolhidos no terreno de modo a validar muitos dos aspectos abordados atrás. [23] 1. Discussão em torno dos espaços públicos urbanos (EPU): Hipóteses de partida e áreas cinzentas 1.1. Os EPU como metáfora das transformações urbanas O questionamento da Cidade nem sempre foi uma atitude corrente na disciplina geográfica. Esta convicção fica reforçada quando deixamos a ideia abstracta e genérica de Cidade e passamos a considerar aspectos como as funções centrais, a demografia urbana, a promoção económica, os equipamentos sociais, entre outros. Essa interrogação só surge, em Portugal, de um modo mais evidente e depois de algumas incursões de Orlando Ribeiro 2 sobre temas urbanos, com Jorge Gaspar (1968), José Pereira de Oliveira (1973), Teresa B. Salgueiro (1971, 1972) e Paula Bordalo Lema (1972), a que se seguiram outras abordagens geográficas do urbano, marcadas por uma crescente diversidade temática. Pode, assim, afirmar-se que o tratamento da Cidade na análise geográfica partia do interior urbano, com as respectivas funções centrais (traços e localização) para observar a sua irradiação no território envolvente – área de influência. Conjugando os resultados de estudos sistemáticos realizados em centros urbanos da mesma região era possível obter a correspondente rede urbana, com a sua hierarquização e debilidades. Espaço urbano e área envolvente, cidade e território por ela influenciado eram, deste modo, variações do mesmo tema. A abordagem do urbano em função do urbano e até para intervir no urbano só surge claramente nos anos 70 e 80, relacionada com problemas concretos e colocando em causa valores histórico, sociais e económicos (Mendes, 1979; Gaspar, 1975, 1976, 1977a, 1977b; Fonseca, 1980; Salgueiro, 1984). Nesta aproximação aos 2 Cf. a excelente reunião de textos sobre a matéria, concebida por Suzanne Daveau, em Ribeiro,O. (1994), Opúsculos Geográficos,FCG, Lisboa. [24] aspectos mais restritos da cidade, visando a colecta de elementos para uma melhor intervenção, a geografia revelou algum à vontade, desde que pudesse contar com bases de informação credíveis como as estatísticas, a cartografia e a possibilidade de efectuar levantamentos directos. Conhecer para intervir passou a ser prática recorrente, sendo apenas na última década do século XX que se sentiu o arejamento nas temáticas e até nas escalas onde dominavam a região, os concelhos e as cidades, estas consideradas como um todo ou segmentadas por ruas e bairros. Esta perspectiva (implicada nos princípios da Nova Geografia) decorria do tipo de representação que os restantes campos disciplinares e políticos possuíam dos geógrafos e que o geógrafo tinha do espaço e da cidade. O modelo, o funcionalismo e a lógica mecanicista/racional, imperavam como pano de fundo da análise e explicação do urbano. Nestes passos introdutórios, preocupa-nos discutir a atenção conferida ao objecto de estudo identificado como Espaço Público Urbano (EPU) e, ao mesmo tempo, justificar essa escolha na justa medida em que configura ainda uma ruptura com os temas clássicos da geografia. O corte será ainda mais pronunciado quando se fizer alusão à diversidade de domínios que terão de ser implicados e que são ainda pouco comuns em estudos de natureza geográfica. Todavia, alguns artigos de âmbito geográfico escritos em Portugal, nos anos 90, continham já referências explícitas aos EPU (Gaspar, 1992; Abreu e Fonseca, 1995), mas a lógica sob a qual se abrigavam não permitia desmantelar o quadro social, económico e urbano que suscitou os problemas identificados. Persistia uma descrição dominantemente geográfica, com referências ténues e superficiais a condicionantes sociais, culturais ou ideológicas, resultando num quadro explicativo [25] insuficiente e pouco indutor de uma produção científica a jusante. Com idêntico hermetismo o tema é também tratado noutros campos disciplinares, onde autores como Habermas (1962), Fortuna (1999a, 1999b), Arendt (2001), Bassand (2001), ou Teixeira (1998, 2001) entre outros, demonstraram as preocupações que afectam a cidade e os Espaços Públicos Urbanos em planos tão distintos como a sociedade, a arquitectura, a filosofia, a economia e o direito. A geografia mantém-se à margem desta discussão, negligenciando o contributo potencial que poderia conceber a partir da sua posição de charneira face às múltiplas dimensões urbanas. No entanto, merecem relevo os trabalhos de Valentine (1995, 1999) e Chintya Gorra-Gobin (2000, 2001), que utilizam os EPU como centro da análise para tratar temas como a insegurança, a política, o consumo e o género. Daí que se considere como uma excelente oportunidade a percepção de que os EPU podem constituir uma chave interessante para decifrar as transformações operadas, e ainda hoje e sempre activas, nos contextos urbanos ou metropolitanos. Esta será a matriz de referência, mas alerta- se para a intensa probabilidade da análise e reflexão nos transportar para universos aparentemente distantes mas sempre, de um modo ou de outro, com ela relacionados. As dimensões tecnológica, social e cultural da concepção urbana afectam o uso e a centralidade tradicional dos EPU, tratando-se agora de medir as consequências múltiplas também deste processo de transferência de sociabilidades e, de certo modo, das novas formas de “produzir cidade” 3 . 3 Não deixa de ser interessante a utilização desta frase que é hoje recorrente dos discursos político e técnicoe que remete para conceitos pré-formatados na intervenção urbana almejando com imodéstia oferecer espaços que contém a espessura histórica, cultural e socioeconómica da cidade tradicional. Esta preocupação incide não só sobre as estratégias [26] Como em todos os processos de mudança em curso, a investigação corre sempre o risco de sair prejudicada por ainda não se vislumbrar a estabilização ou o final deste ciclo de incerteza, com resultados desfocados ou ainda não conhecidos na íntegra. Por outro lado, existem também vantagens a reter, de que sublinhamos a de investigar por antecipação, juntando e trabalhando as peças do puzzle disponibilizadas até agora, encontrando a justa posição dos EPU na cidade,não só numa perspectiva física mas igualmente no campo das representações individuais. 