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Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania ??????????? Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2016 Diego Marques Henriques Jung Fernanda Carneiro Leão Gonçalves Marcos Machado Orlando Albani de Carvalho Rafael Lacerda Martins Roberta Dall Agnese da Costa Suelen Bomfim Nobre Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. ISBN: 978-85-5639-259-6 Dados técnicos do livro Diagramação: Marcelo Ferreira Revisão: Igor Campos Dutra Diego Marques Henriques Jung1 Caro aluno, Não sei o que passou pela sua cabeça ao ver o nome da discipli- na “meio ambiente, sustentabilidade e cidadania”. Arrisco dizer que prova- velmente o que o motivou a matricular-se nela tenha sido seus preconcei- tos. Digo isso não no sentido negativo da palavra como, por exemplo, um preconceito de cunho étnico, mas no sentido dos seus conceitos pré-esta- belecidos, que você desenvolveu ao longo de sua vida. Nesta disciplina, discutiremos, com base técnica, estes conceitos. Você poderá conhecê-los, compreendendo seu real significado, indo além do senso comum sobre essas questões. Qual o conceito de meio ambiente? Quais as transformações impostas ao meio ambiente pelas sociedades humanas, considerando o processo histórico? Será que as questões ambientais apresentam implicações geo- políticas como, por exemplo, guerras, movimentos massivos de povos por questões ambientais (refugiados ambientais)? Por que alguns países atuam com mais responsabilidade com relação aos recursos naturais, enquanto outros são completamente relapsos? Você será convidado a desenvolver seu pensamento crítico sobre esses assuntos, envolvendo-se na interpreta- ção de situações problema, discussão de vídeos e textos, posicionando-se criticamente sobre eles. Os objetivos dessa disciplina são apresentar a você o conhecimento acerca das transformações ambientais impostas pela sociedade ao meio 1 Biólogo, Mestre em Biologia, Curso de Ciências Biológicas, ULBRA. Apresentação Apresentação v ambiente, incluindo os desafios para o desenvolvimento sustentável e jus- tiça socioambiental; vamos estimular discussões visando à compreensão e reflexão crítica sobre o papel do ser humano frente à questão ambiental. Por fim, desejo que você compreenda a cidadania como meio de atuar na defesa do patrimônio natural, cultural e socioambiental, assumindo esse compromisso em alguma dimensão, de acordo com a sua vocação. Espero que você realize uma boa disciplina! Em nome da equipe de autores, lhe desejo um excelente trabalho. 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza .........1 2 Meio Ambiente e Processo Histórico de Desenvolvimento ....32 3 Expansão Agrícola, Urbanização e seus Impactos ao Meio Ambiente ............................................................................55 4 Geopolítica Ambiental ........................................................74 5 Governança e Políticas Públicas de Conservação da Natureza e Biodiversidade ................................................113 6 Recursos Naturais e Sociedade Contemporânea ................133 7 Convenções Ambientais ....................................................171 8 Cidadania e Meio Ambiente .............................................193 9 Inovações e Tecnologias a Serviço do Homem e do Ambiente .....................................................................216 10 O Desafio Ambiental: Construindo a Cidadania e a Sustentabilidade ...............................................................235 Sumário Marcos Machado1 Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza1 1 Biólogo, Mestre em Geociências, Curso de Ciências Biológicas, ULBRA. 2 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania Introdução Por que nós, seres humanos, possuímos uma influência impres- sionante sobre outras espécies e o mundo natural? Somos os únicos entre as espécies animais que sobrevivem e se reprodu- zem em uma ampla variedade de ambientes mediante adap- tações culturais (Richerson et al., 1996). Em contraste, outras espécies são capazes de sobreviver e se reproduzir devido a adaptações biológicas que resultaram de eras de evolução. As adaptações culturais dos seres humanos lhes favoreceram colonizar quase todos os tipos de ecossistemas da Terra. Além disso, as inovações culturais permitiram que a população hu- mana crescesse exponencialmente durante milênios. A popula- ção de uma espécie típica cresce até atingir a capacidade de carga de seu ambiente, e, então, os níveis declinam. Em ou- tras palavras, ela aumenta até que esteja utilizando totalmente os recursos disponíveis. Em vista disso, mecanismos pontuais, tais como doenças e fome mantêm a população em núme- ros viáveis. No entanto, nós, seres humanos temos respondi- do aos limites ecológicos com práticas culturais e tecnologias que aumentam a disponibilidade de recursos. O aumento da produção agrícola e a organização urbana têm propiciado a assimilação de populações humanas cada vez maiores. Esse crescimento requer adaptações culturais para aumentar os recursos, e, consequentemente, alterar o ambiente natural e acelerar a taxa de evolução cultural. Atualmente, a população humana global ultrapassou os sete bilhões e as tecnologias de manipulação ambiental são suficientemente potentes para causar alterações na biosfera com a extinção de inúmeras es- pécies. Se a tendência atual continuar, haverá um eventual Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 3 colapso da população humana e danos ambientais irreversí- veis. Essa é a causa fundamental da crise ambiental moderna. Os diferentes tipos de sociedade são geralmente associa- dos a determinadas condições e atitudes em relação à vida selvagem e natureza social. Essa forma de organizar e des- crever as sociedades humanas é objeto da Ecologia Humana, que procura compreender os seres humanos a partir de sua interação com o mundo natural e cultural (Richerson et al., 1996). Os seres humanos são uma espécie de mamífero social de grande porte que vive na biosfera e apresenta uma singu- laridade impressionante como animal cultural. A perspectiva da Ecologia Humana também pode fornecer evidências sobre como nossa cultura global precisa mudar, em em uma pers- pectiva de sustentabilidade. A seguir, serão apresentadas so- ciedades divididas em cinco categorias convenientes para dis- cussão. Entretanto, elas representam um gradiente de cultura e valores. Nessa abordagem, o mais importante é reconhecer a tendência geral na forma como as diferentes sociedades se relacionam com a natureza superando definições formais. 1 As sociedades de caçadores-coletores As sociedades caçadoras-coletoras obtêm seu alimento dire- tamente de ecossistemas naturais, pela caça e coleta de ani- mais e plantas silvestres (Richerson et al., 1996). Isso requer conhecimento profundo e detalhado de espécies de plantas e animais no ambiente local. Um estilo de vida caçador-coletor pode suportar um número relativamente pequeno de pessoas. 4 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania Assim, a densidadepopulacional das sociedades de caçado- res-coletores tende a ser baixa. A maioria dos povos caçado- res-coletores é migratória, viajando frequentemente em busca de recursos. Geralmente, cada indivíduo é responsável pela aquisição de alimentos, por isso há pouca divisão de traba- lho, inclusive entre os sexos. Como resultado, a estrutura so- cial das culturas de caçadores-coletores tende a ser bastante igualitária. No entanto, esse igualitarismo não se traduz neces- sariamente em tranquilidade. Os antropólogos têm demons- trado que a incidência de morte violenta nas sociedades de caçadores-coletores é, em média, muitas vezes maior do que nas cidades modernas mais violentas, o que é atribuído à falta de uma autoridade centralizada. Os homens geralmente são responsáveis pela caça, e as mulheres, pelo forrageamento. A disparidade entre os sexos geralmente não é tão grande como a encontrada nas sociedades agrárias. A dependência direta do caçador em relação aos ecossis- temas naturais e o conhecimento profundo que isso exige é geralmente refletida em suas crenças e atitudes frente à natu- reza e vida selvagem. Tais povos comumente se veem como inseparáveis dos ecossistemas naturais e vida selvagem de seu entorno (Gottlieb, 1996; Wilber 2000). Os animais são mui- tas vezes considerados seres espirituais, para os quais rogam ajuda e proteção. Os rituais são comumente realizados para mostrar respeito, gratidão e reverência para com os animais- -espíritos, com a esperança de promover o contínuo sucesso da caça. Outros rituais que buscam influenciar os aconteci- mentos naturais, como a chuva, também são frequentes em culturas de caçadores-coletores. Essas crenças baseadas em magia, rituais e fusão dos seres humanos com o mundo natu- Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 5 ral são denominadas animismo (Richerson et al., 1996; Wil- ber, 2000). Exemplos de tais crenças em relação à natureza são mostradas em diversas culturas, e nas imagens maravilho- samente representadas de bisões, veados, salmões e outros animais nas cavernas de La Chapelle-aux-Saints e Lascaux da França elaboradas pelos ancestrais caçadores-coletores dos europeus modernos. Os seres humanos, na maioria de sua história evolutiva, viveram em sociedades tribais de caçado- res-coletores. Esse fato, para muitos antropólogos, justifica porque nos sentimos mais à vontade em circunstâncias que imitam tais sociedades. Ambientes abertos que permitam a vi- sualização da vida selvagem, da beleza cênica das paisagens são frequentemente valorizados por nossa sociedade, inclusive atribuindo-se maior valor monetário. (Wilson, 1984; Richerson e Boyd, 2000). As sociedades de caçadores-coletores são geralmente con- sideradas como o melhor exemplo de coexistência com popu- lações de animais selvagens, porque a densidade populacio- nal humana tende a ser baixa e porque a caça-coleta envolve o mínimo de manipulação dos ecossistemas naturais. Diversos autores consideram que a capacidade das sociedades de ca- çadores-coletores de coexistir com a vida selvagem é atribuível à sua representação mágica e reverente da natureza (Gottlieb, 1996). No entanto, argumentos alternativos afirmam que ca- çadores e coletores causam pequenos impactos sobre os ecos- sistemas naturais, simplesmente porque não têm tecnologias desenvolvidas para manipular a natureza (Wilber, 1996). Sa- be-se que os caçadores e coletores da Ásia, Austrália e Amé- rica do Norte causaram a extinção de numerosas espécies de mamíferos e aves de grande porte devido à caça demasiada e 6 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania à alteração das paisagens mediante o uso extensivo do fogo, o que sugere que mesmo os seres humanos constituintes de sociedades de caçadores-coletores podem ter influência eco- lógica considerável (Flannery 2001; Warren 2003). 