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AMEMORIABIOCULTURAL

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A MEMORIA BIOCULTURAL
Book · December 2019
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Diagnóstico del uso de las aves canoras y de ornato en México/ View project
2050: THE KEY YEAR TO THE CIVILIIZATORY TRANSFORMATION View project
Víctor M. Toledo
Universidad Nacional Autónoma de México
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Narciso Barrera-Bassols
University of Twente
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A MEMÓRIA BIOCULTUR AL
A importância ecológica das sabedorias tradicionais
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VÍCTOR M. TOLEDO
NARCISO BARRERA-BASSOLS 
A MEMÓRIA BIOCULTUR AL
A importância ecológica das sabedorias tradicionais
1ª edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
AS-PTA
São Paulo • 2015
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© 2015 AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
Copyright © Editora Expressão Popular
Coordenação editorial: Paulo Petersen
Tradução: Rosa L. Peralta
Revisão: Maria Elaine Andreoti
Revisão Técnica da Tradução: Paulo Petersen
Projeto gráfi co e diagramação: ZAP Design
Impressão e acabamento: Cromosete
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1a edição: abril de 2015
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AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia
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Fone: (21) 2253-8317
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SUMÁRIO
Agradecimentos ..................................................................... 9
Agroecologia: um antídoto contra 
a amnésia biocultural ............................................................. 11 
Paulo Petersen
Prólogo da versão brasileira .................................................. 17
Introdução ............................................................................... 23
I. O que é memória biocultural? .......................................... 27
II. O teatro da memória: cenários e atores ......................... 43
III. Os conhecimentos tradicionais: a essência 
da memória ............................................................................. 85
IV. O que são as sabedorias tradicionais? 
Uma abordagem etnoecológica ............................................ 129
V. Agroecologia e sabedorias tradicionais: 
um panorama mundial ......................................................... 149
VI. Globalização, memória biocultural e 
agroecologia ............................................................................ 233
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Onde está o conhecimento que 
perdemos com a informação? Onde 
está a sabedoria que perdemos com o 
conhecimento?
T. S. Eliot 
Uma inteligência incapaz de 
considerar o contexto e o complexo 
planetário fica cega, inconciente e 
irresponsável. 
Edgar Morin
Tudo aquilo que se faz destruindo 
a tradição acaba se incendiando.
Xamã Purépecha
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AGR ADECIMENTOS 
O livro que o leitor tem em mãos é o resultado de pesquisas pessoais 
conduzidas pelos autores por várias décadas e de reflexões e análises 
conjuntas desenvolvidas durante cinco anos, incluindo alunos de dois 
cursos. Sua elaboração contou com a valiosa colaboração de Pablo 
Alarcón-Chaires e de Carolina Pinilla. Ao primeiro, devemos a maior 
parte de ilustrações, gráficos e tabelas, bem como agradecemos pelas 
pesquisas pontuais de informação, revisão do manuscrito e assessoria 
técnica diversa.À segunda, apreciamos sua ajuda inestimável na pes-
quisa, tradução e redação dos textos. Os autores também agradecem 
a Pedro Urquijo por sua colaboração, assessoria e, especialmente, pela 
criteriosa revisão da última versão do manuscrito. Agradecemos enor-
memente a Manuel González de Molina por seu apoio e paciência que 
tornaram possível esta obra. O segundo autor deseja expressar seu agra-
decimento pelo apoio financeiro recebido através do projeto PAPIIT 
IN306803-6 Saberes locais e o manejo da diversidade ecogeográfica em 
áreas rurais de tradição indígena. Finalmente, os autores agradecem o 
apoio institucional da Universidade Nacional Autônoma do México.
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AGROECOLOGIA: UM ANTÍDOTO 
CONTR A A A MNÉSIA BIOCULTUR AL
Paulo Petersen*
Amnésia biocultural, uma bela definição dos autores deste livro para 
descrever um dos efeitos mais perniciosos da modernização agrícola, 
um projeto político-ideológico imposto a partir da segunda metade do 
século XX com a promessa de levar o progresso e o desenvolvimento ao 
mundo rural e libertar a humanidade em definitivo do flagelo da fome. 
Nos marcos desse projeto, o desenvolvimento da agricultura é con-
cebido como resultado imediato da incorporação de tecnologias capazes 
de superar o atraso do meio rural em relação às atividades urbano-
-industriais. Trata-se da imposição de uma racionalidade econômica 
centrada no lucro, na produção em escala, na especialização funcional, 
no individualismo e na competição, rotulando como atrasadas todas as 
visões e vivências incongruentes com o paradigma agrícola moderno. 
Diante do contexto político-institucional moldado segundo os 
preceitos da modernização, as especificidades locais, conferidas pelo 
caráter peculiar dos ecossistemas e das culturas rurais, deixam de fun-
cionar como centro gravitacional das dinâmicas de inovação técnica e 
social. A noção de arte da localidade, que bem descrevia a Agronomia 
* Coordenador Executivo da AS-PTA e membro da Diretoria da ABA-Agroecologia.
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P a u l o P e t e r s e n
clássica, perde sentido com a emergência da racionalidade tecnocrática 
e generalista. Desde então, parâmetros técnicos e econômicos prescritos 
pelas modernas ciências agrárias passaram a determinar as rotinas de 
trabalho na agricultura pela via dos mercados. 
Um verdadeiro memoricídio cultural se processou em decorrência 
dessa ruptura histórica que tornou irrelevante a produção local de 
conhecimentos, bem como a sua transmissão entre as gerações de 
agricultores. No entanto, embora essa racionalidade procure se impor 
ao eliminar os espaços de manobra para o exercício da criatividade e 
da espontaneidade dos atores locais, sua implantação não se fez sem 
que diferentes formas de resistência e de recriação cultural fossem 
ativadas. Onde se pretendeu incutir uniformização crescente e irre-
versível, assistimos novas expressões de diferenciação cultural e novas 
formas de organização do trabalho e da vida social. Povos indígenas 
e comunidades tradicionais lutam por seus territórios ancestrais de 
pleno direito e constroem suas próprias formas de integração com o 
conjunto da sociedade nacional. Comunidades camponesas se reinven-
tam para assegurar e ampliar suas margens de autonomia em relação 
ao ordenamento empresarial imposto pelo agronegócio. Entre outros 
pontos comuns, tais povos e comunidades enfrentam os novos desafios 
colocados pela modernização, ativando suas memórias coletivas para 
definir estratégias inovadoras em defesa de seus meios e modos de vida.
Interpretadas pelo prisma hegemônico da teoria da modernização, 
essas resistências locais são consideradas arcaicas e irracionais, colocando-
-se, portanto, como obstáculos ao desenvolvimento a serem removidos. 
Ao enxergar irracionalidade onde existem outras racionalidades, os arautos 
da modernização reproduzem o que sociólogo Boaventura Sousa Santos 
denominou de razão indolente,* uma forma de apreensão do mundo 
* SOUSA SANTOS, B. A crítica da razão indolente; contra o desperdício da 
experiência. São Paulo: Cortez, 2005.
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A g r o e c o l o g i a : u m a n t í d o t o c o n t r a a a m n é s i a b i o c u l t u r a l
insensível às ricas e diversificadas experiências sociais que milenarmente 
alimentaram (e ainda alimentam) a heterogênese das agriculturas no 
planeta. Para Boaventura, a razão indolente comprime o presente e expande 
o futuro, ou seja, estreita o campo de visão sobre as realidades contem-
porâneas e projeta um futuro longínquo previamente determinado por 
leis de funcionamento da natureza e da sociedade sistematizadas a partir 
dos paradigmas científicos dominantes. Segundo essa concepção, o fu-
turo deixa de ser entendido como uma construção social ancorada nos 
horizontes de possibilidades criados no passado e no presente. Por outro 
lado, as ações do presente passam a ser disciplinadas por projetos que se 
impõem a partir de um restrito conjunto de parâmetros que delimitam 
trajetórias lineares em direção a um futuro teoricamente preestabelecido.
Essa perspectiva positivista da História que encontra sua síntese na 
noção de modernização agrícola funcionou como alavanca ideológica 
para legitimar novos mecanismos de coesão social no mundo rural. 
Com isso, cria-se uma miragem de um futuro supostamente virtuoso, 
que depende mais da ciência e menos das memórias e identidades co-
letivas. Dessa forma, na orientação do devir histórico, a racionalidade 
dos meios técnico-científicos se sobrepõe à racionalidade dos fins 
subjacentes aos projetos de sociedade. A partir dessa inversão entre 
fins e meios, fenômeno que Max Weber denominou racionalização, a 
tecnociência assume papel preponderante como força social na con-
formação do futuro. 
Em face da crescente interdependência estabelecida entre as ciên-
cias agrárias e os mercados, bem como do progressivo controle da 
ciência institucionalizada por corporações transnacionais, essa força 
social passou a ser orientada por uma perspectiva econômica restrita 
ao objetivo de produzir mais-valia em escalas crescentes e ilimitadas. 