1.2. Questionar os EPU ou os Múltiplos Campos da Urbanidade O desenvolvimento de uma temática como a dos EPU num documento académico desta natureza obriga a formular e sistematizar os resultados da reflexão feita previamente, formatados de modo a construir interrogações e até algumas hipóteses provisórias. Torna-se, assim, possível obter um quadro conceptual sólido e satisfatório para suportar e orientar as preocupações iniciais. Se já eram sentidas dificuldades de precisar o campo da geografia por oposição às demais disciplinas, essa dificuldade aumenta em idêntica proporção quando nos centramos em escalas crescentemente localizadas e até cirúrgicas, sendo, no limite, impossível proceder a essa distinção como, aliás, sucede com as outras disciplinas 4 . recentes de estetização da Cidade (PEIXOTO, 1998), como a EXPO’98, EURO2004 ou o programa Pólis, mas também sobre um urbanismo que é reflexo da densificação e da massificação suburbana. 4 Veja-se o caso recente da sociologia espacialista “alimentada” por Isabel Guerra e Vítor Matias Ferreira e da economia do território ou antropologia do espaço, onde se sente intensamente a presença de Filomena Silvano. [27] Com esta convicção é possível colocarmos as hipóteses de partida que configuram a presente investigação e as submeter a uma reflexão profunda com uma natureza holística e, por isso, sistémica e transversal a outras perspectivas da análise urbana. Apesar de, como já foi salientado, se defender o carácter total dos EPU não deixa de ser conveniente reportar estas hipóteses a quatro universos de referência procurando tornar mais claro o quadro de partida: Universo pós-moderno 5 ► A manifestação da sociedade do conhecimento através da desmaterialização dos contactos subtraiu aos EPU mais uma das suas funções centrais: a da comunicação e publicitação da informação; ► A imposição, pela competitividade urbana, de uma paisagem global por oposição à condição urbana local, capaz de seduzir o investimento, tem transformado a Cidade implicando a desvalorização dos traços urbanos tradicionais; ► O EPU passa a participar do acréscimo de competitividade a diferentes escalas, justificando os esforços de higienização em meio urbano 6 , libertando as áreas disponíveis para o usufruto de utilizadores que sigam códigos precisos e maioritariamente aceites de comportamento e sociabilidade; 5 O termo é substituído por outros consoante a perspectiva dos seus autores: sobremodernidade para Augé (1994), modernismo tardio para Giddens (1994), entre outras propostas. 6 Realojamentos, salas de chuto, casas de prostituição, centros de acolhimento para imigrantes são iniciativas que para além do seu objectivo de conferir maior dignidade à existência de cada um dos segmentos da população a que reportam, não deixam de significar um acantonamento social e urbano, higienizando a Cidade. [28] ► Um dos elementos mais valorizados no período pós- moderno talvez seja a experiência individual que, aliás, condicionou o uso dos modelos de natureza mecânica e linear ainda aplicados no campo cientifico. Nessa experiência foi convocada o elemento corporal como estratégia central para o uso do espaço (Gonçalves, 2002). Os EPU e a sua utilização estão a sofrer perturbações significativas com as disfunções associadas ao culto do corpo, insegurança, consumo. Universo do Ambiente Urbano ► A qualidade do espaço urbano tem caminhado para encarar o ambiente urbano como um instrumento eficaz de construção da sempre perseguida sustentabilidade que, segundo Rodrigues (2002;16), corresponde “a um metabolismo circular por oposição ao metabolismo linear”, materializada nos grandes parques verdes urbanos ou no tratamento das zonas ribeirinhas ou ainda, noutra escala, nos corredores verdes metropolitanos. Os grandes projectos, consumidores de investimentos, recursos materiais e humanos, ganham protagonismo e são desvalorizados os EPU de proximidade, de pequena escala ou, se se quiser, de vizinhança; ► O papel dos EPU, apesar destas mudanças, ainda é relevante na moldagem do espaço e silhueta urbana, na certeza de que a persistência desse estatuto decorre da presença de utilizadores assíduos e diversificados que vão fomentando as inter-relações; ► A natureza complexa e dispersa dos EPU obriga a convocar outros olhares disciplinares que, para além da sua visão mais sectorial, fornecem contributos valiosos, pertinentes e actuais, para formalizar uma [29] ideia mais precisa e, em simultâneo, mais próxima dos fundamentos do objecto de análise; ► A Cidade apresenta uma relação nem sempre pacífica e nem sempre clara com os espaços públicos, pois se em alguns períodos históricos essa presença é valorizada noutros é remetida para posições marginais ou mesmo apagada 7 . A esta discussão acresce o facto de os EPU persistirem no centro ou em localizações privilegiadas nos tecidos urbanos, não permitindo directamente concluir por qualquer forma de apropriação social, política ou económica ou por uma valorização concretizada no uso 8 ; ► Os EPU constituem uma razoável síntese da dinâmica socioeconómica que afecta a Cidade e, por tal, assumem-se como um barómetro que é importante saber descodificar na sua complexidade como metáfora do estádio de desenvolvimento de cada comunidade. Universo da Sociabilidade ► A transformação da Cidade como o produto de um conjunto alargado de domínios e de relações complexas associadas à globalização e à individualização obrigou 7 Aristóteles (1977) no Tratado da Política deixa clara a importância do arranjo interior da Cidade: “É conveniente que abaixo desta fortaleza haja, como na Tessália, um lugar livre para se poder passear, onde se não efectue nenhum mercado e onde não se admitam nem trabalhadores, nem artistas nem outras pessoas semelhantes, a não ser que sejam chamados pelos magistrados(...). O mercado deve ser separado deste lugar, numa situação cómoda, para que a ele possam chegar com facilidade os produtos provenientes donde quer que seja, por terra e por mar.” (p.71). Distingue-se a praça do mercado em que o primeiro é vazio e livre e o outro é o centro das trocas e transacções. Não deixa de ser curioso a proximidade com o que se verificava ainda no século XX, em Lisboa, em que o Rossio era a praça e a Praça da Figueira o Mercado. O urbanismo dos espaços periféricos, que no caso português podemos exemplificar com as Áreas Urbanas de Génese Ilegal ou as Ilhas- Subúrbio, faz desaparecer os espaços de encontro e de sociabilidade como resposta a exigências dominantes de rentabilidade do uso do