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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/216743944 Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa Book · January 2011 CITATIONS 101 READS 783 2 authors, including: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Análise interdiscursiva de políticas públicas View project Organização da Coleção Faces da Cultura e da Comunicação Organizacional View project Viviane De Melo Resende University of Brasília 120 PUBLICATIONS 554 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Viviane De Melo Resende on 11 July 2018. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/216743944_Analise_de_discurso_para_a_critica_o_texto_como_material_de_pesquisa?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/publication/216743944_Analise_de_discurso_para_a_critica_o_texto_como_material_de_pesquisa?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Analise-interdiscursiva-de-politicas-publicas?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Organizacao-da-Colecao-Faces-da-Cultura-e-da-Comunicacao-Organizacional?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Viviane_Resende2?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Viviane_Resende2?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/University_of_Brasilia?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Viviane_Resende2?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Viviane_Resende2?enrichId=rgreq-c8f5fafcfd2583acedcb5815f84c697f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzIxNjc0Mzk0NDtBUzo2NDY5OTgwODg3NjEzNDRAMTUzMTI2Nzc3MzEzNQ%3D%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Índices para catálogo sistemático: 1. Análise de discurso crítica 410 2. Linguística 410 3. Discurso 410 Ramalho, Viviane - Resende, Viviane de Melo Análise de discurso (para a) crítica: O texto como material de pesquisa - Viviane Ramalho - Viviane de Melo Resende Coleção: Linguagem e Sociedade Vol. 1 Campinas, SP : Pontes Editores, 2011. Bibliografia. ISBN 978-85-7113-336-5 1. Análise de discurso crítica 2. Linguística 3. Discurso I. Título Copyright © 2011 das autoras Coordenação Editorial: Pontes Editores Editoração e capa: Eckel Wayne Revisão: Pontes Editores Coleção: Linguagem e Sociedade - Vol. 1 Coordenação da Coleção: Kleber Aparecido da Silva POntES EditOrES rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão Campinas - SP - 13070-056 Fone 19 3252.6011 Fax 19 3253.0769 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br 2011 impresso no Brasil 5 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA PREFÁCIO Este livro dá continuidade às reflexões das autoras sobre a proposta da Análise de Discurso Crítica de subsidiar cienti- ficamente pesquisas que têm no texto o seu principal material de trabalho. As discussões iniciais, que têm servido de referência para trabalhos com a Análise de Discurso Crítica no Brasil não só na área específica da Linguística como também em Linguística Aplicada, Educação, Ciências Sociais, Comunicação, dentre outros, são aprofundadas neste trabalho. O aprofundamento nas discussões não compromete a proposta de divulgar de modo claro e acessível os estudos críticos da linguagem de- senvolvidos pela ADC de origem britânica. Com abordagem interdisciplinar e didática, as autoras avançam na apresentação da teoria, método e aplicação analítica da ADC, sem perder de vista o amplo e diversificado público a quem interessa o assunto. Oferecem, de modo claro e objetivo, exemplos de práticas de análise assim como um prático Glos- sário que descreve e sintetiza intrincados conceitos e categorias de análise textual. Retomando noções preliminares e ao mesmo tempo oferecendo novas informações e perspectivas de aplica- ção da ADC, as autoras esmeram-se em tornar mais acessíveis complexos estudos interdisciplinares desenvolvidos na Ingla- terra, que ainda carecem de maior sistematização no Brasil. Desse modo, o livro é um convite tanto para a iniciação quanto para o aprofundamento na Análise de Discurso Críti- ca, destinado não só a leitores/as, estudantes, pesquisadores/ as e professores/as que já conhecem reflexões anteriores das autoras, mas também àqueles/as que pretendem dar seus primeiros passos rumo a uma perspectiva crítica dos estudos da linguagem. Brasília, fevereiro de 2011 Prof. Dr. Kleber Aparecido da Silva Universidade de Brasília (UnB) Coordenador Geral da Série “Linguagem e Sociedade” SUMÁRIO Prefácio .........................................................................5 Apresentação .................................................................9 Capítulo 1 Análise de Discurso Crítica: resgatando noções preliminares ....................................11 Capítulo 2 ADC como abordagem teórica para estudos críticos do discurso ...................................31 Capítulo 3 ADC como abordagem teórico-metodológica para estudos do discurso ...............................................73 Capítulo 4 Análise textual aplicada: categorias analíticas e exemplos de análise ....................................................111 Posfácio .........................................................................157 Glossário .......................................................................159 Referências Bibliográficas ............................................179 As autoras ......................................................................193 9 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA APRESENTAÇÃO Neste livro, avançamos em discussões anteriores sobre a Análise de Discurso Crítica (ADC) de vertente britânica, mas sem perder de vista leitores/as iniciantes ou de outras áreas de conhecimento. Retomamos alguns conceitos centrais da disci- plina para, então, discutirmos um dos principais diferenciais da ADC britânica, que é fornecer subsídios científicos para estudos qualitativos que têm no texto o seu principal material de pesquisa. Ao contrário de trabalhos anteriores, em que abordamos principalmente a origem da ADC e os diversos diálogos teóricos que a constituem, neste livro o foco é no trabalho de pesquisa com o principal material empírico em ADC: o texto. No primeiro capítulo, resgatamos noções importantespara a compreensão da proposta científica da ADC, tais como “discurso”, “poder como hegemonia”, “ideologia”. Procura- mos destacar por que essas noções fundamentam a concepção de linguagem como prática social e como instrumento de poder, sendo, portanto, pontos de partida para a compreensão da proposta teórica e metodológica em ADC. No segundo capítulo, buscamos esclarecer motivos que fazem esta ser uma vertente crítica para estudos da linguagem. Também refletimos sobre a concepção de “texto como evento discursivo”, em cujo cerne estão as compreensões de “prática social” e “ordens de discurso”. Como parte dessa reflexão, apresentamos os significados do discurso, uma proposta da ADC de compreender a linguagem segundo sua funcionali- 10 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA dade nas práticas sociais: como forma de agir no mundo e se relacionar, de representar e de identificar a si, a outrem e a aspectos do mundo. No terceiro capítulo, buscamos esclarecer procedimentos teórico-metodológicos para realização de pesquisas qualita- tivas subsidiadas pela proposta da ADC. Discutimos o arca- bouço metodológico básico – inspirado no Realismo Crítico –, que é motivado por problemas sociodiscursivos e composto por investigações de cunho social e discursivo. Também le- vantamos reflexões sobre os dois principais paradigmas de investigação em ADC. Por fim, no Capítulo 4, discutimos e exemplificamos o processo de análise textual, praticado na ADC como parte do processo de análise de discurso. A partir de um texto jorna- lístico, fazemos explanações sobre traços textuais moldados por modos de agir/gêneros, modos de representar/discursos e modos de ser/estilos, analisando categorias como avaliação, coesão, estrutura genérica, interdiscursividade, intertextuali- dade, dentre outras. Para sistematizar a discussão, oferecemos ao final do livro um Glossário que sintetiza alguns conceitos centrais, que aparecem em negrito no texto, bem como todas as categorias de análise trabalhadas. Com este livro, esperamos contribuir para a divulgação e compreensão da proposta científica da ADC, buscando suprir a reconhecida carência de maior sistematização desses estudos no Brasil e, ainda, ampliar as possibilidades de diálogos mais efetivos entre a ADC e outras disciplinas. 11 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA cApítulo 1 ANÁLISE DE DISCURSO CRíTICA: RESGATANDO NOçõES PRELImINARES Neste capítulo, retomamos noções preliminares da ADC, tais como “discurso”, “poder como hegemonia”, “ideologia”, que fundamentam a concepção de linguagem como prática social e como instrumento de poder. Uma vez que em ADC as análises discursivas precisam articular análises linguísticas do texto e explanações de caráter social, então os conceitos de ‘discurso’, ‘hegemonia’ e ‘ideo- logia’ adquirem relevo. Isso porque esses conceitos apontam tanto para as instanciações discursivas específicas que anali- samos quanto para as práticas sociais a elas associadas. É por isso que consideramos esses conceitos um bom começo para um livro como este, que busca intrumentalizar pesquisadores/ as para análises discursivas. Assim, abordamos o conceito de ‘discurso’, pedra ba- silar de todo o referencial da ADC. Respondemos questões como ‘o que é discurso?’, ‘por que a ADC é crítica?’, ‘o que significa a relação dialética entre linguagem e sociedade, de que tanto se fala em ADC?’, ‘qual é a relação entre discurso e prática social?’