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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/338095301 A MEMORIA BIOCULTURAL Book · December 2019 CITATIONS 0 READS 97 2 authors: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Diagnóstico del uso de las aves canoras y de ornato en México/ View project 2050: THE KEY YEAR TO THE CIVILIIZATORY TRANSFORMATION View project Víctor M. Toledo Universidad Nacional Autónoma de México 141 PUBLICATIONS 4,971 CITATIONS SEE PROFILE Narciso Barrera-Bassols University of Twente 51 PUBLICATIONS 1,199 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Narciso Barrera-Bassols on 21 December 2019. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/338095301_A_MEMORIA_BIOCULTURAL?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/publication/338095301_A_MEMORIA_BIOCULTURAL?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Diagnostico-del-uso-de-las-aves-canoras-y-de-ornato-en-Mexico?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/2050-THE-KEY-YEAR-TO-THE-CIVILIIZATORY-TRANSFORMATION?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Victor_Toledo9?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Victor_Toledo9?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/Universidad_Nacional_Autonoma_de_Mexico?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Victor_Toledo9?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Narciso_Barrera-Bassols?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Narciso_Barrera-Bassols?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/University_of_Twente?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Narciso_Barrera-Bassols?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Narciso_Barrera-Bassols?enrichId=rgreq-24b49b02e656a79dec7d76003615016c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMzODA5NTMwMTtBUzo4Mzg0MTU2Mzc1NTcyNDhAMTU3NjkwNTI3MzMzMQ%3D%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf A MEMÓRIA BIOCULTUR AL A importância ecológica das sabedorias tradicionais memoria.indd 1 08/04/2015 10:04:51 memoria.indd 2 08/04/2015 10:04:51 VÍCTOR M. TOLEDO NARCISO BARRERA-BASSOLS A MEMÓRIA BIOCULTUR AL A importância ecológica das sabedorias tradicionais 1ª edição EDITORA EXPRESSÃO POPULAR AS-PTA São Paulo • 2015 memoria.indd 3 08/04/2015 10:04:51 © 2015 AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia Copyright © Editora Expressão Popular Coordenação editorial: Paulo Petersen Tradução: Rosa L. Peralta Revisão: Maria Elaine Andreoti Revisão Técnica da Tradução: Paulo Petersen Projeto gráfi co e diagramação: ZAP Design Impressão e acabamento: Cromosete APOIOS: Instituto Federal do Pará - Campus Castanhal Rod. BR 316, Km 62 - Castanhal-PA CEP 68740-970 Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) Departamento de Fitossanidade da UFRGS Av. Bento Gonçalves, 7712, Porto Alegre-RS CEP 91540-000 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 1a edição: abril de 2015 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR Rua Abolição, 201 – Bela Vista CEP 01319-010 – São Paulo – SP Fone: (11) 3522-7516 / 3105-9500 editora.expressaopopular.com.br livraria@expressaopopular.com.br www.facebook.com/ed.expressaopopular AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia Rua das Palmeiras 90, Botafogo CEP 22270-070 - Rio de Janeiro-RJ Fone: (21) 2253-8317 www.aspta.org.br https://www.facebook.com/asptaagroecologia memoria.indd 4 08/04/2015 10:04:51 SUMÁRIO Agradecimentos ..................................................................... 9 Agroecologia: um antídoto contra a amnésia biocultural ............................................................. 11 Paulo Petersen Prólogo da versão brasileira .................................................. 17 Introdução ............................................................................... 23 I. O que é memória biocultural? .......................................... 27 II. O teatro da memória: cenários e atores ......................... 43 III. Os conhecimentos tradicionais: a essência da memória ............................................................................. 85 IV. O que são as sabedorias tradicionais? Uma abordagem etnoecológica ............................................ 129 V. Agroecologia e sabedorias tradicionais: um panorama mundial ......................................................... 149 VI. Globalização, memória biocultural e agroecologia ............................................................................ 233 AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia Rua das Palmeiras 90, Botafogo CEP 22270-070 - Rio de Janeiro-RJ Fone: (21) 2253-8317 www.aspta.org.br https://www.facebook.com/asptaagroecologia memoria.indd 5 08/04/2015 10:04:51 memoria.indd 6 08/04/2015 10:04:51 Onde está o conhecimento que perdemos com a informação? Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? T. S. Eliot Uma inteligência incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário fica cega, inconciente e irresponsável. Edgar Morin Tudo aquilo que se faz destruindo a tradição acaba se incendiando. Xamã Purépecha memoria.indd 7 08/04/2015 10:04:52 memoria.indd 8 08/04/2015 10:04:52 AGR ADECIMENTOS O livro que o leitor tem em mãos é o resultado de pesquisas pessoais conduzidas pelos autores por várias décadas e de reflexões e análises conjuntas desenvolvidas durante cinco anos, incluindo alunos de dois cursos. Sua elaboração contou com a valiosa colaboração de Pablo Alarcón-Chaires e de Carolina Pinilla. Ao primeiro, devemos a maior parte de ilustrações, gráficos e tabelas, bem como agradecemos pelas pesquisas pontuais de informação, revisão do manuscrito e assessoria técnica diversa.À segunda, apreciamos sua ajuda inestimável na pes- quisa, tradução e redação dos textos. Os autores também agradecem a Pedro Urquijo por sua colaboração, assessoria e, especialmente, pela criteriosa revisão da última versão do manuscrito. Agradecemos enor- memente a Manuel González de Molina por seu apoio e paciência que tornaram possível esta obra. O segundo autor deseja expressar seu agra- decimento pelo apoio financeiro recebido através do projeto PAPIIT IN306803-6 Saberes locais e o manejo da diversidade ecogeográfica em áreas rurais de tradição indígena. Finalmente, os autores agradecem o apoio institucional da Universidade Nacional Autônoma do México. memoria.indd 9 08/04/2015 10:04:52 memoria.indd 10 08/04/2015 10:04:52 AGROECOLOGIA: UM ANTÍDOTO CONTR A A A MNÉSIA BIOCULTUR AL Paulo Petersen* Amnésia biocultural, uma bela definição dos autores deste livro para descrever um dos efeitos mais perniciosos da modernização agrícola, um projeto político-ideológico imposto a partir da segunda metade do século XX com a promessa de levar o progresso e o desenvolvimento ao mundo rural e libertar a humanidade em definitivo do flagelo da fome. Nos marcos desse projeto, o desenvolvimento da agricultura é con- cebido como resultado imediato da incorporação de tecnologias capazes de superar o atraso do meio rural em relação às atividades urbano- -industriais. Trata-se da imposição de uma racionalidade econômica centrada no lucro, na produção em escala, na especialização funcional, no individualismo e na competição, rotulando como atrasadas todas as visões e vivências incongruentes com o paradigma agrícola moderno. Diante do contexto político-institucional moldado segundo os preceitos da modernização, as especificidades locais, conferidas pelo caráter peculiar dos ecossistemas e das culturas rurais, deixam de fun- cionar como centro gravitacional das dinâmicas de inovação técnica e social. A noção de arte da localidade, que bem descrevia a Agronomia * Coordenador Executivo da AS-PTA e membro da Diretoria da ABA-Agroecologia. memoria.indd 11 08/04/2015 10:04:52 12 P a u l o P e t e r s e n clássica, perde sentido com a emergência da racionalidade tecnocrática e generalista. Desde então, parâmetros técnicos e econômicos prescritos pelas modernas ciências agrárias passaram a determinar as rotinas de trabalho na agricultura pela via dos mercados. Um verdadeiro memoricídio cultural se processou em decorrência dessa ruptura histórica que tornou irrelevante a produção local de conhecimentos, bem como a sua transmissão entre as gerações de agricultores. No entanto, embora essa racionalidade procure se impor ao eliminar os espaços de manobra para o exercício da criatividade e da espontaneidade dos atores locais, sua implantação não se fez sem que diferentes formas de resistência e de recriação cultural fossem ativadas. Onde se pretendeu incutir uniformização crescente e irre- versível, assistimos novas expressões de diferenciação cultural e novas formas de organização do trabalho e da vida social. Povos indígenas e comunidades tradicionais lutam por seus territórios ancestrais de pleno direito e constroem suas próprias formas de integração com o conjunto da sociedade nacional. Comunidades camponesas se reinven- tam para assegurar e ampliar suas margens de autonomia em relação ao ordenamento empresarial imposto pelo agronegócio. Entre outros pontos comuns, tais povos e comunidades enfrentam os novos desafios colocados pela modernização, ativando suas memórias coletivas para definir estratégias inovadoras em defesa de seus meios e modos de vida. Interpretadas pelo prisma hegemônico da teoria da modernização, essas resistências locais são consideradas arcaicas e irracionais, colocando- -se, portanto, como obstáculos ao desenvolvimento a serem removidos. Ao enxergar irracionalidade onde existem