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TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL
A compreensão de uma nova norma jurídica é tarefa centrada não apenas na análise comparada da letra fria da lei. Em outras palavras, para que o estudioso entenda efetivamente a codificação privada de 2002, é preciso conhecer a linha filosófica adotada pela norma emergente. A comparação das duas leis por meio de Códigos confrontados, comum após o surgimento do Código Civil de 2002, é apenas o ponto de partida para o intérprete.
Diante disso, antes de adentrar no estudo da Parte Geral do Código Civil de 2002, será demonstrada a linha filosófica da atual codificação material, bem como as grandes teses do Direito Civil contemporâneo.
Trata-se de ponto fundamental para os estudiosos do Direito Civil, até porque as matérias de filosofia e sociologia passaram a ser solicitadas não só nos cursos de graduação, mas também em provas existentes após o bacharelado (v.g., exame de admissão na Ordem dos Advogados do Brasil e concursos públicos).
Pois bem, o atual Código Civil Brasileiro foi instituído pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrando em vigor após um ano de vacatio legis, para a maioria da doutrina, em 11 de janeiro de 2003. A atual codificação civil teve uma longa tramitação no Congresso Nacional, com seu embrião, no ano de 1975, ocasião em que o então Presidente da República, Ernesto Geisel, submeteu à apreciação da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 634-D, com base em trabalho elaborado por uma Comissão de sete membros, coordenada por Miguel Reale. Como se nota, portanto, o projeto legislativo surgiu no “ápice” da ditadura militar que imperava no Brasil.
A estrutura básica do projeto que gerou a nova codificação foi concebida com uma Parte Geral e cinco livros na Parte Especial, tendo sido convidado para cada uma delas um jurista de renome e notório saber, todos com as mesmas ideias gerais sobre as diretrizes a serem seguidas. Convocados foram para a empreitada:
José Carlos Moreira Alves (SP) – relator da Parte Geral;
Agostinho Alvim (SP) – relator do livro que trata do Direito das Obrigações;
Silvio Marcondes (SP) – relator do livro de Direito de Empresa;
Erbert Chamoun (RJ) – responsável pelo Direito das Coisas;
Clóvis do Couto e Silva (RS) – responsável pelo livro de Direito de Família;
Torquato Castro (PE) – relator do livro do Direito das Sucessões.
Na exposição de motivos da atual codificação privada, Miguel Reale demonstra quais foram as diretrizes básicas seguidas pela comissão revisora do Código Civil de 2002, a saber: Preservação do Código Civil anterior sempre que fosse possível, pela excelência técnica do seu texto e diante da existência de um posicionamento doutrinário e jurisprudencial já consubstanciado sobre os temas nele constantes.
Alteração principiológica do Direito Privado, em relação aos ditames básicos que constavam na codificação anterior, buscando a nova codificação valorizar a eticidade, a socialidade e a operabilidade, que serão abordadas oportunamente.
Valorizar um sistema baseado em cláusulas gerais, que dão certa margem de interpretação ao julgador. Essa pode ser tida como a principal diferença de filosofia entre o Código Civil de 2002 e seu antecessor.
Ponto de destaque se refere aos princípios do Código Civil de 2002 outrora expostos, e que merecem no presente momento um estudo mais aprofundado. O próprio Miguel Reale não se cansava em apontar os regramentos básicos que sustentam a atual codificação privada: eticidade, socialidade e operabilidade. Repise-se que o estudo de tais princípios é fundamental para que se possam entender os novos institutos que surgiram com a nova lei privada.
De início, a respeito do princípio da eticidade, o Código Civil de 2002 se distancia do tecnicismo institucional advindo da experiência do Direito Romano, procurando, em vez de valorizar formalidades, reconhecer a participação dos valores éticos em todo o Direito Privado. Cumpre transcrever as palavras do Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “o tipo de Ética buscado pelo novo Código Civil é o defendido pela corrente kantiana: é o comportamento que confia no homem como um ser composto por valores que o elevam ao patamar de respeito pelo semelhante e de reflexo de um estado de confiança nas relações desenvolvidas, quer negociais, quer não negociais. É, na expressão kantiana, a certeza do dever cumprido, a tranquilidade da boa consciência”.