Dessa forma, a busca do lucro por um número cada vez mais reduzi-
do de empresas passou a operar como um dos principais motores da 
História da agricultura. 
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P a u l o P e t e r s e n
Nessa nova gramática do tempo,* as memórias bioculturais tornam-
-se elementos supérf luos e descartáveis, enquanto a modernização 
agrícola se mostra um experimento duplamente descontrolado. De 
um lado, porque suas promessas não se confirmaram. Ao contrário, 
a imposição de um padrão metabólico que desconectou os sistemas 
agroalimentares da natureza e das culturas regionais desencadeou 
verdadeiras tragédias sociais e ecológicas. Por outro lado, o descontrole 
se verifica na ausência de mecanismos de regulação institucional que 
impeçam o crescente controle dos sistemas agroalimentares por um 
número limitado de empresas que se movem globalmente e à revelia 
dos interesses da sociedade, impondo-se como verdadeiros impérios 
alimentares.**
As bases culturais e ecológicas que permitiram que a civilização 
chegasse ao estágio atual vêm sendo dilaceradas, gerando um perigoso 
aumento da vulnerabilidade das modernas sociedades. Reconstruir 
essas bases é uma condição urgente para a superação da crise de civi-
lização que ameaça o futuro da espécie. 
Produzir antídotos contra a amnésia biocultural é, portanto, um 
elemento chave para a construção de um paradigma alternativo que 
permita criar atalhos para a saída da crise. Utilizando a imagem em-
pregada por Sousa Santos, trata-se, antes de tudo, de dilatar o presente 
por meio do reconhecimento e da revalorização das experiências sociais 
desenvolvidas a partir da coprodução natureza-cultura. Essas experi-
ências vêm sendo literalmente desperdiçadas como fontes de sabedoriae inspiração para a superação dos críticos impasses civilizacionais.
Este livro deixa claro que os povos indígenas e as comunidades 
camponesas do mundo são os principais guardiões da memória biocul-
* SOUSA SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São 
Paulo: Cortez, 2006.
** PLOEG, J. D van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e 
sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
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A g r o e c o l o g i a : u m a n t í d o t o c o n t r a a a m n é s i a b i o c u l t u r a l
tural de nossa espécie. Baseados na síntese de pesquisas realizadas em 
diferentes campos disciplinares e em várias regiões do planeta, Víctor 
Toledo e Narciso Barrera-Bassols apresentam evidências inequívocas 
de que a reconexão entre a agricultura e a natureza só será possível 
por meio de dinâmicas coevolutivas fundadas no que eles definem 
como o axioma biocultural, que pressupõe que a diversidade biológica 
e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em 
contextos geográficos definidos.
A agricultura camponesa é a principal força social que molda 
dialeticamente essas construções bioculturais. Sempre que operando 
com margens de liberdade suficientes para reproduzir seus modos de 
produção e de vida, o campesinato estabelece metabolismos socioeco-
lógicos de elevada sustentabilidade e resiliência, uma vez que seus 
arranjos técnico-institucionais se baseiam em um conjunto de princí-
pios comuns ao funcionamento da natureza: a diversidade; a natureza 
cíclica dos processos; a flexibilidade adaptativa; a interdependência; e 
os vínculos associativos e de cooperação. 
Esses princípios inscritos nas memórias bioculturais são vetores 
que impulsionam as trajetórias da inovação camponesa. Essa é a razão 
pela qual os autores ressaltam a importância das sabedorias tradicionais 
como elos entre o passado, o presente e o futuro da Humanidade. 
Defender as memórias e cultivar as sabedorias são tarefas urgentes 
que cobram um enfoque científico pautado por uma epistemologia 
fundada no diálogo de saberes: a Agroecologia.
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PRÓLOGO DA V ERSÃO BR ASILEIR A
O mundo de hoje, globalizado, tecnocrático, pragmático e ver-
tiginoso, sofre de uma sequência acumulada de crises cada vez mais 
agudas que, no fundo, são a expressão de uma crise geral ou estrutural, 
uma crise de civilização. O principal problema é a tendência a viver 
sob a tirania de um presente estendido, quase sempre mantido pelas 
expectativas de seu próprio futuro. Um futuro que nunca chega e que 
não permite vislumbrar outros futuros, os daqueles que procuram se 
soltar das rédeas dessa perversa modernidade com seus próprios projetos 
de vida. Assim, a sociedade moderna padece de amnésia, um traço 
que se faz mais evidente entre os setores urbanos e industriais mais 
sofisticados, os quais tendem a perder a sua capacidade de recordar. 
O primeiro sinal de esquecimento é o fato de os indivíduos 
modernos já não admitirem que são membros de apenas mais uma 
espécie biológica no planeta. Ignoram, portanto, que existiram e que 
existem outras formas de se relacionar com a natureza – ou com o 
que não é humano –, assim como há diversas maneiras de se orga-
nizar como coletivos sociais a partir de outros sistemas de valores, 
de outro ethos. Igualmente desconhecem que as sociedades humanas 
conseguiram persistir ao longo do tempo ao estabelecer uma certa 
aliança com a natureza – ou, poderíamos dizer, com as naturezas –, 
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V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s
através de um processo recíproco, de um fenômeno de coevolução. 
Hoje, a sociedade moderna ou, mais precisamente, o modelo social 
dominante se restringe a imitar ou a reproduzir uma única forma de 
observar, conhecer e conviver com o mundo, isto é, com os demais 
seres vivos (e não vivos), assim como com os processos ecológicos, 
locais, regionais e globais do planeta, que é o nosso habitat. Esse 
modelo hegemônico repousa sobre uma ideia de subjugar os não 
humanos (o chamado mundo natural), visão que, de certa forma, 
corresponde às formas de dominação que subsistem no interior da 
própria sociedade contemporânea.
A mensagem central de nosso livro é mostrar a cegueira da mo-
dernidade e a sua incapacidade de recordar, o que, consequentemente, 
torna necessário volver o olhar para os povos originários, tradicionais 
ou indígenas, em cujos modos de vida – materiais e imateriais – é 
possível encontrar a memória da espécie. E é nessa memória que está 
boa parte das chaves para decifrar, compreender e superar a crise dessa 
modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com 
os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos 
e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas.
A memória permite que os indivíduos lembrem de eventos do 
passado, ajuda a compreender o presente, fornece elementos para o 
planejamento do futuro e serve para reconstituir eventos similares 
ocorridos anteriormente e até mesmo inesperados, improváveis ou 
surpreendentes. Os indivíduos, as sociedades e a espécie humana pos-
suem, cada um, a sua própria memória. A memória da espécie permite 
revelar as relações que a humanidade tem estabelecido com a natureza, 
sua base de sustentação e referencial de sua própria existência, ao longo 
da história, que remonta a uns 200 mil anos.
A memória da espécie humana é, pelo menos, tripla: genética, 
linguística e cognitiva, e se expressa na variedade de genes, línguas 
e saberes. As memórias genética e linguística guardam o registro da 
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A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l
expansão dos seres humanos pelos diferentes hábitats do planeta, um 
processo de colonização de territórios que levou várias dezenas de 
milhares de anos. A memória cognitiva, a menos explorada, revela as 
maneiras como as sociedades humanas foram se adaptando a cada uma 
das condições desses hábitats. Essa memória é biocultural e vem sendo 
mantida pelos 7.000 povos tradicionais, indígenas ou originários que 
hoje existem, subsistem e persistem.
Nosso livro fala de tudo isso, com base na síntese de inúmeros 
estudos, além de abordar aspectos culturais, sociais, ambientais, po-
líticos e epistemológicos (como a construção e o avanço de uma nova 
transdisplina: a Etnoecologia). A publicação de uma edição brasileira 
de nossa obra nos causa enorme satisfação não apenas porque o Brasil se 
encontra entre os dez países com maior riqueza biocultural do planeta, 
mas porque nas universidades brasileiras existem núcleos acadêmicos 
cada vez mais numerosos e produtivos dedicados a estudar os povos 
tradicionais, ao ponto de ser o país que hoje abriga o maior número de 
pesquisadores trabalhando nos campos da Etnoecologia, da Etnobio-
logia e da Etnoedafologia. Além disso, nesse gigantesco território, que 
abrange a metade da América do Sul, os povos indígenas ocupam, em 
conjunto, um território equivalente à metade da superfície mexicana, 
com cerca de 100 milhões de hectares, embora representem apenas 
0,5% (isto é, quase um milhão de pessoas) da população total do 
país. Destaca-se que os territórios históricos desses povos indígenas e 
comunidades tradicionais são os ecossistemas antropizados nos quais 
se localizam as áreas ambientalmente mais conservadas do país, razão 
pela qual muitas delas vêm sendo destinadas a criação de unidades de 
conservação ambiental em detrimento dos direitos territoriais daqueles 
que por gerações souberam reproduzir seus meios de vida em harmonia 
com a natureza. Enquanto isso, a dinâmica expansiva do agronegócio 
degrada os ecossistemas, reproduzindo um padrão de ocupação agrária 
de terras sem gente e gente sem terra.