outras racionalidades, os arautos da modernização reproduzem o que sociólogo Boaventura Sousa Santos denominou de razão indolente,* uma forma de apreensão do mundo * SOUSA SANTOS, B. A crítica da razão indolente; contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2005. memoria.indd 12 08/04/2015 10:04:52 13 A g r o e c o l o g i a : u m a n t í d o t o c o n t r a a a m n é s i a b i o c u l t u r a l insensível às ricas e diversificadas experiências sociais que milenarmente alimentaram (e ainda alimentam) a heterogênese das agriculturas no planeta. Para Boaventura, a razão indolente comprime o presente e expande o futuro, ou seja, estreita o campo de visão sobre as realidades contem- porâneas e projeta um futuro longínquo previamente determinado por leis de funcionamento da natureza e da sociedade sistematizadas a partir dos paradigmas científicos dominantes. Segundo essa concepção, o fu- turo deixa de ser entendido como uma construção social ancorada nos horizontes de possibilidades criados no passado e no presente. Por outro lado, as ações do presente passam a ser disciplinadas por projetos que se impõem a partir de um restrito conjunto de parâmetros que delimitam trajetórias lineares em direção a um futuro teoricamente preestabelecido. Essa perspectiva positivista da História que encontra sua síntese na noção de modernização agrícola funcionou como alavanca ideológica para legitimar novos mecanismos de coesão social no mundo rural. Com isso, cria-se uma miragem de um futuro supostamente virtuoso, que depende mais da ciência e menos das memórias e identidades co- letivas. Dessa forma, na orientação do devir histórico, a racionalidade dos meios técnico-científicos se sobrepõe à racionalidade dos fins subjacentes aos projetos de sociedade. A partir dessa inversão entre fins e meios, fenômeno que Max Weber denominou racionalização, a tecnociência assume papel preponderante como força social na con- formação do futuro. Em face da crescente interdependência estabelecida entre as ciên- cias agrárias e os mercados, bem como do progressivo controle da ciência institucionalizada por corporações transnacionais, essa força social passou a ser orientada por uma perspectiva econômica restrita ao objetivo de produzir mais-valia em escalas crescentes e ilimitadas. Dessa forma, a busca do lucro por um número cada vez mais reduzi- do de empresas passou a operar como um dos principais motores da História da agricultura. memoria.indd 13 08/04/2015 10:04:52 14 P a u l o P e t e r s e n Nessa nova gramática do tempo,* as memórias bioculturais tornam- -se elementos supérf luos e descartáveis, enquanto a modernização agrícola se mostra um experimento duplamente descontrolado. De um lado, porque suas promessas não se confirmaram. Ao contrário, a imposição de um padrão metabólico que desconectou os sistemas agroalimentares da natureza e das culturas regionais desencadeou verdadeiras tragédias sociais e ecológicas. Por outro lado, o descontrole se verifica na ausência de mecanismos de regulação institucional que impeçam o crescente controle dos sistemas agroalimentares por um número limitado de empresas que se movem globalmente e à revelia dos interesses da sociedade, impondo-se como verdadeiros impérios alimentares.** As bases culturais e ecológicas que permitiram que a civilização chegasse ao estágio atual vêm sendo dilaceradas, gerando um perigoso aumento da vulnerabilidade das modernas sociedades. Reconstruir essas bases é uma condição urgente para a superação da crise de civi- lização que ameaça o futuro da espécie. Produzir antídotos contra a amnésia biocultural é, portanto, um elemento chave para a construção de um paradigma alternativo que permita criar atalhos para a saída da crise. Utilizando a imagem em- pregada por Sousa Santos, trata-se, antes de tudo, de dilatar o presente por meio do reconhecimento e da revalorização das experiências sociais desenvolvidas a partir da coprodução natureza-cultura. Essas experi- ências vêm sendo literalmente desperdiçadas como fontes de sabedoriae inspiração para a superação dos críticos impasses civilizacionais. Este livro deixa claro que os povos indígenas e as comunidades camponesas do mundo são os principais guardiões da memória biocul- * SOUSA SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. ** PLOEG, J. D van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008. memoria.indd 14 08/04/2015 10:04:52 15 A g r o e c o l o g i a : u m a n t í d o t o c o n t r a a a m n é s i a b i o c u l t u r a l tural de nossa espécie. Baseados na síntese de pesquisas realizadas em diferentes campos disciplinares e em várias regiões do planeta, Víctor Toledo e Narciso Barrera-Bassols apresentam evidências inequívocas de que a reconexão entre a agricultura e a natureza só será possível por meio de dinâmicas coevolutivas fundadas no que eles definem como o axioma biocultural, que pressupõe que a diversidade biológica e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em contextos geográficos definidos. A agricultura camponesa é a principal força social que molda dialeticamente essas construções bioculturais. Sempre que operando com margens de liberdade suficientes para reproduzir seus modos de produção e de vida, o campesinato estabelece metabolismos socioeco- lógicos de elevada sustentabilidade e resiliência, uma vez que seus arranjos técnico-institucionais se baseiam em um conjunto de princí- pios comuns ao funcionamento da natureza: a diversidade; a natureza cíclica dos processos; a flexibilidade adaptativa; a interdependência; e os vínculos associativos e de cooperação. Esses princípios inscritos nas memórias bioculturais são vetores que impulsionam as trajetórias da inovação camponesa. Essa é a razão pela qual os autores ressaltam a importância das sabedorias tradicionais como elos entre o passado, o presente e o futuro da Humanidade. Defender as memórias e cultivar as sabedorias são tarefas urgentes que cobram um enfoque científico pautado por uma epistemologia fundada no diálogo de saberes: a Agroecologia. memoria.indd 15 08/04/2015 10:04:52 memoria.indd 16 08/04/2015 10:04:52 PRÓLOGO DA V ERSÃO BR ASILEIR A O mundo de hoje, globalizado, tecnocrático, pragmático e ver- tiginoso, sofre de uma sequência acumulada de crises cada vez mais agudas que, no fundo, são a expressão de uma crise geral ou estrutural, uma crise de civilização. O principal problema é a tendência a viver sob a tirania de um presente estendido, quase sempre mantido pelas expectativas de seu próprio futuro. Um futuro que nunca chega e que não permite vislumbrar outros futuros, os daqueles que procuram se soltar das rédeas dessa perversa modernidade com seus próprios projetos de vida. Assim, a sociedade moderna padece de amnésia, um traço que se faz mais evidente entre os setores urbanos e industriais mais sofisticados, os quais tendem a perder a sua capacidade de recordar. O primeiro sinal de esquecimento é o fato de os indivíduos modernos já não admitirem que são membros de apenas mais uma espécie biológica no planeta. Ignoram, portanto, que existiram e que existem outras formas de se relacionar com a natureza – ou com o que não é humano –, assim como há diversas maneiras de se orga- nizar como coletivos sociais a partir de outros sistemas de valores, de outro ethos. Igualmente desconhecem que as sociedades humanas conseguiram persistir ao longo do tempo ao estabelecer uma certa aliança com a natureza – ou, poderíamos dizer, com as naturezas –, memoria.indd 17 08/04/2015 10:04:52 18 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s através de um processo recíproco, de um fenômeno de coevolução. Hoje, a sociedade moderna ou, mais precisamente, o modelo social dominante se restringe a imitar ou a reproduzir uma única forma de observar, conhecer e conviver com o mundo, isto é, com os demais seres vivos (e não vivos), assim como com os processos ecológicos, locais, regionais e globais do planeta, que é o nosso habitat. Esse modelo hegemônico repousa sobre uma ideia de subjugar os não humanos (o chamado mundo natural), visão que, de certa forma, corresponde às formas de dominação que subsistem no interior da própria sociedade contemporânea. A mensagem central de nosso livro é mostrar a cegueira da mo- dernidade e a sua incapacidade de recordar, o que, consequentemente, torna necessário volver o olhar para os povos originários, tradicionais ou indígenas, em cujos modos de vida – materiais e imateriais – é possível encontrar a memória da espécie. E é nessa memória que está boa parte das chaves para decifrar, compreender e superar a crise dessa modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas. A memória permite que os indivíduos lembrem de eventos do passado, ajuda a compreender o presente, fornece elementos para o planejamento do futuro e serve para reconstituir eventos similares ocorridos anteriormente e até mesmo inesperados, improváveis ou surpreendentes. Os indivíduos, as sociedades e a espécie humana pos- suem, cada um, a sua própria memória. A memória da espécie permite revelar as relações que a humanidade tem estabelecido com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua própria existência, ao longo da história, que remonta a uns 200 mil anos. A memória da espécie humana é, pelo menos, tripla: genética, linguística e cognitiva, e se expressa na variedade de genes, línguas e saberes. As memórias genética e linguística guardam o registro da memoria.indd 18 08/04/2015 10:04:52 19 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l expansão dos seres humanos