O princípio da eticidade pode ser percebido pela leitura de vários dispositivos da atual codificação privada. Inicialmente, nota-se a valorização de condutas éticas, de boa-fé objetiva – aquela relacionada com a conduta de lealdade das partes negociais –, pelo conteúdo da norma do art. 113, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (função interpretativa da boa-fé objetiva). Ademais, o art. 187 do CC/2002 determina qual a sanção para a pessoa que contraria a boa-fé no exercício de um direito: cometerá abuso de direito, assemelhado a ilícito (função de controle da boa-fé objetiva). Ato contínuo, o art. 422 do Código Civil prevê a eticidade, dizendo que a boa-fé deve integrar a conclusão e a execução do contrato (função de integração da boa-fé objetiva).
Aqui cabe fazer mais ligação com o Novo Código de Processo Civil, que procurou valorizar a boa-fé, especialmente a de natureza objetiva, em vários de seus comandos. De início, o art. 5.º do CPC prescreve que aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. Em complemento, há a previsão expressa a respeito do dever de cooperação processual, corolário da boa-fé objetiva, enunciando o art. 6.º do CPC que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Essa colaboração também é imposta aos julgadores, vedando-se as decisões surpresas, uma vez que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” (art. 10 do CPC).
Por derradeiro, sem prejuízo de outros dispositivos, o art. 489, § 3.º, do CPC prescreve que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. Como se nota, a boa-fé objetiva passa a ser elemento de interpretação das decisões como um todo, o que deve gerar um grande impacto na prática cível nos próximos anos. A propósito, não deixando dúvidas de que se trata de uma boa-fé que se situa no plano da conduta, e não da intenção, estabelece o Enunciado n. 1, aprovado na I Jornada de Direito Processual Civil (agosto de 2017), que a verificação da violação à boa-fé objetiva dispensa a comprovação do animus do sujeito processual.
Voltando à lei material, no que concerne ao princípio da socialidade, o Código Civil de 2002 procura superar o caráter individualista e egoísta que imperava na codificação anterior, valorizando a palavra nós, em detrimento da palavra eu. Os grandes ícones do Direito Privado recebem uma denotação social: a família, o contrato, a propriedade, a posse, a responsabilidade civil, a empresa, o testamento.
Destaque-se que a função social da propriedade já estava prevista na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, XXII e XXIII, e no seu art. 170, III, tendo sido reforçada pelo art. 1.228, § 1.ºdo CC/2002. Como novidade de grande impacto, a função social dos contratos passou a ser tipificada em lei, prevendo o art. 421 do Código Civil que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Trata-se de um princípio contratual de ordem pública, pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, visualizado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade. Mesmo a posse recebe uma função social, eis que o atual Código consagra a diminuição dos prazos de usucapião imobiliária quando estiver configurada a posse-trabalho,situação fática em que o possuidor despendeu tempo e labor na ocupação de um determinado imóvel.
A nova codificação valoriza aquele que planta e colhe, o trabalho da pessoa natural, do cidadão comum. Tais premissas podem ser captadas pela leitura dos arts. 1.238, parágrafo único, e 1.242, parágrafo único, do CC/2002, que reduzem os prazos da usucapião extraordinária e ordinária, para dez e cinco anos, respectivamente quando o possuidor tiver realizado no imóvel obras e serviços considerados pelo juiz de caráter social e econômico relevante.
Por fim, há o princípio da operabilidade, que tem dois significados. De início, há o sentido de simplicidade, uma vez que o Código Civil de 2002 segue tendência de facilitar a interpretação e a aplicação dos institutos nele previstos. Como exemplo, pode ser citada a distinção que agora consta em relação aos institutos da prescrição e da decadência, matéria que antes trazia grandes dúvidas pela lei anterior, que era demasiadamente confusa. Por outra via, há o sentido de efetividade, ou concretude do Direito Civil, o que foi seguido pela adoção do sistema de cláusulas gerais.