2 As primeiras sociedades agrárias As primeiras sociedades agrárias obtinham alimento não ape- nas mediante o forrageamento em ecossistemas naturais, mas também com o plantio de espécies importantes como itens ali- mentares e/ou criação de gado. Eles podiam complementar sua alimentação através da caça. Essas sociedades agrárias que se concentravam no plantio são chamadas sociedades hortícolas, enquanto que aquelas que manejavam o gado como a principal fonte de alimento são chamadas socieda- des pastoris (Richerson et al., 1996). As primeiras sociedades agrárias podem ser distinguidas de sociedades agrárias tardias pela falta de arados de metal, e ausência de animais de carga para puxá-los. A maioria das primeiras sociedades agrárias tinha animais domesticados, embora as civilizações indígenas da América Central e do Norte e da Austrália mantinham ape- nas cães. Exemplos de sociedades hortícolas extintas incluem os astecas, os americanos nativos do Vale do Ohio, e os pri- meiros agricultores do Oriente Médio há 11000 anos. Muitas áreas tropicais úmidas do mundo ainda suportam sociedades horticulturalistas que praticam a agricultura de subsistência através de queimadas do solo. O solo pobre dessas regiões geralmente não pode suportar, em grande escala e perma- nentemente, o estilo de agricultura baseado no uso do arado Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 7 presente em sociedades agrícolas mais avançadas. A maior eficiência e previsibilidade das práticas agrícolas para a obten- ção de alimentos significa que tais sociedades geralmente têm densidades populacionais mais elevadas do que as sociedades de caçadores-coletores (Richerson et al., 1996). Vilas perenes e pequenas cidades geralmente surgiram nas primeiras socie- dades agrícolas. A maior produtividade da agricultura pode apoiar uma estrutura social mais complexa, com maior divisão do trabalho, porque nem todo mundo precisa trabalhar para adquirir alimentos. Isso pode resultar no desenvolvimento de uma classe dominante, uma classe religiosa e artesãos, o que acelera ainda mais a evolução cultural. Essa divisão do traba- lho significa que as primeiras sociedades agrárias muitas ve- zes eram menos igualitárias do que as sociedades caçadoras- -coletoras. As poucas sociedades humanas matrilineares, ou seja, grupos sociais cujas linhagens familiares são passadas pela mãe e as mulheres têm status elevado, são geralmente horticultoras. Um excelente exemplo atual são as sociedades hortícolas matrilineares da África Subsaariana, como a Ba- menda. Nessas sociedades, os assentamentos estacionários e o trabalho físico relativamente fácil necessário para adquirir alimentos permite que as mulheres contribuam grandemente, aumentando seu status e poder econômico. Os deuses e deusas das primeiras sociedades agrárias começam a assumir um rosto humano ao invés de animal, comparados com as sociedades de caçadores-coletores. No entanto, os animais são comumente associados a determina- dos deuses e deusas, e muitas vezes são símbolo do poder de um deus. O encontro com uma espécie particular de vida sel- vagem pode ser interpretado como um presságio de um deus, 8 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania mas o poder geralmente não reside no próprio animal, mas, sim, na sua relação com a divindade. Animais, muitas vezes, desempenham papel importante na mitologia das culturas, e os deuses podem assumir formas de animais. As religiões pagãs do norte da Europa são um exemplo ocidental de uma religião agrária ancestral. A mitologia dos deuses gregos clássicos e deusas também é um exemplo desses temas, embora, em si, a antiga sociedade grega era muito avançada tecnologicamen- te para ser classificada como uma sociedade agrária inicial. Um tema religioso comum nas primeiras culturas agrárias foi a necessidade de fazer sacrifícios aos deuses para incorrer seu favor e garantir a recompensa contínua (Wilber, 2000). Nassociedades de pastoreio, os sacrifícios eram normalmente de animais, e o Velho Testamento, inclusive, apresenta instruções de como realizá-los. No entanto, em sociedades hortícolas, o sacrifício humano era surpreendentemente comum. Algumas das primeiras culturas agrárias da Europa e do Oriente Médio praticavam sacrifícios humanos, assim como os horticultores astecas e do Vale do Ohio do Novo Mundo. (Richerson 1996; Wilber 1996; Warren, 2003). 3 As sociedades agrárias tardias Conforme as sociedades agrárias evoluíam, técnicas de plan- tio e colheita se tornaram mais avançadas tecnologicamente e mais eficientes (Richerson et al., 1996). Animais domésticos tais como cavalos e vacas passaram a ser utilizados para puxar arados, o que aumentou o rendimento. Animais de carga tam- bém passaram a ser usados em moinhos de grãos, de água Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 9 e de vento. Sistemas de irrigação em grande escala são mui- tas vezes utilizados, embora as sociedades agrárias, mesmo em seu início, possuíssem sistemas de irrigação em pequena escala. Muitas vezes, as sociedades agrárias tardias eram al- tamente dependentes de um pequeno número de grãos, tais como trigo, milho, ou arroz. As culturas também eram cultiva- das para alimentar o gado, principal fonte de proteínas. Os ecossistemas naturais forneciam apenas pequena quantidade do alimento, quase todos vinham dos ecossistemas agrícolas manipulados. As maiores colheitas em sociedades agrárias avançadas podiam suportar populações humanas densas e grandes cidades, pois muitas pessoas não tinham que traba- lhar para conseguir alimento (Richerson et al., 1996). Essa di- visão do trabalho permitiu o desenvolvimento de sociedades complexas, com um considerável grau de especialização. A escrita já está presente em sociedades agrárias avançadas, o que permitiu o desenvolvimento de aulas artísticas, literárias e religiosas, o que acelerou ainda mais a taxa de inovação tecnológica e evolução cultural. A estrutura de tais sociedades é muitas vezes altamente estratificada. A monarquia e a aris- tocracia, muitas vezes, controlavam toda a terra e, portanto, a oferta de alimentos. Grande parte do resto da população era explorado como camponeses, servos, ou outros membros da classe trabalhadora. Exemplos clássicos de sociedades agrá- rias atrasadas incluem a Europa Medieval, o feudalismo chi- nês, o sistema de castas indiano, e o Brasil escravagista. A maior intensidade física do trabalho e o uso de animais de grande porte e arados tornou as mulheres menos capazes de contribuir para a aquisição de alimentos, o que geralmente resultou em um status social inferior nas sociedades agrárias 10 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania quase universalmente patriarcais. A necessidade de mão de obra agrícola exigiu famílias grandes, o que elevou significa- tivamente as taxas de crescimento da população humana em geral. As sociedades agrárias, em grande parte, dependem do controle e manipulação dos ecossistemas para obtenção de alimentos, em vez da interação com os ecossistemas naturais e vida selvagem. Além disso, as grandes religiões do mundo, incluindo o cristianismo, o budismo, o islamismo e o hinduís- mo, todas surgiram em sociedades agrárias atrasadas. O deus ou divindade de religiões agrárias é muitas vezes uma enti- dade abstrata, e não algo material, e geralmente separa os animais selvagens ou a natureza da sociedade humana (Wil- ber 2000). Deuses agrários podem ter rosto humano que lhes estão associados, de alguma forma, mas mesmo isso pode ser apenas símbolo de uma força invisível. Os animais são apenas ocasionalmente associados os deuses, e certamente não são em si mesmos considerados poderosos. Na verdade, especialmente nas religiões agrárias ocidentais, os seres hu- manos são considerados superiores aos animais, e é vontade divina, que os seres humanos utilizem plenamente o mundo natural para seu próprio benefício (Warren 2003). O deserto foi muitas vezes considerado um mau lugar. Assim, manipular o ambiente natural com fazendas e matar animais selvagens era tanto um ato moral como economicamente benéfico (Sny- der, 1990). Houve também tentativas de religiões agrárias de suprimir a prática das religiões hortícolas e de caçadores-cole- tores mais animistas e orientadas