. Discutimos, também, a heterogeneidade de abordagens em ADC, esclarecendo que não se trata de cam- po homogêneo, ao contrário, constitui-se de um conjunto de abordagens diversas que, no entanto, mantêm continuidades. Retomamos, ainda, os conceitos de hegemonia de Gramsci e 12 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA de ideologia de Thompson, relacionando-os ao conceito de discurso e debatendo sua relevância em análises discursivas críticas. 1.1 o que é disCurso? Para entender o que é discurso na concepção de ADC de- senvolvida por Fairclough (1989, 1995, 2001, 2003a) e Chou- liaraki e Fairclough (1999), precisamos partir da compreensão de que a ADC é uma abordagem científica interdisciplinar para estudos críticos da linguagem como prática social. A Análise de Discurso Crítica, em um sentido amplo, refere-se a um conjunto de abordagens científicas interdisciplinares para estudos críticos da linguagem como prática social. Assim, tomando pressupostos de abordagens das ciências sociais, a ADC desenvolveu modelos para o estudo situado do funcionamento da linguagem na sociedade. Daí a centralida- de do conceito de ‘discurso’, um conceito que é, ao mesmo tempo, ligado aos estudos da linguagem e a diversos avanços das ciências sociais. Como esclarecem Fairclough (2003a) e Chouliaraki e Fairclough (1999), a proposta insere-se na tradição da ciência social crítica, comprometida em oferecer suporte científico para questionamentos de problemas sociais relacionados a poder e justiça. O “C” de ADC justifica-se por seu engajamento com a tradição da “ciência social crítica”, que visa oferecer suporte científico para a crítica situada de problemas sociais relacionados ao poder como controle. 13 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Sua característica interdisciplinar explica-se pelo “rom- pimento de fronteiras epistemológicas” com teorias sociais, pelo qual objetiva subsidiar sua própria abordagem sociodis- cursiva assim como oferecer suporte para que pesquisas sociais possam contemplar, também, aspectos discursivos (Resende & Ramalho, 2006, p. 14). Isso porque a linguagem se mostra um recurso capaz de ser usado tanto para estabelecer e sustentar relações de dominação quanto, ao contrário, para contestar e superar tais problemas. Na perspectiva sociodiscursiva da ADC, a linguagem é parte irredutível da vida social, o que pressupõe relação interna e dialética de linguagem-sociedade, em que “questões sociais são, em parte, questões de discurso”, e vice-versa (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. vii). 1 A perspectiva da linguagem como parte irredutível da vida social pressupõe relação interna e dialética entre linguagem e sociedade, pois questões sociais são também questões discursivas, e vice-versa. Os estudos que assumem uma postura mais centrada na estrutura, isto é, nas características mais fixas da linguagem (ou “semiose” para abarcar manifestações linguísticas tanto verbais quanto não verbais), tendem a investigar a linguagem apenas como sistema semiótico, desprezando de algum modo os atores que dela fazem uso. Por outro lado, aqueles que se centram mais na ação dos agentes sociais, isto é, nos eventos individualizados mais flexíveis, tendem a investigar a linguagem com base em textos isolados, sem atentar para as estruturações presentes tanto na sociedade quanto no uso da linguagem. Entre essas duas posturas, está a concepção da ADC de linguagem como parte da prática social. Nessa perspectiva, o 1 Os originais em língua estrangeira foram traduzidos pelas autoras. 14 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA conceito de discurso é central, pois aponta tanto para o sistema quanto para seu uso contextualizado. O conceito de prática social refere-se a uma entidade intermediária, que se situa entre as estruturas sociais mais fixas e as ações individuais mais flexíveis (Chouliaraki & Fairclough, 1999). É precisamente isso o que justifica o fato de a ADC não pesquisar a linguagem como sistema semiótico nem como textos isolados, mas, sim, o discurso, entendido como um momento, uma parte, digamos assim, de toda prática social. Esse conceito complexo de discurso nos permite, em pesquisas situadas, compreender o uso da linguagem como ancorado em estruturações semióticas e sociais, sem perder de vista a flexibilidade dos eventos comunicativos,que permite a cria- tividade na produção de textos. A ADC não pesquisa a linguagem como sistema semiótico nem como textos isolados, mas, sim, o discurso como um momento de toda prática social. Aprofundaremos essa discussão ao longo do livro, por isso agora importa esclarecer apenas que, para a ADC, em todos os níveis da vida social, desde os mais fixos (estrutu- ras sociais) aos mais flexíveis (eventos sociais), passando pelo nível intermediário (práticas sociais), a linguagem está presente. Conforme Fairclough (2003a), entre a estrutura, em que a linguagem figura como sistema semiótico (com as opções lexicais, gramaticais, semânticas, e outras, que ela oferece), e os eventos, em que a linguagem se manifesta como textos particulares (produzidos em contextos e situações específicas, por indivíduos particulares), estão as práticas sociais. As prá- 15 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA ticas, então, constituem o “ponto de conexão entre estruturas abstratas, com seus mecanismos, e eventos concretos”, isto é, entre “sociedade e pessoas vivendo suas vidas”, nos termos de Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21). Nas práticas sociais, a linguagem se manifesta como dis- curso: como uma parte irredutível das maneiras como agimos e interagimos, representamos e identificamos a nós mesmos, aos outros e a aspectos do mundo por meio da linguagem. Recapitulemos, então, na Figura 1, os significados dos conceitos de estrutura, prática e evento no que diz respeito à linguagem: Figura 1 – Relação entre estruturação social e discursiva Fonte: Resende (2009a, p. 33). Práticas sociais são “maneiras recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais agimos e interagimos no mundo” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 21). São entidades intermediadoras entre o potencial abstrato presente nas estruturas e a realização desse potencial em eventos concretos. Isso significa que o fluxo de nossa vida diária sempre envolve ação e interação, relações sociais, pessoas (com crenças, valores, atitudes, histórias etc.), mundo material e discurso (Fairclough, 2003a). Ou, na definição Chouliaraki 16 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA & Fairclough (1999), atividade material, relações sociais, fenômeno mental e discurso.Isto é, pessoas usam recursos do mundo material (como agora nós estamos usando papel, tinta, um espaço físico para ler etc.) para agir e interagir com outras pessoas (que têm suas próprias crenças, valores), esta- belecendo relações sociais (em nosso caso, a relação leitor/a – autoras), fazendo uso da linguagem, seja diretamente (como o livro que você está lendo ou o professor que possa estar falando) ou indiretamente (o que você pode estar pensando agora). É aqui, nas práticas sociais, que se explica o conceito de discurso. Então, discurso, para responder a nossa pergunta do início desta seção, é o momento integrante e irredutível das práticas sociais que envolve a semiose/linguagem em arti- culação com os demais momentos das práticas: fenômeno mental, relações sociais e mundo material. Essa articulação é indicada na Figura 2: Figura 2 – Articulação irredutível entre os momentos da prática social Ao fazermos uso da linguagem em nossas vidas cotidia- nas, recorremos a maneiras particulares de representar, de agir e interagir e de identificarmos o mundo e a nós mesmos/as. 17 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Isto é, assim como todas as outras pessoas – cada qual com suas particularidades e em seu contexto histórico, político, cultural –, lançamos mão de discursos, gêneros e estilos específicos, em dadas situações sociais também específicas. Nesse sentido é que falamos em “discurso político neoliberal”, por exemplo. Sendo assim, como Fairclough (2003a, p. 26) esclarece, sobre o termo “discurso” recaem dois significados. Como substantivo mais abstrato, significa “linguagem como mo- mento irredutível da vida social”. Por outro lado, como um substantivo mais concreto, discurso significa um “modo par- ticular de representar parte do mundo”, ligado a interesses específicos. Essa duplicidade de sentidos não compromete a compreensão aqui porque, para tratar da segunda acepção, mais concreta, falaremos em discursos “particulares” ou “discursos”, no plural. O termo ‘discurso’ possui dois significados em ADC. Como substantivo mais abstrato, significa o momento irredutível da prática social associado à linguagem; como substantivo mais concreto, significa um modo particular de representar nossa experiência no mundo. Quando ouvimos uma pessoa se referindo a um evento como “ação policial” e uma outra pessoa se referindo ao mesmo evento como “crime” ou, ainda, uma se referindo a alguém como “jovem” e outra como “delinquente”, fica claro o que significa representar o mundo de maneiras particulares, que revelam modos também particulares de ver e entender o mundo, as pessoas, as relações sociais, as lutas de poder. Essas diferentes perspectivas do mundo, ou seja, esses discursos