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V í c t o r M . To l e d o e N a r ci s o B a r r e r a - B a s s o l s
Cumpre também ressaltar o importante papel desempenhado pe-
las novas culturas resultantes da mestiçagem entre povos originários, 
descendentes de europeus e população de ascendência africana. Essa 
nova onda de recriação cultural, que torna o Brasil particularmente 
diverso, faz com que o estudo da memória biocultural se estenda 
para além dos povos indígenas, incluindo outros grupos, como os 
seringueiros, camponeses, caboclos, caiçaras, pantaneiros, quilombolas e 
pescadores artesanais. Outro novo paradigma pelo qual o Brasil ganha 
destaque é o que estabelece que a conservação da biodiversidade deve 
se realizar em plena sintonia e com a participação das comunidades 
locais, pertencentes a diversas culturas.
Com uma biota estimada entre 1,4 e 2,4 milhões de espécies, o 
Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo, possuindo também 
uma das mais vastas redes de reservas naturais. Ao contrário do que se 
supõe, a metade das mais de 900 áreas protegidas no Brasil é de proteção 
integral, enquanto a outra metade é destinada ao uso ou aproveitamento 
sustentável. Em outras palavras, encontram-se historicamente habita-
das, e as populações locais participam da conservação mediante o uso 
não destrutivo dos recursos bióticos. As áreas estritamente protegidas 
(parques nacionais, reservas biológicas, estações ecológicas, refúgios 
de vida silvestre etc.) totalizam 37 milhões de hectares, enquanto que 
as reservas de uso sustentável abrangem um total de 74,6 milhões de 
hectares, principalmente reservas extrativas e áreas de proteção am-
biental, ou seja, quase dois terços do território protegido.
Há ainda uma última dimensão da realidade brasileira com a qual o 
conteúdo deste livro se relaciona: o tema agrário. O Brasil é um dos países 
com maior desigualdade agrária do mundo. Enquanto 76% das terras 
agrícolas estão nas mãos do setor latifundiário, que produz alimentos e 
outras matérias-primas sob o modelo agroindustrial, a superfície restante 
(24%) cabe a 84% dos proprietários rurais: os agricultores familiares que 
se dedicam essencialmente a produzir alimentos. O paradoxo revelado 
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recentemente, não apenas no Brasil, mas também no resto do mundo, 
é que os pequenos agricultores, isto é, os camponeses e agricultores 
familiares, geram 70% dos alimentos que são consumidos por uma 
população de 7,3 bilhões de indivíduos. Esse fato levou a Organização 
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla 
em inglês) a declarar 2014 como o Ano Internacional da Agricultura 
Familiar. O reconhecimento, o resgate e a revalorização das sabedorias 
tradicionais, tema central de nosso livro, tornam-se fundamentais no 
desenho agroecológico de modelos de produção de alimentos sadios, 
de pequena escala, que não sejam prejudiciais à saúde do planeta e dos 
seres humanos. No Brasil, há uma enorme sede de justiça agrária. No 
entanto, o futuro do campo exige não só uma melhor distribuição da 
propriedade da terra, mas também uma reconversão agrícola, tudo isso 
tendo como fundamento o reconhecimento da memória biocultural de 
seus povos indígenas, assim como de suas culturas tradicionais. 
O trabalho realizado por um número crescente de pesquisadores, 
técnicos, comunidades, organizações sociais, ONGs e órgãos gover-
namentais tem aberto um campo fértil para a transição agroecológica 
no Brasil e em outras partes do planeta. Nesse processo, a emergência 
política de povos e comunidades tradicionais nos âmbitos urbano 
e rural abre caminhos para o pleno reconhecimento da estratégica 
importância das práticas de manutenção, revalorização e adaptação 
híbrida contidas na memória biocultural desses e outros atores políticos. 
Certamente surgem tensões neste percurso de querer demonstrar a 
vigência de outros modos de habitar o planeta e de suas epistemologias 
até hoje subjugadas. No entanto, não restam dúvidas de que o trabalho 
para dar visibilidade à íntima relação existente entre a memória biocul-
tural e a Agroecologia de nossos países latino-americanos teve como 
base o pioneirismo de nossos colegas e irmãos e irmãs brasileiras que 
nos têm ajudado a ampliar nossas esperanças, construindo de forma 
participativa e inclusiva outros mundos possíveis.
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Nessa empreitada, não podemos deixar de manifestar a nossa 
profunda gratidão a José A. Costabeber (que descanse em paz), um 
dos pilares do pensamento agroecológico brasileiro, desejando que a 
tradução desta obra se torne uma pequena homenagem a seu enorme 
legado. Também expressamos nosso profundo agradecimento a Paulo 
Petersen, a Romier Sousa e à editora Expressão Popular por suas valio-
sas contribuições para que este livro fosse traduzido para o português. 
Dessa forma, nosso maior desejo é continuar ampliando o Sul a partir 
do nosso próprio Sul.
Víctor M. Toledo
Morelia, Michoacán, México
Narciso Barrera-Bassols
Santiago de Querétaro, Querétaro, México
Referências bibliográficas
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Povos e paisagens: etnobiologia, etnoecologia e biodiversidades no Brasil. Recife: 
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TOLEDO, V. M. 2001. Biodiversity and indigenous peoples. In: LEVIN, S. et al. 
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TOLEDO, V. M.; BARRERA-BASSOLS, N. A etnoecologia: uma ciência pós-
-normal que estuda as sabedorias tradicionais. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 
v. 20, p. 7-27, 2009.
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INTRODUÇÃO
A memória permite que os indivíduos se lembrem de eventos do 
passado. Assim como os indivíduos, as sociedades têm uma memória 
coletiva, uma memória social. Em ambos os casos, a capacidade de 
lembrar é fundamental porque ajuda a compreender o presente e, 
portanto, fornece elementos para o planejamento do futuro, bem 
como serve para reconstituir eventos semelhantes que ocorreram an-
teriormente e até mesmo eventos inesperados. Da mesma forma que os 
indivíduos e os povos, a espécie humana tem uma memória, que nesse 
caso permite revelar as relações que a humanidade tem estabelecido 
com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua existência 
ao longo da história. Embora, em teoria, todas as espécies tenham 
uma memória que lhes permite se manter e sobreviver no contexto 
em constante transformação da história natural, a espécie humana é 
a única que pode, de forma consciente, remontar as recordações que 
compõem sua própria história com a natureza.
A memória da espécie humana pode ser dividida em, pelo menos, 
três tipos: genética, linguística e cognitiva, sendo expressa na variedade 
ou diversidade de genes, línguas e conhecimentos, ou sabedorias. As 
duas primeiras expressões de heterogeneidade do ser humano, que têm 
sido suficientemente documentadas por meio da pesquisa genética e 
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linguística, permitem traçar a história da humanidade, situando-a em 
diferentes contextos espaciais, ecológicos e geográficos (Shreeve, 2006; 
Maffi, 2005). A terceira, muito menos explorada, sintetiza e explica 
essa história, ao revelar as maneiras como os diferentes segmentos da 
população humana foram se adaptando à grande variedade de condi-
ções (especiais, concretas, específicas, dinâmicas e únicas) da Terra.
As duas primeiras dimensões certificam uma história entre a hu-
manidade e a natureza, enquanto a terceira oferece todos os elementos 
para compreender, avaliar e qualificar essa experiência histórica. Em 
conjunto, testemunham uma série de recordações, ou seja, configu-
ramum arquivo histórico ou, em suma, uma memória. A busca pela 
memória de nossa espécie em todos os cantos do mundo acaba por 
reconhecer que, hoje, ela pode ser encontrada em meio às chamadas 
sociedades tradicionais e, mais especificamente, entre os povos indí-
genas do mundo.
Tal como acontece com muitos outros aspectos da realidade, a me-
mória da espécie, resultante do encontro entre o biológico e o cultural, 
vem sendo seriamente ameaçada pelos fenômenos da modernidade: 
principalmente pelos processos técnicos e econômicos, mas também 
por fatores ligados à informática e ao âmbito social e político.
Este livro pretende desvendar a essência, a estrutura e a dinâmica 
da memória (biocultural) da espécie humana, considerar seus pontos 
fortes e fracos, revelar a sua importância ou transcendência para o fu-
turo da humanidade e identificar as várias ameaças que pairam sobre 
ela. Para realizar esta análise, tomamos como referência a perspectiva 
agroecológica, que cobra uma mudança radical na forma como os 
seres humanos se apropriam dos bens e serviços da natureza e propõe 
modos alternativos de produção, circulação, transformação e consumo 
dos alimentos e de outras matérias-primas necessárias para a sociedade.
Tentando superar a amnésia dos sistemas agroindustriais, a 
agroecologia reconhece nessas linguagens de longa data, que ainda 
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sobrevivem nas mentes e mãos dos membros das culturas rurais, um 
arsenal mnemônico de valor imensurável. Em última análise, é nessas 
sabedorias milenares, amplamente ignoradas, aviltadas ou mal inter-
pretadas, que encontraremos as chaves para enfrentar a atual crise 
ecológica e social desencadeada pela revolução industrial, pela obsessão 
mercantilista e pelo pensamento racionalista.