solo. 8 Poderá comprovar-se a partir da relação, p.e., que os lisboetas estabelecem com o Parque Eduardo VII ou Monsanto. [30] a repensar os problemas urbanos de modo diverso ao que sucedeu numperíodo anterior como foi a fase modernista. Em lugar de destaque surgem as questões do uso e apropriação do espaço público urbano tal como os concebemos hoje; ► A concepção dos EPU atendendo à alteração estrutural quer do urbanismo quer das comunidades instaladas, clama por diversas culturas profissionais e científicas visando uma reconstrução do espaço público que responda às exigências e expectativas actuais mesmo que em condições muito limitadas; ► A revolução operada nos domínios tecnológicos e da transferência de informação, dominantemente bidireccional, permite criar espaços públicos de discussão fora do contexto territorial, acessíveis a um número crescente de utilizadores até porque as possibilidades de exploração destes novos meios não param de ampliar-se 9 e aperfeiçoar-se 10 . Universo de Representação ► Desde sempre as cidades reconhecem e reconhecem-se nos espaços públicos que, no entanto, vão variando em função das sociedades em presença (Àgora grega, Fórum romano, Adro da igreja, Largo da feira, Rossio, ...). Num contexto de crise urbana como é que a cidade utiliza o EPU para se redefinir ou, por outras palavras, como conferir a estes lugares uma carga 9 Por exemplo, nos meios escolares ou no plano do “Ele procura Ela” a utilização dos SMS ou do software tipo Messenger que permite a comunicação em tempo real e a baixo custo ganhou uma expressão que impressiona pela sua generalização e facilidade de utilização. Se se pensar como estas vias implicam a substituição dos espaços físicos tradicionalmente utilizados, percebe-se como os EPU estão à margem dos actuais processos de comunicação e socialização. 10 A tecnologia UMTS que permite o uso de telemóveis com câmra instalada e em que os interlocutores se podem ver em tempo real e a utilização das câmaras web no Messenger prolonga a erosão funcional dos EPU simulando os contaftos “olhos nos olhos”. [31] simbólica fundamental para a (re)construção do sentimento identitário?; ► A emergência de novos “sentimentos urbanos colectivos” ou, dito de outro modo, de novas representações da cidade e da vida urbana, tem gerado novas tipologias de EPU que colocam em causa os fundamentos de direito público em que assentavam os tradicionais. Ganham expressão termos como “não-lugares” no dizer de Augé (1994) ou a privatização do espaço público como assinala Lúcio in Moreno (2001); ► Para além do futuro, mantêm-se as preocupações com a memória, sendo esta o garante para o reforço da identidade urbana e o cimento para as novas formações sociais em desenvolvimento; ► A possibilidade de uma maior mobilidade de pessoas e ideias conduz a uma acentuada fragmentação de territórios habitados por minorias carentes de referências e espaços simbólicos, surgindo os espaços étnicos, alternativos, nacionalistas, etc., com dificuldade de conexão aos restantes segmentos urbanos. 1.3. Quadro conceptual e metodológico 1.3.1. Objectivos As hipóteses levantadas em 1.2. procedem a um tratamento alargado das áreas em que os EPU interferem e, complementarmente, são consequência, no tempo presente, da realidade de cidades portuguesas, com uma expressão demográfica e económica que as aproximam das dinâmicas nas áreas metropolitanas e sedes de distrito, sem olvidar aquelas que tenham manifestado recentes desenvolvimentos à custa de [32] dinâmicas económicas ou outras razões (universidade, saúde, investigação, desporto, ...). Para além disso, as hipóteses de trabalho permitem estabelecer o leque das preocupações que, na generalidade, se colocam às cidades, convergindo quase todas para a convicção de que estão a mudar mas cuja forma final ainda se encontra longe de poder ser determinada. Os EPU constituem, assim, uma oportunidade para encontrar novas pistas sobre: ► O estado das cidades, no que respeita à sua estrutura física e das realizações materiais. Da sua concretização resultam múltiplos impactes na estrutura urbana (distribuição das vocações e áreas imprescindíveis ao funcionamento da cidade, protagonismo ou desvalorização de determinados elementos de composição urbana, ...); ► A composição e funcionamento das comunidades urbanas que, mais uma vez, interferem e são condicionadas pela estrutura urbana. Opulência cultural, diversidade étnica-religiosa-cultural, ampliação da sedução exercida pelo consumo apoiada em mecanismos de pressão social (como tão bem tem sido tratado por Jean Baudriallard) explicam a densificação e diversidade nos espaços colectivos privados encontrando aqui parte da sua justificação, a par das razões políticas e económicas; ► A dimensão económica e política é ainda hoje um sustentáculo seguro do fenómeno urbano, pelo que muito do que se passa na cidade deve ser interpretado à luz das respectivas estratégias. Da alteração das estruturas urbanas às transformações sociais e tecnológicas, foi sempre possível, ao [33] investimento e à intervenção política, encontrar fórmulas capazes de as reverter em proveito próprio, explorando os desejos, expectativas, as inseguranças e incertezas. O desenho arquitectónico e urbano pode também ser interpretado à luz destes princípios bem como o estímulo do recurso às tecnologias e demais formas de comunicação. Com estas hipóteses e preocupações parece pertinente tomar os espaços públicos urbanos como indicador credível destas mudanças. A sua leitura deverá ser feita numa perspectiva orientada para a dimensão urbanística embora, como se observará adiante, não seja possível dissociá-la de muitos outros campos que se associam directa ou indirectamente à ideia de urbanidade. Os objectivos da tese não se conformam assim com o papel que os EPU têm enquanto chave de leitura das mudanças operadas e ainda activas na cidade, procurando ir mais longe na identificação do sentido e da justificação dos sentimentos reais dos utilizadores da cidade, desconstruindo convicções que poderão apenas estar no plano das representações individuais e não no campo das práticas colectivas. A cidade somos nós, paredes e pessoas, ruas e edifícios, espaços fechados e espaços públicos. Mas a polis, de onde derivam em simultâneo, as palavras política e cidade, livre e democrática, exige o encontro, a troca, a partilha, a