que se ligam a campos sociais específicos e a projetos particulares, podem ser disseminados como se fossem universais, & Fairclough (1999), atividade material, relações sociais, fenômeno mental e discurso.Isto é, pessoas usam recursos do mundo material (como agora nós estamos usando papel, tinta, um espaço físico para ler etc.) para agir e interagir com outras pessoas (que têm suas próprias crenças, valores), esta- belecendo relações sociais (em nosso caso, a relação leitor/a – autoras), fazendo uso da linguagem, seja diretamente (como o livro que você está lendo ou o professor que possa estar falando) ou indiretamente (o que você pode estar pensando agora). É aqui, nas práticas sociais, que se explica o conceito de discurso. Então, discurso, para responder a nossa pergunta do início desta seção, é o momento integrante e irredutível das práticas sociais que envolve a semiose/linguagem em arti- culação com os demais momentos das práticas: fenômeno mental, relações sociais e mundo material. Essa articulação é indicada na Figura 2: Figura 2 – Articulação irredutível entre os momentos da prática social Ao fazermos uso da linguagem em nossas vidas cotidia- nas, recorremos a maneiras particulares de representar, de agir e interagir e de identificarmos o mundo e a nós mesmos/as. 18 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA isto é, como se essa representação particular fosse a mais correta, a mais justa, legítima e aceitável. Isso, sobretudo na nossa “socie- dade da informação”, pode ser uma das mais poderosas armas de luta pelo poder. Parafraseando Canclini (2006, p. 43), os efeitos da disseminação de alguns “discursos particulares” estariam entre as explicações para a seguinte pergunta inquietante: “por que líderes que empobrecem as maiorias conseguem manter sua aprovação entre as massas prejudicadas?”. 1.2 análise de disCurso CrítiCa Como Campo heterogêneo Como já vimos, o termo “Análise de Discurso Crítica” não se refere a uma abordagem única e estável dos estudos de linguagem. Ao contrário, a ADC, como campo de investiga- ção do discurso em práticas contextualizadas, é heterogênea, instável e aberta. É heterogênea porque há uma gama variada de aborda- gens que se identificam com o rótulo ‘ADC’. Assim, não ape- nas os avanços trazidos pela abordagem de Norman Fairclough são identificados com a ADC, mas também as perspectivas de autores como Teun Van Dijk (1989), Ruth Wodak (1996), Blommaert (2005), Theo van Leeuwen (2008), entre outros/as. Todas essas abordagens são legitimamente associadas à Aná- lise de Discurso Crítica, e cada uma delas provê acercamento teórico e instrumental específico para pesquisas discursivas. Também na América Latina há avanços que devem ser considerados quando se fala em ADC. Pesquisadores/as lati-noamericanos/as têm contribuído, nesse sentido, para a difusão da ADC como teoria e método de investigação, gerando abor- dagens próprias, questionando as abordagens já legitimadas e introduzindo avanços que não podem nem devem ser minimiza- dos (ver, por exemplo, magalhães, 2000; Berardi, 2003; meurer, 19 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA 2004; Pardo Abril, 2008; Pardo 2008; Resende, 2009a; Silva, 2009; Ramalho, 2010a). A esse respeito, Pardo Abril (2007, p. 32) enfatiza que “a chegada dos estudos discursivos críticos à América Latina constitui uma de suas principais razões de cres- cimento e expansão, pois se desenvolveram múltiplas aplicações dos princípios teóricos na análise de situações e problemáticas concretas, o que resultou no desenvolvimento das teorias e dos métodos, e na ampliação de perspectivas”. Essa heterogeneidade de abordagens – essa abertura para a diferença – é o que impulsiona a ADC para um aperfeiçoa- mento constante. Uma vez que as diferentes abordagens não estão fechadas para o diálogo, e que em pesquisas situadas é possível lançar mão de conceitos e categorias oriundos de diversas perspectivas, a possibilidade de criatividade nos desenhos de pesquisa é grande. Assim, a heterogeneidade que caracteriza a ADC garante também sua instabilidade. É instável não apenas porque há possibilidade de combinações entre diferentes abordagens, mas também porque um dos pressupostos básicos de análises discursivas críticas é a interdisciplinaridade: “um elemento im- portante das análises que se realizam em ADC é que requerem que o/a investigador/a tenha presentes não apenas elementos de análise linguística, mas também de corte sociológico (...). A ADC constitui-se, dessa maneira, teoria e método abertos à interdisciplinaridade” (Andrade et al., 2008, p.124). Não é difícil perceber por que uma perspectiva teórica do discurso como a que vimos até aqui não poderia se fechar em fronteiras disciplinares rígidas. E a compreensão do discurso como parte das práticas sociais jamais poderia ter surgido dentro das fronteiras da Linguística, sem apropriação de con- ceitos e teorias oriundas das ciências sociais. É por isso que o próprio surgimento da ADC nos estudos de linguagem só pode ser compreendido com base em diálogos interdisciplinares. 20 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA A ADC caracteriza-se por uma heterogeneidade de abordagens que estabelecem diferentes relações interdisciplinares com diferentes disciplinas das ciências sociais. Essas relações interdisciplinares foram fundamentais para o surgimento da ADC e são fundamentais para seus avanços. Apesar de sua instabilidade e de sua heterogeneidade, é de se esperar que haja elementos norteadores comuns, capazes de manter agregadas as diferentes abordagens de ADC. Caso contrário, não teríamos as continuidades que fazem da ADC um campo de investigação. Além da abordagem interdisciplinar, as principais conti- nuidades observadas entre as diferentes vertentes dos estudos críticos do discurso são seu posicionamento explícito, isto é, seu engajamento social, e a utilização de análises sistemáticas de textos como método de pesquisa (Resende, 2009a). Pesquisas em ADC não partem de meros interesses acadêmicos, de reflexão autocentrada na metalinguagem do campo. Ao contrário, pesquisas em ADC só se justificam se enquadradas na perspectiva crítica. Interessam à ADC in- vestigações que relacionam o uso da linguagem a contextos situados que envolvem o poder, pois a ADC define-se pela motivação de “investigar criticamente como a desigualdade social é expressa, sinalizada, constituída, legitimada pelo uso do discurso” (Wodak, 2004, p. 225). Isso tem duas implicações imediatas: as categorias linguísticas são utilizadas em ADC como ferramentas para a investigação de problemas sociais, e a unidade mínima de análise é o texto, entendido de modo amplo no que envolve suas condições de produção, distribuição e consumo, e seu funcionamento em práticas sociais situadas. 21 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Assim, as categorias linguísticas aplicadas à análise de textos concretos não se justificam em si mesmas, mas no que possibilitam compreender acerca do funcionamento social da linguagem. Isso porque “a análise de discurso é uma ferramenta, mais que um fim em si mesma, para explorar o modo sistemático como os atores ou grupos sociais legitimam maneiras de ver o mundo, ou como se opõem a elas propondo modos alternativos às formas hegemônicas de construção da realidade social” (Quiroz, 2008, p.79). A ADC, então, ao mesmo tempo rejeita análises linguísti- cas que não se mostrem relevantes para a crítica social e exige que a crítica social oriunda de pesquisas nesse campo sejam baseadas em análises linguísticas situadas. É por isso que se pode classificar a ADC como Análise de Discurso Textualmen- te Orientada (Fairclough, 2001). O propósito das análises em ADC é, portanto, mapear conexões entre escolhas de atores sociais ou grupos, em textos e eventos discursivos específicos, e questões mais amplas, de cunho social, envolvendo poder. Em ADC, a análise linguística e a crítica social devem, necessariamente, estar interrelacionadas: a análise linguística alimenta a crítica social, e a crítica social justifica a análise linguística. Assim, temos que o suporte científico oferecido pela ADC, para questionamentos de problemas parcialmente dis- cursivos relacionados a poder, envolve o trabalho com textos, em qualquer modalidade – orais, sonoros, escritos, visuais – e sob qualquer forma – entrevistas, reportagens, publicidades, narrativas de vida, filmes e assim por diante. Esse principal material empírico com que o/a analista de discurso trabalha carrega propriedades sociodiscursivas muito relevantes, resul- tantes de sua produção e circulação na sociedade e, ao mesmo tempo, constituintes dessa mesma sociedade. Essa discussão 22 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA não é simples e, conforme discutiremos no capítulo seguinte, está relacionada à concepção de mundo da ADC. Por ora, cabe entender que, como evento discursivo ligado a práticas sociais, o texto traz em si traços da ação individual e social que lhe deu origem e de que fez parte; da interação possibilitada também por ele; das relações sociais, mais ou menos assimétricas, entre as pessoas envolvidas na interação; de suas crenças, valores, histórias; do contexto sócio-histórico específico num mundo material particular, com mais ou menos recursos. Essa percepção de texto como parte discursiva empírica de eventos sociais baseia-se numa visão funcionalista da linguagem, que a entende como um recurso de que pessoas lançam mão em suas vidas diárias para interagir e se