pelos diferentes hábitats do planeta, um processo de colonização de territórios que levou várias dezenas de milhares de anos. A memória cognitiva, a menos explorada, revela as maneiras como as sociedades humanas foram se adaptando a cada uma das condições desses hábitats. Essa memória é biocultural e vem sendo mantida pelos 7.000 povos tradicionais, indígenas ou originários que hoje existem, subsistem e persistem. Nosso livro fala de tudo isso, com base na síntese de inúmeros estudos, além de abordar aspectos culturais, sociais, ambientais, po- líticos e epistemológicos (como a construção e o avanço de uma nova transdisplina: a Etnoecologia). A publicação de uma edição brasileira de nossa obra nos causa enorme satisfação não apenas porque o Brasil se encontra entre os dez países com maior riqueza biocultural do planeta, mas porque nas universidades brasileiras existem núcleos acadêmicos cada vez mais numerosos e produtivos dedicados a estudar os povos tradicionais, ao ponto de ser o país que hoje abriga o maior número de pesquisadores trabalhando nos campos da Etnoecologia, da Etnobio- logia e da Etnoedafologia. Além disso, nesse gigantesco território, que abrange a metade da América do Sul, os povos indígenas ocupam, em conjunto, um território equivalente à metade da superfície mexicana, com cerca de 100 milhões de hectares, embora representem apenas 0,5% (isto é, quase um milhão de pessoas) da população total do país. Destaca-se que os territórios históricos desses povos indígenas e comunidades tradicionais são os ecossistemas antropizados nos quais se localizam as áreas ambientalmente mais conservadas do país, razão pela qual muitas delas vêm sendo destinadas a criação de unidades de conservação ambiental em detrimento dos direitos territoriais daqueles que por gerações souberam reproduzir seus meios de vida em harmonia com a natureza. Enquanto isso, a dinâmica expansiva do agronegócio degrada os ecossistemas, reproduzindo um padrão de ocupação agrária de terras sem gente e gente sem terra. memoria.indd 19 08/04/2015 10:04:52 20 V í c t o r M . To l e d o e N a r ci s o B a r r e r a - B a s s o l s Cumpre também ressaltar o importante papel desempenhado pe- las novas culturas resultantes da mestiçagem entre povos originários, descendentes de europeus e população de ascendência africana. Essa nova onda de recriação cultural, que torna o Brasil particularmente diverso, faz com que o estudo da memória biocultural se estenda para além dos povos indígenas, incluindo outros grupos, como os seringueiros, camponeses, caboclos, caiçaras, pantaneiros, quilombolas e pescadores artesanais. Outro novo paradigma pelo qual o Brasil ganha destaque é o que estabelece que a conservação da biodiversidade deve se realizar em plena sintonia e com a participação das comunidades locais, pertencentes a diversas culturas. Com uma biota estimada entre 1,4 e 2,4 milhões de espécies, o Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo, possuindo também uma das mais vastas redes de reservas naturais. Ao contrário do que se supõe, a metade das mais de 900 áreas protegidas no Brasil é de proteção integral, enquanto a outra metade é destinada ao uso ou aproveitamento sustentável. Em outras palavras, encontram-se historicamente habita- das, e as populações locais participam da conservação mediante o uso não destrutivo dos recursos bióticos. As áreas estritamente protegidas (parques nacionais, reservas biológicas, estações ecológicas, refúgios de vida silvestre etc.) totalizam 37 milhões de hectares, enquanto que as reservas de uso sustentável abrangem um total de 74,6 milhões de hectares, principalmente reservas extrativas e áreas de proteção am- biental, ou seja, quase dois terços do território protegido. Há ainda uma última dimensão da realidade brasileira com a qual o conteúdo deste livro se relaciona: o tema agrário. O Brasil é um dos países com maior desigualdade agrária do mundo. Enquanto 76% das terras agrícolas estão nas mãos do setor latifundiário, que produz alimentos e outras matérias-primas sob o modelo agroindustrial, a superfície restante (24%) cabe a 84% dos proprietários rurais: os agricultores familiares que se dedicam essencialmente a produzir alimentos. O paradoxo revelado memoria.indd 20 08/04/2015 10:04:52 21 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l recentemente, não apenas no Brasil, mas também no resto do mundo, é que os pequenos agricultores, isto é, os camponeses e agricultores familiares, geram 70% dos alimentos que são consumidos por uma população de 7,3 bilhões de indivíduos. Esse fato levou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) a declarar 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. O reconhecimento, o resgate e a revalorização das sabedorias tradicionais, tema central de nosso livro, tornam-se fundamentais no desenho agroecológico de modelos de produção de alimentos sadios, de pequena escala, que não sejam prejudiciais à saúde do planeta e dos seres humanos. No Brasil, há uma enorme sede de justiça agrária. No entanto, o futuro do campo exige não só uma melhor distribuição da propriedade da terra, mas também uma reconversão agrícola, tudo isso tendo como fundamento o reconhecimento da memória biocultural de seus povos indígenas, assim como de suas culturas tradicionais. O trabalho realizado por um número crescente de pesquisadores, técnicos, comunidades, organizações sociais, ONGs e órgãos gover- namentais tem aberto um campo fértil para a transição agroecológica no Brasil e em outras partes do planeta. Nesse processo, a emergência política de povos e comunidades tradicionais nos âmbitos urbano e rural abre caminhos para o pleno reconhecimento da estratégica importância das práticas de manutenção, revalorização e adaptação híbrida contidas na memória biocultural desses e outros atores políticos. Certamente surgem tensões neste percurso de querer demonstrar a vigência de outros modos de habitar o planeta e de suas epistemologias até hoje subjugadas. No entanto, não restam dúvidas de que o trabalho para dar visibilidade à íntima relação existente entre a memória biocul- tural e a Agroecologia de nossos países latino-americanos teve como base o pioneirismo de nossos colegas e irmãos e irmãs brasileiras que nos têm ajudado a ampliar nossas esperanças, construindo de forma participativa e inclusiva outros mundos possíveis. memoria.indd 21 08/04/2015 10:04:52 Nessa empreitada, não podemos deixar de manifestar a nossa profunda gratidão a José A. Costabeber (que descanse em paz), um dos pilares do pensamento agroecológico brasileiro, desejando que a tradução desta obra se torne uma pequena homenagem a seu enorme legado. Também expressamos nosso profundo agradecimento a Paulo Petersen, a Romier Sousa e à editora Expressão Popular por suas valio- sas contribuições para que este livro fosse traduzido para o português. Dessa forma, nosso maior desejo é continuar ampliando o Sul a partir do nosso próprio Sul. Víctor M. Toledo Morelia, Michoacán, México Narciso Barrera-Bassols Santiago de Querétaro, Querétaro, México Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, U. P. de; CHAVES-ALVES, A. G.; ARAÚJO, T. A. S. (Eds). Povos e paisagens: etnobiologia, etnoecologia e biodiversidades no Brasil. Recife: NUPEEA/UFRPE, 2007. 148 p. LEWINSOHN, TY. M.; PRADO, P. I. How many species are there in Brazil? Conservation Biology, v. 19, p. 619-624. 2005. RYLANDS, A. B.; BRANDON, K. Brazilian protected areas. Conservation Biology, v. 19, p. 612-618, 2005. TOLEDO, V. M. 2001. Biodiversity and indigenous peoples. In: LEVIN, S. et al. (Eds.). Encyclopedia of Biodiversity. EUA: Academic Press. p. 1181-1197. TOLEDO, V. M.; BARRERA-BASSOLS, N. A etnoecologia: uma ciência pós- -normal que estuda as sabedorias tradicionais. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 20, p. 7-27, 2009. memoria.indd 22 08/04/2015 10:04:52 INTRODUÇÃO A memória permite que os indivíduos se lembrem de eventos do passado. Assim como os indivíduos, as sociedades têm uma memória coletiva, uma memória social. Em ambos os casos, a capacidade de lembrar é fundamental porque ajuda a compreender o presente e, portanto, fornece elementos para o planejamento do futuro, bem como serve para reconstituir eventos semelhantes que ocorreram an- teriormente e até mesmo eventos inesperados. Da mesma forma que os indivíduos e os povos, a espécie humana tem uma memória, que nesse caso permite revelar as relações que a humanidade tem estabelecido com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua existência ao longo da história. Embora, em teoria, todas as espécies tenham uma memória que lhes permite se manter e sobreviver no contexto em constante transformação da história natural, a espécie humana é a única que pode, de forma consciente, remontar as recordações que compõem sua própria história com a natureza. A memória da espécie humana pode ser dividida em, pelo menos, três tipos: genética, linguística e cognitiva, sendo expressa na variedade ou diversidade de genes, línguas e conhecimentos, ou sabedorias. As duas primeiras expressões de heterogeneidade do ser humano, que têm sido suficientemente documentadas por meio da pesquisa genética e memoria.indd 23 08/04/2015 10:04:52 24 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s linguística, permitem traçar a história da humanidade, situando-a em diferentes contextos espaciais, ecológicos e geográficos (Shreeve, 2006; Maffi, 2005). A terceira, muito menos explorada, sintetiza e explica essa história, ao revelar as maneiras como os