Nas palavras de Judith Martins-Costa, grande intérprete da filosofia realeana, percebe-se na atual codificação material um sistema aberto ou de janelas abertas, em virtude da linguagem que emprega, permitindo a constante incorporação e solução de novos problemas, seja pela jurisprudência, seja por uma atividade de complementação legislativa. Vejamos as suas lições a respeito das cláusulas gerais:
“Estas janelas, bem denominadas por Irti de ‘concetti di collegamento’, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda não expressos legislativamente, de ‘standards’, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado intencionalmente vago e aberto, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’. Por vezes – e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas -, o seu enunciado, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as consequências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, do que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas.”
A partir dos ensinamentos acima, as cláusulas gerais podem ser conceituadas como janelas abertas deixadas pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do Direito, caso a caso. São exemplos de cláusulas gerais constantes do Código Civil de 2002: Função social do contrato – art. 421 do CC.
Função social da propriedade – art. 1.228, § 1.º, do CC.
Boa-fé – arts. 113, 187 e 422 do CC.
Bons costumes – arts. 13 e 187 do CC.
Atividade de risco – art. 927, parágrafo único, do CC.
A s cláusulas gerais têm um sentido dinâmico, o que as diferencia dos conceitos legais indeterminados, construções estáticas que constam da lei sem definição. Assim, pode-se afirmar que quando o aplicador do direito cumpre a tarefa de dar sentido a um conceito legal indeterminado, passará ele a constituir uma cláusula geral. Segue-se com tal premissa o posicionamento de Karl Engisch, para quem a cláusula geral não se confunde com a ideia de conceito legal indeterminado, eis que a primeira “contrapõe a uma elaboração ‘casuística’ das hipóteses legais. ‘Casuística’ é aquela configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na sua especificidade própria”.
Consigne-se que muitas das cláusulas gerais são princípios, mas não necessariamente. Ilustrando, a função social do contrato é princípio contratual; ao contrário da cláusula geral de atividade de risco, que não é princípio da responsabilidade civil.
Ora, a adoção do sistema de cláusulas gerais pelo Código Civil de 2002 tem relação direta com a linha filosófica adotada por Miguel Reale na vastidão de sua obra. É notório que o jurista criou a sua própria teoria do conhecimento e da essência jurídica, a ontognoseologia jurídica, em que se busca o papel do direito nos enfoques subjetivo e objetivo, baseando-se em duas subteorias: o culturalismo jurídico e a teoria tridimensional do direito.8 Vejamos de forma sistematizada:
a) Culturalismo Jurídico (plano subjetivo) – inspirado no trabalho de Carlos Cossio, Reale busca o enfoque jurídico no aspecto subjetivo, do aplicador do direito. Três palavras orientarão a aplicação e as decisões a serem tomadas: cultura, experiência e história, que devem ser entendidas tanto do ponto de vista do julgador como no da sociedade, ou seja, do meio em que a decisão será prolatada.
b) Teoria tridimensional do direito (plano objetivo) – para Miguel Reale, direito é fato, valor e norma. Ensina o Mestre que a sua teoria tridimensional do direito e do Estado vem sendo concebida desde 1940, distinguindo-se das demais teorias por ser “concreta e dinâmica”, eis que “fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo de fato e ao jurista a norma (tridimensionalidade como requisito essencial do direito)”.
Pela conjugação das duas construções, na análise dos institutos jurídicos presentes no Código Civil de 2002, muitos deles abertos, genéricos e indeterminados, o jurista e o magistrado deverão fazer um mergulho profundo nos fatos que margeiam a situação, para então, de acordo com os seus valores e da sociedade – construídos após anos de educação e de experiências –, aplicar a norma de acordo com os seus limites, procurando sempre interpretar sistematicamente a legislação privada.
Fato, valor e norma serão imprescindíveis a apontar o caminho seguido para a aplicação do Direito.
Dessa forma, dar-se-á o preenchimento das cláusulas gerais, das janelas abertas. Por esse processo os conceitos legais indeterminados ganham determinação jurídica, diante da atuação do magistrado, sempre guiado pela equidade.
Primeiro, o magistrado julgará de acordo com a sua cultura, bem como do meio social. Isso porque os elementos culturais e valorativos do magistrado serão imprescindíveis para o preenchimento da discricionariedade deixada pela norma privada. Ganha destaque o valor como elemento formador do direito.