à natureza. Entretanto, ainda hoje, é possível identificar vestígios de antigos rituais pagãos Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 11 europeus durante feriados cristãos no Ocidente, tais como co- elhinhos da páscoa, ovos de páscoa e árvores de Natal. A escola da Ecofilosofia afirma que a correspondente falta de santidade na natureza e o mundo material ajudou a ali- mentar a destruição ambiental que acompanha essa forma de sociedade (Wilber 1996, Gottlieb 1996). Os impactos das sociedades agrárias sobre a vida selva- gem e ecossistemas naturais podem ser bastante considerá- veis, o que não é surpreendente, dadas as altas densidades populacionais de tais sociedades e sua cada vez mais potente tecnologia para alterar a natureza. Durante a fase agrária tar- dia de desenvolvimento da Europa ocidental, habitats naturais e grandes espécies de animais selvagens, como veados e ja- valis podiam ser encontrados principalmente em áreas de caça protegida de aristocratas, ou em áreas muito montanhosas ou frias para permitir a agricultura. Os solos ricos, grossos de pastagens torna especialmente favorável para a agricultura, e quase toda a área desse tipo de ecossistema na Europa, Amé- rica do Norte e na Ásia foi completamente modificada para a produção alimentar humana. As altas densidades popula- cionais de sociedades agrárias também têm altas exigências de lenha e madeira, por isso não é incomum ver o desflo- restamento para lenha (e consequente erosão acelerada de encostas) em tais sociedades. As colinas nuas de grande parte do Oriente Médio são o resultado de remoção de florestas há milhares de anos, seguida de erosão dos solos e pastoreio intensivo de cabras e outros animais. O pastoreio continua até hoje, mantendo as colinas em um estado perpétuo de pobreza biológica e baixa produtividade. 12 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania 4 As primeiras sociedades industriais A invenção de motores a vapor e outras máquinas para re- alizar trabalho inaugurou a era industrial (Richerson et al., 1996). Algumas dessas tecnologias foram aplicadas na agri- cultura, o que tornou a produção de alimentos ainda mais efi- ciente. Isso permitiu ainda mais urbanização e especialização profissional, que por sua vez levou a grandes avanços nas artes e ciências. Muitas pessoas nas primeiras sociedades industriais obtinham seu sustento produzindo bens manufaturados, mui- tas vezes em um centro urbano. É perfeitamente possível para uma pessoa em uma sociedade industrial viver a sua vida intei- ra com pouco ou nenhum contato direto com os ecossistemas naturais ou agrícolas. As sociedades industriais também trou- xeram o uso extensivo de capital, fator vital da economia, que criou mercados para muitos produtos especializados e iniciou uma nova classe média mercantil voltada para o comércio de produtos e administração de capital. As populações crescen- tes das sociedades agrárias tardias forneceram um excesso de trabalhadores para países na fase inicial de industrialização, e esses trabalhadores, muitas vezes, sem escolha, trabalhavam por salários baixos em condições precárias. No entanto, os conceitos de democracia moderna, as liberdades civis e os di- reitos humanos nasceram nas primeiras sociedades industriais ocidentais, sob a ideia iluminista de que “todos os homens são criados iguais.” O racionalismo científico e a descoberta dos princípios científicos fundamentais da física newtonianae da teoria darwinista da evolução também foram desenvolvi- dos durante a era industrial inicial. A imprensa foi inventada, e taxas de alfabetização aumentaram significativamente. Nas Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 13 sociedades industriais, as máquinas passaram a realizar muito do trabalho efetuado por pessoas em sociedades agrárias. A influência das mulheres começa a aumentar nas sociedades industriais, presumivelmente porque a produtividade econômi- ca torna-se menos ligada à força física. Diferentes segmentos da sociedade têm atitudes distintas em relação à natureza e vida selvagem nas sociedades industriais avançadas. A nova economia industrial baseada no mercado enxergava a vida selvagem e outros produtos de ecossistemas naturais como bens a serem vendidos no mercado aberto. O resultado foi a rápida pilhagem dos animais selvagens pelo mercado de caça, particularmente no hemisfério ocidental (Warren 2003). No entanto, muitos naturalistas documentaram meticulosa- mente a diversidade de espécies da Terra, o que ajudou as pessoas a desenvolver uma admiração em relação ao mundo natural (Warren, 2003). Ao mesmo tempo, filósofos românti- cos como John Locke, começaram a protestar contra a dureza do mundo industrial, e argumentaram que os seres humanos precisavam voltar para a natureza e para uma maneira mais natural de ser. A valorização científica da natureza e da vida selvagem combinadas com os sentimentos expressos pelos fi- lósofos românticos e o trabalho de artistas e naturalistas, como John Muir, foram algumas das forças culturais que se aliaram para iniciar o movimento de conservação nos EUA e norte da Europa durante o início da era industrial. Esse movimento teve como objetivo proteger a vida selvagem e natureza de quem iria utilizá-la para ganho financeiro ou sujeitá-la para seu pró- prio bem. Assim, em reação a isso, o Parque Nacional de Yello- wstone e o Serviço Nacional de Parques dos EUA foram cria- dos durante o início da era industrial da América do Norte. A 14 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania laicidade crescente da sociedade industrial é vista pelo fato de que os argumentos para a conservação geralmente não são vistos como essencialmente religiosos. É fácil ver como a intensa exploração da vida selvagem refletiu a visão de que a natureza é separada dos seres humanos. Mesmo a valorização de lugares naturais por sua beleza, refletida em pinturas do sé- culo XIX, continha a mensagem sutil de que os seres humanos são separados da natureza. Na verdade, o próprio conceito de olhar para uma bela vista em uma paisagem natural nunca fora antes registrado no ocidente até o século XVII, e é atribuí- do por cientistas sociais para a crescente separação psicológi- ca entre seres humanos e natureza (Tuan, 1982). O aumento da compreensão científica sobre a natureza foi até certo ponto fundado sobre a separação dos seres humanos da natureza, permitindo uma perspectiva dita objetiva. A influência das economias industriais a partir do século XVIII sobre a natureza e vida selvagem é considerável. Tec- nologias cada vez mais poderosas permitiram a exploração de populações de animais selvagens que até então tinham sido protegidas por causa do isolamento ou a dificuldade de caça e pesca. É importante ter em mente, no entanto, que a sobre-exploração das populações de animais selvagens foi finalmente impulsionada pela demanda do mercado. As socie- dades industriais caracterizavam-se por economias com base no fluxo de capital, e pela procura de bens por uma grande população com riqueza crescente. A demanda das economias de mercado para a vida selvagem quase sempre continua a crescer até que as populações de animais selvagens são leva- das à extinção ou próximas dela. As legislações rigorosas são necessárias na exploração de populações naturais a fim de Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 15 evitar a perda de espécies, e na verdade muitas das primeiras leis ambientais aprovadas eram dirigidas ao mercado de pro- dutos de caça. Também a degradação ambiental do início da sociedade industrial já é relativamente elevada, e a população humana crescente. 5 As sociedades industriais tardias As sociedades industriais tardias como a nossa são marca- das pela tecnologia altamente desenvolvida e pelo uso ge- neralizado de computadores e outras tecnologias de informa- ção. Tecnologias avançadas são aplicadas à agricultura para aumentar a eficiência da produção, e incluem equipamentos especializados, fertilizantes químicos, pesticidas, a reprodução científica de culturas e organismos geneticamente modifica- dos. A tecnologia também é usada para construir barragens e sistemas de irrigação complexos para aumentar a produção agrícola. A alteração de rios tem consequências graves para peixes e outros animais selvagens. Outra característica funda- mental da nossa atual sociedade industrial é o uso abundante de eletricidade e outras formas de energia, bem como o alto consumo de recursos. Essa riqueza generalizada é conside- rada simultaneamente uma causa e uma consequência das taxas de educação superior e dos governos democráticos em tais sociedades. No entanto, a riqueza generalizada e consu- mismo exigem muitos recursos naturais e, posteriormente, tem um forte impacto negativo sobre os sistemas naturais e vida selvagem. O processamento de informação, a partir do desen- volvimento de novas tecnologias não exige força física, o que 16 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania torna as mulheres iguais aos homens em termos de sua capa- cidade de executar o sistema econômico. Como consequên- cia, as mulheres estão alcançando gradualmente status social e poder quase em pé de igualdade com os homens em socie- dades industriais avançadas. Nas outras formas de sociedades humanas, o que normalmente é observado é que conforme a agricultura se torna mais eficiente, as populações humanas também aumentam. No entanto, esse padrão muda nas so- ciedades industriais desenvolvidas, as taxas de natalidade se tornam menores. Na Europa Ocidental e Japão, as taxas de natalidade estão abaixo da taxa de