diferentes segmentos da população humana foram se adaptando à grande variedade de condi- ções (especiais, concretas, específicas, dinâmicas e únicas) da Terra. As duas primeiras dimensões certificam uma história entre a hu- manidade e a natureza, enquanto a terceira oferece todos os elementos para compreender, avaliar e qualificar essa experiência histórica. Em conjunto, testemunham uma série de recordações, ou seja, configu- ramum arquivo histórico ou, em suma, uma memória. A busca pela memória de nossa espécie em todos os cantos do mundo acaba por reconhecer que, hoje, ela pode ser encontrada em meio às chamadas sociedades tradicionais e, mais especificamente, entre os povos indí- genas do mundo. Tal como acontece com muitos outros aspectos da realidade, a me- mória da espécie, resultante do encontro entre o biológico e o cultural, vem sendo seriamente ameaçada pelos fenômenos da modernidade: principalmente pelos processos técnicos e econômicos, mas também por fatores ligados à informática e ao âmbito social e político. Este livro pretende desvendar a essência, a estrutura e a dinâmica da memória (biocultural) da espécie humana, considerar seus pontos fortes e fracos, revelar a sua importância ou transcendência para o fu- turo da humanidade e identificar as várias ameaças que pairam sobre ela. Para realizar esta análise, tomamos como referência a perspectiva agroecológica, que cobra uma mudança radical na forma como os seres humanos se apropriam dos bens e serviços da natureza e propõe modos alternativos de produção, circulação, transformação e consumo dos alimentos e de outras matérias-primas necessárias para a sociedade. Tentando superar a amnésia dos sistemas agroindustriais, a agroecologia reconhece nessas linguagens de longa data, que ainda memoria.indd 24 08/04/2015 10:04:52 25 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l sobrevivem nas mentes e mãos dos membros das culturas rurais, um arsenal mnemônico de valor imensurável. Em última análise, é nessas sabedorias milenares, amplamente ignoradas, aviltadas ou mal inter- pretadas, que encontraremos as chaves para enfrentar a atual crise ecológica e social desencadeada pela revolução industrial, pela obsessão mercantilista e pelo pensamento racionalista. Diante da crise ecológica e social do mundo contemporâneo, torna-se fundamental identificar e reconhecer essa memória biocultural da espécie humana, uma vez que permite adquirir uma perspectiva histórica mais abrangente, revelar os limites e preconceitos epistemológicos, técnicos e econômicos da modernidade e visualizar soluções de escala civilizatória para os problemas atuais. memoria.indd 25 08/04/2015 10:04:52 memoria.indd 26 08/04/2015 10:04:52 I. O QUE É MEMÓRIA BIOCULTUR AL? Antes de sermos seres sociais, fomos, somos e continuaremos a ser uma espécie biológica a mais dentro do rol da diversidade natural composta por milhões de organismos, pois à nossa essência animal foi adicionada, sem substituí-la, o traço social. Nós, humanos, somos essencialmente seres sociais que continuam existindo não apenas por seus vínculos societários, mas também por seus vínculos com a natureza, uma dependência que é tão universal quanto eterna. Na perspectiva do tempo geológico, que se mede em períodos de milhões de anos, toda espécie sobrevive em função de sua capacidade de continuar a aprender com a sua experiência adquirida ao longo do tempo. Apesar de seu tamanho descomunal (o número de membros hoje se aproxima dos 7,3 bilhões), de sua linhagem excepcional (cujas principais características são o tamanho de seu cérebro e o advento de uma consciência) e de seu poder de transformar o hábitat planetário (resultado do enorme desenvolvimento de conhecimentos e tecnolo- gias), a espécie humana ainda precisa, para sobreviver e superar seus desafios atuais, de uma memória que lhe informe sobre sua passagem pelo planeta durante os últimos 200 mil anos. Se o Homo sapiens conseguiu permanecer, colonizando e expan- dindo a sua presença na Terra, é porque foi capaz de reconhecer e memoria.indd 27 08/04/2015 10:04:52 28 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s aproveitar os elementos e processos do mundo natural, um universo que encerra uma característica essencial: a diversidade. Essa habili- dade se deve à manutenção de uma memória, individual e coletiva, que conseguiu se estender pelas diferentes configurações societárias que formaram a espécie humana. Esse traço evolutivamente vanta- joso da espécie humana tem sido limitado, ignorado, esquecido ou tacitamente negado com o advento da modernidade, que constituiu uma era cada vez mais orientada pela vida instantânea e pela perda da capacidade de recordar. Identificada pela velocidade vertiginosa das mudanças técnicas, cognitivas, informáticas, sociais e culturais que impulsionam uma racionalidade econômica baseada na acumulação, centralização e concentração de riquezas, a era moderna (consumista, industrial e tecnocrática) tornou-se uma época prisioneira do presente, dominada pela amnésia, pela incapacidade de se lembrar tanto dos processos históricos imediatos quanto daqueles de médio e longo prazo. Essa deficiência está relacionada a uma ilusão alimentada por uma espécie de ideologia do progresso, do desenvolvimento e da modernização que não tolera nenhuma forma pré-moderna (e, em sentido estrito, pré-industrial), que é automaticamente qualificada como arcaica, obsoleta, primitiva e inútil. Essa avaliação ideológica, que faz da modernidade um universo autocontido, autojustificado e autodependente, volta-se contra sua própria existência ao suprimir sua capacidade de reconhecer o passado, isto é, ao abrir mão de uma consciência de espécie que é ao mesmo tempo uma consciência histó- rica baseada em uma característica que vai além do fenômeno humano e alcança todas as dimensões da realidade do planeta: a diversidade. A diversificação como processo evolutivo Diversificar é o ato de dar forma ou conferir qualidades a certos elementos, para aumentar a variedade de uma determinada realidade. memoria.indd 28 08/04/2015 10:04:53 29 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l A diversidade exalta a variedade, a heterogeneidade e a multiplicidade, sendo o oposto de uniformidade. Do ponto de vista termodinâmico, a ordem, que é a complexidade que existe no universo, aumenta propor- cionalmente a diversidade, um princípio expresso na chamada teoria da informação. Por essa razão, a evolução cósmica postula que a variedade aumenta à medida que a ordem aumenta. A história da Terra tem sido, em geral, uma história bastante longa de diversificação, e esse processo tem se produzido em diferentes escalas, ritmos e períodos de tempo. Portanto, a partir de uma perspectiva de longo prazo (escala geológica de tempo), a diversificação é sinônimo de evolução. Atualmente, é possível identificar no planeta dois tipos principais de diversidade, a biológica e a cultural, as quais, juntas, dão origem a pelo menos outros dois tipos: a diversidade agrícola e a diversidade paisagística. A diversidade cultural inclui, por sua vez, três modali- dades de heterogeneidade: a genética, a linguística e a cognitiva (ver mais adiante); enquanto que a biológica é frequentemente expressa em quatro níveis: das paisagens (naturais), dos hábitats, das espécies e dos genomas. A primeira onda: a diversificação biológica A origem dos seres vivos na Terra remonta a aproximadamente 3,5 bilhões de anos (data dos registros mais antigos de fósseis de bactérias). Desde então, os organismos vivos têm experimentado vários períodos de condições adversas. Na verdade, uma das características mais representati- vas da história do planeta tem sido a ocorrência periódica de fenômenos de extinção em massa. Ao longo do tempo geológico, houve pelo menos cinco eventos desse tipo, em que uma grande proporção das espécies existentes foi extinta. Existem evidências científicas de que o último grande fenômeno de extinção ocorreu no período Paleoceno, há 54 milhões de anos. A partir desse evento, ocorreu um processo de diversificação de organismos em todo o planeta, o que produziu uma série de relações memoria.indd 29 08/04/2015 10:04:53 30 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s intra e interespecíficas e, consequentemente, gerou uma granderiqueza biológica mensurada em número de espécies. Durante esse tempo, várias linhas de evolução de organismos vivos foram bem-sucedidas em seus processos de diversificação (especiação), dando origem ao que hoje conhecemos como diversidade biológica. A biodiversidade é um conceito muito amplo que se refere à va- riedade de paisagens, tipos de vegetação, espécies e genes. Portanto, a manutenção e a conservação da diversidade biológica exigem esforços em cada um desses níveis. Enquanto o primeiro nível está focado na preservação do conjunto das paisagens, o segundo centra-se na prote- ção dos hábitats em que vivem as populações. No nível das espécies, a maior parte do que se sabe sobre a diversidade refere-se às plantas superiores e aos animais vertebrados (mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes). A riqueza e a diversidade de plantas inferiores e invertebrados (que incluem os insetos e moluscos) são ainda bastante desconhecidas, motivo pelo qual continuam sendo feitos inventários desses grupos de organismos. Embora a diversidade biológica seja constituída de plantas e animais silvestres, torna-se fundamental reconhecer o papel desempenhado pelos organismos domesticados, uma vez que estes configuram a contribuição do