Segundo, tudo dependerá da história do processo e dos institutos jurídicos a ele relacionados, das partes que integram a lide e também a história do próprio aplicador. Aqui, ganha relevo o fato, outro elemento do direito, de acordo com a construção de Reale.
Por fim, a experiência do aplicador do direito, que reúne fato e valor simbioticamente, visando à aplicação da norma. Esta, sim, elemento central daquilo que se denomina ontognoseologia, a teoria do conhecimento, da essência jurídica, criada por Miguel Reale. Encaixa-se perfeitamente a proposta de Reale, para que sejamos juristas – no ponto de vista das normas –, sociólogos – diante da análise dos fatos – e filósofos – sob o prisma dos valores.
Nunca é demais frisar que as cláusulas gerais que constam da atual codificação material, a serem delineadas pela jurisprudência e pela comunidade jurídica, devem ser baseadas nas experiências pessoaisdos aplicadores e dos julgadores, que também devem estar atualizados de acordo com os aspectos temporais, locais e subjetivos que envolvem a questão jurídica que lhes é levada para apreciação. Ilustrando, o aplicador do direito deve estar atento à evolução tecnológica, para não tomar decisões totalmente descabidas, como a de determinar o bloqueio de todos à Internet, visando proteger a imagem individual de determinada pessoa. A formação interdisciplinar é primordial para o jurista do século XXI.
Como nova pontuação importante a respeito do Novo Código de Processo Civil, acreditamos que a legislação instrumental emergente também adotou um sistema aberto, baseado em cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados. Como é notório, o art. 1.º do CPC/2015 prevê que processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, valores esses que são por vezes abertos, caso da igualdade e da solidariedade. Merece também ser destacado, mais uma vez, o revolucionário art. 8.º do Novo CPC, segundo o qual, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Como se pode perceber, todas as expressões em itálico são cláusulas gerais, com preenchimento de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
Além disso, o Novo Código de Processo Civil reconhece expressamente a plena possibilidade de julgamento com base nas cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, exigindo a devida fundamentação pelo julgador em casos tais. Nesse contexto, o art. 11 do CPC/2015 preconiza que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Mais à frente, ao tratar dos elementos essenciais da sentença, o § 1.º do art. 489 do Estatuto Processual emergente estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; e) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Nota-se que a norma menciona os conceitos legais indeterminados, mas é certo que muitos deles são também cláusulas gerais.
O último dispositivo visa a afastar o livre convencimento do juiz, sem o devido fundamento. Acreditamos que esse comando poderá revolucionar as decisões judiciais no País, trazendo-lhes balizas mais certas e seguras, inclusive motivadas na doutrina. No entanto, o preceito também poderá ser totalmente desprezado pelos julgadores, inclusive pela ausência de sanção imediata. Somente o tempo e a prática demonstrarão qual a amplitude social da norma emergente. De todo modo, é certo que essa linha filosófica, aberta por excelência, foi inserida no Código Civil de 2002, principalmente no capítulo que trata do Direito das Obrigações, e reafirmada pelo Novo Código de Processo Civil. Os desenhos a seguir demonstram muito bem a confrontação entre o Código Civil de 1916, concebido à luz da teoria positivista, que teve como um de seus principais expoentes Hans Kelsen, e o Código Civil de 2002, sob a teoria tridimensional de Miguel Reale:
“desenho da moldura e da tridimensionalidade”
Superado esse estudo jusfilosófico, é preciso expor os principais marcos teóricos do Direito Civil brasileiro contemporâneo, a saber: o Direito Civil Constitucional, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a teoria do diálogo das fontes.
Direito Civil Constitucional
Direito Público x Direito Privado.
Relação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional. Representante desta ligação: Ministro Luiz Edson Fachin do STF.
O conceito de Direito Civil Constitucional, à primeira vista, poderia parecer um paradoxo. Mas não é. O direito é um sistema lógico de normas, valores e princípios que regem a vida social, que interagem entre si de tal sorte que propicie segurança – em sentido lato – para os homens e mulheres que compõem uma sociedade. O Direito Civil Constitucional, portanto, está baseado em uma visão unitária do ordenamento jurídico. 
Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interação dos dois ramos do direito – o público e o privado –, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso.