relacio- nar, para representar aspectos do mundo assim como para ‘ser’, para identificar a si e aos outros. Consequentemente, a linguagem é também resultado desse uso social. Essa compreensão funcionalista, que concebe o discurso como modo de interagir e se relacionar, de representar e de identificar(-se) em práticas sociais, oferece meios para inves- tigar traços dessas ações materializadas em textos – material empírico pelo qual se pode investigar níveis mais profundos da realidade. Conforme explicamos no capítulo seguinte, a visão de mundo realista crítica da ADC supera a crença em estudos sociais ‘objetivos’. Para a ADC, como o mundo social é aberto e estratificado, só se pode ter acesso ao nível mais profundo, ‘o potencial’, passando pelo filtro de nosso conhecimento empírico (e crenças, valores, atitudes, ideologias) sobre ele, o nível mais imediato. Os textos que analisamos nos oferecem ‘pistas’ para a compreensão das práticas sociais investigadas. Como a relação entre o discurso e os demais momentosdas 23 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA práticas é de articulação e interiorização, por meio dos textos (produzidos em eventos discursivos situados) podemos compreender o funcionamento social dessas práticas. Esse é um fundamento basilar do trabalho de análise textual, que é uma parte da análise de discurso. O proces- so de análise textual, em que investigamos com categorias analíticas traços de modos de (inter-)agir/relacionar-se, representar e identificar(-se) em práticas sociais, é sempre parcial e subjetivo. O que lhe confere cientificidade é o tra- balho explanatório, isto é, de compreensão conjugado com a explanação. Pela compreensão descrevemos e interpretamos propriedades de textos, e pela explanação investigamos o texto como material empírico à luz de conceitos, de um arcabouço teórico particular. 1.3 poder Como hegemonia Se, para essa perspectiva crítica, a relação linguagem- sociedade é interna e dialética, então isso significa que a linguagem constitui-se socialmente, mas também tem “con- sequências e efeitos sociais, políticos, cognitivos, morais e materiais” (Fairclough, 2003a, p. 14). Como ciência crítica, a ADC preocupa-se com efeitos ideológicos que (sentidos de) textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações, conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades. Isto é, sentidos a serviço de projetos particulares de dominação e exploração, que sustentam a distribuição desigual de poder. Como ciência crítica, a ADC preocupa-se com efeitos ideológicos de sentidos de textos sobre relações sociais, ações e interações, conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades. 24 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Ao contrário de outras teorias que veem o poder como uma força de coação unilateral da estrutura sobre o indiví- duo, que dela não consegue se libertar, para a ADC o poder é temporário, com equilíbrio apenas instável. Por isso, relações assimétricas de poder são passíveis de mudança e superação. No cerne de tal entendimento, está o conceito de poder como hegemonia, de Gramsci (1988; 1995). Essa concepção de poder em termos de hegemonia im- plica uma inerente ‘instabilidade’, um ‘equilíbrio instável’. Para Gramsci, no contexto político de democracias ocidentais, o poder de uma classe em aliança com outras forças sociais (a exemplo dos ‘líderes que empobrecem as maiorias’, citados anteriormente em referência a Canclini) sobre a sociedade como um todo (as ‘massas eleitoras’, por exemplo) nunca é atingido senão parcial e temporariamente. A instabilidade da hegemonia é o que caracteriza o conceito de ‘luta hegemônica’. Para grupos particulares se manterem temporariamente em posição hegemônica, é necessário estabelecer e sustentar liderança moral, política e intelectual na vida social. Isso pode ser parcial- mente assegurado, segundo Eagleton (1997, p. 108), pela “difusão de uma visão de mundo particular pela sociedade como um todo, igualando, assim, o próprio interesse de um grupo em aliança com o da sociedade em geral” (Resende & Ramalho, 2006). Há distintas maneiras de se instaurar e manter a hegemonia, dentre elas, a luta hegemônica travada no/pelo discurso. Quando essas perspectivas favorecem algumas poucas pessoas em de- trimento de outras, temos representações ideológicas, voltadas para a distribuição desigual de poder baseada no consenso. A luta hegemônica travada no/pelo discurso é uma das maneiras de se instaurar e manter a hegemonia. Quando o abuso de poder é instaurado e mantido por meio de significados discursivos, está em jogo a ideologia. 25 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA É por isso que o conceito de poder como hegemonia, con- quistado mais pelo consenso que pelo uso da força, reforça a relevância das ideologias, veiculadas pelo discurso. Parte das lutas hegemônicas é a luta pela instauração, sustentação, univer- salização de discursos particulares. É nesse sentido que temos “ordens do discurso hegemônicas”, como a ordem do discurso da política neoliberal, da biomedicina ocidental, e assim por diante. Na próxima seção, discutiremos o conceito de ideologia como forma simbólica a serviço de relações de dominação. 1.4 ideologia na perspeCtiva CrítiCa Seguindo a perspectiva crítica de Thompson (2002a), na ADC ‘ideologia’ é um conceito inerentemente negativo. É um instrumento semiótico de lutas de poder, ou seja, uma das formas de se assegurar temporariamente a hegemonia pela disseminação de uma representação particular de mundo como se fosse a única possível e legítima. Sentidos ideológicos são aqueles que servem necessariamente, em circunstâncias parti- culares, “para estabelecer e sustentar relações de dominação” (Thompson, 2002a, p. 77). Assim, o primeiro passo para a superação de relações assimétricas de poder, e para a (auto) emancipação daqueles que se encontram em desvantagem, pode estar no desvelamento de ideologias. Segundo Fairclough (1989, p. 85), a ideologia é mais efe- tiva quando sua ação é menos visível, de forma que “se alguém se torna consciente de que um determinado aspecto do senso comum sustenta desigualdades de poder em detrimento de si próprio, aquele aspecto deixa de ser senso comum e pode perder a potencialidade de sustentar desigualdades de poder, isto é, de funcionar ideologicamente”. Se reproduzimos acriticamente um aspecto problemático do senso comum, a ideologia segue contribuindo para sustentar desigualdades. Se, ao contrário, 26 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA desvelamos, desnaturalizamos o senso comum, de maneira consciente, existe a possibilidade de coibirmos, anularmos seu funcionamento ideológico. Para prosseguir com o exemplo anterior, se as ‘massas eleitoras’ se tornam mais conscientes de que estão sendo prejudicadas por ‘líderes que empobrecem a maioria’ podem, de algum modo, começar a romper o senso comum, de forma que discursos particulares que sustentam de- sigualdades podem ter sua potencialidade ideológica reduzida. Para a ADC, são objetos de preocupação, portanto, aquelas representações particulares que podem contribuir para a distri- buição desigual de poder, ou seja, para projetos específicos de dominação. Ao contrário de concepções neutras, que caracterizam fenômenos ideológicos sem considerá-los como necessariamente enganadores e ilusórios, ou ligados a interesses de algum grupo em particular, na concepção crítica ideologia é, por natureza, hegemônica e, como tal, inerentemente negativa. Aqui, sentidos ideológicos servem necessariamente ao consenso, à universa- lização de interesses particulares projetados para estabelecer e sustentar relações de dominação (Thompson, 2002a). Para a ADC, a ideologia é, por natureza, hegemônica e inerentemente negativa. Os sentidos veiculados em textos são classificados como ideológicos apenas se servem à universalização de interesses particulares projetados para estabelecer e sustentar relações de dominação. Thompson (2002a) elenca uma série de ‘modos de operação da ideologia’ que são muito úteis como categorias em análises discursivas críticas (sobre isso, veja também Resende & Ramalho, 2006). A ADC mantém um diálogo fundamental com a abordagem crítica de ideologia de Thompson (2002a). A partir de alguns as- pectos da teoria marxista de ideologia, o autor sugere cinco modos gerais de operação da ideologia, ligados a estratégias típicas de construção simbólica, conforme sintetizamos no Quadro 1: 27 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Quadro 1 – Modos gerais de operação da ideologia mODOS GERAIS DE OPERAçÃO DA IDEOLOGIA ESTRATÉGIAS TÍPICAS DE CONS- TRUÇÃO SIMBÓLICA LEGITImAçÃO Relações de dominação são represen- tadas como legítimas RACIONALIZAÇÃO (uma cadeia de raciocínio procura justificar um conjuntode relações) UNIVERSALIZAÇÃO (interesses específicos são apresentados como interesses gerais) NARRATIVIZAçÃO (exigências de legitimação inseridas em histórias do passado que legitimam o presente) DISSIMULAÇÃO Relações de dominação são ocultadas, negadas ou obscurecidas DESLOCAMENTO (deslocamento contextual de termos e expressões) EUFEMIZAÇÃO (valoração positiva de instituições, ações ou relações) TROPO (sinédoque, metonímia, metáfora) UNIFICAÇÃO Construção simbólica de identidade coletiva PADRONIZAçÃO (um referencial padrão proposto como fundamento partilhado) SIMBOLIZAÇÃO DA UNIDADE (construção de símbolos de unidade e identificação coletiva) 28 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA FRAGmENTAçÃO