homem para a diversidade natural. Fi- nalmente, o objetivo do quarto nível da biodiversidade está centrado na conservação da variabilidade genética de organismos silvestres, bem como de espécies vegetais e animais domesticadas. A segunda onda: a diversificação do ser humano A colonização do planeta pelos seres humanos tem sido um dos processos de diversificação mais notáveis da história natural, apesar de sua brevidade na escala geológica de tempo. Na genética e na lin- guagem dos diferentes grupos que hoje compõem o gênero humano, encontram-se impressas pegadas do passado e, a partir de sua leitura, interpretação e análise comparativa, é possível verificar fenômenos, memoria.indd 30 08/04/2015 10:04:53 31 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l como a trajetória seguida pela espécie desde suas origens no Vale do Rift, na África. Essa interpretação histórica, por sua vez, explica a variedade do humano. De fato, as pesquisas genéticas e linguísticas, apoiadas por estudos paleontológicos e de outras disciplinas, indicam que os seres humanos descendem de grupos hominídeos que surgiram na África há cerca de 200 mil anos. O Homo sapiens moderno descende de uma pequena população da África Oriental, cuja expansão pelo resto do continente começou há cerca de 100 mil anos. Posteriormente (40 a 60 mil anos mais tarde), partindo dessa mesma região, um pequeno grupo adentrou a Ásia e começou a segunda e mais rápida expansão, provavelmente, em duas direções. A primeira se deu ao longo da costa sul da Ásia oriental e da Oceania ocidental. O segundo movimento de migração foi em direção ao centro da Ásia, a partir de onde irradiou-se uma expansão para o oeste, rumo à Europa, e outra para o oeste da Ásia e o norte da Sibéria até chegar à América. Essa cronologia tem sido confirmada tanto por evidências genéticas quanto por estudos linguísticos, de tal forma que chega a haver uma correspondência entre as árvores ou genealogias genética e linguística (Cavalli-Sforza, 2001). A partir desses processos de expansão geográfica, a espécie humana colonizou praticamente todo o planeta, e, ao se establecer nos mais diferentes hábitats, cada grupo aprendeu a usar de forma específica os recursos disponíveis em seu entorno. No entanto, é depois da origem e da expansão da agricultura e da mudança de nômades caçadores- -coletores para agricultores sedentários que a espécie humana experi- mentou uma diversificação ampla e rápida. Hoje, a diversidade cultural pode ser entendida, como já dito, por meio de três dimensões básicas: genética, linguística e cognitiva. Uma primeira expressão da diversificação humana, produto da colonização do planeta e da consequente adaptação e isolamento dos grupos humanos, encontra-se na genética da espécie. A decifração memoria.indd 31 08/04/2015 10:04:53 32 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s do código genético ou do genoma humano reconhece que cada ser humano contém entre 30 mil e 50 mil genes. O genoma dos 7,3 bilhões de seres humanos é 99,9% idêntico. No entanto, é a inter- pretação dessa pequena fração que torna cada indivíduo único. É nela que está a chave para apreciar a variedade do gênero humano e para compreender a história da espécie. Cada genoma individual é um livro de história de toda a espécie, e a interpretação e a compa- ração de genomas de diferentes grupos humanos ajudam a entender processos do passado. A análise de certos elementos dos genomas permite traçar com bastante precisão os caminhos trilhados pela espécie, partindo de suas origens na África para todos os cantos do planeta. Esse é o caso do chamado ácido desoxirribonucleico, ou ADN (mais conhecido pela sigla inglesa DNA) mitocondrial, e do cromossomo Y, que define o gênero masculino de um ser humano (Shreeve, 2006). Em ambos os casos, essas duas frações genéticas têm a qualidade de registrar e manter as alterações genéticas que vão ocorrendo ao longo do tempo, de tal modo que o seu estudo revela os traços das modificações genéticas sofridas pela inúmeras gerações de seres humanos. Assim como as populações humanas, as linguagens se diversifica- ram e evoluíram com o passar do tempo, de forma que suas semelhanças e diferenças também evidenciam as relações que se estabeleceram entre os diversos povos. Da mesma forma, as interações entre os grupos humanos ao longo do tempo têm sido avaliadas por meio de estudos da arqueologia cultural e da antropologia física. Assim, tanto as raças quanto as combinações genéticas do Homo sapiens atestam a diversidade dos seres humanos. Embora, estritamente falando, o número de línguas não seja equivalente ao de culturas, o critério linguístico pode ser usado para fazer um cálculo preliminar da diversidade cultural: quase 7 mil lín- guas (Gordon, 2005). Trata-se de uma cifra conservadora se levarmos memoria.indd 32 08/04/2015 10:04:53 33 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l em conta que, antes da expansão colonial europeia, que começou no século XV, o número de línguas chegou a 12 mil, atingindo o auge da diversificação cultural da humanidade, e considerando os fenômenos de extinção cultural na África, Ásia e América Latina. Na estrutura da diversidade cultural, tanto genética quanto linguística, operam como o núcleo, como a base sobre a qual se manifesta uma grande variedade de expressões tangíveis e intan- gíveis: crenças, conhecimentos, instrumentos e ferramentas, arte, arquitetura, roupas e uma ampla gama de alimentos que compõem as culinárias locais e regionais. As diferentes crenças religiosas, por exemplo, representam todo o espectro de elementos que o homem deifica, como montanhas, plantas, animais, fungos, mananciais, ventos, tempestades, estrelas. Assim, há divindades do amor, da beleza, da fertilidade, da fide- lidade, da sexualidade, da colheita, da aprendizagem, da sabedoria, da magia, da música, da saúde, da guerra, do infortúnio e da morte, entre outras. De todas as expressões que emanam de uma cultura, os conhe- cimentos sobre a natureza configuram uma dimensão especialmente notável, uma vez que refletem a sagacidade e a riqueza de observações sobre o entorno realizadas, guardadas, transmitidas e aperfeiçoadas no decorrer de longos períodos de tempo, sem as quais a sobrevivência dos grupos humanos não teria sido possível. Trata-se dos saberes, transmitidos oralmente de geração para geração, e especialmente dos conhecimentos imprescindíveis e cruciais, por meio dos quais a espécie humana foi moldando suas relações com a natureza. Essa dimensão cognitiva, tão antiga quanto a própria espécie, permitiu aos seres humanos não só manter uma certa relação de coexistência com a natureza, mastambém refiná-la ou aperfeiçoá-la. O produto final desse processo de refinamento ao longo do tempo encontra-se hoje nas mentes e nas mãos de homens e mulheres que memoria.indd 33 08/04/2015 10:04:53 34 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s compõem os chamados povos tradicionais, especialmente os povos indígenas. Esses conhecimentos, no entanto, estão ameaçados. Como acontece hoje com grande parte de tudo que se considera tradicional, as formas como os seres humanos têm conseguido se apropriar com sucesso dos recursos da natureza ao longo do tempo estão sujeitas a uma enorme pressão, exercida por diversos fatores e forças. A modernidade, pelo menos a que agora se expande por todos os cantos da Terra, raramente tolera outra tradição que não seja a sua, e, consequentemente, as formas modernas de uso dos recursos geralmente oprimem toda forma tradicional de manejo da natureza, incluindo os conhecimentos utilizados. Trata-se de um conflito nodal entre as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produção. É dentro desse panorama descrito que se destaca o importante trabalho de valorização realizado por esse exército de estudiosos dos conhecimentos tradicionais e, especialmente, aqueles que se dedicam a documentar, analisar e reavaliar as sabedorias pré-modernas sobre a natureza, um esforço intelectual que vai na contracorrente e tem crescido nas últimas quatro décadas. Esses estudos centraram-se na análise desse acúmulo de saberes, não científicos, que há na mente dos produtores rurais (agricultores, pastores, pescadores, pecuaristas, caçadores, coletores) e tem servido durante milênios para que a espécie humana se aproprie dos bens e serviços da natureza. A terceira onda: a criação humana de novas espécies A agricultura surgiu de forma independente em várias partes do mundo entre 10 e 12 mil anos atrás. Essa revolução neolítica, ou agrícola, gerou não só uma enorme variedade de espécies de plantas e animais domesticados (estimada entre 1,2 e 1,4 mil), mas também novas variedades e raças que, juntas, levaram a um aumento considerável da biodiversidade (apenas da batata se reco- nhecem localmente cerca de 12 mil variedades; do arroz, são cerca memoria.indd 34 08/04/2015 10:04:53 35 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l de 10 mil). Assim, os novos organismos que surgiram graças à ação humana podem ser considerados uma nova contribuição para a diversidade atual do mundo. De acordo com o trabalho do geneticista russo N. I. Vavilov (1926), é possível identificar oito centros de domesticação de plantas ao redor do mundo, os quais foram modificados por Harlan (1992), que utilizou uma série de evidências arqueológicas nos territórios de origem dos cultivos. Consequentemente, segundo sua classificação, há três zonas geográficas chamadas centros, e outras três regiões reconhecidas como não centros. Os três