Os próprios constitucionalistas reconhecem o fenômeno de interação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional como realidade do que se convém denominar neoconstitucionalismo, ou da invasão da Constituição. E, por certo, o movimento brasileiro é único, é autêntico. 
Deve ser feita a ressalva que, por tal interação, o Direito Civil não deixará de ser Direito Civil; e o Direito Constitucional não deixará de ser Direito Constitucional. O Direito Civil Constitucional nada mais é do que um novo caminho metodológico, que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição, e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil e da legislação infraconstitucional, em uma análise em mão dupla.
Consequências:
- a proteção da dignidade da pessoa humana, princípio estampado no art. 1.º, III, do Texto Maior (CF/88), sendo a valorização da pessoa um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Trata-se do superprincípio ou princípio dos princípios como se afirma em sentido geral. A proteção da dignidade humana, a partir do modelo de Kant, constitui o principal fundamento da personalização do Direito Civil, da valorização da pessoa humana em detrimento do patrimônio. A tutela da dignidade humana representa a proteção da liberdade e dos direitos subjetivos na ordem privada.
- O segundo princípio visa à solidariedade social, outro objetivo fundamental da República, conforme o art. 3.º, I, da CF/1988. Outros preceitos da própria Constituição trazem esse alcance, como no caso do seu art. 170, pelo qual: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Aqui também reside o objetivo social de erradicação da pobreza, do mesmo modo prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 3.º, III).
- Por fim, o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu, traduzido no art. 5.º, caput, da Lei Maior, eis que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Quanto a essa igualdade, princípio maior, pode ser a mesma concebida pela seguinte expressão, atribuída a Aristóteles e também a Ruy Barbosa: A lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais. Do texto, nota-se na sua primeira parte a consolidação do princípio da igualdade stricto sensu (a lei deve tratar de maneira igual os iguais), enquanto a segunda traz o princípio da especialidade (... e de maneira desigual os desiguais). Essa é a essência da igualdade substancial.
Em obra lançada no ano de 2014, o Ministro Luiz Edson Fachin demonstra os grandes desafios do Direito Privado Contemporâneo Brasileiro, em constante interaçãocom a Constituição Federal.
Expõe que são tendências atuais do nosso Direito Civil: “a incidência franca da Constituição nos diversos âmbitos das relações entre particulares, mormente nos contratos, nas propriedades e nas famílias, à luz de comandos inafastáveis de proteção à pessoa; há, nada obstante, criativas tensões entre a aplicação de regras (e princípios) constitucionais e o ordenamento privado codificado; como há, sob o sistema constitucional, concepções filosóficas, o Estado liberal patrocinou o agasalho privilegiado da racionalidade codificadora das relações interprivadas; a ordem pública pode limitar a autonomia ou o autorregulamento dos interesses privados, sob a vigilância das garantias fundamentais; os Códigos Civis são reinterpretados pelas Constituições do Estado Social de Direito”.
A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Com relação direta com o último tópico, constituindo outra tese de relevo do Direito Privado contemporâneo, é primaz estudar, agora de maneira mais aprofundada, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mecanismo que torna possível o Direito Civil Constitucional.
Essa horizontalização dos direitos fundamentais nada mais é do que o reconhecimento da existência e aplicação dos direitos que protegem a pessoa nas relações entre particulares. Nesse sentido, pode-se dizer que as normas constitucionais que protegem tais direitos têm aplicação imediata (eficácia horizontal imediata). Essa aplicação imediata está justificada pelo teor do art. 5.º, § 1.º, da Constituição Federal de 1988, pelo qual: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Para Daniel Sarmento, grande entusiasta da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a referida aplicação “é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa”.
Por certo é que essa eficácia horizontal traz uma visualização diversificada da matéria, eis que as normas de proteção da pessoa previstas na Constituição Federal sempre foram tidas como dirigidas ao legislador e ao Estado (normas programáticas). Essa concepção anterior não mais prevalece, o que faz com que a eficácia horizontal seja interessante à prática, a tornar mais evidente e concreta a proteção da dignidade da pessoa humana e de outros valores constitucionais.