substituição, o que signifi- ca que as populações desses países começarão a diminuir de tamanho, a menos que aumentem a imigração. Essa redução, inteiramente voluntária de taxas de natalidade, é sem prece- dentes na história humana. Infelizmente, os países com baixas taxas de natalidade ainda têm grandes impactos ambientais, como resultado das altas taxas de imigração e altas taxas per capita de consumo de recursos. A estabilização da população humana global e uma diminuição do consumo per capita de recursos naturais nas sociedades industriais avançadas serão, sem dúvida, necessárias para a sobrevivência da fauna, pre- servação de ambientes naturais e, finalmente, o bem-estar dos seres humanos em todo o mundo. A redução voluntária das taxas de natalidade pode ser atribuída a vários fatores (Montgomery 2004, Population Re- ference Bureau 2004). O mais importante é o alto nível de educação das mulheres, que lhes proporciona mais oportuni- dades econômicas e uma maior capacidade de fazer escolhas reprodutivas usando métodos confiáveis de controle de natali- dade. Além disso, o grau de especialização das sociedades in- Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 17 dustriais desenvolvidas requer muitos anos de escolaridade, de modo que o trabalho de crianças, o que era valioso para a so- ciedade agrária, não possui valor em uma sociedade industrial avançada. Um fator importante na redução da taxa de natali- dade é a educação e a participação das mulheres na força de trabalho nas sociedades industriais desenvolvidas. A educação das mulheres também parece ser uma forma eficaz de redu- ziras taxas de natalidade nos países em desenvolvimento, ou seja, a alfabetização básica das mulheres está correlacionada com reduções drásticas nas taxas de natalidade. As taxas de mortalidade infantil reduzidas e a maior segurança econômica das sociedades industriais também são razões para as taxas de natalidade reduzidas, porque os pais não precisam ter um grande número de crianças para garantir que alguns sobrevi- vam. A sociedade moderna usa sua tecnologia e economia de mercado para criar um ambiente favorável à manutenção de populações humanas. Entretanto, as dinâmicas econômicas podem reduzir a qualidade de vida de parte considerável da população humana. Considerando que, em uma sociedade de caçador-coletor ou agrária uma seca pode fazer as pessoas temerem por sua sobrevivência, em nossa sociedade moderna, uma recessão é o que assusta as pessoas. Isso ocorre por- que a perda de colheitas em uma parte do mundo pode ser compensada com o aumento da produção em outras partes do mundo. Essa disjunção entre os mundos natural e humano pode ser analisada a partir de três perspectivas em relação à natureza: primeira, a visão de que a natureza e os animais selvagens são principalmente um recurso a ser explorado sob o sistema baseado no mercado, similar às atitudes realizadas nas primeiras sociedades industrializadas. Em segundo lugar, 18 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania há muitos para quem a natureza é simplesmente irrelevante, e assim eles dão pouca atenção a ela. A criação de ambientes alterados pelo homem e a abundância material em tais socie- dades significa que é bem possível que uma pessoa possa viver uma vida urbana ou suburbana confortável não tendo quase nenhum contato com a vida selvagem, ecossistemas naturais, ou mesmo ecossistemas agrícolas. No entanto, o sistema so- cial e econômico complexo do qual as pessoas dependem nas sociedades industriais desenvolvidas baseia-se, em última ins- tância sobre a integridade dos ecossistemas naturais. O reco- nhecimento desse fato nos leva a um terceiro ponto de vista em relação à natureza, ou seja, valorizar a vida selvagem para seu próprio bem e para a manutenção de seu valor econômico di- reto e indireto. O movimento ambientalista moderno começou na década de 1960, e foi motivado tanto por preocupações com a saúde humana quanto com a preservação de áreas selvagens para fins estéticos e recreativos. O poder crescente que os seres humanos possuem de alterar o mundo natural tem levado à visão de que a natureza é algo que pode ser destruído, e não algo que pode nos destruir. Os ecossistemas fornecem muitos serviços essenciais para as pessoas, de modo que a preservação de áreas naturais garante a sobrevivência econômica e gera benefícios diretos para as pessoas. Além disso, muitos estão motivados para preservar a vida selvagem e os ecossistemas naturais por razões estéticas, recreativas, ou espirituais. Um olhar sobre a história da relação entre seres humanos e natureza nos dá uma perspectiva sobre por que isso pode ocorrer. Os seres humanos passaram a maior parte de sua história evolutiva como caçadores-coletores que vivem em ecossistemas naturais. Durante as sociedades agrárias, Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 19 também trabalhavam fora e não mantinham um controle rígi- do do tempo e outros processos naturais. Ambientes urbanos e cubículos de escritório são bastante diferentes dos ambien- tes naturais em que nossa espécie evoluiu, e essa diferença pode levar a um estresse considerável. Um bom número de pessoas nos centros urbanos viaja para áreas rurais ou silves- tres em seu tempo de lazer. Essa preferência por ambientes naturais e criaturas selvagens é conhecida como “biofilia” e é o resultado da hipótese de nossa inclinação inerente para nos conectarmos aos ecossistemas naturais da mesma manei- ra que nossos ancestrais caçadores-coletores faziam (Wilson, 1984). As pessoas também estão encontrando cada vez mais significado espiritual na natureza, uma novidade que reverte a tendência histórica na cultura ocidental de considerar a natu- reza como cada vez menos sagrada (Gottlieb 1996). Algumas pessoas acham que através da ligação com a natureza, estão se conectando com algo maior do que eles mesmos. Muitas denominações cristãs buscam agora passagens bíblicas que sugerem que os seres humanos devem proteger a natureza e os animais selvagens porque são criações de Deus, e várias grandes igrejas cristãs, incluindo a católica romana e luterana, têm declarações emitidas em relação ao imperativo ético para cuidar do meio ambiente e usar os recursos sabiamente. Tal- vez as interpretações anteriores da bíblia que justificaram a dominação da natureza e a viram como o mal eram mais o produto da mentalidade agrária do que propriamente de de- sígnios existentes no livro sagrado da cristandade. Há também movimentos nas sociedades industriais desenvolvidas que se esforçam para encontrar uma relação espiritual com a nature- za, tentando recapturar uma visão animista como a de nossos 20 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania ancestrais caçadores-coletores, mas não está claro se essa vi- são de mundo animista poderia ser amplamente praticada por um povo cientificamente alfabetizado, urbano. É adequado di- zer que uma visão abrangente do mundo que integre os seres humanos e natureza e que seja consistente com o racionalismo científico não foi ainda completamente desenvolvida e ampla- mente praticada. No entanto, essa visão pode inspirar o futuro da humanidade, e de fato ser a chave para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável global (Orr 1994). A capacidade tecnológica das sociedades industriais de- senvolvidas altera os ecossistemas naturais e causa impacto intenso sobre as populações selvagens. A sociedade humana industrial é agora uma força global capaz de alterar diversos processos naturais. Não há lugar na superfície da Terra em que pesticidas e outros poluentes não possam ser encontra- dos. A quantidade de azoto nos adubos químicos utilizados pelos agricultores ao redor do mundo agora é maior do que a quantidade total de nitrogênio naturalmente fixado por todas as plantas do mundo (Vitousek, 1994). Mais de 40% da pro- dutividade primária líquida terrestre da terra é utilizada pelos seres humanos. No entanto, talvez o mais desconcertante de todos os impactos ambientais globais da sociedade industrial é a mudança climática global. A mudança climática global está sendo causada por sociedades industriais que utilizam grandes quantidades de energia. Basta pensar em toda a eletricida- de e gasolina que você ou sua família usa em uma semana. Assim, devemos considerar quantas pessoas fazem a mesma coisa em todo nosso país, além de toda a energia consumida por empresas e indústrias. A maior parte dessa energia atu- almente vem da queima de combustíveis fósseis, como o gás Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 21 natural, petróleo e carvão. Quando os combustíveis fósseis são queimados, liberam dióxido de carbono para a atmos- fera, que junto com o metano, produzido em grande parte pela agropecuária, são a maior fonte de gases de efeito-estufa antropogênico. Desde o início da revolução industrial, a con- centração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou de 278 ppm (partes por milhão) para 373 ppm devido à atividade humana, e continua a aumentar em mais de 1 ppm por ano. Modelos do Painel Intergovernamental Para Mudanças Climá- ticas da ONU (IPCC) preveem que a temperatura média glo- bal aumentará entre 1,4 e 5,8°C até o final do século XXI, e é documentado que a temperatura média da superfície da Terra já aumentou 0,6°C entre 1950 e 2000. Isso pode ter grandes impactos sobre os seres humanos e ecossistemas. De fato, al- gunscientistas argumentam que o termo “Mudança Global do Clima” é um equívoco que subestima as consequências para a humanidade. O mais adequado seria Desastre Global do Cli- ma. A