centros são o Oriente Próximo (Jordânia, Síria, Turquia, Iraque e Irã), a Mesoamérica (México e América Central) e o norte da China. Por sua vez, a faixa central africana, o Sudeste Asiático e a América do Sul constituem os não centros. Posteriormente, Smith (1998) incluiu um novo centro de origem de culturas na América do Norte. A grande diversidade dos sistemas agrícolas é caracterizada pelo número de espécies de cultivo, de animais domésticos, de raças e suas variedades locais e das técnicas de manejo das paisagens. A quarta onda: a criação humana de novas paisagens O último processo de diversificação ocorreu em estreita ligação com a terceira onda, quando as primeiras sociedades agrícolas modificaram os hábitats para criar zonas humanizadas ou paisagens, isto é, áreas para a produção de bens e serviços. Tal processo implicou a domesticação do espaço e veio complementar, e não substituir, os hábitats originais. Essas novas paisagens do Neolítico foram projetadas para agregar novos produtos aos obtidos pelas atividades de caça, pesca e coleta, por meio de um manejo adequado dos processos ecológicos, geomorfológicos e hidrológicos, sem afetar muito os ritmos e processos naturais. Há uma variedade de paisagens ao redor do mundo que são resul- tado da revolução agrícola e incluem modificações feitas em florestas, selvas, pradarias, desertos e semidesertos, pantanais e áreas costeiras. memoria.indd 35 08/04/2015 10:04:53 36 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s As mudanças produzidas abrangem toda uma série de alterações na estrutura, no funcionamento e na evolução dos ecossistemas. Três desenhos se destacam de forma especial em escala mundial: a agri- cultura irrigada, os terraços e as florestas manejadas como sistemas agroflorestais em regiões intertropicais. Os sistemas tradicionais de agricultura irrigada-intensiva estão situados em diversas partes do mundo, mas têm sido implementados especialmente na América tropical. Seu desenho foi concebido para modificar a topografia e o fluxo da água. Por exemplo, nas terras baixas do Golfo do México e na Península de Yucatán, há evidências de ter- raços estabelecidos nas zonas úmidas (Siemens, 1989; 1998). Sistemas semelhantes têm sido encontrados na Guatemala, Belize, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Peru (Denevan, 1982). Esses sistemas, geralmente conhecidos como campos elevados, constituem uma rede de canais e plataformas construída nas margens de lagos, rios ou planícies inundáveis. O sistema consiste na regulação da entrada de água para manter os níveis e permitir o desenvolvimento da agricultura intensiva (Siemens, 1998). No planalto andino do Lago Titicaca, no Peru e na Bolívia, um sistema hidroagrícola conhecido como Waru-waru, hoje par- cialmente reativado, antigamente cobria uma superfície de mais de 200 mil hectares. Da mesma forma, no Vale do México, seus anti- gos habitantes criaram os chinampas, que talvez sejam os sistemas hidráulicos mais sofisticados gerados sob a tecnologia tradicional. Os chinampas abrangiam cerca de 12 mil hectares e serviam, entre outras coisas, para suprir as necessidades alimentícias (milho, feijão, amaranto) de uma população estimada em mais de 228 mil pessoas (Denevan, 1982). A conversão de florestas naturais em florestas humanizadas tem sido uma prática antiga nas regiões tropicais do mundo. Tal processo envolve mudanças na composição original das florestas, a fim de criar memoria.indd 36 08/04/2015 10:04:53 37 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l jardins florestais, por meio do manejo das espécies arbóreas e da in- trodução de ervas e arbustos úteis, como as culturas comerciais (café, cacau, canela, especiarias, borracha, pimenta, baunilha). O sistema configura uma maneira de reconstruir as florestas naturais por meio do cultivo e da coexistência de plantas silvestres e cultivadas, buscando conservar as características estruturais e os processos ecológicos das florestas naturais em benefício das comunidades locais e mantendo uma certa diversidade biológica. As pesquisas sobre o assunto têm registrado a importância biológica, ecológica e produtiva desses sistemas em países como Índia, Papua Nova Guiné, Sri Lanka, Indonésia, Tanzânia, Uganda, Nigéria e México, cujas culturas locais são as que realizam sua prática e seu manejo, o que indica que são produto de práticas conduzidas ao longo do tempo. Para ilustrar, vale citar o caso dos Shambas, de Uganda, dos Kebun-Talun, de Java Ocidental, dos Pekarangan, Ladang e Pelak, de Sumatra-Indonésia, dos Kandy, do Sri Lanka, e dos Te’ lom e Kuajtikiloyan, dos Huasteca e Nahua, do México. Os terraços agrícolas, por sua vez, figuram entre os sistemas mais antigos utilizados para o manejo de processos geomorfológicos, de solos e água em paisagens de relevo escarpado e com encostas de alta declividade ao redor do mundo. Registros arqueológicos sugerem que, em várias regiões do mundo, a idade dos terraços é de 3 a 4 mil anos (Quadro 1). As paisagensformadas por terraços têm permitido e fa- cilitado o desenvolvimento de várias civilizações em cada continente. Exemplos que devemos mencionar são as regiões onde a agricultura atingiu um alto nível de desenvolvimento, como China, Índia, Japão, Coreia, Etiópia, e três regiões agrícolas-chave: o Mediterrâneo, os Andes e a Mesoamérica (Sandor, 2006). memoria.indd 37 08/04/2015 10:04:53 38 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s Quadro 1: Principais registros arqueológicos de terraços no mundo Registro da agricultura (em anos) Registro dos terraços (em anos) Características dos terraços China 8.500-11.500 3.000 Não há dados exatos sobre sua origem Japão/Coreia 3.000-7.000 2.000 Para áreas de cultivo extensi-vo de arroz Índia/Indochina 5.000-7.000 2.300-2.100 Há 3.100 anos no Paquistão Filipinas 3.400-5.000 1.400-2.000 Papua Nova Guiné 9.000 ? Bastante antigos, mas sem dados exatos sobre sua origem Polinésia 1.000-3.600 1.100 Ásia Oriental 10.000-13.000 3.000-6.000 Os terraços do Iêmen existem há aproximadamente 5.000- 6.000 anos Mediterrâneo 8.000 2.500-4.000 Há 4.000 anos na Itália e 3.700 em Creta Europa oriental 5.000-7.000 ? Europa ocidental 5.000-7.000 2.000-3.500 África do Norte 6.500 3.000 Terraços de drenagem. Há 2.450 anos na Etiópia África Subsaariana 3.000-5.000 500-600 Não há dados exatos sobre sua origem Mesoamérica 5.000-10.000 2.500-3.000 América do Sul 4.000-10.000 2.500-4.000 Não há dados exatos sobre sua origem América do Norte 3.000-5.000 1.000-3.000 Terraços para a agricultura Fonte: Sandor (2006) É possível distinguir quatro tipos principais de terraços em todo o mundo: (a) terraços em terrenos montanhosos ou íngremes que podem ter ou não canais de irrigação (região do Mediterrâneo, Himalaia, Andes, Mesoamérica); (b) terraços em zonas úmidas, como no Sudeste Asiático; (c) terraços de drenagem em zonas áridas e semiáridas; e (d) os terraços do noroeste da Europa (Sandor, 2006). memoria.indd 38 08/04/2015 10:04:53 39 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l Embora, aparentemente, os terraços constituam uma pequena fração das áreas agrícolas mundiais, eles são muito importantes em algumas regiões, do sudoeste do Colorado, nos Estados Unidos, até o noroeste da Argentina, o sudoeste dos Estados Unidos, o centro e o sul do México, Chiapas-Guatemala, regiões da Venezuela, flancos da Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, e sul do Equador até o norte do Chile e Argentina (Donkin, 1979). A diversidade biocultural A descrição feita nas seções anteriores dos principais processos de diversificação mostra as relações estreitas entre vários deles e, especificamente, entre as formas de diversidade: biológica, genética, linguística, cognitiva, agrícola e paisagística (Figura 1). Juntas, elas configuram o complexo biológico-cultural originado historicamente e que é o produto de milhares de anos de interação entre as culturas e os ambientes naturais. Figura 1: Esquema do processo geral de diversificação biocultural memoria.indd 39 08/04/2015 10:04:53 40 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s A expansão geográfica da espécie humana foi possível graças a sua capacidade de se adaptar às peculiaridades de cada hábitat do planeta e, sobretudo, pelo reconhecimento e pela apropriação adequada da diversidade biológica contida em cada uma das paisagens. Portanto, pode-se dizer que a diversificação dos seres humanos se fundamentou na diversificação biológica agrícola e paisagística. Esse processo de caráter simbiótico ou coevolutivo foi conduzido pela capacidade da mente humana para tirar proveito das particularidades e singularida- des de cada paisagem do entorno local, em função das necessidades materiais e espirituais dos diferentes grupos humanos. Esse processo biocultural de diversificação é a expressão da articula- ção e amálgama da diversidade da vida humana e não humana e represen- ta, em estrito sentido, a memória da espécie. Aparentemente, assim como ocorre com a memória dos seres humanos e outros mamíferos, em cujos cérebros a representação e a formação de lembranças se realizam através da ação coordenada de grandes populações de neurônios (Tsien, 2007), o conjunto da espécie guarda recordações de experiências passadas em grupos seletos e específicos de seres humanos culturalmente articulados. Trata-se daquelas comunidades que, como veremos, foram capazes de manter uma tradição por meio da contínua agregação de novos elementos e, com isso, conseguiram permanecer em um só lugar por longos períodos de