discussão e a celebração. Questionar o estado destes princípios fundamentais é um objectivo central desta tese. [34] 1.3.2. Defender uma tese ou teses? Em concreto, tendo presente as hipóteses de partida e os objectivos enunciados, qualquer tese que daqui resulte deve tratar, neste caso, os espaços públicos, a sua ocorrência, distribuição, utilização e papel no funcionamento do organismo urbano. O que é preciso também assegurar é que a consideração de todos estes aspectos permita chegar a conclusões bem mais ricas e distantes do objecto inicial. Talvez não seja descabido explicar esta preocupação a partir de uma metáfora referente a um elemento urbano e, para ser mais preciso, a um traço particular dos espaços públicos urbanos: alguém disse, um dia, que pela altura dos passeios das vias urbanas se podia concluir pelo grau de desenvolvimento democrático que marcava um território ou comunidade urbana. Dizia o mesmo personagem, de que infelizmente não se reteve o nome nem a origem, que a inexistência de diferenças altimétricas entre a rua e o passeio significa que ambos os utilizadores se respeitam mutuamente, conhecendo os limites dos respectivos direitos e deveres, condicionados pelos dos restantes. Assim, para que o sistema funcione basta uma simples demarcação ou a utilização de texturas ou cores que permitam estabelecer táctil ou visualmente os dois territórios. Porém, não deixa de ser interessante olhar de forma invertida para o exemplo acabado de descrever.Mais exactamente para a realidade onde não só o passeio tem um desnivelamento acentuado em relação ao plano da rua como é reforçado através da colocação de barreiras que impeçam, em definitivo, a invasão dos passeios pelos automóveis. Não é, concerteza, difícil de reconhecer de imediato cidades onde é recorrente esta última imagem. Lisboa, onde nos iremos deter sempre que possível é um desses exemplos. Todavia, tem mais pormenores que interessa recordar, como é o [35] caso de diversos obstáculos ao longo destes canais e de muitos atravessamentos onde não existem ainda desníveis adequados para cidadãos com mobilidade reduzida, cadeiras de rodas, carrinhos de bebé, etc. Fotografia 1 - A altura dos Passeios: baixo num lado e alto no outro (Cruzamento da Av. da República com a Av. de Berna) Ao limite dos passeios, já altos, foram acrescentados em muitos locais os célebres “frades” ou pilaretes, que Câmara e freguesias exibem com orgulho nos respectivos boletins de imprensa, para balizarem a fronteira das vias de circulação automóvel. Definitivo? Não, pois outra das imagens do quotidiano também poderia ser “a queda” destes objectos por automóveis mais possantes ou condutores menos convencidos da sua robustez e eficácia. Fotografia 2 - Campo Pequeno. As novas muralhas da cidade(1) [36] Fotografia 3 - Calçada do Combro. As novas muralhas da cidade(2) Finalmente, cumpre ainda dizer, antes de chegar ao corolário desta metáfora, que, mesmo no interior de cada uma das vias (pedonais e rodoviárias), é possível identificar sinais da fraca qualidade de democracia. Na estrada é desnecessário relembrar o que se passa, mas nos passeios, a célebre calçada portuguesa, talvez seja bom enumerar as questões mais graves: ► irregularidade que lhe está associada, por características próprias (ausência de paralelepípedos, desníveis sucessivos, reduzida largura) ou introduzidas (pelas permanentes “obras na via pública”); ► presença de elementos de mobiliário urbano agressivos na ocupação do espaço diminuto (mupis, candeeiros, ecopontos); ► estacionamento anárquico; http://www.fotopt.net/foto.asp?foto=124132&primeira=143910&tema=&tipo=busca_sqlw&id=dados&num=4 http://www.fotopt.net/foto.asp?foto=124132&primeira=143910&tema=&tipo=busca_sqlw&id=dados&num=4 [37] ► contentores de resíduos sólidos urbanos, em especial nos edifícios mais antigos, sem condições para os integrar no seu interior; ► paragens de autocarro predadoras do espaço público. O conjunto destas realidades traduz-se em dificuldades acrescidas para o cidadão, mas em especial para deficientes e crianças e impeditivo de uso mais generalizado para modalidades recreativo/desportivas individuais (patins em linha, skate, bicicleta). Esta reflexão serve para demonstrar as implicações, materiais e imateriais, que um simples facto do quotidiano urbano ajuda a revelar e a descodificar. Para a tese que aqui se apresenta esta lógica é fundamental, já que é a partir dos Espaços Públicos Urbanos que se pretende fazer, não tanto a sua descrição física mas, sobretudo, perceber o uso e as concepções sobre eles formuladas pelos cidadãos de Lisboa em particular e que se pensa poder generalizar a outros casos da realidade portuguesa. Em todo o caso, existem já convicções que podem ser traduzidas em teses e ajudar, então, a estruturar todo o trabalho que a seguir se apresenta permitindo validá-las (ou não!). Relembra-se que foram as hipóteses de partida que abriram caminho para a reflexão em torno das teses que agora se apresentam. [38] ► Tese 1 – Os Espaços Públicos Urbanos11 não têm o mesmo significado para todos os actores urbanos. Isto é especialmente verdade quando se segmentam por traços individuais ou profissionais. No primeiro caso, idosos e crianças, homens e 11 Apresenta-se, desde já, um pequeno glossário para apoiar o acompanhamento do texto: Alameda – Canal destinado à circulação, integrando a estrutura verde urbana, coexistindo funções de estar, recreio e lazer. É uma tipologia urbana que, devido ao seu traçado uniforme, à sua extensão e ao seu perfil franco, se destaca da malha urbana onde se insere. Elementos nobres do território, as alamedas combinam. Assim, equilibradamente duas funções distintas: articulação entre áreas urbanas; importantes funções de estadia, recreio e lazer. Avenida – Parecido com a alameda mas com menor destaque para a componente verde, ainda que a contenha. O traçado é uniforme, a sua extensão e perfil francos (ainda que menores que os das alamedas). A avenida poderá reunir maior número e/ou diversidade de funções urbanas que a alameda, tais como comércio e serviços, em detrimento das funções de estadia, recreio e lazer. Rua – Via de circulação pedonal e/ou viária, ladeada por edifícios quando em meio urbano. Poderá apresentar uma estrutura verde, o seu traçado poderá não ser uniforme bem como o seu perfil e poderá incluir no seu percurso outros elementos