Segmentação de indivíduos e grupos que possam representar ameaça ao grupo dominante DIFERENCIAçÃO (ênfase em carac- terísticas que desunem e impedem a constituição de desafio efetivo) EXPURGO DO OUTRO (construção simbólica de um inimigo) REIFICAÇÃO Retratação de uma situação transitória como permanente e natural NATURALIZAÇÃO (criação social e histórica tratada como acontecimento natural) ETERNALIZAçÃO (fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes) NOMINALIZAÇÃO/ PASSIVAÇÃO (concentração da atenção em certos temas em prejuízo de outros, com apagamento de atores e ações) Adaptado de Resende & Ramalho (2006, p. 52), com base em Thompson (2002a, p. 81). Nessa proposta fluida e aberta de Thompson (2002a), a partir da qual podemos investigar outros modos e estratégias ideológicas, a legitimação consiste em um modo de repre- sentar relações de dominação como sendo justas e dignas de apoio. Segundo os “três tipos puros de dominação legítima”, de Weber (1999), Thompson (2002a) indica três estratégicas típicas de construção simbólica voltadas para legitimar re- lações de dominação: a racionalização, a universalização e a narrativização. A estratégia de racionalização consiste em utilizar fundamentos racionais, apelos à legalidade, a bases jurídicas para legitimar relações assimétricas de poder. A uni- versalização, por sua vez, diz respeito à estratégia de difundir, 29 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA disseminar representações particulares como se fossem de interesse geral, universal. A narrativização, por fim, consiste na estratégia de reproduzir histórias, no curso de nossas vidas cotidianas, que legitimam relações de dominação com base em tradições, costumes, dotes carismáticos, prestígio de pessoas particulares. A dissimulação, um segundo modo geral de operação da ideologia, consiste em ocultar, negar ou obscurecer relações de dominação. Thompson (2002a) aponta três estratégicas típicas de construção simbólica ligadas a esse modo geral: o deslocamento, a eufemização e o tropo. Pelo deslocamento, termos geralmente ligados a um campo particular são usados com referência a outro, de forma que o segundo agrega as conotações positivas ou negativas do primeiro. Pela estratégia da eufemização, ações, instituições ou relações sociais são representadas positivamente, obscurecendo aspectos pro- blemáticos. O tropo refere-se ao uso figurado da linguagem voltado para ocultar, negar, obscurecer relações assimétricas de poder. Com base nessa estratégia, hibridismos discursivos em propagandas de medicamento podem operar “metáforas acionais”, ideologicamente orientadas para ofuscar assimetrias entre “peritos/as” e “leigos/as” (sobre isso, veja Ramalho, 2009a; 2010a,c). A unificação, terceiro modo geral, consiste em cons- truir simbolicamente uma forma de unidade que interliga indivíduos numa identidade coletiva, independentemente das divisões que possam separá-los. Duas estratégias principais são relacionadas a esse modo: a padronização, baseada num referencial padrão partilhado, e a simbolização, a construção de símbolos de identificação coletiva. A fragmentação segmenta indivíduos ou grupos poten- cialmente capazes de desafiar forças e interesses dominantes. Thompson (2002a) destaca duas possíveis estratégias de frag- 30 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA mentação: a diferenciação, em que se enfatizam características que desunem grupos coesos, ou impedem sua constituição; e o expurgo do outro, em que indivíduos ou grupos que possam constituir obstáculo ao poder hegemônico são representados como inimigo que devem ser combatidos (Ramalho, 2005; Resende, 2009b). A reificação, o quinto e último modo de operação da ideologia discutido em Thompson (2002a), consiste na repre- sentação de situações transitórias, sociais, históricas, como se fossem permanentes, naturais e atemporais. São quatro as estratégias ligadas a esse modo: a naturalização, pela qual criações sociais e históricas são representadas como aconte- cimentos do mundo natural; a eternalização, estratégia pela qual fenômenos sócio-históricos são representados como permanentes; a nominalização e a passivação, em que eventos e processos sociais são destituídos de ação humana, pelo apa- gamento de atores e ações. Exemplificaremos alguns modos gerais de operação da ideologia e respectivas estratégias de construção simbólica no Capítulo 4, em que desenvolvemos uma análise textual. Nas ideias e conceitos que vimos até aqui se fundamenta a proposta crítica da ADC para estudos de problemas sociais que podem ser parcialmente sustentados/superados pelo discurso. No próximo capítulo, voltamos nosso olhar para a proposta teórica que sustenta, em termos ontológicos, a vertente de ADC associada aos trabalhos de Fairclough. Aprofundamos, também, a discussão em torno de gêneros, discursos e estilos como modos relativamente estáveis de agir, representar e identificar(-se) discursivamente. 31 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA cApítulo 2 ADC COmO ABORDAGEm TEóRICA PARA ESTUDOS CRíTICOS DO DISCURSO No Capítulo 2, discutimos a postura ‘crítica’ da ADC nos estudos da linguagem, localizando-a numa visão cien- tífica de crítica social; no campo da pesquisa social crítica, e na teoria e análise linguística (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Também refletimos sobre a concepção de ‘texto como evento discursivo’, em que são centrais as noções de ‘prática social’ e ‘ordens do discurso’ – o aspecto discursivo de (redes de) práticas sociais. Com essas noções, podemos compreender os significados do discurso, uma proposta da ADC de conceber o discurso a partir das maneiras como ele figura em práticas sociais: como modos (inter-)agir, de representar e de ser. 2.1 por que CrítiCa? A perspectiva ‘crítica’ da ADC, herdada também de suas origens na Linguística Crítica (cf. Resende & Ramalho, 2006), assenta-se no diálogo com a Ciência Social Crítica, comprometida com o questionamento de aspectos políticos e morais da vida social (Fairclough, 2003a). No caso da vertente de ADC desenvolvida por Fairclough, sobretudo no diálogo com o Realismo Crítico (RC). 32 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Na filosofia de Bhaskar (1989; 1998), expoente do Re- alismo Crítico, o mundo é um sistema aberto, em constante mudança e constituído por diferentes domínios (potencial, realizado e empírico; ver a seguir), assim como por diferen- tes estratos. Os estratos – físico, biológico, social, semiótico etc. – possuem estruturas distintivas e mecanismos gerativos que se situam no domínio do potencial, ou seja, do que pode ou não ser ativado. Quando são ativados simultaneamente, causam efeitos imprevisíveis nos demais domínios. No domínio potencial, mecanismos gerativos de di- versos estratos (físico, biológico, social, semiótico, dentre outros) operam simultaneamente com seus poderes causais, gerando efeitos nos outros domínios. Sayer (2000, p. 11) exemplifica: fenômenos sociaissão emergentes de fenôme- nos biológicos, que são, por seu turno, emer- gentes dos estratos físicos e químicos. Assim, a prática social da conversação depende do estado fisiológico dos agentes, incluindo os sinais en- viados e recebidos em torno de nossas células nervosas, mas a conversação não é redutível a estes processos fisiológicos. [...] Embora nós não precisemos voltar ao nível da biologia ou da química para explicar os fenômenos sociais, isto não significa que os primeiros não tenham efeito sobre a sociedade. Tampouco significa que podemos ignorar a maneira pela qual afe- tamos estes estratos, por exemplo, através de- contracepção, medicina, agricultura e poluição. A relação de interdependência causal implica que a ope- ração de qualquer mecanismo gerativo dos diferentes estratos é sempre mediada pela operação simultânea de outros, de forma tal que não são redutíveis a um e sempre dependem (e interiorizam traços) de outros. Por isso, não há necessidade 33 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA de voltar ao estrato da biologia, da física ou da química para investigar fenômenos sociais, mas isso não anula efeitos bio- lógicos, físicos e químicos sobre a sociedade, e vice-versa. Não há necessidade, por exemplo, de voltar ao estrato da química ou da biologia para investigar o fenômeno social da ‘semioticização do medicamento’, em que produtos farma- cêuticos são convertidos em ‘símbolos de saúde’ (Ramalho, 2010a). Embora os medicamentos como objetos estejam, sem dúvida, ligados à biologia e à química, para estudar os efeitos sociais de textos que anunciam medicamentos não precisamos voltar a esses estratos: o estudo que tomamos aqui com exem- plo centrou-se em aspectos dos estratos semiótico e social. A ontologia estratificada do Realismo Crítico sustenta, ainda, a existência de três domínios da realidade: potencial, realizado e empírico. 1 Bhaskar (1998, p. 41) representa essa ontologia numa figura que adaptamos aqui: Figura 3 – Ontologia estratificada do Realismo Crítico 1 Bhaskar (1989) utiliza os termos ‘real’, ‘actual’ e ‘empirical’ para se referir aos três domínios da realidade. Quanto ao nível do que Bhaskar designa ‘real’, preferimos utilizar a nomenclatura ‘potencial’, conforme adaptação de Fairclough (2003). Entendemos que ‘potencial’ designa mais claramente o domínio da realidade ligado aos poderes dos objetos sociais potencial- mente ativados em eventos. Em relação ao domínio ‘actual’, consideramos que ‘atual’ em português não carrega o mesmo significado de ‘actual’ em inglês, que se refere ao que ‘se realiza’ de fato em um dado evento, por isso preferimos a tradução por ‘realizado’ (Resende, 2009a). Essas traduções são mantidas nas citações de originais em inglês. 