Diante da crise ecológica e social do mundo contemporâneo, torna-se 
fundamental identificar e reconhecer essa memória biocultural da espécie 
humana, uma vez que permite adquirir uma perspectiva histórica mais 
abrangente, revelar os limites e preconceitos epistemológicos, técnicos e 
econômicos da modernidade e visualizar soluções de escala civilizatória 
para os problemas atuais.
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I. O QUE É MEMÓRIA 
BIOCULTUR AL? 
Antes de sermos seres sociais, fomos, somos e continuaremos a 
ser uma espécie biológica a mais dentro do rol da diversidade natural 
composta por milhões de organismos, pois à nossa essência animal 
foi adicionada, sem substituí-la, o traço social. Nós, humanos, somos 
essencialmente seres sociais que continuam existindo não apenas por seus 
vínculos societários, mas também por seus vínculos com a natureza, 
uma dependência que é tão universal quanto eterna. Na perspectiva do 
tempo geológico, que se mede em períodos de milhões de anos, toda 
espécie sobrevive em função de sua capacidade de continuar a aprender 
com a sua experiência adquirida ao longo do tempo.
Apesar de seu tamanho descomunal (o número de membros hoje 
se aproxima dos 7,3 bilhões), de sua linhagem excepcional (cujas 
principais características são o tamanho de seu cérebro e o advento de 
uma consciência) e de seu poder de transformar o hábitat planetário 
(resultado do enorme desenvolvimento de conhecimentos e tecnolo-
gias), a espécie humana ainda precisa, para sobreviver e superar seus 
desafios atuais, de uma memória que lhe informe sobre sua passagem 
pelo planeta durante os últimos 200 mil anos.
Se o Homo sapiens conseguiu permanecer, colonizando e expan-
dindo a sua presença na Terra, é porque foi capaz de reconhecer e 
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aproveitar os elementos e processos do mundo natural, um universo 
que encerra uma característica essencial: a diversidade. Essa habili-
dade se deve à manutenção de uma memória, individual e coletiva, 
que conseguiu se estender pelas diferentes configurações societárias 
que formaram a espécie humana. Esse traço evolutivamente vanta-
joso da espécie humana tem sido limitado, ignorado, esquecido ou 
tacitamente negado com o advento da modernidade, que constituiu 
uma era cada vez mais orientada pela vida instantânea e pela perda 
da capacidade de recordar.
Identificada pela velocidade vertiginosa das mudanças técnicas, 
cognitivas, informáticas, sociais e culturais que impulsionam uma 
racionalidade econômica baseada na acumulação, centralização e 
concentração de riquezas, a era moderna (consumista, industrial e 
tecnocrática) tornou-se uma época prisioneira do presente, dominada 
pela amnésia, pela incapacidade de se lembrar tanto dos processos 
históricos imediatos quanto daqueles de médio e longo prazo.
Essa deficiência está relacionada a uma ilusão alimentada por 
uma espécie de ideologia do progresso, do desenvolvimento e da 
modernização que não tolera nenhuma forma pré-moderna (e, em 
sentido estrito, pré-industrial), que é automaticamente qualificada 
como arcaica, obsoleta, primitiva e inútil. Essa avaliação ideológica, 
que faz da modernidade um universo autocontido, autojustificado e 
autodependente, volta-se contra sua própria existência ao suprimir 
sua capacidade de reconhecer o passado, isto é, ao abrir mão de uma 
consciência de espécie que é ao mesmo tempo uma consciência histó-
rica baseada em uma característica que vai além do fenômeno humano 
e alcança todas as dimensões da realidade do planeta: a diversidade.
A diversificação como processo evolutivo 
Diversificar é o ato de dar forma ou conferir qualidades a certos 
elementos, para aumentar a variedade de uma determinada realidade. 
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A diversidade exalta a variedade, a heterogeneidade e a multiplicidade, 
sendo o oposto de uniformidade. Do ponto de vista termodinâmico, a 
ordem, que é a complexidade que existe no universo, aumenta propor-
cionalmente a diversidade, um princípio expresso na chamada teoria da 
informação. Por essa razão, a evolução cósmica postula que a variedade 
aumenta à medida que a ordem aumenta. A história da Terra tem sido, 
em geral, uma história bastante longa de diversificação, e esse processo 
tem se produzido em diferentes escalas, ritmos e períodos de tempo. 
Portanto, a partir de uma perspectiva de longo prazo (escala geológica 
de tempo), a diversificação é sinônimo de evolução.
Atualmente, é possível identificar no planeta dois tipos principais 
de diversidade, a biológica e a cultural, as quais, juntas, dão origem 
a pelo menos outros dois tipos: a diversidade agrícola e a diversidade 
paisagística. A diversidade cultural inclui, por sua vez, três modali-
dades de heterogeneidade: a genética, a linguística e a cognitiva (ver 
mais adiante); enquanto que a biológica é frequentemente expressa 
em quatro níveis: das paisagens (naturais), dos hábitats, das espécies 
e dos genomas.
A primeira onda: a diversificação biológica 
A origem dos seres vivos na Terra remonta a aproximadamente 3,5 
bilhões de anos (data dos registros mais antigos de fósseis de bactérias). 
Desde então, os organismos vivos têm experimentado vários períodos de 
condições adversas. Na verdade, uma das características mais representati-
vas da história do planeta tem sido a ocorrência periódica de fenômenos de 
extinção em massa. Ao longo do tempo geológico, houve pelo menos cinco 
eventos desse tipo, em que uma grande proporção das espécies existentes foi 
extinta. Existem evidências científicas de que o último grande fenômeno 
de extinção ocorreu no período Paleoceno, há 54 milhões de anos.
A partir desse evento, ocorreu um processo de diversificação de 
organismos em todo o planeta, o que produziu uma série de relações 
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intra e interespecíficas e, consequentemente, gerou uma granderiqueza 
biológica mensurada em número de espécies. Durante esse tempo, 
várias linhas de evolução de organismos vivos foram bem-sucedidas 
em seus processos de diversificação (especiação), dando origem ao que 
hoje conhecemos como diversidade biológica.
A biodiversidade é um conceito muito amplo que se refere à va-
riedade de paisagens, tipos de vegetação, espécies e genes. Portanto, a 
manutenção e a conservação da diversidade biológica exigem esforços 
em cada um desses níveis. Enquanto o primeiro nível está focado na 
preservação do conjunto das paisagens, o segundo centra-se na prote-
ção dos hábitats em que vivem as populações. No nível das espécies, 
a maior parte do que se sabe sobre a diversidade refere-se às plantas 
superiores e aos animais vertebrados (mamíferos, aves, répteis, anfíbios 
e peixes). A riqueza e a diversidade de plantas inferiores e invertebrados 
(que incluem os insetos e moluscos) são ainda bastante desconhecidas, 
motivo pelo qual continuam sendo feitos inventários desses grupos 
de organismos. Embora a diversidade biológica seja constituída de 
plantas e animais silvestres, torna-se fundamental reconhecer o papel 
desempenhado pelos organismos domesticados, uma vez que estes 
configuram a contribuição do homem para a diversidade natural. Fi-
nalmente, o objetivo do quarto nível da biodiversidade está centrado 
na conservação da variabilidade genética de organismos silvestres, bem 
como de espécies vegetais e animais domesticadas.
A segunda onda: a diversificação do ser humano 
A colonização do planeta pelos seres humanos tem sido um dos 
processos de diversificação mais notáveis da história natural, apesar 
de sua brevidade na escala geológica de tempo. Na genética e na lin-
guagem dos diferentes grupos que hoje compõem o gênero humano, 
encontram-se impressas pegadas do passado e, a partir de sua leitura, 
interpretação e análise comparativa, é possível verificar fenômenos, 
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como a trajetória seguida pela espécie desde suas origens no Vale do 
Rift, na África. Essa interpretação histórica, por sua vez, explica a 
variedade do humano.
De fato, as pesquisas genéticas e linguísticas, apoiadas por estudos 
paleontológicos e de outras disciplinas, indicam que os seres humanos 
descendem de grupos hominídeos que surgiram na África há cerca de 
200 mil anos. O Homo sapiens moderno descende de uma pequena 
população da África Oriental, cuja expansão pelo resto do continente 
começou há cerca de 100 mil anos. Posteriormente (40 a 60 mil anos 
mais tarde), partindo dessa mesma região, um pequeno grupo adentrou 
a Ásia e começou a segunda e mais rápida expansão, provavelmente, em 
duas direções. A primeira se deu ao longo da costa sul da Ásia oriental 
e da Oceania ocidental. O segundo movimento de migração foi em 
direção ao centro da Ásia, a partir de onde irradiou-se uma expansão 
para o oeste, rumo à Europa, e outra para o oeste da Ásia e o norte 
da Sibéria até chegar à América. Essa cronologia tem sido confirmada 
tanto por evidências genéticas quanto por estudos linguísticos, de tal 
forma que chega a haver uma correspondência entre as árvores ou 
genealogias genética e linguística (Cavalli-Sforza, 2001).