tempo (centenas e até milhares de anos). Atualmen- te, apesar dos acentuados processos de urbanização e industrialização da produção primária (agricultura, pecuária, pesca, silvicultura etc.), ainda há grandes regiões do mundo, especialmente nas zonas tropicais, onde milhares de comunidades tradicionais continuam a realizar prá- ticas que atestam um uso prudente da biodiversidade de cada um dos ecossistemas existentes. Cada cultura local interage com seu próprio ecossistema local e com a combinação de paisagens e as respectivas biodiversidades nelas contidas, de forma que o resultado é uma ampla e complexa gama de interações finas e específicas (Figura 2). memoria.indd 40 08/04/2015 10:04:53 41 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l Figura 2: Relações entre as culturas tradicionais e os ecossistemas Pode-se dizer, então, que é nessa ampla e complexa coleção de sabe- dorias locais, de cuja análise em conjunto devemos obter recordações- -chave e identificar eventos que tiveram uma influência profunda e duradoura sobre toda a espécie, que se encontra a memória da espécie humana, ou o que ainda resta dela. Essas sabedorias localizadas, que existem como consciências históricas comunitárias, uma vez totalmente conjugadas, operam como a sede principal das lembranças da espécie. São, portanto, o hipocampo do cérebro da humanidade, o reservatório mnemônico que permite que qualquer espécie animal se adapte conti- nuamente a um complexo mundo em constante processo de mudança. O próximo capítulo é dedicado a localizar em vários lugares do planeta essa memória da espécie, por meio da detecção e do cruzamento de vários indicadores dos processos aqui descritos. memoria.indd 41 08/04/2015 10:04:54 memoria.indd 42 08/04/2015 10:04:54 II. O TEATRO DA MEMÓRIA: CENÁRIOS E ATOR ES Onde se localiza a memória biocultural? Como vimos no capítulo anterior, é possível distinguir vários processos de diversificação, articulados de diferentes formas e em dife- rentes graus e que podem ser identificados geograficamente e segundo diferentes escalas. Para realizar esse exercício, levamos em conta aqueles processos em que há informação suficiente para obter um panorama o mais confiável possível de padrões espaciais, uma vez que a pesquisa científica tem avançado mais em alguns aspectos do que em outros. Os campos em que hoje encontramos informações para conduzir esta análise são os da diversidade biológica, da diversidade linguística e da diversidade agrícola (e pecuária). Estas, por sua vez, podem ser correlacionadas com a distribuição das sociedades rurais tradicionais, que, em teoria, constituem os agrupamentos da espécie humana cujas atividades se baseiam em formas de manejo da natureza não industriais e em formas de conhecimento não científico, ou seja, em expressões que remontam a um passado distante. Estudos conduzidos nas áreas das ciências sociais e das ciências naturais, sob os mais diversos enfoques, revelam a estreita ligação entre as diversidades biológica, cultural e agrícola em várias escalas, do nível global ao local. Revelam também a relação dessas diversidades com memoria.indd 43 08/04/2015 10:04:54 44 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s as regiões tradicionais do planeta, isto é, aquelas onde predomina uma populaçãorural de agricultores (e de pastores, caçadores e pescadores artesanais) que mantêm sistemas de produção de base familiar e de pequena escala. Assim, temos, de um lado, os três componentes ceno- gráficos e, do outro, os atores (as sociedades tradicionais) que realizam as ações a partir desses cenários. As seções seguintes são dedicadas a mostrar e discutir esses vínculos, cuja representação geográfica aponta a localização da memória biocultural da espécie humana. Os centros de diversidade biológica Em termos gerais, a diversidade biológica, ou a biodiversidade, expressa toda a variedade das formas de vida na Terra (Wilson, 1992). A maneira mais direta e simples de medir a diversidade é calcular a riqueza de espécies, a qual se refere ao número de espécies presentes numa determinada área; o que, por sua vez, depende da escala (diver- sidades alfa, beta e gama). A diversidade e sua distribuição são produto de uma longa história de evolução, diversificação e extinção dentro de um espaço geográfico e ecológico dinâmico e em constante transforma- ção. Da mesma forma, o conceito de endemismo define os organismos restritos a uma área geográfica ou unidade ecológica específica, isto é, aponta os organismos que têm distribuições restritas, diferentemente de outros que apresentam amplas áreas de distribuição. Grande parte dos esforços da pesquisa científica tem sido dirigida a identificar, em nível global, estratégias prioritárias que sejam adotadas tanto por governos nacionais quanto por organismos internacionais. Essas estratégias são voltadas a proteger áreas que contêm um número muito elevado de espécies em superfícies mínimas. Por exemplo, a Conservation International, certamente a organização conservacionista que mais tem avançado em termos de conhecimento científico, conseguiu acumular, nas últimas duas décadas, dados e evidências sobre três padrões principais de biodiversidade em escala global: (a) a identificação de países chama- memoria.indd 44 08/04/2015 10:04:54 45 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l dos megadiversos; (b) o reconhecimento de ecorregiões terrestres-chave (hotspots); e (c) a definição de regiões silvestres ou virgens. O conceito de megadiversidade permite visualizar a biodiversidade a partir do nível de unidades políticas, como os países. Estima-se que 17 dos 225 países detenham entre 60% e 70% das 250 mil plantas superiores, incluindo as espécies terrestres, de água doce e marinhas. Esses 17 países são também o lar de cerca de 60%-70% de todas as plantas endêmicas (Mittermeier; Goettsch-Mittermeier, 1997). Doze países são reconhecidos por hospedar o maior número de espécies e de espécies endêmicas (com populações restritas): Brasil, Indonésia, Colômbia, Austrália, México, Madagascar, Peru, China, Filipinas, Índia, Equador e Venezuela. Essa avaliação teve como base a análise comparativa de oito principais grupos biológicos: mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes de água doce, besouros e plantas com flores. No segundo caso, seguindo uma ideia originalmente proposta por Myers (1988), atualmente é possível identificar no mundo 34 regiões- -chave (hotspots) que concentram altos níveis de biodiversidade, mas nas quais os hábitats naturais têm perdido a maior parte de sua superfície original (www.biodiversityhotspots.com). Considerando essa defini- ção, tais regiões-chave contêm apenas 1,4% da superfície terrestre do planeta, constituindo um extraordinário acervo de riqueza biológica que corresponde a aproximadamente 40% da biodiversidade global, quase a metade das espécies de plantas vasculares e um terço de todos os vertebrados terrestres (Myers et al., 2000). Os números mostram que esses hotspots detêm entre a metade e dois terços de todas as espécies de plantas vasculares qualificadas como em risco de extinção e quase 60% dos vertebrados terrestres ameaçados (Brooks et al., 2002). Finalmente, a localização de 37 áreas consideradas como sendo as últimas regiões virgens do mundo, com as mais baixas densidades de população humana, tem possibilitado estabelecer outra estratégia prioritária. Em conjunto, essas regiões contêm áreas intocadas ou sil- memoria.indd 45 08/04/2015 10:04:54 46 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s vestres que correspondem a 46% da superfície da Terra, isto é, quase metade do planeta, sem incluir os mares, habitada por apenas 2,4% da população humana mundial (Mittermeier et al., 2002). Os centros de diversidade linguística Cada língua falada representa um modo único de compreender a experiência humana, o universo natural e o mundo inteiro. Os idiomas resumem toda a pluralidade da humanidade. Como um código de ação social, a linguagem é usada pelos seres humanos para estabelecer um diá- logo negociado com o mundo social e o mundo natural (Unesco, 1996). A linguagem é uma construção sociocultural que confere significado às representações, aos discursos e às negociações. Por outro lado, como um instrumento dialógico, ela constitui a ponte fundamental entre a cognição, o reconhecimento e o ato de nos reconhecer; uma ponte entre a diferença e o ato de nos diferenciar, o que é uma ponte para negociar a legitimidade e conseguir selar acordos (Bourdieu; Wacquant, 1995). O reconhecimento das diferenças é uma condição para o diálogo e para a construção de acordos entre diferentes pessoas e grupos sociais. A linguagem constitui a ferramenta essencial para a construção da diversidade cultural e é a matéria-prima da criatividade e do conheci- mento humano. A dramática redução do número de línguas desgasta as bases dessa criatividade e conhecimento, o que acabará por produzir uniformidade nas culturas do mundo e, portanto, a irremediável re- dução da diversidade cultural (Harmon, 1996a; 1996b). A diversidade linguística designa o número de línguas faladas em todo o mundo. A distribuição geográfica da diversidade linguística segue um padrão heterogêneo (Krauss, 1992; Harmon, 1996b; Maffi, 1998). Ela é o resultado da diversidade cultural e reflete as relações de domina- ção/subordinação e resistência/hibridização entre diferentes indivíduos, sociedades e civilizações (Barrera-Bassols, 2003). Três grandes fenômenos históricos contribuíram para a diversidade geográfica-linguística: 