34 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA A Figura 3 representa a estratificação do mundo em três domínios – potencial, realizado e empírico. Conforme Sayer (2000, p. 09), o domínio do potencial corresponde “ao que quer que exista, seja natural ou social, independentemente de ser um objeto empírico para nós e de termos uma compreensão adequada de sua natureza”. É o domínio dos objetos, suas es- truturas, mecanismos e poderes causais. Sejam físicos, como minerais, ou sociais, como burocracias, esses objetos “têm uma certa estrutura e poderes causais, isto é, capacidade de se comportarem de formas particulares, e tendências causais ou poderes passivos, isto é, susceptibilidades a certas formas de mudança”. Na ontologia da estratificação da realidade, o potencial é o domínio das estruturas, mecanismos e poderes causais dos objetos, ao passo que o realizado, como Sayer (2000, p. 10) explica, refere-se a “o que acontece se e quando estes poderes são ativados”, ou seja, àquilo que esses poderes fazem e ao que ocorre quando eles são ativados. Para exemplificar com base na linguagem, podemos asso- ciar o sistema semiótico (a potencialidade para significar) com o domínio do potencial e, por outro lado, os sentidos de textos com o domínio do realizado (o significado). O realizado é o domínio dos eventos que passam ou não por nossa experiência. O empírico, por sua vez, é o domínio das experiências efetivas, a parte do potencial e do realizado que é experienciada por atores sociais específicos. Neste caso, o exemplo seriam os textos (orais, escritos, visuais, multimodais) com que de fato tivemos contato em nossa vida. Se o potencial é o domínio dos poderes causais e o re- alizado é o domínio dos eventos em que se acionam esses poderes, o empírico, por sua vez, é o que se percebe da ati- vação desses poderes no nível dos eventos experienciados. Em outros termos, é o que se experiencia do potencial e do 35 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA realizado, mas que não esgota a possibilidade do que tenha, ou poderia ter, acontecido. Essa concepção de mundo, que vem informando pesquisas brasileiras como as de Papa (2008), Ramalho (2008) e Resende (2008), pressupõe a inviabilidade de se ter acesso direto aos domínios do potencial e do realizado, já que só podem ser alcançados pela mediação de nosso conhecimento e experiência (e de nossas crenças e atitu- des), ou seja, a partir do empírico. Para Bhaskar (1978, p. 36), constituiriam “falácias epistêmicas” pretender, por um lado, estudar o “mundo real” de maneira “objetiva”, visto que só podemos estudar o mundo real passando pelo filtro de nossas experiências; e, por outro, conceber o mundo como constituído apenas pelo domínio empírico, ou seja, por aquilo que experienciamos. Esse ponto é fundamental para a abordagem teórico- metodológica da ADC, por descartar a possibilidade de pesquisas ‘objetivas’ em análise de discurso, que acessariam diretamente a ‘realidade’. Como já vimos, a cientificidade de pesquisas em ADC está no processo de investigação em que o material empírico é explanado segundo um arcabouço teórico particular. Nos princípios gerais do RC que vimos até aqui assenta- se a compreensão de que o discurso tem efeitos na vida social, os quais não podem ser suficientemente investigados levando-se em consideração apenas o aspecto discursivo de práticas sociais. Textos, como resultados de eventos discursivos, têm efeitos na vida social que não podem ser investigados apenas com base no aspecto discursivo de práticas sociais. Tendo isso em vista, parece claro perceber que análises discursivas críticas não podem ser pautadas apenas no aspecto discur- sivo das práticas, sob o risco de se perder de vista a relação 36 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA dialética entre os momentos da prática e o potencial do discurso para a compreensão de outros aspectos da prática (Resende, 2009d). De acordo com Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 67), a lógica da análise crítica é relacional/dialética, “orientada para mostrar como o momento discursivo trabalha na prática social, do ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e relações de dominação”. Ou, em outros termos, orientada para investigar e mostrar conexões e relações causais que estão ocultas em relações assimétricas de poder (Fairclough, 2003a). A ADC é ‘crítica’ porque sua abordagem é relacional/ dialética, orientada para a compreensão dos modos como o momento discursivo trabalha na prática social, especificamente no que se refere a seus efeitos em lutas hegemônicas. Como já vimos, o foco dessa abordagem relacional/ dialética, igualmente informada pela ciência social crítica, não está na estrutura social, mais ‘fixa’ e abstrata, tampouco na ação individual, mais ‘flexível’ e concreta. Está, de fato, na entidade intermediária das práticas sociais. E o conceito de ‘prática social’ como entidade intermediária é mais um dos aspectos do RC recontextualizados em ADC. O Realismo Crítico endossauma concepção transforma- cional de constituição da sociedade que, segundo Bhaskar (1989, p. 32-37), difere dos “modelos” do “voluntarismo”, da “reificação”, e até mesmo do “dialético”. Segundo o au- tor, no voluntarismo objetos sociais são resultado apenas do comportamento intencional de indivíduos. No modelo de reificação, objetos sociais são externos e exercem coerção sobre indivíduos. No dialético, por sua vez, ‘sociedades’ e ‘indivíduos’ são dois momentos de um mesmo processo: as sociedades criam indivíduos, e indivíduos afetam sociedades. 37 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Nos termos de Bhaskar, “no primeiro modelo [voluntarismo], há ações, mas não condições. No segundo modelo [reificação], há condições, mas não ações. No terceiro modelo [dialética], por sua vez, não há distinção entre ações e condições”. Embora identifique afinidades entre as concepções trans- formacional e dialética, Curry (2000, p. 102) pondera que a primeira difere da segunda no “aspecto crucial da irredutibi- lidade das estruturas aos agentes que as transformam”. Isso significa que, na perspectiva transformacional, em um dado corte sincrônico a sociedade não é criação dos seres humanos, mas pré-existe a eles (embora diacronicamente a sociedade seja resultado da ação dos seres humanos). A respeito desse aspecto temporal da relação estrutura- ação, Resende (2009a, p. 28) explica que é possível discutir essa relação em termos de sincronia e diacronia: A concepção realista crítica da relação entre estru- tura e ação, então, enfatiza que as estruturas sociais são condição necessária e pré-existente à agência intencional, mas também que elas existem apenas em virtude da agência. Nessa concepção, então, as estruturas sociais são tanto condição como resul- tado da agência humana, que ao mesmo tempo as reproduz e as transforma. Um aspecto essencial desse modelo (e que o diferencia da Teoria da Estruturação de Giddens, segundo Archer, 1998), é a assimetria histórica entre estrutura e ação – o fato de que as estruturas são sempre prévias, isto é, embora na agência seja potencialmente possível transformar estruturas (e não apenas reproduzi- las), as estruturas com as quais um ator social lida hoje foram conformadas em ações anteriores de atores sociais que o antecederam. (...) Então é possível propor uma relação temporal (em termos de sincronia/diacronia) entre os dois elementos da recursividade estrutura/agência. 38 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA A sociedade existe em virtude da agência humana, mas não é redutível a ela, e vice-versa. Como Sayer (2000, p. 19) exemplifica, ações sempre pressupõem recursos pré-existentes e meios: “falar pressupõe uma língua; uma língua, uma co- munidade e recursos materiais, como cordas vocais ou outros meios de se efetuar sons inteligíveis”. Tal postura implica que ‘sociedades’ e ‘indivíduos’, ou estruturas e agência humana não são redutíveis a um, mas, sim, causalmente interdepen- dentes. Sociedades e indivíduos, ou estruturas sociais e agência humana, são causalmente interdependentes, mas não se confundem. Assim, Bhaskar (1989, p. 34) entende que sociedade é tanto a condição sempre presente (causa material) e o resultado continuamente reproduzido da agência humana. E práxis é tanto produção consciente, e reprodução (normalmente inconsciente) das con- dições de produção, que configuram a sociedade. O primeiro refere-se à dualidade da estrutura, e o último à dualidade da práxis. A relação entre estrutura e agência tem caráter dual: estrutura é condição sincrônica, causa material, mas também é resultado diacrônico da atividade humana, a qual, por sua vez, reproduz e transforma essa causa material. A concepção de que seres humanos não criam estruturas sociais, mas as (re)produzem à medida que as utilizam como condições para suas atividades, é representada na Figura 4: 39 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Figura 4 – Concepção transformacional de constituição da sociedade Fonte: Ramalho (2007, p. 87), com base em Bhaskar (1998). Na Figura 4, o movimento descendente da seta repre- senta a ação humana como dependente de regras e recursos (incluindo mecanismos e seus poderes causais) disponíveis na estrutura social. Ao mesmo tempo em que essa estrutura, na