A partir desses processos de expansão geográfica, a espécie humana 
colonizou praticamente todo o planeta, e, ao se establecer nos mais 
diferentes hábitats, cada grupo aprendeu a usar de forma específica os 
recursos disponíveis em seu entorno. No entanto, é depois da origem 
e da expansão da agricultura e da mudança de nômades caçadores-
-coletores para agricultores sedentários que a espécie humana experi-
mentou uma diversificação ampla e rápida. Hoje, a diversidade cultural 
pode ser entendida, como já dito, por meio de três dimensões básicas: 
genética, linguística e cognitiva.
Uma primeira expressão da diversificação humana, produto da 
colonização do planeta e da consequente adaptação e isolamento dos 
grupos humanos, encontra-se na genética da espécie. A decifração 
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do código genético ou do genoma humano reconhece que cada ser 
humano contém entre 30 mil e 50 mil genes. O genoma dos 7,3 
bilhões de seres humanos é 99,9% idêntico. No entanto, é a inter-
pretação dessa pequena fração que torna cada indivíduo único. É 
nela que está a chave para apreciar a variedade do gênero humano e 
para compreender a história da espécie. Cada genoma individual é 
um livro de história de toda a espécie, e a interpretação e a compa-
ração de genomas de diferentes grupos humanos ajudam a entender 
processos do passado.
A análise de certos elementos dos genomas permite traçar com 
bastante precisão os caminhos trilhados pela espécie, partindo de suas 
origens na África para todos os cantos do planeta. Esse é o caso do 
chamado ácido desoxirribonucleico, ou ADN (mais conhecido pela 
sigla inglesa DNA) mitocondrial, e do cromossomo Y, que define o 
gênero masculino de um ser humano (Shreeve, 2006). Em ambos os 
casos, essas duas frações genéticas têm a qualidade de registrar e manter 
as alterações genéticas que vão ocorrendo ao longo do tempo, de tal 
modo que o seu estudo revela os traços das modificações genéticas 
sofridas pela inúmeras gerações de seres humanos.
Assim como as populações humanas, as linguagens se diversifica-
ram e evoluíram com o passar do tempo, de forma que suas semelhanças 
e diferenças também evidenciam as relações que se estabeleceram entre 
os diversos povos. Da mesma forma, as interações entre os grupos 
humanos ao longo do tempo têm sido avaliadas por meio de estudos 
da arqueologia cultural e da antropologia física. Assim, tanto as raças 
quanto as combinações genéticas do Homo sapiens atestam a diversidade 
dos seres humanos.
Embora, estritamente falando, o número de línguas não seja 
equivalente ao de culturas, o critério linguístico pode ser usado para 
fazer um cálculo preliminar da diversidade cultural: quase 7 mil lín-
guas (Gordon, 2005). Trata-se de uma cifra conservadora se levarmos 
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em conta que, antes da expansão colonial europeia, que começou no 
século XV, o número de línguas chegou a 12 mil, atingindo o auge da 
diversificação cultural da humanidade, e considerando os fenômenos 
de extinção cultural na África, Ásia e América Latina.
Na estrutura da diversidade cultural, tanto genética quanto 
linguística, operam como o núcleo, como a base sobre a qual se 
manifesta uma grande variedade de expressões tangíveis e intan-
gíveis: crenças, conhecimentos, instrumentos e ferramentas, arte, 
arquitetura, roupas e uma ampla gama de alimentos que compõem 
as culinárias locais e regionais. As diferentes crenças religiosas, por 
exemplo, representam todo o espectro de elementos que o homem 
deifica, como montanhas, plantas, animais, fungos, mananciais, 
ventos, tempestades, estrelas.
Assim, há divindades do amor, da beleza, da fertilidade, da fide-
lidade, da sexualidade, da colheita, da aprendizagem, da sabedoria, 
da magia, da música, da saúde, da guerra, do infortúnio e da morte, 
entre outras.
De todas as expressões que emanam de uma cultura, os conhe-
cimentos sobre a natureza configuram uma dimensão especialmente 
notável, uma vez que refletem a sagacidade e a riqueza de observações 
sobre o entorno realizadas, guardadas, transmitidas e aperfeiçoadas 
no decorrer de longos períodos de tempo, sem as quais a sobrevivência 
dos grupos humanos não teria sido possível. Trata-se dos saberes, 
transmitidos oralmente de geração para geração, e especialmente 
dos conhecimentos imprescindíveis e cruciais, por meio dos quais a 
espécie humana foi moldando suas relações com a natureza.
Essa dimensão cognitiva, tão antiga quanto a própria espécie, 
permitiu aos seres humanos não só manter uma certa relação de 
coexistência com a natureza, mastambém refiná-la ou aperfeiçoá-la. 
O produto final desse processo de refinamento ao longo do tempo 
encontra-se hoje nas mentes e nas mãos de homens e mulheres que 
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compõem os chamados povos tradicionais, especialmente os povos 
indígenas. Esses conhecimentos, no entanto, estão ameaçados.
Como acontece hoje com grande parte de tudo que se considera 
tradicional, as formas como os seres humanos têm conseguido se 
apropriar com sucesso dos recursos da natureza ao longo do tempo 
estão sujeitas a uma enorme pressão, exercida por diversos fatores e 
forças. A modernidade, pelo menos a que agora se expande por todos 
os cantos da Terra, raramente tolera outra tradição que não seja a 
sua, e, consequentemente, as formas modernas de uso dos recursos 
geralmente oprimem toda forma tradicional de manejo da natureza, 
incluindo os conhecimentos utilizados. Trata-se de um conflito nodal 
entre as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produção.
É dentro desse panorama descrito que se destaca o importante 
trabalho de valorização realizado por esse exército de estudiosos dos 
conhecimentos tradicionais e, especialmente, aqueles que se dedicam 
a documentar, analisar e reavaliar as sabedorias pré-modernas sobre 
a natureza, um esforço intelectual que vai na contracorrente e tem 
crescido nas últimas quatro décadas. Esses estudos centraram-se na 
análise desse acúmulo de saberes, não científicos, que há na mente 
dos produtores rurais (agricultores, pastores, pescadores, pecuaristas, 
caçadores, coletores) e tem servido durante milênios para que a espécie 
humana se aproprie dos bens e serviços da natureza.
A terceira onda: a criação humana de novas espécies 
A agricultura surgiu de forma independente em várias partes 
do mundo entre 10 e 12 mil anos atrás. Essa revolução neolítica, 
ou agrícola, gerou não só uma enorme variedade de espécies de 
plantas e animais domesticados (estimada entre 1,2 e 1,4 mil), 
mas também novas variedades e raças que, juntas, levaram a um 
aumento considerável da biodiversidade (apenas da batata se reco-
nhecem localmente cerca de 12 mil variedades; do arroz, são cerca 
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de 10 mil). Assim, os novos organismos que surgiram graças à ação 
humana podem ser considerados uma nova contribuição para a 
diversidade atual do mundo.
De acordo com o trabalho do geneticista russo N. I. Vavilov (1926), 
é possível identificar oito centros de domesticação de plantas ao redor 
do mundo, os quais foram modificados por Harlan (1992), que utilizou 
uma série de evidências arqueológicas nos territórios de origem dos 
cultivos. Consequentemente, segundo sua classificação, há três zonas 
geográficas chamadas centros, e outras três regiões reconhecidas como 
não centros. Os três centros são o Oriente Próximo (Jordânia, Síria, 
Turquia, Iraque e Irã), a Mesoamérica (México e América Central) e o 
norte da China. Por sua vez, a faixa central africana, o Sudeste Asiático 
e a América do Sul constituem os não centros. Posteriormente, Smith 
(1998) incluiu um novo centro de origem de culturas na América do 
Norte. A grande diversidade dos sistemas agrícolas é caracterizada pelo 
número de espécies de cultivo, de animais domésticos, de raças e suas 
variedades locais e das técnicas de manejo das paisagens.
A quarta onda: a criação humana de novas paisagens
O último processo de diversificação ocorreu em estreita ligação com 
a terceira onda, quando as primeiras sociedades agrícolas modificaram 
os hábitats para criar zonas humanizadas ou paisagens, isto é, áreas para 
a produção de bens e serviços. Tal processo implicou a domesticação 
do espaço e veio complementar, e não substituir, os hábitats originais. 
Essas novas paisagens do Neolítico foram projetadas para agregar novos 
produtos aos obtidos pelas atividades de caça, pesca e coleta, por meio 
de um manejo adequado dos processos ecológicos, geomorfológicos e 
hidrológicos, sem afetar muito os ritmos e processos naturais.
Há uma variedade de paisagens ao redor do mundo que são resul-
tado da revolução agrícola e incluem modificações feitas em florestas, 
selvas, pradarias, desertos e semidesertos, pantanais e áreas costeiras. 
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As mudanças produzidas abrangem toda uma série de alterações na 
estrutura, no funcionamento e na evolução dos ecossistemas. Três 
desenhos se destacam de forma especial em escala mundial: a agri-
cultura irrigada, os terraços e as florestas manejadas como sistemas 
agroflorestais em regiões intertropicais.