1) o memoria.indd 46 08/04/2015 10:04:54 47 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l isolamento geográfico das populações humanas, processo que resulta em um número significativo de línguas endêmicas (Harmon, 1995); 2) o enriquecimento da diversidade linguística como resultado da interação de diversos grupos sociais (Mûhlâusler, 1996; Maffi, 1999); e 3) a dominação colonial e a internacionalização dos sistemas de comunicação dominados por determinadas línguas, o que provoca a extinção de línguas endêmicas por meio da assimilação cultural (Harmon, 1996b; Maffi, 1998). Não há consenso sobre o número de línguas faladas no mundo. Gordon (2005) reconhece um total de 6,7 mil, enquanto Harmon (1995) registrou 6.207. Em todo caso, não se pode precisar o número de lín- guas usadas hoje em dia pelos grupos sociais. Há um conjunto de cinco categorias de países de acordo com sua diversidade linguística (Figura 3). Vale ressaltar que é problemático usar um país como unidade para fazer referência à diversidade linguística, uma vez que a distribuição dos idiomas não se restringe aos limites políticos-administrativos. Mesmo assim, aqui apresentamos o país como unidade de comparação. Figura 3: Países com o maior número de línguas registradas Fonte: Gordon (2005) memoria.indd 47 08/04/2015 10:04:54 48 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s Tendo em vista essa consideração, apontamos o primeiro grupo, composto por Indonésia e Papua Nova Guiné, que são países lin- guisticamente megadiversos. Juntos, abarcam um total de cerca de 1.550 línguas, que representam 23% de todos os idiomas domundo. O segundo grupo é formado por sete países (Nigéria, Índia, México, Camarões, Austrália, Zaire e China) de alta diversidade linguística, com aproximadamente 350 a 470 línguas por país, respondendo por 37% (Gordon, 2005) ou 49% (Harmon, 1995) do total de todo o mundo. Ambos os grupos de megadiversidade linguística registram um total de 3.634, que representa 54% das línguas vivas no mundo. No entanto, esses nove países representam apenas 4% dos 225 países. O terceiro grupo, dos dez países (Brasil, Estados Unidos, Filipinas, Malásia, Tanzânia, Chade, Nepal, Sudão, Mianmar e Vanuatu) com diversidade linguística mediana, abrange de 21% a 22% dos idiomas do mundo. Ao agrupar os 19 países com alta e média diversidade linguística, atingimos apenas 8,5% dos países com informação lin- guística, embora esse grupo reúna aproximadamente 4 mil línguas, que representam entre 75% e 77% dos idiomas do mundo. O quarto grupo, composto por 40 países com baixa diversidade linguística, inclui de 12% a 14% das línguas do mundo e representa 18% dos países. O quinto grupo, de países com diversidade linguística muito baixa, caracteriza-se por ter de uma a 25 línguas por país, correspondendo a 73% dos países do mundo e abrangendo de 7% a 8% de todos os idiomas falados (Figura 4). A diversidade linguística é distribuída da seguinte forma pelos continentes: 32% na Ásia, 30% na África, 19% na região do Pacífico, 15% na América e 3% na Europa (Maffi, 1998). No entanto, apenas 300 idiomas são significativos em termos de proporção de falantes. Por exemplo, o chinês, o inglês, o espanhol, o árabe e o hindi, entre os mais importantes, são falados por 95% da população mundial (Harmon, 1995). Em contraste, 51% a 53% dos idiomas (3.406) são falados por memoria.indd 48 08/04/2015 10:04:54 49 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l comunidades de menos de 10 mil habitantes (aproximadamente 10 milhões de pessoas), proporção que representa 0,2% da população mundial. Assim, as minorias sociais, que incluem as comunidades indígenas, falam línguas que estão em perigo de extinção. Figura 4: Número de línguas em relação com o número de falantes de cada língua Fonte: Gordon (2005) O ato de mudar uma língua tradicional para falar uma língua domi- nante constitui o maior processo de extinção da diversidade linguística (Harmon, 1995; Maffi, 1998; 1999). A homogeneização linguística causou a perda de 15% das línguas no século XVI (Bernard, 1992). A aceleração desse processo pode resultar na perda de 90% dos idiomas no decorrer deste século. Especialistas estimam que entre 6% e 11% de todos os idiomas podem ser considerados ameaçados de extinção (Krauss, 1992). A padronização linguística obtida pelo uso das línguas oficiais é mais bem entendida quando se considera um idioma como instrumen- to importante nas relações de poder, e não apenas como uma fonte Número de habitantes por língua memoria.indd 49 08/04/2015 10:04:55 50 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s de comunicação (Bourdieu, 1982; Bourdieu; Wacquant, 1995). A assimilação linguística está associada à conquista, ao colonialismo, ao neocolonialismo e à difusão da religião. Hoje, as relações entre as cida- des se intensificam baseadas em algumas línguas ou, como na maioria dos casos, em uma só, embora os estados soberanos sejam considerados multilíngues. Isso confere um poder adicional, já que as instituições sociais reforçam o status e a inf luência dos idiomas padronizados. Atual mente, a maioria dos países do mundo usa o inglês, o francês ou o espanhol, e cada vez mais pessoas usam o chinês mandarim e o hindi como língua franca, ou como idiomas oficiais. A tendência recente no que se refere à diversidade linguística é a inequidade, a desigualdade e a instabilidade (Williams, 1994). Quatro são os padrões mais aparentes e notáveis identificados no processo de diversificação linguística: (1) os países considerados me- gadiversos linguisticamente (nove no total) concentram pelo menos metade das línguas do mundo; (2) esses países estão localizados no cinturão intertropical e abrangem três das zonas agroecológicas mais vulneráveis à degradação ambiental: o trópico úmido, as zonas quen- tes semidesérticas e as regiões altas, secas e frias; (3) cerca de 0,2% da população mundial (menos de 10 milhões de pessoas) concentra mais de 50% da diversidade linguística do planeta; (4) muitas lín- guas endêmicas, ameaçadas de extinção, encontram-se nesses hotspots linguísticos e em áreas rurais habitadas por comunidades indígenas (Barrera-Bassols, 2003). Os centros de origem de plantas e animais domesticados (agrobiodiversidade) A manipulação dos genomas de plantas e animais, visando favore- cer organismos que seriam úteis para a espécie humana, foi um evento que mudou o curso não só da humanidade, mas também de todo o universo natural. A criação de mais de mil novas espécies (e dezenas de memoria.indd 50 08/04/2015 10:04:55 51 A m e m ó r i a b i o c u l t u r a l milhares de variedades e raças) por meio dos processos de domesticação constituiu um salto qualitativo na evolução humana, que também levou a um novo contingente de organismos que se somou, e não substituiu, às espécies e variedades silvestres. Esse processo de domesticação, que abrangeu milhares de espécies de plantas e centenas de animais, ocorreu em áreas bem definidas do planeta e foi o resultado de uma série de fatores biológicos, ecológicos, sociais e culturais. A partir da análise das principais coleções botânicas, de uma ampla revisão da literatura e de um intenso trabalho de campo ao redor do mundo, o geneticista-biólogo russo Vavilov (1926) identificou vários centros geográficos de dispersão das plantas cultivadas e, assim, iniciou a localização dos processos de domesticação no planeta, classificada em oito regiões: 1. China: as regiões montanhosas centrais e ocidentais do norte e suas terras baixas adjacentes. A primeira evidência da criação do milheto rabo-de-raposa foi reconhecida no norte da China há 7 ou 8 mil anos (Gadgil, 1995). Outras culturas, como a soja, também são consideradas originárias dessa área (Boyden, 1992). 2. Índia: a região do Himalaia (Nepal e Birmânia) e a região indo-malaia, incluindo Indochina, Malásia e Indonésia. O arroz, o chá, a banana e o inhame, assim como o boi zebu, o porco, o frango e o búfalo, são considerados originários dessa ampla e complexa área ecogeográfica (Boyden, 1992). 3. Ásia central: noroeste da Índia, Paquistão, Afeganistão, Tadji- quistão, Uzbequistão e as montanhas de Tianshan. A alfafa, o milheto, o cânhamo, assim como o camelo-bactriano e os iaques são nativos dessa área (Boyden, 1992). 4. Oriente Próximo: Iraque, Irã, Turquia, Síria e Jordânia. As primeiras evidências de agricultura baseada no cultivo de sementes (trigo e cevada), assim como da domesticação de cabras, ovelhas e gado bovino, encontram-se situadas em uma ampla área conhecida memoria.indd 51 08/04/2015 10:04:55 52 V í c t o r M . To l e d o e N a r c i s o B a r r e r a - B a s s o l s como crescente fértil, localizada nos planaltos que margeiam os vales dos rios Tigre e Eufrates (Baker, 1970; Heiser, 1973; Reed, 1977). A origem da agricultura nessa área é a mais antiga, estimada em 9 mil anos (Harlan, 1992). 5. Região mediterrânea: o anel costeiro e as áreas adjacentes. A cevada, o centeio, as uvas e as azeitonas, assim como o ganso, o gado bovino e suíno, são considerados originários dessa área (Boyden, 1992). Estima-se que o arado começou a ser utilizado na Europa entre 4 e 5 mil anos atrás. Em algumas regiões, essa técnica foi empregada nos campos por volta da época do império romano (Gadgil, 1995). 6. Etiópia: incluindo a Eritreia e a Somália. Boyden (1992) reco- nhece que o café, o milheto, o sorgo e o gergelim são nativos dessa área. Harlan (1992) identificou outros cereais que se espalharam para fora dessa área,
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