qualidade de meio, é facilitadora, por permitir a ação, ela também é constrangedora, pois ‘regula’ condutas. Por outro lado, o movimento ascendente da seta repre- senta que o acionamento de regras e recursos de estruturas sociais por atores sociais pode resultar em reprodução ou transformação de tal estrutura, como resultado. Assim, ação e estrutura constituem-se transformacional e reciprocamente. Em práticas sociais, agentes individuais se valem da estrutura social, (re)articulando mecanismos e poderes causais, e a (re) produzem, gerando no mundo efeitos imprevisíveis. Com base em tais princípios, mas também em Harvey (1992), a ADC localiza seu objeto de estudo nas práticas so- ciais – “o ponto de conexão entre estruturas abstratas, com seus mecanismos, e eventos concretos” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 21). Isso significa que pesquisas em ADC não devem focalizar apenas o discurso, sob os riscos que já destacamos. As práticas sociais são um foco coerente para uma abor- dagem como a ADC, porque permitem, por sua característica intermediária, manter o foco simultaneamente nas potencia- lidades das estruturas e na individualidade dos eventos. Isso 40 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA evita os erros do voluntarismo (Já que cada texto ou instan- ciação discursiva não é plenamente livre, mas responde às contingências do contexto e às restrições do sistema, inclusive em termos do potencial semiótico) e do reificacionismo (apesar das contingências contextuais e das restrições do sistema, há uma liberdade relativa capaz, inclusive, de provocar transfor- mações nas estruturas sociais e semióticas). 2.2 linguagem e prátiCa soCial Como discutimos, a ADC concebe a linguagem como um dos estratos do mundo. O ‘estrato semiótico’, com seus mecanismos e poderes gerativos, mantém relações simultâneas e transformacionais com os demais estratos (social, físico, químico, biológico etc.), de modo que internaliza traços de outros estratos, assim como tem efeitos sobre eles. Tal com- preensão de mundo fundamenta a ideia de que a linguagem tem efeitos nas práticas e eventos sociais. Isso significa, conforme Fairclough (2003a), que a lin- guagem é parte integrante e irredutível do social, em todos os níveis, como discutimos no Capítulo 1 e ilustramos agora na Figura 5: Figura 5 – Linguagem como momento da vida social Níveis do social Níveis da linguagem Estrutura social Sistema semiótico Práticas sociais Ordens do discurso Eventos sociais Textos Com base em Fairclough (2003a: 220). 41 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Na Figura 5, representamos três diferentes níveis da vida social correlacionados a três níveis da linguagem, conforme proposto em Fairclough (2003a). No gradiente decrescente, temos, no nível mais abstrato das estruturas, a linguagem como sistema semiótico – com sua rede de opções lexicogramaticais. No nível intermediário das práticas sociais, temos a lin- guagem como ordens do discurso – “as combinações particu- lares de gêneros, discursos e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais”, a faceta socialmente estruturada da linguagem (Fairclough, 2003a, p. 220). Por fim, no nível mais concreto dos eventos, temos a linguagem como texto – o principal material empírico com que analistas de discurso trabalham, mas não o único. Disso advém o entendimento de que o objeto de estudo da ADC não é a linguagem como estrutura (sistema semiótico),tampouco apenas como evento (texto), mas também como prática social, ou seja, análises discursivas críticas privilegiam o espaço das ordens do discurso como espaço de geração de conhecimento sobre o funcionamento social da linguagem. É claro que para tanto investigam as instanciações materializadas em textos concretos, isto é, têm como material analítico as concretiza- ções do potencial do sistema semiótico em eventos discursivos situados. Por isso podemos dizer que análises discursivas críticas transitam entre os três níveis da linguagem, o que só é possível graças ao foco no nível intermediário das ordens do discurso (Resende, 2010c). Vamos lembrar que, em ADC, o termo ‘discurso’ adqui- re duas acepções. Como substantivo mais abstrato, significa ‘linguagem e outros tipos de semiose como momento irredu- tível da vida social’ ao passo que, como um substantivo mais concreto, significa ‘modos particulares de representar parte do mundo’. De acordo com a primeira acepção, em práticas sociais a linguagem figura como discurso: o momento semi- 42 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA ótico que se articula com os demais momentos das práticas – fenômeno mental, relações sociais, mundo material. Conforme a segunda acepção, os diferentes momentos semióticos de diferentes práticas dão origem a (redes de) ordens do discurso, formadas por gêneros, discursos e estilos particulares de cada campo ou atividade social. Observe-se a Figura 6: Figura 6 – Discurso e prática social Na Figura 6, temos a prática social conformada por uma articulação situada de elementos chamados ‘momentos da prática’ – discurso (no conceito mais abstrato), relações sociais, fenômeno mental e atividade material. No momento semiótico da prática (discurso), temos a articulação de outros três elementos, que configuram, juntos, o momento discursivo da prática. Trata-se de discursos (no conceito mais concreto), gêneros e estilos, os elementos conformadores de uma ordem do discurso. + + 43 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Por isso, na qualidade de “ponto de conexão entre estru- turas abstratas, com seus mecanismos, e eventos concretos” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 21), ou entre “estrutura” e “agência” (Bhaskar, 1989), práticas sociais são maneiras recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais pessoas interagem no mundo. Conforme Fairclough (2003a), práticas sempre articulam ação e interação (relações sociais), pessoas com crenças, valores, atitudes, histórias (fenômeno mental), mundo material (que possibilita a atividade material) e discurso. Em práticas particulares, esses elementos mantêm entre si constantes relações dialéticas de articulação e internalização, sem se reduzirem a um, tornando-se “momentos” da prática. Resende & Ramalho (2004, 2005, 2006) explicam que essas relações dialéticas de articulação e internalização entre os momentos de práticas sociais particulares podem ser tanto minimizadas para se aplicar à articulação interna de cada mo- mento de uma prática (como ilustramos na Figura 6 em relação ao momento semiótico), quanto ampliadas para se aplicar à articulação externa entre práticas organizadas em redes. No primeiro caso, tomando como exemplo o momento discursivo de práticas, há relações dialéticas entre seus três momentos internos: gêneros, discursos, estilos. No segundo caso, relações dialéticas entre diferentes práticas, associadas a diferentes campos sociais, formam redes das quais as próprias práticas passam a constituir momentos. Nas práticas sociais cotidianas, utilizamos o discurso de três principais maneiras simultâneas e dialéticas: para agir e interagir, para representar aspectos do mundo e para identificar a nós mesmos/as e a outros/as. O discurso tem três principais significados nas práticas: ação e interação, representação de aspectos do mundo e 44 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA (auto)identificação. Esses três significados são simultâneos em toda prática: a linguagem é funcionalmente complexa. Essas principais maneiras como o discurso figura simultâ- nea e dialeticamente em práticas sociais correlacionam-se aos três momentos de ordens do discurso, os momentos internos do momento semiótico das práticas (gêneros, discursos e estilos, respectivamente). Gêneros discursivos são, portanto, maneiras relativamen- te estáveis de agir e interagir discursivamente na vida social. Discursos são maneiras relativamente estáveis de representar aspectos do mundo, de pontos de vista particulares. Estilos, por fim, são maneiras relativamente estáveis de identificar, discursivamente, a si e a outrem. Essas maneiras de (inter)agir, representar e identificar(-se) em práticas sociais internalizam traços de outros momentos das práticas, assim como concorrem para constituir esses outros mo- mentos, tendo em vista a articulação interna entre os momentos das práticas sociais. Assim, a linguagem constitui-se socialmente na mesma medida em que tem “consequências e efeitos sociais, políticos, cognitivos, morais e materiais” (Fairclough, 2003a, p. 14). Isso explica porque, em ADC, dizemos que o discurso é socialmente constitutivo e constituído socialmente. A relação linguagem-sociedade é interna: o discurso é socialmente constitutivo e constituído socialmente. 