Os sistemas tradicionais de agricultura irrigada-intensiva estão 
situados em diversas partes do mundo, mas têm sido implementados 
especialmente na América tropical. Seu desenho foi concebido para 
modificar a topografia e o fluxo da água. Por exemplo, nas terras baixas 
do Golfo do México e na Península de Yucatán, há evidências de ter-
raços estabelecidos nas zonas úmidas (Siemens, 1989; 1998). Sistemas 
semelhantes têm sido encontrados na Guatemala, Belize, Venezuela, 
Colômbia, Equador, Bolívia e Peru (Denevan, 1982). Esses sistemas, 
geralmente conhecidos como campos elevados, constituem uma rede de 
canais e plataformas construída nas margens de lagos, rios ou planícies 
inundáveis. O sistema consiste na regulação da entrada de água para 
manter os níveis e permitir o desenvolvimento da agricultura intensiva 
(Siemens, 1998).
No planalto andino do Lago Titicaca, no Peru e na Bolívia, 
um sistema hidroagrícola conhecido como Waru-waru, hoje par-
cialmente reativado, antigamente cobria uma superfície de mais de 
200 mil hectares. Da mesma forma, no Vale do México, seus anti-
gos habitantes criaram os chinampas, que talvez sejam os sistemas 
hidráulicos mais sofisticados gerados sob a tecnologia tradicional. 
Os chinampas abrangiam cerca de 12 mil hectares e serviam, entre 
outras coisas, para suprir as necessidades alimentícias (milho, feijão, 
amaranto) de uma população estimada em mais de 228 mil pessoas 
(Denevan, 1982).
A conversão de florestas naturais em florestas humanizadas tem 
sido uma prática antiga nas regiões tropicais do mundo. Tal processo 
envolve mudanças na composição original das florestas, a fim de criar 
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jardins florestais, por meio do manejo das espécies arbóreas e da in-
trodução de ervas e arbustos úteis, como as culturas comerciais (café, 
cacau, canela, especiarias, borracha, pimenta, baunilha). O sistema 
configura uma maneira de reconstruir as florestas naturais por meio 
do cultivo e da coexistência de plantas silvestres e cultivadas, buscando 
conservar as características estruturais e os processos ecológicos das 
florestas naturais em benefício das comunidades locais e mantendo 
uma certa diversidade biológica.
As pesquisas sobre o assunto têm registrado a importância biológica, 
ecológica e produtiva desses sistemas em países como Índia, Papua Nova 
Guiné, Sri Lanka, Indonésia, Tanzânia, Uganda, Nigéria e México, 
cujas culturas locais são as que realizam sua prática e seu manejo, o que 
indica que são produto de práticas conduzidas ao longo do tempo. Para 
ilustrar, vale citar o caso dos Shambas, de Uganda, dos Kebun-Talun, de 
Java Ocidental, dos Pekarangan, Ladang e Pelak, de Sumatra-Indonésia, 
dos Kandy, do Sri Lanka, e dos Te’ lom e Kuajtikiloyan, dos Huasteca e 
Nahua, do México.
Os terraços agrícolas, por sua vez, figuram entre os sistemas mais 
antigos utilizados para o manejo de processos geomorfológicos, de 
solos e água em paisagens de relevo escarpado e com encostas de alta 
declividade ao redor do mundo. Registros arqueológicos sugerem que, 
em várias regiões do mundo, a idade dos terraços é de 3 a 4 mil anos 
(Quadro 1). As paisagensformadas por terraços têm permitido e fa-
cilitado o desenvolvimento de várias civilizações em cada continente. 
Exemplos que devemos mencionar são as regiões onde a agricultura 
atingiu um alto nível de desenvolvimento, como China, Índia, Japão, 
Coreia, Etiópia, e três regiões agrícolas-chave: o Mediterrâneo, os 
Andes e a Mesoamérica (Sandor, 2006).
 
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Quadro 1: Principais registros arqueológicos de terraços no mundo
Registro da 
agricultura 
(em anos) 
Registro dos 
terraços 
(em anos)
Características dos terraços
China 8.500-11.500 3.000 Não há dados exatos sobre sua origem
Japão/Coreia 3.000-7.000 2.000 Para áreas de cultivo extensi-vo de arroz
Índia/Indochina 5.000-7.000 2.300-2.100 Há 3.100 anos no Paquistão
Filipinas 3.400-5.000 1.400-2.000
Papua Nova Guiné 9.000 ? Bastante antigos, mas sem dados exatos sobre sua origem
Polinésia 1.000-3.600 1.100
Ásia Oriental 10.000-13.000 3.000-6.000
Os terraços do Iêmen existem 
há aproximadamente 5.000-
6.000 anos
Mediterrâneo 8.000 2.500-4.000 Há 4.000 anos na Itália e 3.700 em Creta
Europa oriental 5.000-7.000 ?
Europa ocidental 5.000-7.000 2.000-3.500
África do Norte 6.500 3.000 Terraços de drenagem. Há 2.450 anos na Etiópia
África Subsaariana 3.000-5.000 500-600 Não há dados exatos sobre sua origem
Mesoamérica 5.000-10.000 2.500-3.000
América do Sul 4.000-10.000 2.500-4.000 Não há dados exatos sobre sua origem
América do Norte 3.000-5.000 1.000-3.000 Terraços para a agricultura
Fonte: Sandor (2006) 
É possível distinguir quatro tipos principais de terraços em todo o 
mundo: (a) terraços em terrenos montanhosos ou íngremes que podem 
ter ou não canais de irrigação (região do Mediterrâneo, Himalaia, 
Andes, Mesoamérica); (b) terraços em zonas úmidas, como no Sudeste 
Asiático; (c) terraços de drenagem em zonas áridas e semiáridas; e (d) 
os terraços do noroeste da Europa (Sandor, 2006).
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Embora, aparentemente, os terraços constituam uma pequena 
fração das áreas agrícolas mundiais, eles são muito importantes em 
algumas regiões, do sudoeste do Colorado, nos Estados Unidos, até 
o noroeste da Argentina, o sudoeste dos Estados Unidos, o centro e o 
sul do México, Chiapas-Guatemala, regiões da Venezuela, flancos da 
Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, e sul do Equador até o 
norte do Chile e Argentina (Donkin, 1979).
A diversidade biocultural 
A descrição feita nas seções anteriores dos principais processos 
de diversificação mostra as relações estreitas entre vários deles e, 
especificamente, entre as formas de diversidade: biológica, genética, 
linguística, cognitiva, agrícola e paisagística (Figura 1). Juntas, elas 
configuram o complexo biológico-cultural originado historicamente 
e que é o produto de milhares de anos de interação entre as culturas 
e os ambientes naturais.
Figura 1: Esquema do processo geral de diversificação biocultural 
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A expansão geográfica da espécie humana foi possível graças a sua 
capacidade de se adaptar às peculiaridades de cada hábitat do planeta 
e, sobretudo, pelo reconhecimento e pela apropriação adequada da 
diversidade biológica contida em cada uma das paisagens. Portanto, 
pode-se dizer que a diversificação dos seres humanos se fundamentou 
na diversificação biológica agrícola e paisagística. Esse processo de 
caráter simbiótico ou coevolutivo foi conduzido pela capacidade da 
mente humana para tirar proveito das particularidades e singularida-
des de cada paisagem do entorno local, em função das necessidades 
materiais e espirituais dos diferentes grupos humanos.
Esse processo biocultural de diversificação é a expressão da articula-
ção e amálgama da diversidade da vida humana e não humana e represen-
ta, em estrito sentido, a memória da espécie. Aparentemente, assim como 
ocorre com a memória dos seres humanos e outros mamíferos, em cujos 
cérebros a representação e a formação de lembranças se realizam através 
da ação coordenada de grandes populações de neurônios (Tsien, 2007), 
o conjunto da espécie guarda recordações de experiências passadas em 
grupos seletos e específicos de seres humanos culturalmente articulados.
Trata-se daquelas comunidades que, como veremos, foram capazes 
de manter uma tradição por meio da contínua agregação de novos 
elementos e, com isso, conseguiram permanecer em um só lugar por 
longos períodos de tempo (centenas e até milhares de anos). Atualmen-
te, apesar dos acentuados processos de urbanização e industrialização 
da produção primária (agricultura, pecuária, pesca, silvicultura etc.), 
ainda há grandes regiões do mundo, especialmente nas zonas tropicais, 
onde milhares de comunidades tradicionais continuam a realizar prá-
ticas que atestam um uso prudente da biodiversidade de cada um dos 
ecossistemas existentes. Cada cultura local interage com seu próprio 
ecossistema local e com a combinação de paisagens e as respectivas 
biodiversidades nelas contidas, de forma que o resultado é uma ampla 
e complexa gama de interações finas e específicas (Figura 2).