Do ponto de vista da terminologia, não se justifica mais denominar a Constituição Federal de 1988 como uma Carta Política, fazendo crer que ela é mais dirigida ao legislador, tendo uma eficácia vertical. Melhor denominá-la, portanto, como uma Carta Fundamental, pela prevalência de sua horizontalidade, ou seja, pela sua subsunção direta às relações interprivadas. Ilustre-se (EXEMPLOS) que a dignidade humana é conceito que pode ser aplicado diretamente em uma relação entre empregador e empregado, entre marido e mulher, entre companheiros, entre pais e filhos, entre contratantes e assim sucessivamente. Isso, sem a necessidade de qualquer ponte infraconstitucional. A mesma afirmação cabe para as ações judiciais com tais conteúdos, especialmente pelo que consta do já citado art. 1.º do Novo Código de Processo Civil.
Como exemplo de aplicação da tese, pode ser citado julgado do Supremo Tribunal Federal em que foi adotada, no sentido de assegurar direito à ampla defesa a associado que fora excluído do quadro de uma pessoa jurídica (Informativo n. 405 do STF):
“A Turma, concluindo julgamento, negou provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que mantivera decisão que reintegrara associado excluído do quadro da sociedade civil União Brasileira de Compositores – UBC, sob o entendimento de que fora violado o seu direito de defesa, em virtude de o mesmo não ter tido a oportunidade de refutar o ato que resultara na sua punição – v. Informativos ns. 351, 370 e 385. Entendeu-se ser, na espécie, hipótese de aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Ressaltou-se que, em razão de a UBC integrar a estrutura do ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, entidade de relevante papel no âmbito do sistema brasileiro de proteção aos direitos autorais, seria incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, a recorrente assumira posição privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e da fruição dos direitos autorais de seu associado. Concluiu-se que as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido extrapolaram a liberdade do direito de associação e, em especial, o de defesa, sendo imperiosa a observância, em face das peculiaridades do caso, das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Vencidos a Min. Ellen Gracie, relatora, e o Min. Carlos Velloso, que davam provimento ao recurso, por entender que a retirada de um sócio de entidade privada é solucionada a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor, sendo incabível a invocação do princípio constitucional da ampla defesa” (STF, RE 201.819/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2005).
Interessante verificar que, do julgado acima, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, pode ser retirada outra grande lição, a de que “Um meio de irradiação dos direitos fundamentais para as relações privadas seriam as cláusulas gerais (Generalklausel) que serviriam de ‘porta de entrada’ (Einbruchstelle) dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado”. Trata-se daquilo que se denomina eficácia horizontal mediata, pois há uma ponte infraconstitucional para as normas constitucionais: as cláusulas gerais. Tal mecanismo é perfeitamente possibilitado pelo Código Civil de 2002, diante da adoção de um modelo aberto, conforme antes demonstrado.
No aspecto processual, vale lembrar que a Emenda Constitucional 45 introduziu, entre os direitos fundamentais, a razoável duração do processo (art. 5.º, inciso LXXVIII). Fez o mesmo o Novo Código de Processo Civil, por força do seu art. 4.º, que tem a seguinte redação: “As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
Muitas ementas do STJ - Superior Tribunal de Justiça debatem esse importante direito processual, especialmente os seus limites, o que deve ser aprofundado com a emergência do Novo Código de Processo Civil.
Assim, por exemplo, reconheceu o Tribunal da Cidadania que “a Constituição Federal assegura, em seu art. 5.º, inciso LXXVIII, como direito fundamental, a razoável duração do processo. Contudo, a alegação de excesso de prazo não pode basear-se em simples critério aritmético, devendo a demora ser analisada em cotejo com as particularidades e complexidades de cada caso concreto, pautando-se sempre pelo critério da razoabilidade” (STJ, HC 263.148/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. Marilza Maynard (desembargadora convocada do TJSE), j. 04.06.2013, DJe 07.06.2013). Ou, ainda: “A duração razoável dos processos foi erigida como cláusula pétrea e direito fundamental pela Emenda Constitucional 45, de 2004, que acresceu ao art. 5.º o inciso LXXVIII,i n verbis: ‘a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’. A conclusão de processo administrativo em prazo razoável é corolário dos princípios da eficiência, da moralidade e da razoabilidade (Precedentes: MS 13.584/DF, 3.ª Seção, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 13.05.2009, DJe 26.06.2009; REsp 1091042/SC, 2.ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 06.08.2009, DJe 21.08.2009; MS 13.545/DF, 3.ª Seção, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 29.10.2008, DJe 07.11.2008; REsp 690.819/RS, 1.ª Turma, Rel. Min. José Delgado, j. 22.02.2005, DJ 19.12.2005)” (STJ, EDcl no AgRg no REsp 1090242/SC, 1.ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.09.2010, DJe 08.10.2010).