camada de gelo do Ártico, atualmente, é 30% menor e 35% mais fino do que era na década de 1970, e alguns cien- tistas preveem que irá desaparecer por completo até o final desse século. Isso terá consequências trágicas para espécies selvagens como ursos polares e focas, cujo habitat principal são blocos de gelo ártico. As previsões sobre elevação do nível do mar apontam o aumento 0,5 metros até o final do século XXI, o que inundaria estuários e habitats costeiros. Ele também poderia colocar muitas cidades grandes dos Estados Unidos abaixo do nível do mar, e grande parte do território de países de baixa altitude, como a Holanda e Bangladesh (Neuman et al., 2000). Bangladesh é um dos mais pobres e superpovoa- dos países do mundo, e é um exemplo do que poderá ocor- 22 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania rer com muitas nações impactadas pela mudança climática global, ainda que tenham pouca contribuição para as emis- sões de gases-estufa. No geral, a mudança climática causará uma maior variabilidade climática, na maioria dos lugares do mundo, com mais ondas de calor, incêndios florestais, secas e inundações. Não só isso, provavelmente ocorrerão maiores danos causados por tempestades, escassez de água, e as pro- duções agrícolas, talvez, mais baixas, mas também ocasionará o declínio e extinção de espécies mesmo em áreas protegidas como parques nacionais (Malcolm e Pitelka 2001). No geral, a mudança climática global tem o potencial de causar profun- das perturbações econômicas, e pode conduzir a um grande sofrimento humano nos países em desenvolvimento e à perda de biodiversidade insubstituível em todo o mundo. É importan- te enfatizar que é consenso entre a comunidade científica in- ternacional: 1) a atividade humana já causou alguma mudan- ça climática, 2) a mudança climática continuará ocorrendo, e 3) as consequências dessa mudança climática provavelmente serão bastante prejudiciais para os seres humanos e ecossis- temas (Pew Foundation, 2004). Mais de 3000 cientistas da Eu- ropa, América do Norte e Japão, especialistas em ciência do clima e entrevistados sobre o seu parecer científico manifesta- ram preocupações sérias sobre a existência de consequências negativas decorrentes de alterações climáticas de causa hu- mana. Infelizmente, aqueles que têm interesse em continuar a utilizar combustíveis fósseis, tais como a indústria do petróleo, apresentaram alguma controvérsia científica sobre mudança climática. Essas influências têm sido fortes nos EUA, e como resultado, houve pouco apoio a políticas que defendam ações mitigatórias em relação às mudanças climáticas globais. No Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 23 entanto, na Europa, muitas ações foram tomadas para dimi- nuir as emissões de dióxido de carbono, sem sacrificar a com- petitividade econômica (Blair, 2003). Grã-Bretanha e Holanda apresentaram um aumento na taxa de crescimento econômico depois de terem reduzido as emissões de dióxido de carbono na década de 1990. Desde o início do século XVII, 2,1% das espécies de ma- míferos do mundo e 1,3% das espécies de aves foram extin- tas (Primack, 2002). O potencial de extinções futuras é ainda maior, pois se estima que 12% das espécies de mamíferos e aves estão ameaçadas de extinção. Essas médias mundiais não retratam o quão ameaçados alguns tipos de vida selva- gem estão. Por exemplo, atualmente, 39% das espécies de papagaios, 79% das espécies de cervos e 68% das espécies de iguana do mundo estão ameaçadas de extinção. A perda e a alteração de habitats é considerada a maior ameaça à biodiversidade mundial, seguida por invasões de espécies exó- ticas. As taxas extincionais entre plantas e animais ameaçadas variam entre 100 a 10.000 vezes a taxa normal de extinção que é 1 espécie/1milhão de espécies/1milhão de anos e são equivalentes às observadas há 65 milhões de anos quando um grande meteoro atingiu a Terra. Esse acontecimento causou uma extinção em massa, que eliminou os dinossauros e inú- meras outras espécies. Uma coisa é clara, para melhor ou para pior, o futuro da relação entre os seres humanos e o meio ambiente será, em grande parte, determinado nas próximas décadas. Criar uma sociedade justa, sustentável globalmente com áreas naturais protegidas, ou um futuro de catástrofes climáticas, guerras en- 24 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania tre países superpovoados por recursos esgotados, e com per- da irreversível da vida selvagem e dos ecossistemas naturais, dependerá, em grande parte, das ações empreendidas nessa e nas próximas décadas. Os próximos capítulos fornecerão co- nhecimento científico e propiciarão reflexões para você parti- cipar da criação de uma sociedade sustentável. Depois disso, cabe a você. Recapitulando A relação entre os seres humanos e a natureza mudou dras- ticamente ao longo dos últimos 10000 anos. Em decorrência das mudanças culturais das sociedades de caçadores-coletores para a agrária e a sociedade industrial, cada vez mais popu- lações humanas maiores exigem o aumento da manipulação do mundo natural para a produção eficiente de alimentos. O aumento da eficiência da produção de alimentos levou a uma maior complexidade social e à especialização profissional, que, por sua vez, acarretou ainda maiores taxas de mudan- ça cultural e tecnológica. A necessidade cada vez maior de controlar a natureza para produzir alimentos, combinada com a crescente desconexão entre os seres humanos e o mundo natural na vida diária, se refletiu na visão da própria nature- za resultando em religiões mais complexas. Durante a história das sociedades humanas, animais selvagens deixaram de ser sinônimo de poder divino, tornando-se a antítese disso. Isto é, uma mercadoria para a venda em uma sociedade que não mais reconhecia seus poderes divinos, tonando-se, por fim, um recurso precioso, insubstituível que deve ser protegido. Tal- Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 25 vez a tendência mais importante a ser reconhecida na história da relação entre seres humanos e natureza é que a alteração e exploração cada vez mais intensas dos ecossistemas levou a uma perda constante de animais selvagens, biodiversidade e das paisagens naturais. Muitas pessoas acreditam que a cul- tura humana está agora em um ponto de virada histórico. O poder tecnológico da sociedade industrial moderna torna os seres humanos uma força verdadeiramente global, com incrí- vel capacidade de manipular o mundo natural. A escala global do poder humano significa que nós também temos uma res- ponsabilidade em escala global para garantir que o poder seja usado com sabedoria. Há muitos aspectos positivos da socie- dade industrial desenvolvida que prenunciam uma sociedade sustentável, como baixas taxas de natalidade e uma valoriza- ção crescente de natureza e vida selvagem. A sociedade indus- trial desenvolvida também trouxe altos padrões de vida e direi- tos pessoais. No entanto, os benefícios da sociedade industrial são, em parte, o resultado da rápida exploração dos recursos naturais, o que tem consequências negativas significativas para a qualidade ambiental e da vida selvagem das populações, e que só vai aumentar no futuro próximo conforme mais países se tornarem industrializados. O potencial para a exploração excessiva dos recursos e sistemas naturais ameaça concreta- mente muitos dos benefícios da industrialização. Muitas áreas selvagens e populações de animais selvagens são suscetíveis de serem destruídos, e tudo sem qualquer benefício em longo prazo. O desafio do século XXI será descobrir como criar uma sociedade global sustentável,que mantém os benefícios da industrialização, permite o acesso a esses benefícios para mais pessoas ao redor do mundo e ainda preserva a qualidade do 26 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania ambiente e da biodiversidade. Essa é uma tarefa complexa e difícil, e exigirá um significativo salto na evolução cultural de nossa sociedade. Referências Blair, T. 2003. The Prime Minister’s speech on sustaina- ble development. abrupt climate change Commission (RB Alley, President). 2001. Abrupt climate change: inevitable surprises. National Academy Press, Washington, DC. Flannery, T. 1994. The Future Eaters: an ecological history of land and Australasia people. Reed New Holland, Sydney. Flannery, T. 2001. The Eternal Frontier: An Ecological History of North America and its people. Grove Press, New York Gottlieb, RS (editor) 1996. This Sacred Earth: Religion, Natu- re, Environment. Routledge, New York. Intergovernmental Panel on Climate Change. 2001. Climate Change 2001: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Krebs, CJ 1994. Ecology. Addison-Wesley Educational Publi- shers. Prentice Hall, New Jersey. Malcolm, J. and L. Pitelka. 2001. Ecosystems and Global Climate Change: A review of potential impacts on US Ter- restrial Ecosystems and Biodiversity. Prepared for the Pew Center for Global Climate Change. Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 27 Masters, GM 1996. Introduction to Environmental Science and Engineering. Montgomery, K. 2004. Department of Geography and Ge- ology at the University of Wisconsin. Neuman, J., G. Yohe, R. Nichols and M. Manion. 