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Figura 2: Relações entre as culturas tradicionais e os ecossistemas 
Pode-se dizer, então, que é nessa ampla e complexa coleção de sabe-
dorias locais, de cuja análise em conjunto devemos obter recordações-
-chave e identificar eventos que tiveram uma influência profunda e 
duradoura sobre toda a espécie, que se encontra a memória da espécie 
humana, ou o que ainda resta dela. Essas sabedorias localizadas, que 
existem como consciências históricas comunitárias, uma vez totalmente 
conjugadas, operam como a sede principal das lembranças da espécie. 
São, portanto, o hipocampo do cérebro da humanidade, o reservatório 
mnemônico que permite que qualquer espécie animal se adapte conti-
nuamente a um complexo mundo em constante processo de mudança. 
O próximo capítulo é dedicado a localizar em vários lugares do planeta 
essa memória da espécie, por meio da detecção e do cruzamento de 
vários indicadores dos processos aqui descritos.
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II. O TEATRO DA MEMÓRIA: 
CENÁRIOS E ATOR ES 
Onde se localiza a memória biocultural? 
Como vimos no capítulo anterior, é possível distinguir vários 
processos de diversificação, articulados de diferentes formas e em dife-
rentes graus e que podem ser identificados geograficamente e segundo 
diferentes escalas. Para realizar esse exercício, levamos em conta aqueles 
processos em que há informação suficiente para obter um panorama 
o mais confiável possível de padrões espaciais, uma vez que a pesquisa 
científica tem avançado mais em alguns aspectos do que em outros.
Os campos em que hoje encontramos informações para conduzir 
esta análise são os da diversidade biológica, da diversidade linguística 
e da diversidade agrícola (e pecuária). Estas, por sua vez, podem ser 
correlacionadas com a distribuição das sociedades rurais tradicionais, 
que, em teoria, constituem os agrupamentos da espécie humana cujas 
atividades se baseiam em formas de manejo da natureza não industriais 
e em formas de conhecimento não científico, ou seja, em expressões 
que remontam a um passado distante.
Estudos conduzidos nas áreas das ciências sociais e das ciências 
naturais, sob os mais diversos enfoques, revelam a estreita ligação entre 
as diversidades biológica, cultural e agrícola em várias escalas, do nível 
global ao local. Revelam também a relação dessas diversidades com 
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as regiões tradicionais do planeta, isto é, aquelas onde predomina uma 
populaçãorural de agricultores (e de pastores, caçadores e pescadores 
artesanais) que mantêm sistemas de produção de base familiar e de 
pequena escala. Assim, temos, de um lado, os três componentes ceno-
gráficos e, do outro, os atores (as sociedades tradicionais) que realizam 
as ações a partir desses cenários. As seções seguintes são dedicadas a 
mostrar e discutir esses vínculos, cuja representação geográfica aponta 
a localização da memória biocultural da espécie humana.
Os centros de diversidade biológica
Em termos gerais, a diversidade biológica, ou a biodiversidade, 
expressa toda a variedade das formas de vida na Terra (Wilson, 1992). 
A maneira mais direta e simples de medir a diversidade é calcular a 
riqueza de espécies, a qual se refere ao número de espécies presentes 
numa determinada área; o que, por sua vez, depende da escala (diver-
sidades alfa, beta e gama). A diversidade e sua distribuição são produto 
de uma longa história de evolução, diversificação e extinção dentro de 
um espaço geográfico e ecológico dinâmico e em constante transforma-
ção. Da mesma forma, o conceito de endemismo define os organismos 
restritos a uma área geográfica ou unidade ecológica específica, isto é, 
aponta os organismos que têm distribuições restritas, diferentemente 
de outros que apresentam amplas áreas de distribuição.
Grande parte dos esforços da pesquisa científica tem sido dirigida a 
identificar, em nível global, estratégias prioritárias que sejam adotadas 
tanto por governos nacionais quanto por organismos internacionais. Essas 
estratégias são voltadas a proteger áreas que contêm um número muito 
elevado de espécies em superfícies mínimas. Por exemplo, a Conservation 
International, certamente a organização conservacionista que mais tem 
avançado em termos de conhecimento científico, conseguiu acumular, 
nas últimas duas décadas, dados e evidências sobre três padrões principais 
de biodiversidade em escala global: (a) a identificação de países chama-
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dos megadiversos; (b) o reconhecimento de ecorregiões terrestres-chave 
(hotspots); e (c) a definição de regiões silvestres ou virgens.
O conceito de megadiversidade permite visualizar a biodiversidade 
a partir do nível de unidades políticas, como os países. Estima-se que 
17 dos 225 países detenham entre 60% e 70% das 250 mil plantas 
superiores, incluindo as espécies terrestres, de água doce e marinhas. 
Esses 17 países são também o lar de cerca de 60%-70% de todas as 
plantas endêmicas (Mittermeier; Goettsch-Mittermeier, 1997). Doze 
países são reconhecidos por hospedar o maior número de espécies e 
de espécies endêmicas (com populações restritas): Brasil, Indonésia, 
Colômbia, Austrália, México, Madagascar, Peru, China, Filipinas, 
Índia, Equador e Venezuela. Essa avaliação teve como base a análise 
comparativa de oito principais grupos biológicos: mamíferos, aves, 
répteis, anfíbios, peixes de água doce, besouros e plantas com flores.
No segundo caso, seguindo uma ideia originalmente proposta por 
Myers (1988), atualmente é possível identificar no mundo 34 regiões-
-chave (hotspots) que concentram altos níveis de biodiversidade, mas nas 
quais os hábitats naturais têm perdido a maior parte de sua superfície 
original (www.biodiversityhotspots.com). Considerando essa defini-
ção, tais regiões-chave contêm apenas 1,4% da superfície terrestre do 
planeta, constituindo um extraordinário acervo de riqueza biológica 
que corresponde a aproximadamente 40% da biodiversidade global, 
quase a metade das espécies de plantas vasculares e um terço de todos 
os vertebrados terrestres (Myers et al., 2000). Os números mostram que 
esses hotspots detêm entre a metade e dois terços de todas as espécies 
de plantas vasculares qualificadas como em risco de extinção e quase 
60% dos vertebrados terrestres ameaçados (Brooks et al., 2002).
Finalmente, a localização de 37 áreas consideradas como sendo 
as últimas regiões virgens do mundo, com as mais baixas densidades 
de população humana, tem possibilitado estabelecer outra estratégia 
prioritária. Em conjunto, essas regiões contêm áreas intocadas ou sil-
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vestres que correspondem a 46% da superfície da Terra, isto é, quase 
metade do planeta, sem incluir os mares, habitada por apenas 2,4% 
da população humana mundial (Mittermeier et al., 2002).
Os centros de diversidade linguística 
Cada língua falada representa um modo único de compreender a 
experiência humana, o universo natural e o mundo inteiro. Os idiomas 
resumem toda a pluralidade da humanidade. Como um código de ação 
social, a linguagem é usada pelos seres humanos para estabelecer um diá-
logo negociado com o mundo social e o mundo natural (Unesco, 1996). 
A linguagem é uma construção sociocultural que confere significado 
às representações, aos discursos e às negociações. Por outro lado, como 
um instrumento dialógico, ela constitui a ponte fundamental entre a 
cognição, o reconhecimento e o ato de nos reconhecer; uma ponte entre 
a diferença e o ato de nos diferenciar, o que é uma ponte para negociar 
a legitimidade e conseguir selar acordos (Bourdieu; Wacquant, 1995).
O reconhecimento das diferenças é uma condição para o diálogo e 
para a construção de acordos entre diferentes pessoas e grupos sociais. 
A linguagem constitui a ferramenta essencial para a construção da 
diversidade cultural e é a matéria-prima da criatividade e do conheci-
mento humano. A dramática redução do número de línguas desgasta 
as bases dessa criatividade e conhecimento, o que acabará por produzir 
uniformidade nas culturas do mundo e, portanto, a irremediável re-
dução da diversidade cultural (Harmon, 1996a; 1996b).
A diversidade linguística designa o número de línguas faladas em 
todo o mundo. A distribuição geográfica da diversidade linguística segue 
um padrão heterogêneo (Krauss, 1992; Harmon, 1996b; Maffi, 1998). 
Ela é o resultado da diversidade cultural e reflete as relações de domina-
ção/subordinação e resistência/hibridização entre diferentes indivíduos, 
sociedades e civilizações (Barrera-Bassols, 2003). Três grandes fenômenos 
históricos contribuíram para a diversidade geográfica-linguística: 1) o 
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isolamento geográfico das populações humanas, processo que resulta 
em um número significativo de línguas endêmicas (Harmon, 1995); 2) o 
enriquecimento da diversidade linguística como resultado da interação de 
diversos grupos sociais (Mûhlâusler, 1996; Maffi, 1999); e 3) a dominação 
colonial e a internacionalização dos sistemas de comunicação dominados 
por determinadas línguas, o que provoca a extinção de línguas endêmicas 
por meio da assimilação cultural (Harmon, 1996b; Maffi, 1998).
Não há consenso sobre o número de línguas faladas no mundo. 