urbanos de outra ordem – praças, largos, etc. – sem que tal comprometa a sua identidade. Hierarquicamente inferior à avenida, poderá reunir diversas funções. Calçada – Caminho ou rua empedrada geralmente muito inclinada. Ladeira – Caminho ou rua muito inclinada. Azinhaga – Caminho de largura reduzida, aberto entre valados ou muros altos. Tipologia urbana geralmente associada a meios urbanos consolidados, de estrutura orgânica e grande densidade de ocupação do solo. Praça – Espaço público largo e espaçoso de forma regular, confinado por edificações. Em regra as praças constituem centralidades de diversas escalas, concentrando funções de carácter público, comércio e serviços. Podem ter uma componente mais mineralizada ou vegetal. Praceta – Espaço público com origem num alargamento de via ou resultante de um impasse. Geralmente associado à função habitar, podendo também reunir funções comerciais ou de serviços. Largo – Terreiro ou praça sem forma definida nem rigor de desenho urbano ou que, apesar de possuir estas características, não constitui intensa centralidade, reunindo oucas funções para além da habitação. Os largos são muitas vezes espaços residuais resultantes do encontro de várias malhas urbanas diferentes, de forma irregular, e que não se assumem como elementos estruturantes do espaço. Parque – Espaço verde público, de grande dimensão, destinado ao uso indiferenciado de uma população de um lugar, cidade ou até concelho. Espaço informal com funções de recreio e lazer, podendo ser vedado e preferencialmente fazendo parte de uma estrutura verde mais vasta. Jardim – Espaço verde urbano e público, com funções de recreio e bem-estar das populações residentes nas proximidades. Deve ser facilitado o seu acesso pedonal. Faz parte de uma estrutura verde urbana mais vasta. Rotunda – Praça ou largo de forma circular devido à tipologia da sua estrutura viária – em rotunda. Rótula de articulação das várias estruturas de um lugar, muitas vezes de valor hierárquico diferente, que não apresenta ocupação urbana na sua envolvente imediata. (Adpatado de vários regulamentos toponímicos – Porto, Braga, Guimarães). [39] mulheres, por exemplo, posicionam-se de forma diferenciada sobre este objecto levantando legítimas dúvidas acerca do real significado das referências aos EPU. Da mesma forma, os campos disciplinares referem-se ao tema de acordo com metodologias e abordagens específicas, agravando as condições de análise e sobretudo a qualidade da intervenção física, mesmo quando se trata de pequenos espaços, ditos de proximidade 12 ; ► Tese 2 – No discurso é comum ficar destacada a centralidade dos EPU quer para a cidade quer para a qualidade de vida dos cidadãos. Todavia, os saltos tecnológicos envolvendo novas e inovadoras formas de comunicar à distância, diminuindo o contacto directo mas,ao mesmo tempo, multiplicando as interacções e prolongando-as por mais tempo, levantam mais um desafio ao papel que tradiconalemtne era desempenhado pelos EPU. Contra a convicção da indispensabilidade dos EPU está também um leque imenso de aspectos que são tradicionalmente visto como desagradáveis ou desvantajosos e que podem ser, de forma resumida, apresentados como: ● Higiene (Dejectos, lixos, sujidade, ...); ● Segurança (problemas de iluminação, acessos, vegetação densa, qualidade do piso, ...); 12 Na entrevista à responsável dos EPU da Câmara Municipal de Lisboa surgiu uma das muitas histórias centradas nos temas e que respeita a uma pequena intervenção feita num espaço público junto ao Cemitério do Alto de S. João (Rua Morais Soares) ao abrigo da qual foram colocados alguns ciprestes. Dias após a conclusão da obra os ciprestes foram cortados acompanhados de mensagens onde se podiam ler “em espaços de vivos não se colocam árvores de mortos”. [40] ● “Indesejáveis”(sem-abrigo, toxicodependentes, mendicidade, prostituição, grupos de jovens violentos ou mesmo a apropriação do EPU por indivíduos muito marcados numa perspectiva cultural, étnica ou religiosa); ● Comodidade (mobiliário urbano, valências, sombras, serviços de apoio como WC e bebedouros); ● Articulação de competências (em alguns espaços são as juntas que procedem à sua manutenção, noutros é a Câmara Municipal ou empresas contratadas para o efeito, mas já a remoção de lixos é sempre feita pela Câmara assim como a iluminação, entre outros aspectos. A má compatibilização destas competências pode fazer que um esforço de qualificação em qualquer um destes domínios fique diminuída por não ser acompanhada de igual atenção nos outros); ● Sedução pelos Espaços Colectivos (multiplicação dos espaços de vocação comercial mas com roupagem de espaços públicos – ruas, largos praças, toponímia, jogos de água, ...); ● Ausência (o urbanismo moderno apresenta menor densidade de pequenos espaços tradicionais destinados ao usufruto público); ● Animação (eventos vários que gerem atracção e encontros). [41] Fotografia 4 - Ateliê de Olaria no anfiteatro de ar livre da Culturgeste (Maio de 2004, Sábado, 16:00) Tudo conjugado resulta num afastamento entre a prática e a representação no que respeita à postura dos cidadãos face à importância dos Espaços Públicos Urbanos. ► Tese 3 – O apagamento dos EPU tem sido um facto no urbanismo contemporâneo, não só pelas razões invocadas nas teses 1 e 2 mas também por acções concertadas visíveis no campo político e técnico. Defende-se que é a elevada frequência dos EPU que estimula o uso da cidade, a aceitação das diferenças, a aprendizagem do viver social. Num contexto em que é vulgar encontrar jovens e adultos que podem ter quotidianos onde não pisam a rua ou qualquer outra forma de espaço público, era de esperar um acréscimo de sedução por estes espaços. O que se verifica é um desinvestimento nos pequenos, jardins, largos e pracetas e um reforço das intervenções em parques verdes urbanos ou corredores ecológicos metropolitanos. [42] Fotografia 5 - Pequeno jardim, Bairro do Arco do Cego É exactamente aqui que as dimensões política e técnica se encontram. Isto é, os responsáveis pela gestão urbana (sobretudo os políticos mas também alguns técnicos com destaque para os arquitectos paisagistas) preferem criar EPU de grande expressão espacial, em localizações privilegiadas, recheados de equipamentos desportivos, ambientais, educativos, etc., muitas vezes à sombra de programas com componentes urbanísticas (Programa