2.3 as (redes de) ordens do disCurso Considerar a importância do social, e não só do semióti- co, na manutenção do potencial mais ou menos (in)definido da linguagem para criar significados implica reconhecer as (redes de) ordens do discurso como um sistema, isto é, um 45 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA potencial semiótico estruturado que possibilita e regula nossas ações discursivas, tal como as práticas sociais possibilitam e regulam nossas ações sociais. Sobre o assunto, Chouliaraki & Fairclough (1999) ob- servam que, ainda que reconheça a importância do ‘contexto social’ e conceba a linguagem como um sistema aberto, pas- sível de mudança, a Linguística Sistêmico-Funcional – teoria linguística que informa essa vertente de ADC – vincula tal abertura somente ao sistema semiótico. Para uma abordagem discursiva, como Chouliaraki e Fairclough ainda explicam, o potencial de significados da linguagem deve ser entendido não só a partir da noção de sistema semiótico, mas também de sistema social de ordens do discurso, as “combinações particulares de gêneros, dis- cursos e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais” (Fairclough, 2003a, p. 220). Conforme Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 151-2), a linguagem, como um sistema aberto, tem capacida- de ilimitada para a construção de significado através de conexões gerativas sintagmáticas e paradigmáti- cas, mas é o dinamismo da ordem do discurso, capaz de gerar novas articulações de discursos e gêneros, que mantém a linguagem como um sistema aberto (...). Por outro lado, é a fixidez da ordem do discurso que limita o poder gerativo da linguagem, impedindo certas conexões. Para a autora e o autor, o foco em mudanças no sistema, possibilitadas e constrangidas por conexões gerativas sintag- máticas e paradigmáticas, ajuda a explicar o poder gerativo da linguagem, mas não é suficiente. É necessário reconhecer que o sistema aberto da linguagem é mantido tanto por seus recursos ‘internos’ (lexicogramaticais, semânticos) quanto por recursos ‘externos’, assegurados pelo dinamismo das ordens 46 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA do discurso de cada campo social. Uma possível representação dessa proposta é apresentada a seguir, na Figura 7: 2 Figura 7 – Estrutura dupla da linguagem Na Figura 7, uma adaptação do que propõe Halliday (2004, p. 25), representamos dois sistemas constituintes da lin- guagem. O sistema semiótico,interno, formado por diferentes estratos (semântico, lexicogramatical, fonológico, fonético), e o sistema de redes de ordens do discurso, de natureza socio- discursiva. Esse segundo sistema, a faceta social da estrutura da linguagem, também é estratificado, conforme ilustramos na Figura 8, a seguir: 2 As figuras 7 e 8 são representações das autoras, baseadas em Halliday (2004). 47 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA Figura 8 – Estratos do sistema de ordens do discurso Os estratos do sistema de redes de ordens do discurso são gêneros, discursos e estilos. Como integram redes de práticas sociais dinâmicas, e, portanto, redes de ordens do discurso, são mais bem definidos como ‘momentos’. Assim como o sistema semiótico, o sistema social da linguagem formado por ordens do discurso também constitui redes potenciais de opções, e, portanto, de significados. Entretanto, a rede de opções de ordens do discurso não é formada por palavras e orações (ainda que seja possibilitada por elas), mas, sim, por gêneros, “tipos de linguagem ligados a uma atividade social particular”, discursos, “tipo de linguagem usado para construir algum aspecto da realidade de uma perspectiva particular”, e estilos, “tipo de linguagem usado por uma categoria particular de pessoas e relacionado com sua identidade” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 63). 48 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA A rede de opções de ordens de discurso é formada por gêneros, discursos e estilos: modos relativamente estáveis de agir, representar e identificar discursivamente. Esses três momentos figuram em práticas como recursos sincrônicos para a ação humana, e como produtos diacrônicos dela. Isso implica que a abertura da linguagem para significar é mantida tanto por recursos disponíveis ‘dentro’ do sistema quanto pelo dinamismo das ordens do discurso. Novas articu- lações de discursos, gêneros e estilos de diferentes (redes de) ordens do discurso também contribuem para a construção de significados. A possibilidade de articulação desses elementos está ligada à criatividade na produção de eventos discursivos, apesar dos constrangimentos do sistema, semiótico e social. Assim, temos que a relação transformacional estrutura-ação social repete-se na relação estrutura-ação discursiva. O potencial da linguagem para significar é mantido tanto por recursos disponíveis no sistema quanto por recursos disponíveis nas (redes de) ordens do discurso. A possibilidade de novas articulações de discursos, gêneros e estilos de diferentes ordens do discurso está ligada à criatividade discursiva. Isso significa que a estabilidade é relativa. Assim, por um lado, o poder gerativo do semiótico é mediado pelo poder gerativo de outros momentos da prática social. Por outro, a semiose tem estrutura dupla, formada pela rede de opções do sistema semiótico (linguagem como estrutura) mas também pela rede de opções do sistema social da linguagem, as redes de ordens do discurso (linguagem como momento da prática social). Elementos de ordens do discurso são categorias tanto discursivas quanto sociais, que ultrapassam a fronteira entre o 49 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA linguístico e o não linguístico. Por isso, a análise de gêneros, discursos e estilos (e seus respectivos significados/ formas em textos) possibilita a explanação da relação entre discurso, relações sociais, atividade material e fenômeno mental (Fair- clough, 2003a). Por meio da análise de gêneros, discursos e estilos em textos situados, é possível investigar relações entre aspectos discursivos e não discursivos de práticas sociais. Os três modos como o discurso figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais – como modo de (inter) agir, de representar e de identificar(-se) – correlacionam- se a três principais significados do discurso, ligados aos três elementos de ordens do discurso, gêneros, dis- cursos e estilos. Na Figura 9, a seguir, reproduzimos a representação de Resende & Ramalho (2005, p. 43): Figura 9 – Relação dialética entre os significados do discurso Fonte: Resende & Ramalho (2005, p. 43). 50 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA A Figura 9 associa o significado acional/relacional do discurso, relativo a modos de (inter)agir discursivamente, a gêneros. O significado representacional, ligado a maneiras particulares de representar aspectos do mundo, é associado a discursos. O significado identificacional, por sua vez, relativo a maneiras de identificar(-se), associa-se a estilos. Os três tipos de significado sempre presentes em textos associam-se aos elementos constituintes de ordens do discurso: o significado acional a gêneros, o significado representacional a discursos, o significado identificacional a estilos (Fairclough, 2003a). Embora gêneros, discursos e estilos, assim como os sig- nificados do discurso, tenham suas especificidades, a relação entre eles é dialética. Cada qual internaliza traços de outros, de maneira que nunca se excluem ou se reduzem a um. Fairclough (2003a, p. 25) avalia que o ponto de partida nos três principais significados do discurso ajuda a efetivar a proposta de alcançar a relação dialética entre momentos semióticos e não semióticos do social. Além disso, avança na percepção não só do sistema semiótico, mas também do sistema social de redes de ordens do discurso. Isso se explica pelo fato de gêneros, discursos e estilos, como maneiras rela- tivamente estáveis de (inter)agir, representar e identificar(-se) em práticas sociais, não serem categorias puramente linguís- ticas. Uma vez que práticas articulam discurso com outros momentos (relações sociais, fenômeno mental, mundo ma- terial), elementos de ordens do discurso são categorias tanto discursivas quanto sociais, que “atravessam a divisão entre o discursivo e o não discursivo”. Neste ponto, é importante lembrar não só que o conceito de “ordem do discurso” tem origem nos estudos de Foucault 51 Análise de discurso (pArA A) críticA: o texto como mAteriAl de pesquisA (2003 [1971]) mas também que os três significados do dis- curso (ação, representação e identificação) comentados aqui associam-se aos três grandes eixos da obra de Foucault (1994): o eixo do poder, o eixo do saber e o eixo da ética. O significado acional relaciona-se ao eixo do poder, ou seja, a ‘relações de ação sobre os outros’. Nessa perspectiva é que se entende que gêneros, como maneiras de (inter)agir e relacionar-se discursivamente, implicam relações com os outros, mas também ação sobre os outros e poder. O signifi- cado representacional relaciona-se ao eixo do saber. Discur- sos, como maneiras particulares de representar aspectos do mundo, pressupõem controle sobre as coisas e conhecimento. O significado identificacional relaciona-se ao eixo da ética. Estilos, maneiras de identificar a si e aos outros, pressupõem identidades sociais e individuais, ligadas às ‘relações consigo mesmo’, ao ‘sujeito moral’. Sistematizando, temos o Quadro 2, a seguir: Quadro 2 – Relações entre os significados do discurso, de Fairclough (2003), e os eixos de Foucault (1994) Significados (Fairclough, 2003) Elementos de ordens do discurso Eixos (Foucault, 1994) Significado acional Gêneros Eixo do poder Significado representacional Discursos Eixo do saber Significado identificacional Estilos Eixo da ética Os três eixos da obra de Foucault não são isolados, mas também dialeticamente articulados, ou seja, o controle sobre as coisas (eixo do saber) é mediado pelas relações com/ sobre os outros (eixo do poder), assim como as relações com/ sobre os outros pressupõem relações consigo mesmo (eixo da ética), e assim por diante. Por isso, Fairclough (2003a, p. 29) lembra que a relação entre os significados do discurso
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