Gordon (2005) reconhece um total de 6,7 mil, enquanto Harmon (1995) 
registrou 6.207. Em todo caso, não se pode precisar o número de lín-
guas usadas hoje em dia pelos grupos sociais. Há um conjunto de cinco 
categorias de países de acordo com sua diversidade linguística (Figura 
3). Vale ressaltar que é problemático usar um país como unidade para 
fazer referência à diversidade linguística, uma vez que a distribuição dos 
idiomas não se restringe aos limites políticos-administrativos. Mesmo 
assim, aqui apresentamos o país como unidade de comparação.
Figura 3: Países com o maior número de línguas registradas
 
Fonte: Gordon (2005) 
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Tendo em vista essa consideração, apontamos o primeiro grupo, 
composto por Indonésia e Papua Nova Guiné, que são países lin-
guisticamente megadiversos. Juntos, abarcam um total de cerca de 
1.550 línguas, que representam 23% de todos os idiomas domundo. 
O segundo grupo é formado por sete países (Nigéria, Índia, México, 
Camarões, Austrália, Zaire e China) de alta diversidade linguística, 
com aproximadamente 350 a 470 línguas por país, respondendo por 
37% (Gordon, 2005) ou 49% (Harmon, 1995) do total de todo o 
mundo. Ambos os grupos de megadiversidade linguística registram 
um total de 3.634, que representa 54% das línguas vivas no mundo. 
No entanto, esses nove países representam apenas 4% dos 225 países.
O terceiro grupo, dos dez países (Brasil, Estados Unidos, Filipinas, 
Malásia, Tanzânia, Chade, Nepal, Sudão, Mianmar e Vanuatu) com 
diversidade linguística mediana, abrange de 21% a 22% dos idiomas 
do mundo. Ao agrupar os 19 países com alta e média diversidade 
linguística, atingimos apenas 8,5% dos países com informação lin-
guística, embora esse grupo reúna aproximadamente 4 mil línguas, 
que representam entre 75% e 77% dos idiomas do mundo. O quarto 
grupo, composto por 40 países com baixa diversidade linguística, inclui 
de 12% a 14% das línguas do mundo e representa 18% dos países. 
O quinto grupo, de países com diversidade linguística muito baixa, 
caracteriza-se por ter de uma a 25 línguas por país, correspondendo 
a 73% dos países do mundo e abrangendo de 7% a 8% de todos os 
idiomas falados (Figura 4).
A diversidade linguística é distribuída da seguinte forma pelos 
continentes: 32% na Ásia, 30% na África, 19% na região do Pacífico, 
15% na América e 3% na Europa (Maffi, 1998). No entanto, apenas 
300 idiomas são significativos em termos de proporção de falantes. Por 
exemplo, o chinês, o inglês, o espanhol, o árabe e o hindi, entre os mais 
importantes, são falados por 95% da população mundial (Harmon, 
1995). Em contraste, 51% a 53% dos idiomas (3.406) são falados por 
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comunidades de menos de 10 mil habitantes (aproximadamente 10 
milhões de pessoas), proporção que representa 0,2% da população 
mundial. Assim, as minorias sociais, que incluem as comunidades 
indígenas, falam línguas que estão em perigo de extinção.
Figura 4: Número de línguas em relação com o número de falantes de cada língua
Fonte: Gordon (2005) 
O ato de mudar uma língua tradicional para falar uma língua domi-
nante constitui o maior processo de extinção da diversidade linguística 
(Harmon, 1995; Maffi, 1998; 1999). A homogeneização linguística causou 
a perda de 15% das línguas no século XVI (Bernard, 1992). A aceleração 
desse processo pode resultar na perda de 90% dos idiomas no decorrer 
deste século. Especialistas estimam que entre 6% e 11% de todos os idiomas 
podem ser considerados ameaçados de extinção (Krauss, 1992).
A padronização linguística obtida pelo uso das línguas oficiais é 
mais bem entendida quando se considera um idioma como instrumen-
to importante nas relações de poder, e não apenas como uma fonte 
Número de habitantes por língua
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de comunicação (Bourdieu, 1982; Bourdieu; Wacquant, 1995). A 
assimilação linguística está associada à conquista, ao colonialismo, ao 
neocolonialismo e à difusão da religião. Hoje, as relações entre as cida-
des se intensificam baseadas em algumas línguas ou, como na maioria 
dos casos, em uma só, embora os estados soberanos sejam considerados 
multilíngues. Isso confere um poder adicional, já que as instituições 
sociais reforçam o status e a inf luência dos idiomas padronizados. 
Atual mente, a maioria dos países do mundo usa o inglês, o francês ou 
o espanhol, e cada vez mais pessoas usam o chinês mandarim e o hindi 
como língua franca, ou como idiomas oficiais. A tendência recente no 
que se refere à diversidade linguística é a inequidade, a desigualdade 
e a instabilidade (Williams, 1994).
Quatro são os padrões mais aparentes e notáveis identificados no 
processo de diversificação linguística: (1) os países considerados me-
gadiversos linguisticamente (nove no total) concentram pelo menos 
metade das línguas do mundo; (2) esses países estão localizados no 
cinturão intertropical e abrangem três das zonas agroecológicas mais 
vulneráveis à degradação ambiental: o trópico úmido, as zonas quen-
tes semidesérticas e as regiões altas, secas e frias; (3) cerca de 0,2% 
da população mundial (menos de 10 milhões de pessoas) concentra 
mais de 50% da diversidade linguística do planeta; (4) muitas lín-
guas endêmicas, ameaçadas de extinção, encontram-se nesses hotspots 
linguísticos e em áreas rurais habitadas por comunidades indígenas 
(Barrera-Bassols, 2003).
Os centros de origem de plantas e animais domesticados 
(agrobiodiversidade) 
A manipulação dos genomas de plantas e animais, visando favore-
cer organismos que seriam úteis para a espécie humana, foi um evento 
que mudou o curso não só da humanidade, mas também de todo o 
universo natural. A criação de mais de mil novas espécies (e dezenas de 
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milhares de variedades e raças) por meio dos processos de domesticação 
constituiu um salto qualitativo na evolução humana, que também levou 
a um novo contingente de organismos que se somou, e não substituiu, 
às espécies e variedades silvestres. Esse processo de domesticação, que 
abrangeu milhares de espécies de plantas e centenas de animais, ocorreu 
em áreas bem definidas do planeta e foi o resultado de uma série de 
fatores biológicos, ecológicos, sociais e culturais.
A partir da análise das principais coleções botânicas, de uma ampla 
revisão da literatura e de um intenso trabalho de campo ao redor do 
mundo, o geneticista-biólogo russo Vavilov (1926) identificou vários 
centros geográficos de dispersão das plantas cultivadas e, assim, iniciou 
a localização dos processos de domesticação no planeta, classificada 
em oito regiões:
1. China: as regiões montanhosas centrais e ocidentais do norte 
e suas terras baixas adjacentes. A primeira evidência da criação do 
milheto rabo-de-raposa foi reconhecida no norte da China há 7 ou 8 
mil anos (Gadgil, 1995). Outras culturas, como a soja, também são 
consideradas originárias dessa área (Boyden, 1992).
2. Índia: a região do Himalaia (Nepal e Birmânia) e a região 
indo-malaia, incluindo Indochina, Malásia e Indonésia. O arroz, o 
chá, a banana e o inhame, assim como o boi zebu, o porco, o frango 
e o búfalo, são considerados originários dessa ampla e complexa área 
ecogeográfica (Boyden, 1992).
3. Ásia central: noroeste da Índia, Paquistão, Afeganistão, Tadji-
quistão, Uzbequistão e as montanhas de Tianshan. A alfafa, o milheto, 
o cânhamo, assim como o camelo-bactriano e os iaques são nativos 
dessa área (Boyden, 1992).
4. Oriente Próximo: Iraque, Irã, Turquia, Síria e Jordânia. As 
primeiras evidências de agricultura baseada no cultivo de sementes 
(trigo e cevada), assim como da domesticação de cabras, ovelhas e 
gado bovino, encontram-se situadas em uma ampla área conhecida 
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como crescente fértil, localizada nos planaltos que margeiam os vales 
dos rios Tigre e Eufrates (Baker, 1970; Heiser, 1973; Reed, 1977). A 
origem da agricultura nessa área é a mais antiga, estimada em 9 mil 
anos (Harlan, 1992).
5. Região mediterrânea: o anel costeiro e as áreas adjacentes. A 
cevada, o centeio, as uvas e as azeitonas, assim como o ganso, o gado 
bovino e suíno, são considerados originários dessa área (Boyden, 1992). 
Estima-se que o arado começou a ser utilizado na Europa entre 4 e 5 
mil anos atrás. Em algumas regiões, essa técnica foi empregada nos 
campos por volta da época do império romano (Gadgil, 1995).
6. Etiópia: incluindo a Eritreia e a Somália. Boyden (1992) reco-
nhece que o café, o milheto, o sorgo e o gergelim são nativos dessa 
área. Harlan (1992) identificou outros cereais que se espalharam para 
fora dessa área,

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