Pólis, Programa de Requalificação de Áreas Urbanas Degradadas, Programa de Requalificação de Áreas Suburbanas da AML Programa de Reabilitação Urbana, etc.). Invariavelmente procura-se que estes novos EPU acarretem ganhos de visibilidade para a respectiva acção política. Mas estes novos espaços são predadores de recursos financeiros e humanos que remetem a rede intersticial dos Espaços Públicos Urbanos para um plano secundário, sem estratégia e sem futuro. [43] O paisagismo, cujo protagonismo na gestão dos espaços naturais em meio urbano tem vindo a ganhar notável reconhecimento, não só pela acção mediática de alguns dos seus técnicos mais carismáticos 13 e apoio dos media, como pelo suporte técnico que assim dá às estratégias políticas, suporta parte substancial das mudanças, sobretudo de escala, operadas na abordagem aos espaços públicos. Termos como sistemas naturais, corredores urbanos, rede ecológica metropolitana, entraram no léxico urbanístico, mas com implicações negativas na promoção do quotidiano próximo dos contactos, do viver a cidade, do conciliar das obrigações diárias com a possibilidade de uso dos espaços de descompressão como poderiam ser os EPU de proximidade. Este conjunto de teses que combinam a postura dos cidadãos, responsáveis políticos e técnicos, convergem para a busca do lugar dos Espaços Públicos Urbanos na reconfiguração física e social da cidade. A figura 1 procura resumir e sistematizar a descrição metodológica feita ao longo do capítulo 1. 13 É inevitável sublinhar (como se fosse necessário) o papel do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles e de uma conjunto de discípulos (Arquitecta Paisagista Manuela Raposo de Magalhães, Prof. Drª Teresa Pinto Correia, Arquitecta Paisagista Graça Saraiva, ...) que não se cansam de repetir, em Conferências, Encontros científicos e em obras consagradas ao tema, as vantagens e a necessidade do planeamento dos espaços naturais em larga escala. [44] Figura 2 - Síntese da estrutura metodológica e conceptual 1.3.3. Sequência metodológica A tradução das preocupações acima expressadas fica reflectida na estruturação do corpo principal deste trabalho onde, de forma progressiva, se avança de um tratamento da realidade sociocultural e urbana para um plano que se vai centrando nos Espaços Públicos Urbanos. Essa análise abriga-se no ponto 2 – Elementos de uma crise anunciada-cobrindo uma Composição e funcionamento das Comunidades Urbanas Dimensão Económica e Política Estado físico da cidade Distância entre discurso e prática do cidadão comum Apagamento físico dos EPU no Urbanismo Contemporâneo Pós-Moderno Ambiente Urbano Sociabilidade Representação Os Espaços Públicos Urbanos na recomposição física e social da Cidade Os EPU não são entendidos da mesma forma (gestor, técnico, cidadão) [45] teia de aspectos correlacionados, ainda que indirectamente, com o objecto de estudo. A localização começa a surgir a partir do ponto 3 – No campo do actor e do seu cenário - onde se descrevem as motivações dos utilizadores da cidade e as expectativas que nela depositam. No ponto 4 a concretização torna-se mais fina, de maneira a fixar as especificidades dos campos disciplinares no entendimento e intervenção sobre os EPU. O capítulo 5 faz a abordagem do percurso histórico, tratando as principais etapas do fenómeno urbano cruzadas com as características dos EPU. Como esta história acaba no nosso tempo, joga directamente com os trabalhos de campo e a avaliação da postura do cidadão face à problemática, cuja análise dos resultados surge no capítulo 6. É, finalmente, tempo de conclusões no capítulo 7. Esta sequência metodológica pode sistematizar-se em duas partes complementares: ► Avaliação do estado da arte, onde as leituras, as reflexões pessoais e o levantamento empírico tiveram um papel central e decisivo. Corresponde a uma parte substancial da tese pela necessidade de consolidar ideias e conceitos; ► Averiguação da realidade, onde o recurso ao caso nacional e, em particular, a Lisboa, foi a âncora para a validaçãoda reflexão inicial. Daí que tenha segmentado-se em três partes: ● Uso do tempo, partindo do princípio que a expansão urbana, as migrações casa-trabalho e casa-escola, as obrigações quotidianas, a sedução por múltiplas actividades, não deixam grandes oportunidades para frequentar os EPU. A base foi um processo [46] de inquirição recente do Instituto Nacional de Estatística à ocupação do tempo; ● Entrevistas, realizadas a indivíduos com aproximações diferenciadas aos EPU resultantes de experiências disciplinares e de terreno específicas, permitindo identificar as principais divergências entre si e por essa via os respectivos olhares sobre os EPU; ● Inquéritos, onde, através de um processo alargado de inquirição aos cidadãos de Lisboa, se procurou conhecer e validar parte da apreciação feita na primeira dimensão da metodologia com destaque para as teses de trabalho. A selecção de Lisboa como base para o trabalho empírico encontra justificação no seu estádio de maior desenvolvimento urbano, pelo que se considera que seria aqui que se poderia observar com maior rigor e clareza os sinais de mudança bem como os traços mais consolidados de caracterização dos EPU. Mas Lisboa e os seus espaços públicos merecerão um tratamento mais alargado imediatamente antes da apresentação dos resultados do inquérito aos utilizadores da cidade. [47] 2. Elementos de uma crise anunciada 2.1. Introdução A cidade vibra e expõe-se pelo que se passa nos espaços exteriores, e não nos interiores, sendo que aqueles estão agregados, no essencial, no que se pode designar por esfera pública 14 . As cidades dispõem de territórios diferentes marcados por percursos históricos e culturais singulares, reflectindo-se estes trajectos em espaços públicos únicos e com formas originais de apropriação e, finalmente, por agregação, em cidades de personalidade vincada. Sinais dessa mudança estão hoje, mais que nunca, visíveis nos espaços urbanos deixados livres, voluntária ou involuntariamente, pela transformação urbana. Desde a configuração até às suas formas de utilização, passando pela animação, mobiliário e equipamentos, muito tem mudado nas fórmulas de intervenção sobre os espaços públicos urbanos. Mas os resultados nem sempre têm sido concordantes com os objectivos perseguidos, quer porque não se regista uma maior procura daqueles espaços, quer porque existem distorções nos modos de apropriação exibidos pelos diferentes grupos de utilizadores. As transformações societárias têm-se revelado como as marcas mais profundas, interessantes e inesperadas ocorridas no mundo ocidental 15 . Como propulsores principais destas mudanças (que em determinados casos e momentos se aproximam de verdadeiras mutações atendendo ao seu carácter global e radical) surge o progresso tecnológico, reflectido na 14 Na acepção que lhe deu Habermas (1978). 