2000. Sea Level Rise and Global Climate Change: a review of im- pacts to back US.Preparado to the Pew Center for Global Climate Change. Orr, DW 2004. Earth in mind: Education, Environment, and human perspective. Island Press, Covelo CA Pew Center on Global Change Clima. Richerson, PM Borgerhoff-Mulder and B. Vila. 1996. Princi- ples of Human Ecology. Simon and Schuster, New York. Snyder, G. 1990. Practice of the Wild. North Point Press, San Francisco. Tuan Yi-Fu. 1982. Worlds and we targeted them. University of Minnesota Press. Warren, LS 2003. American Environ- mental History. Blackwell Publishing, Madden, the United Nations Population Massachusetts. Wilber, K. 1996. Fri, Ecology, Spirituality. Shambhala Publi- cations, Boston. Wilber, K. 2000. A Brief History of Everything. Shambha- la Publications, Boston Wilson, EO 1984. Biophilia: the human bond with other species. Harvard University Press, Cambridge, MA. 28 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania Atividades 1) Julgue as afirmações a seguir: I- A maioria dos povos caçadores-coletores é migrató- ria, pois o estilo de vida caçador-coletor pode supor- tar apenas um número relativamente pequeno de pes- soas. II- Para os antropólogos, nos sentimos mais à vontade em ambientes similares aos ambientes naturais porque os seres humanos, na maioria de sua história evolutiva, viveram em sociedades tribais de caçadores-coletores. III- A capacidade das sociedades de caçadores-coletores de coexistir com a vida selvagem é atribuível à sua representação mágica e reverente da natureza. a) I, II e III estão corretas. b) Apenas I está correta. c) Apenas I e III estão corretas. d) Apenas II está correta. e) Apenas II e III estão corretas. 2) Julgue as afirmações a seguir: I- O desenvolvimento de uma classe dominante nas pri- meiras sociedades agrárias resultou de uma maior di- visão do trabalho e, esta, de uma maior produtividade da agricultura. Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 29 II- Os deuses e deusas das primeiras sociedades agrárias possuíam um rosto animal, tal como nas sociedades de caçadores-coletores. III- Nas sociedades de pastoreio, assim como as agrárias, os sacrifícios eram normalmente de animais. a) I, II e III estão corretas. b) Apenas I está correta. c) Apenas I e III estão corretas. d) Apenas II está correta. e) Apenas II e III estão corretas. 3) Julgue as afirmações a seguir: I- A escrita já estava presente nas sociedades agrárias avançadas, o que permitiu o desenvolvimento de uma estrutura altamente estratificada. II- A maior intensidade física do trabalho e o uso de ani- mais de grande porte e arados tornou as mulheres menos capazes de contribuir para a aquisição de ali- mentos, o que geralmente resultou em um status social inferior nas sociedades agrárias quase universalmente patriarcais. III- A perda da santidade da natureza e do mundo ma- terial ajudou a alimentar a destruição ambiental nas sociedades agrárias tardias. a) I, II e III estão corretas. 30 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania b) Apenas I está correta. c) Apenas I e III estão corretas. d) Apenas II está correta. e) Apenas II e III estão corretas. 4) Julgue as afirmações a seguir: I- As populações crescentes das sociedades agrárias tar- dias forneceram um excesso de trabalhadores para países na fase inicial de industrialização que trabalha- vam por salários baixos em condições precárias. II- A influência das mulheres diminui nas sociedades in- dustriais, presumivelmente porque a produtividade econômica torna-se mais ligada à força física. III- A valorização científica da natureza e da vida selva- gem combinadas com os sentimentos expressos pelos filósofos românticos e o trabalho de artistas e natura- listas criaram o movimento de conservação durante o início da era industrial. a) I, II e III estão corretas. b) Apenas I está correta. c) Apenas I e III estão corretas. d) Apenas II está correta. e) Apenas II e III estão corretas. 5) Julgue as afirmações a seguir: Capítulo 1 As Relações das Sociedades Humanas com a Natureza 31 I- A estabilização da população humana global e uma diminuição do consumo per capita de recursos natu- rais nas sociedades industriais avançadas serão, sem dúvida, necessárias para a sobrevivência da fauna, preservação de ambientes naturais e, finalmente, o bem-estar dos seres humanos em todo o mundo. II- O aquecimento global de causa antrópica ainda care- ce de evidências científicas. III- As atuais taxas de extinção podem ser comparadas com extinções em massa causadas por fatores exóge- nos como a queda do meteoro há 65 milhões de anos. a) I, II e III estão corretas. b) Apenas I está correta. c) Apenas I e III estão corretas. d) Apenas II está correta. e) Apenas II e III estão corretas. Rafael Lacerda Martins1 Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico de Desenvolvimento1 1 Geógrafo, Mestre em Geografia, Curso de Geografia, ULBRA. Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 33 Introdução A questão ambiental, hoje, mostra-se como um verdadeiro problema social, visto que concentra aspectos fundamentais no campo da política, da economia e da sociedade. Desse modo, constitui-se em uma esfera de relação sociedade-natu- reza, englobando um sistema integral, envolvendo elementos físico-bióticos com elementos sociais. No caso de elementos físico-bióticos, podemos elencar os elementos do relevo, da fauna, da flora, da botânica, do clima etc. Já para os ele- mentos sociais, podemos condicionar os padrões de movi- mentos migratórios, concentrações populacionais, atividades agrícolas e industriais etc. Tal relação é marcada fortemente por ações humanas e tecnológicas de interferências e redire- cionamentos dos nossos recursos, dos métodos de produção e transformação da natureza que têm levado aos acelerados processos degradantes responsáveis por um comprometimen- to das condições ambientais. 1 O meio ambiente e a questão ambiental Segundo Walter Casseti, o problema ambiental nasce da pers- pectiva da apropriação e transformaçãoda natureza de ma- neira espontânea, ou seja, a natureza é vista como efeito útil e imediato, indispensável ao acúmulo do capital. A evolução dos problemas ambientais é proporcional à intensificação da produção da natureza. Em uma primeira análise acerca da questão, vemos um ambiente degradado associado a uma 34 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania escassez de recursos em uma sociedade com grande neces- sidade de gerar recursos, e a fim de transformá-los em recur- sos financeiros. Tal prática acaba sendo uma necessidade real do mundo de hoje e, consequentemente, refletindo fortemente nas desigualdades sociais e econômicas, resultando em uma maior degradação do ambiente. Assim, o problema ambiental se materializa através das forças produtivas, isto é, onde se dá a relação entre a socie- dade e a natureza, ou, mais especificamente, entre a força de trabalho e os meios de produção. Portanto, aqueles que inte- gram as relações de produção são os que definem as relações da sociedade com a natureza, esse é o momento em que os problemas ambientais materializam-se. Dessa forma, o mode- lo vigente e seguido condiciona a um comprometimento dos sistemas naturais e coloca em cena uma discussão do estabe- lecimento do repensar, ou seja, uma mudança fundamental do relacionamento da sociedade com a natureza. [...] a crise ambiental deriva de um modelo de desenvol- vimento desigual para as sociedades humanas e agressor para os sistemas naturais, fato que reafirma a necessi- dade de abordagem dos desafios de natureza social e ecológica à luz da ecopolítica. (AJARA, 1993, p. 10) Nesse sentido, o aprimoramento tecnológico assume o ca- ráter decisório em nossa análise, porque reúne importantes questões como: alteração das limitações técnico-científicas e instrumentais, visão em diferentes escalas, novos equipamen- tos que foram viabilizados e transformaram-se em modelos incapazes de comprometer o ambiente. Mas o fator político- Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 35 -econômico também está presente, na verdade, sem ações po- líticas e econômicas não há ordenamento e reorganização do espaço. A conscientização ecológica fulmina como uma força que movimenta todas essas ideias: de mudanças, do repensar, da redefinição da prática, enfim, o contraponto desse quadro de degradação. Junto a essa conscientização, deve haver uma estruturação e reorientação da ética e do pensamento em tor- no de fatos políticos que envolvem e permeiam a questão am- biental, devendo assim assumir a qualidade de um compro- misso social, promovendo um desenvolvimento em um estágio menos impactante, capaz de exercer e promover uma melhor qualidade de vida da nossa sociedade. Nesse sentido, as inter- -relações e as articulações da problemática ambiental devem estar vinculadas à tentativa de criar soluções sob uma visão dos processos sociais, já que motivam a degradação ambien- tal e a intensificação dos processos. Lembramos que os pro- cessos sociais aos quais nos referimos são as ações da socie- dade, como o desenvolvimento da agricultura, da distribuição de renda e terra no campo, das políticas e planejamento de saneamento básico. 