No plano das CortesEstaduais também podem ser encontradas várias decisões que aplicam a eficácia horizontal dos direitos fundamentais às relações privadas. Do Tribunal Paulista, destaque-se julgado com o seguinte trecho: “uma vez reconhecida, pela própria seguradora, a incapacidade do devedor, em razão de um câncer, e efetuado o pagamento integral da dívida financiada pela seguradora, não resta motivo plausível para que o Banco credor negue o levantamento da garantia e conceda a documentação necessária para a transferência da propriedade do bem, providência que, aliás, é um direito do apelante. Se o débito já se encontrava integralmente quitado, o simples fato de haver uma ação revisional em andamento não poderia impedir o levantamento da hipoteca. A postura do Banco se afasta da boa-fé objetiva, descumpre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e afronta o princípio do solidarismo constitucional. Autor que se encontra acometido de doença maligna que possui tratamento reconhecidamente penoso para o paciente e custoso para sua família. Nada mais natural que possa, nesse momento de aflição e angústia, movimentar seu patrimônio da forma que bem entenda, seja para custear o tratamento, seja para dar melhor condição ao adoentado, pouco importa. Caberia aos apelantes receber a documentação necessária para a transmissão da propriedade do imóvel, uma vez que este já havia sido quitado pela seguradora. Evidente a ofensa moral causada, que comporta reparação. Considerando que o contrato de financiamento se encontra quitado desde 03 de maio de 2004, reconhecendo o próprio Banco que o sinistro é datado de 01 de abril de 2003, permanecendo os apelantes até os dias atuais com a hipoteca pendendo sobre seu bem imóvel, deve ser fixada indenização por danos morais, em favor dos recorrentes, em quantia equivalente a R$ 16.000,00 (dezesseis mil reais), suficiente para reparar os danos causados e impingir ao Banco o dever de aprimorar a prestação de seus serviços” (TJSP, Apelação 9127680- 34.2008.8.26.0000, Acórdão 6755404, Santos, 20.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, j. 20.05.2013, DJESP 12.06.2013).
Nota-se, por fim, que existe uma relação inafastável entre essa eficácia das normas que protegem a pessoa nas relações entre particulares e o sistema de cláusulas gerais adotado pela codificação de 2002. Em sintonia, com tudo o que foi aqui exposto, é preciso estudar a festejada tese do diálogo das fontes.
O diálogo das fontes
A tese do diálogo das fontes foi desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg, trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A essência da teoria é que as normas jurídicas não se excluem – supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se complementam. Como se pode perceber há nesse marco teórico, do mesmo modo, a premissa de uma visão unitária do ordenamento jurídico.
A primeira justificativa que pode surgir para a sua aplicação refere-se à sua funcionalidade. É cediço que vivemos um momento de explosão de leis, um “Big Bang legislativo”, como simbolizou Ricardo Lorenzetti. O mundo pós-moderno e globalizado, complexo e abundante por natureza, convive com uma quantidade enorme de normas jurídicas, a deixar o aplicador do Direito até desnorteado. Convive-se com a era da desordem, conforme expõe o mesmo Lorenzetti. O diálogo das fontes serve como leme nessa tempestade de complexidade.
Relativamente às razões filosóficas e sociais da aplicação da tese, Claudia Lima Marques ensina que:
“Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de ‘le retour des sentiments’, sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (‘Zersplieterung’), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o ‘double coding’, e onde os valores são muitas vezes antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao tratamento diferenciado aos privilégios dos ‘espaços de excelência’ (Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995, II, Kluwer, Haia, p. 36 e ss.).”