15 Veja-se a título de exemplo, a obra de Giddens (p.e.1992, 1994) no campo da Sociologia ou de Howbsbawm (p.e. 1994) na História. [48] revolução operada nas comunicações (rapidez, qualidade e versatilidade) e nas alterações ao modelo económico vigente 16 . Os impactes da nova tecnologia e de contextos económicos emergentes fizeram-se sentir não só nos respectivos campos específicos como também introduziram perturbações colaterais, quer na morfologia social quer urbana. Por isso, a cidade nunca deixou de espelhar o estado da sociedade, com a particularidade de ir fixando no tempo esses vários momentos históricos. Como exemplo maior dessa impregnação histórica surge o centro da cidade - o seu local mais importante nem que seja por ser ainda o centro simbólico - apresentando uma densidade significativa de marcas dum percurso rico por razões históricas, funcionais e de acessibilidade. Ora a actual perda de dinamismo do centro urbano, verificada em muitas cidades, pode ser avaliada, designadamente, pela observação das características dos espaços públicos aí existentes e dos seus utilizadores, e podem ser ensaiadas leituras sobre as transformações que conduziram a um progressivo alheamento da presença de outros utilizadores destes espaços. Nas linhas que se seguem procura fazer-se uma pequena paragem na vertigem de transformação urbana que afecta as cidades europeias (e a cidade de Lisboa com uma intensidade particular) detendo-se na temática dos espaços públicos enquanto símbolo duma urbanidade de memórias e identidades e, ainda hoje, instrumento territorial para a construção da personalidade urbana. Deixa-se, para já, em suspenso a consideração relativa aos EPU como instrumentos de promoção urbana e competitividade entre cidades. Perceber de que forma é afectada pelos processos em curso e que estratégias foram sendo encontradas para a criação 16 Cf. Virilio (1993, 1997, 2000), Asher (1998) e Gofman (1993). [49] e sobrevivência dos espaços de relação tem sido um objectivo central na política de gestão da Cidade, de modo a evitar uma excessiva perda de animação de rua, consequente interiorização da vida pública e emergência de fenómenos de marginalidade. Os espaços públicos são, por definição teórica, territórios de partilha colectiva, cuja apropriação não pode ser exercida por ninguém em particular (indivíduos, grupos de indivíduos, empresas). A elencagem dos elementos duma tipologia de espaços públicos resultaria extensa e heterogénea, pois inclui jardins e calçadas, largos e alamedas, parques urbanos e espaços residuais entre urbanizações, parques infantis, entre outros, que não interessa referenciar neste ponto pelo seu estatuto crescentemente especializado. Cada um deles possui uma oferta ajustada a interesses específicos dos utilizadores, a sua razão de ser fundamental. Estes aão os espaços-problemática, mas a discussão deve sobretudo centrar-se na sua quantidade, qualidade, funcionalidade e ocupação, de modo a identificar os pilares nucleares que expliquem o seu funcionamento e sucesso, ou o inverso. Os espaços públicos urbanos, numa visão de interesse geral, constituem elementos de desenho urbano decisivos para a produção de cidade, na medida em que é aí que se manifesta a vida e animação urbana e onde se processa grande parte da socialização dos utilizadores. A lógica produtivista do espaço urbano, comandada por interesses privados e regulada pela Administração Central e Local, tem progressivamente remetido para segundo plano os espaços de convivialidade e relação, enfatizando os espaços construídos 17 . Este facto, visível na escassez de EPU nas 17 Todavia, os anos 90 vieram mostrar uma nova dinâmica associada aos poderes públicos ao promoverem o imobiliário por via da comemoração de grandes eventos culturais, desportivos, ou outro (Exposições universais, mundiais, Jogos Olímpicos, Campeonatos de Futebol, Taça [50] novas realizações urbanas, insere-se um processo mais vasto e complexo de produção de cidade, convivendo de perto com o aumento da velocidade das deslocações (ligadas aos novos eixos viários urbanos), a multiplicação das novas centralidades e a insegurança dos residentes, entre outros traços do quotidiano urbano actual. Fotografia 6 a, b, c – O cresimento das periferias e EPU Mas a esta redução, fácil de contabilizar através da quantificação de áreas, corresponde uma qualificação dos existentes? As estratégias adoptadas para contornar as crescentes dificuldades na criação de EPU parecem situar-se em planos distintos: ► Retoma de projectos históricos e contrapartidas pela realização dos projectos imobiliários permitindo a criação de grandes espaços verdes (parques verdes urbanos, corredores ecológicos, etc.)com equipamento desportivo e lúdico; ► Qualificação dos espaços públicos existentes, da responsabilidade directa da Câmara Municipal, das Juntas de Freguesia ou de empresas em troca de outros benefícios; ► Criação de novos EPU incaracterísticos e apenas de fruição visual, como sejam as rotundas que a uma função América, ...). Ainda no plano dos EPU devem reter-se as intervenções ao abrigo de programas comunitários ou outros específicos (Urban, PRU,...). [51] rodoviária e urbana associam muitas vezes intervenções artísticas com o emigrante, o soldado, o bombeiro; ► A acessibilidade. Não podendo encontrar-se indiscriminadamente junto às residências, exige deslocações motorizadas, em muitos casos morosas e custosas e, por arrastamento, provoca a selectividade da procura; ► A segurança. Estes espaços tendem a ter uma apropriação informal e marginal por grupos específicos. Constroem-se territórios de identidades delimitados por uma semiologia apreendida facilmente, cujos signos se afirmam com maior intensidade quando surgem “intrusos”, criando graduais sentimentos de insegurança e instabilidade psicológica capazes de desmobilizar futuras