2 O meio ambiente contextualizado no contemporâneo As insuficiências nos estudos chegam ao final do século XX com a evidência dos problemas da humanidade e de sua relação com o planeta terra. A degradação da natureza, a poluição 36 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania dos rios, os desastres naturais (enchentes, pragas, poluição das cidades), fez o mundo atentar sobre os desequilíbrios das atividades humanas em relação das dinâmicas da natureza. Observou-se que tudo está interligado e que o homem não se encontra isolado, à parte, da natureza. Qualquer atividade humana, de toda uma população, ou somente de um indiví- duo, irá trazer consequências à dinâmica do ar e das águas, pois essa população, ou esse mero indivíduo, come, produz resíduo, constrói e modifica os elementos meramente naturais. Por outro lado, o homem também é natureza, mas durante muito tempo, devido sua capacidade de produzir trabalho, de produzir técnica, ele construiu outro espaço que não é mais totalmente natural, é “humanizado” ou “tecnificado” – como o espaço das grandes cidades, por exemplo, no qual somen- te vemos prédios e estradas (concreto e asfalto). O homem, se afastando da natureza, a modificou e alterou seus ritmos. Muitos desses ritmos alterados desequilibram os processos na- turais (chuvas, ventos, dinâmicas fluviais dos rios –, qualida- de das águas – para consumo humano) e provocam danos à própria humanidade (racionamento de água, degradação dos solos na agricultura e menor produtividade, poluição do ar e doenças respiratórias, alteração das dinâmicas dos rios e enchentes, degradação da camada de ozônio e aumento dos raios ultravioleta, provocando câncer de pele, entre outros exemplos). Atualmente, novos estudos procuram observar como as atividades humanas produzem alterações nas dinâmicas natu- rais e, consequentemente, alteram também a vida das pessoas que habitam um determinado lugar. Esses estudos, muitos de- les, aparecem no próprio meio urbano, das cidades, onde a Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 37 ocupação desordenada destrói a vegetação das encostas dos morros e causa muitos acidentes como desabamentos e so- terramentos. Por outro lado, as constantes enchentes também são consequências do aumento da ocupação do solo, tanto na cidade (pela moradia) quanto no campo (pela agricultura). Esses processos são provocados pela retirada da vegetação e a tendência à manutenção da incidência das chuvas, já tam- bém em níveis e constâncias desequilibrados, produzindo uma maior mobilização e o acúmulo de sedimentos (partículas de solo, areia, por exemplo) no leito dos rios. Esse acúmulo faz com que os rios transbordem facilmente, ocasionando, assim, as enchentes que, por outro lado, danificam as habitações na cidade e a agricultura no campo. Vejam como tudo está in- terligado e como a ação humana descontrolada promove um ciclo desastroso. Nesse sentido, cada vez mais se procura no estudo a com- plexa conexão entre elementos físicos e humanos do espaço, dando qualidade ao que seria o “espaço geográfico”, não somente espaço natural ou espaço humano (social), mas “es- paço geográfico”, no qual a geografia é a qualidade dessa integração. 3 O processo histórico de desenvolvimento a partir do meio técnico-científico-informacional Milton Santos, no estudo do espaço geográfico, desenvolveu a ideia da história humana a partir dos acontecimentos rela- 38 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania cionados à da construção e aos usos dos sistemas técnicos. A evolução é contada pelo conjunto de normas e técnicas pro- dutivas que marcam o avanço do sistema capitalista no mun- do, principalmente após a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. A análise constitui a passagem do meio geográfico natural para o meio técnico, em decorrência da forte humani- zação, ou seja, da intensa concentração humana, dos espaços geográficos apresentados no mundo de hoje. Associam-se os valores e as práticas organizadas por um sistema de objetos geográficos (cidades, transportes, comunicações), subsidia- dos pelos avanços e acontecimentos da sociedade ocidental, como a colonização europeia no mundo. A história do homem sobre a Terra é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do planeta, armando-se de novos instru- mentos para tentar dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história humana da na- tureza. (SANTOS, 1994, p. 17) No que tange ao meio técnico de hoje,podemos observar que houve uma evolução no meio técnico-científico-informa- cional, no sentido da abrangência das concentrações de áreas científicas e econômicas. De certa forma, a ciência serve de base técnica para os avanços econômicos e para a preser- vação do sistema. Nesse caso, os progressos dos sistemas de comunicação aparecem como um instrumento para o desen- volvimento produtivo e financeiro. Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 39 Para Santos, o processo do meio técnico-científico-infor- macional2 é destacado por alguns processos, tais como: a unicidade técnica, ou seja, a distribuição das técnicas indus- triais por todo o planeta, que aconteceu com grande rapidez e velocidade, indicando novas formas de comercialização e inserção mercadológica de produtos; a globalização “incom- pleta e perversa”, que se dá em um sentido contínuo do pro- cesso de modernização dos territórios, forçando o início de estágios para o capitalismo internacional com interesses de investimentos especulativos e específicos em setores produtivos e em determinados lugares do mundo. Essa globalização se torna “incompleta e perversa” porque a abrangência não é em todo território, assumindo estágios diferenciados de níveis tecnológicos e produtivos e, por sua vez não atingindo toda a população. Esse processo evidencia também que parte da população mundial não está conectada à rede, deixando de participar e absorver as vantagens do meio técnico-científico informacional e gerando segregação espacial diretamente re- lacionada ao processo de globalização. Outro ponto que fundamenta o pensamento de Milton Santos é a universalização da mais-valia,3 que se tornou uma ferramenta de dominação do sistema global, e está sujeita à capacidade técnica e às relações de trabalho no âmbito do 2 Período tecnológico onde a técnica representa um intermediário entre a natureza e o homem (conversão de ações científicas), além de marcar o tempo da velocida- de em que são transmitidas as informações entre os distintos lugares, caracterizada pela instantaneidade. Em outras palavras, é um meio geográfico no qual o território inclui obrigatoriamente ciência, tecnologia e informação. 3 A mais-valia é a base do sistema capitalista. É um conceito marxista que decorre a partir da diferença do valor de produção (trabalho) e o valor pago ao assalariado. 40 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania sistema capitalista. A convergência dos momentos estabele- cidos pelo acesso às comunicações no mundo foi decorrente da tecnologia de ponta e da grande capacidade de transmis- são e velocidade de dados. Para exemplificar, podemos citar os grandes centros jornalísticos e as comunicações via satélite que convergem para todas as partes do planeta através das redes globais. O autor ainda destaca a ampliação da área de produ- ção e o aumento das verticalidades. Estas últimas representam as influências externas em torno das novas técnicas, de forma mais específica. Novos padrões e normas são estabelecidos e que modificam as configurações espaciais, como o uso das tecnologias de telefonia celular. Outro conceito trabalhado é o de “capitalismo planetário”, que consiste na forte abrangência sob o território, atingindo os territórios tradicionais e modifi- cando outros através de políticas de investimentos ou da cons- tituição de novos interesses econômicos, configurando assim novas relações econômicas, políticas sociais e culturais. Apesar da mundialização que caracteriza o período em curso, desorganizando as formas de produção e organi- zação social preexistentes, o que se processa é a criação de novas desigualdades. O novo processo civilizatório acaba por esbarrar nas condições econômicas, sociais, culturais e ecológicas de cada área, região ou país, o que torna cada lugar diferente de outro, apresentando um arranjo entre as variáveis modernas e as preexisten- tes que não será encontrado em outra parte, muito em- bora existam semelhanças entre várias situações. (ELIAS, 2001, p. 215) Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 41 O processo da globalização, que inclui o meio técnico- -científico-informacional, associado à nova divisão do traba- lho, é refletido na configuração espacial das empresas multi- nacionais. A dinâmica econômica rege o processo produtivo e, por sua vez, rege a cadeia produtiva que está distribuída pelas diferentes partes do globo, que estando interligados por combinações eficientes, asseguram a rede de produção. Para identificar aspectos do processo de globalização, no contexto do processo industrial, podemos citar a economia dominada pelo sistema financeiro que indica concentração de renda, ou seja, excedente de capitais. A globalização e os processos de produção flexível e multilocais, exemplificados pela redução de custos e pela emergência dos blocos econômicos associados ao liberalismo da economia, buscam investimentos técnicos para a produção de novos atrativos consumistas. A revolução das tecnologias de transporte e comunicação indica uma liga- ção ao processo de produção flexível e multilocal, na medida em que as empresas mundiais procuram espaços interligados à rede. Para fomentar esse momento de espacialização das economias mundiais, podemos citar a desregulamentação das economias nacionais, tão necessárias para que o estabeleci- mento dos processos multilocais ocorra em conjunto com as mudanças das políticas nacionais desses novos locais. O mundo tal como nos fazem crer: a globalização como fábula. (SANTOS, 2000. p. 18-20) Este mundo globalizado, visto como fábula, erige como verdade um certo número de fantasias, cuja repetição, entretanto, acaba por se tornar uma base aparentemente 42 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania sólida de sua interpretação. (Maria da Conceição Tava- res, Destruição não criadora, 1999) A máquina ideológica que sustenta as ações preponde- rantes da atualidade é feita de peças que se alimentam mutuamente e põem em movimento os elementos es- senciais à continuidade do sistema. Damos aqui alguns exemplos. Fala-se, por exemplo, em aldeia global para fazer crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do encurtamen- to das distâncias – para aqueles que realmente podem viajar – também se difunde a noção de tempo e espaço contraídos. É como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão. Um mercado avassa- lador dito global é apresentado como capaz de homo- geneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas. Há uma busca de uniformida- de no serviço dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado. Fala-se, igualmente com insistência, na morte do Esta- do, mas o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes in- teresses internacionais, em detrimento dos cuidados com as populações, cuja vida se torna mais difícil. Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 43 4 Conceito de gestão ambiental e planejamento ambiental no desenvolvimento do pensamento ambiental O conceito de gestão ambiental diz respeito à administração, pelo governo, do uso dos recursos ambientais, por meio de ações ou medidas econômicas, investimentos e providências institucional e legal, com a intenção de manter ou recuperar a qualidade do ambiente, assegurar a produtividade dos recur- sos e o desenvolvimento social. A gestão ambiental proposta, muitas vezes, acaba sendo uma alternativa positiva na manutenção e no planejamento das condições ambientais, por estar inserida em diferentes ní- veis da sociedade e do Estado. Além disso, conta com a in- terdisciplinaridadeda ciência, que qualifica e desenvolve uma opção objetiva no sentido de dimensionar ações fundamen- tais para políticas ambientais e na implementação de políticas de planejamento econômico-social. A gestão ambiental tenta condicionar uma política adequada de desenvolvimento, pro- movendo, assim, um equilíbrio entre relações da sociedade e da natureza. Podemos definir como planejamento ambiental um pro- cesso racional de tomada de decisões, o qual implica ne- cessariamente em uma reflexão sobre as condições sociais, econômicas e ambientais que orientam qualquer ação e de- cisões posteriores. No entanto, existem várias definições para a expressão planejamento ambiental. Conforme Botelho, são 44 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania identificadas duas linhas principais do processo de planeja- mento: a linha da demanda, na qual: o planejamento ambiental consiste em um grupo de me- todologias e procedimentos para avaliar as consequên- cias ambientais de uma ação proposta e identificar pos- síveis alternativas a esta ação; e a linha de oferta, onde existe um conjunto de metodologias e procedimentos que avalia as contraposições entre as aptidões e usos dos ter- ritórios a serem planejados. (BOTELHO, 1999, p. 274) O planejamento ambiental e o desenvolvimento local/re- gional, como processo de mudança socioambiental, traduzem um esforço de análise multidisciplinar, bem como uma análise geográfica, permitindo, assim, definir prioridades e orientar a tomada de decisões político-ambientais. O planejamento ambiental apresenta-se, então, como um instrumento que permite formular objetivos diferenciados e comuns para cada causa identificada. Em alguns casos de análises, não existirá uma ligação direta, mas existirá, sim, um envolvimento real das relações mais complexas entre as di- ferentes dimensões relacionadas, como as de ordem econô- mica, social, ambiental e política, que configuram a análise geográfica. No planejamento ambiental, as decisões executadas par- tem da prioridade do meio ambiente sobre o homem, e da prioridade do homem sobre as atividades econômicas. O pla- nejamento é composto por uma série de etapas e processos, que mostram as fragilidades e as potencialidades do meio. Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 45 [...] o planejamento ambiental consiste na adequação de ações com a potencialidade, vocação local e a sua ca- pacidade de suporte, buscando o desenvolvimento har- mônico da região e a manutenção da qualidade do am- biente físico, biológico e social. (SANTOS, 2004, p. 28) O elemento norteador na aplicação de ações e de progra- mas no planejamento ambiental são os sistemas ambientais.4 A meta é minimizar ao máximo os impactos e transformações no meio. A maioria dos planejamentos ambientais utiliza-se dos métodos espaciais de representação com base na estru- tura de integração dos elementos ambientais. Eles têm a ca- pacidade de ordenar, classificar, dividir ou integrar um dado espacial. Por exemplo: apresentação dos mapas, gráficos e tabelas, descrevendo, enumerando, classificando os elemen- tos, para uma metodologia ampla e sistemática em torno do planejamento. Nessa perspectiva, a questão ambiental adota uma postu- ra que resgata a unidade das ciências ambientais, pela razão que se constitui em uma proposta de discussão voltada para ciência, através de uma reflexão científica. Essa possibilidade de discussão está de acordo com um referencial teórico e me- todológico que impossibilita, de certa maneira, a retomada da temática em torno de antigos paradigmas. A postura de uni- dade tenta acabar com aquela análise reducionista presente nas análises do tipo homem-homem, homem-meio. A relação 4 Conjunto de processos de interações dos elementos que compõem o meio am- biente, incluído, além dos fatores físicos e bióticos, os de natureza socioeconômica, política e institucional. IBGE. Vocabulário Básico de Recursos Naturais e Meio Ambiente. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. 46 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania sociedade-natureza intensifica uma visão social e verdadeira, recuperando toda sua riqueza e complexidade. Também se percebe interfaces desses aspectos sociedade-natureza, mas o mais importante é a observação de como essa sociedade se articula e se apropria da natureza. Nessa perspectiva, a dis- cussão assume a característica da percepção inicial e final do meio social, associando seus processos políticos e econômicos com os fenômenos naturais. A partir dessa perspectiva, é possível construir uma ciência capaz de desenvolver uma análise no sentido político-social envolvendo a questão ambiental. Nesse ponto, a ciência am- biental aparece como elemento integrador da interdisciplina- ridade, sendo responsável por uma análise clara e expressiva da realidade totalizante. 5 Sustentabilidade ambiental no contexto do processo histórico de desenvolvimento A degradação do ambiente é uma das consequências mais negativas oriundas do atual modelo agrícola no espaço bra- sileiro. Na medida em que o solo perde parte de sua fertilida- de, provoca alterações em toda sua estrutura de produção. A decorrência dessas práticas agrícolas utilizadas atualmente acaba privilegiando a modernização do setor agrícola atra- vés do uso intensivo de máquinas e insumos modernos. No conjunto dessa análise aparece a monocultura, que provoca um rompimento do equilíbrio natural, que havia quando os Capítulo 2 Meio Ambiente e Processo Histórico... 47 cultivos apresentavam uma maior variedade de vegetais. A pressão exercida pela ocupação em determinadas áreas, prin- cipalmente por atividades agrícolas intensivas, aliadas a uma despreocupação quanto à adoção de práticas conservacionis- tas, tem dado lugar a uma perda dificilmente recuperável do potencial produtivo das terras, a qual tem como causa prin- cipal a erosão acelerada. A preocupação em resolver ques- tões relacionadas a esse tema tem propiciado a criação de metodologias de trabalho voltadas à adoção de medidas que busquem compatibilizar os usos com as limitações particulares a cada território. A concepção ampla de desenvolvimento considerado sus- tentável obedece ao princípio de questões universais, isto é, necessariamente terá de englobar algumas características ane- xas e não apenas os aspectos econômicos e ambientais. Tais aspectos introduziram uma visão mais integradora e totalizante dos problemas e levaram a um certo planejamento. Mas, na construção de um desenvolvimento considerado sustentável de fato, deve-se trabalhar em diferentes escalas, e as diferenças não devem ser entendidas isoladamente, mas, sim, a partir de análise global, ou dos problemas históricos encontrados, como a exclusão social, a erosão dos solos, a falta de ca- pacidades de gestão, as baixas produtividades da terra e do trabalho. Então, é verificado na verdade problemas nas mais diferentes escalas, em diversos aspectos, conectados em um contexto de desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, a sus- tentabilidade do ambiente obriga que seja aplicada uma aná- lise que interliga elementos sociais, ambientais, institucionais, políticos e produtivos. Deve envolver uma visão integradora da realidade, abandonando a possibilidade que somente um 48 Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cidadania aspecto consegue dar conta dela. O aspecto econômico deve ser entendido como um elemento determinante do compor- tamento dos processos, e, por meio dessa, todas as outras dinâmicas são impulsionadas. Certamente, a importância de uma etapa investigativa e contextualizadora significa o início para um desenvolvimento sustentável em relação à economia e ao desenvolvimento re- gional, na medida em que isso serve para uma análise dos recursos naturais e das condições do espaço em relação aos processos já degradados
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