deslocações. Nascem, então, os espaços repulsivos no mapa mental dos residentes urbanos a partir da experimentação de situações vividas ou relatadas 18 . A segunda estratégia, pela sua capilaridade no espaço urbano, apresenta-se muito mais visível aos utilizadores da cidade. No fundamental encara-se estes espaços como locais óptimos para reanimar a vida pública, voltando a protagonizar um papel de socialização. Nesta linha, constata-se que as intervenções para a requalificação dos espaços públicos na cidade têm sido uma preocupação e mereceram cuidados que privilegiam: ► o mobiliário urbano (mesas, cadeiras, iluminação, recipientes de resíduos sólidos, suportes publicitários); 18 A este propósito cf. Gonçalves e Magalhães (2001), onde se analisa os domínios espaciais e os protagonistas dos mitos e rumores urbanos. [52] ► o conforto, protecção e segurança (piso, separador das vias urbanas, natureza dos materiais); ► o desenho urbano (legibilidade, visibilidade, esteticidade); ► a vegetação (espécies adequadas ao ambiente local e aos microclimas); ► o comércio e serviços (uma componente indispensável para a animação urbana como os cafés, esplanadas, quiosques, lavabos). O balanço sistemático dos resultados deste esforço não foi ainda feito pelo volume de trabalho que tal implica, mas a constatação empírica identificou consequências objectivas e, por extensão, as respectivas vantagens e deficiências. Como se de um hipertexto se tratasse, a tentação é grande para explorar outros temas na dependência directa desta problemática central, mas resta-nos, por agora, focar no processo de leitura e intervenção dos EPU (cf. Figura 2). Assim, a utilização de espaços públicos urbanos pode ser lida ou descodificada segundo dois planos: diacrónico e sincrónico. No fundo, trata-se de confirmar as diferenças (para além de outras susceptíveis de serem estabelecidas) entre o espaço e o tempo, materializadas na ocupação e partilha de espaços públicos urbanos: ► Plano sincrónico – É possível identificar nos mesmos territórios a constituição de espaços próprios de grupos de indivíduos grosso modo caracterizados por uma afinidade de idades ou interesses. Quando esse espaço é pequeno e o grupo muito representativo pode suceder que no seu período de utilização obrigue à exclusão de outros indivíduos; quando a dimensão o permite delimitam-se territórios distintos; [53] ► Plano diacrónico – Decorre da constatação de que ao longo do dia existe uma apropriação do tempo, isto é, o mesmo espaço é ocupado por vagas sucessivas de grupos de utilizadores diferentes variando temporalmente (manhã, tarde, noite, hora de almoço, fim de tarde, etc.). A riqueza de respostas que os EPU têm de garantir está bem expressa no exemplo atrás referido e materializado nas dimensões diacrónica e sincrónica. Devem estar preparados para responder, em simultâneo, à presença de utilizadores de características e interesses diferenciados, promovendo a sua coexistência espacial e, por essa via, colorindo e animando o espaço, incentivando à inclusão e à partilha. Por outro lado, os ritmos e os estilos de vida condicionam também o uso da cidade, não só ao longo do dia como ao longo da semana, pelo que há que identificar os potenciais utilizadores e garantir a sedução adequada à manutenção do seu interesse e dos níveis de frequência. [54] Figura 3 - Descodificação do padrão de utilização dos espaços públicos Estes apontamentos não esgotam a problemática dos espaços públicos, quer no referente ao seu desenho e tipologias, quer no que se associa à sua utilização, até porque não se centram no papel dos espaços públicos urbanos na socialização dos indivíduos. Estas preocupações não foram ainda convenientemente traduzidas para a literatura científica. A imagem dominante ainda é a do espaço público como o espaço da inclusão social, apesar de, neste momento, a sua procura ter diminuído bastante a ponto de, em muitos casos, se tornar apenas um espaço urbano [55] residual ou de enquadramento visual. Com efeito, a temática dos EPU não tem sido central nas análises da cidade e da sociedade urbana, tendo sido tratada como acessória em processos mais alargados do conhecimento urbano e com referências consensuais mas pouco reflexivas. Os EPU e o seu estudo geográfico remetem-se para o campo duma geografia da percepção, dos pequenos espaços e dos trajectos quotidianos, claramente inserida no que se convencionou designar por geografias pós-modernas. A vantagem do seu estudo é a de poder abordar um universo de interesses e motivações cruzadas, concorrentes ou antagonistas, que permitem conhecer as consequências mais profundas de transformação urbana e a sua relação com os utilizadores da cidade. Assim, surgem quase naturalmente os temas do género, dos grupos etários, das minorias, entre outros. As geografias do quotidiano estão no centro da problemática. O espaço público constitui-se, assim, como um exercício de reflexão sobre a cidade e o urbano, sobre a tradição e a inovação e, finalmente, sobre o cidadão e o consumidor. Não é deslocado evocar as conclusões gerais obtidas em múltiplos exercícios de planeamento em Portugal (Faro, Castelo Branco, Olhão, ...), em que a esmagadora maioria dos entrevistados aponta os EPU como indispensáveis para a qualidade de vida urbana, embora quando confrontados sobre a frequência de utilização desses espaços, menos de um terço aí se desloque e quase ninguém o faça depois das 23 horas 19 . Estes traços duais remetem para o actual período de transição em que já não ocorrem os padrões clássicos de utilização dos espaços públicos, mas que ainda são fulcrais na representação simbólica da cidade. Fazer o balanço actual do estado destes espaços e das formas que têm vindo a assumir, 19 Aliás, no âmbito do trabalho de campo os resultados obtidos corroboram amplamente este comportamento. [56] enquanto fórmula para avaliar a própria cidade e a sociedade, é, como já se havia referido em 1.2., a problemática central. Toda a carga histórica inerente aos EPU, que procuraremos também sublinhar, decorre, no fundo, do reconhecimento do papel protagonizado no percurso de socialização activa, fruto da tensão entre norma e transgressão ou apropriação e conflito. 2.2. As dinâmicas urbanas recentes: emergência do híbrido e da desterritorialização 2.2.1. A fluidez espacio-temporal da
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