A primeira tentativa de aplicação da tese do diálogo das fontes se dá com a possibilidade de subsunção concomitante tanto do Código de Defesa do Consumidor quanto do Código Civil a determinadas relações obrigacionais, sobretudo aos contratos. Isso diante da já conhecida aproximação principiológica entre os dois sistemas, consolidada pelos princípios sociais contratuais, sobretudo pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos. Supera-se a ideia de que o Código Consumerista seria um microssistema jurídico, totalmente isolado do Código Civil de 2002.
Como outro exemplo de interação necessária, a este autor parece que o Novo CPC intensificou a possibilidade de diálogos com a legislação material, em especial por ter adotado um sistema aberto e constitucionalizado. Ademais, a valorização da boa-fé objetiva processual possibilita a aplicação concomitante do CPC/2015 e do CC/2002, com o intuito de valorizar a conduta de lealdade das partes durante o curso de uma demanda judicial. Sendo assim, acredita-se que muitos julgados surgirão, nos próximos anos, fazendo incidir a teoria do diálogo das fontes nessa seara.
Feitas tais considerações, Claudia Lima Marques demonstra três diálogos possíveis a partir da teoria exposta:
a) Em havendo aplicação simultânea das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará presente o diálogo sistemático de coerência. Exemplo: os conceitos dos contratos de espécie podem ser retirados do Código Civil mesmo sendo o contrato de consumo, caso de uma compra e venda (art. 481 do CC).
Se o caso for de aplicação coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta (diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade). O exemplo típico ocorre com os contratos de consumo que também são de adesão. Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a proteção dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteção dos aderentes constante do art. 424 do CC.
c) Os diálogos de influências recíprocas sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influências da outra. Assim, o conceito de consumidor pode sofrer influências do próprio Código Civil. Como afirma a própria Claudia Lima Marques, “é a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”.
Analisadas essas premissas, é interessante trazer à colação, com os devidos comentários, alguns julgados nacionais que aplicaram a tese do diálogo das fontes, propondo principalmente uma interação entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor.
De início, limitando os juros cobrados em cartão de crédito e aplicando a aclamada teoria, o Tribunal de Justiça da Bahia, entre tantas ementas que se repetem:
“Consumidor. Cartão de crédito. Juros abusivos. Código de Defesa do Consumidor. Juros estipulação usurária pecuniária ou real. Trata-se de crime previsto na Lei n.º 1.521/51, art. 4.º. Limitação prevista na Lei n.º 4.595/64 e das normas do Conselho Monetário Nacional, regulação vigorante,ainda que depois da revogação do art. 192 da CF/1988, pela Emenda Constitucional 40 de 2003. Manutenção da razoabilidade e limitação de prática de juros pelos artigos 161 do CTN combinando com 406 e 591 do CC 2002. A cláusula geral da boa-fé está presente tanto no Código de Defesa do Consumidor (arts. 4.º, III, e 51, IV, e § 1.º, do CDC) como no Código Civil de 2002 (arts. 113, 187 e 422), que devem atuar em diálogo (diálogo das fontes, na expressão de Erik Hayme) e sob a luz da Constituição e dos direitos fundamentais para proteger os direitos dos consumidores (art. 7.º do CDC). Relembre-se, aqui, portanto, do Enunciado de n. 26 da Jornada de Direito Civil, organizada pelo STJ em 2002, que afirma: ‘a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes’. Recurso improcedente” (TJBA, Recurso 0204106-62.2007.805.0001-1, 2.ª Turma Recursal, Rel. Juíza Nicia Olga Andrade de Souza Dantas, DJBA 25.01.2010).
Do Tribunal do Rio Grande do Norte, da mesma maneira tentando uma aproximação conceitual entre os dois Códigos, colaciona-se:
“Civil. CDC. Processo Civil. Apelação cível. Juízo de admissibilidade positivo. Ação de indenização por danos morais. Contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Notificação cartorária. Cobrança indevida. Prestação de serviços. Relação de consumo configurada. Incidência do Código Civil. Diálogo das fontes. Responsabilidade objetiva. Vício de qualidade. Dano moral configurado. Dano à honra. Abalo à saúde. Quantum indenizatório excessivo. Redução. Minoração da condenação em honorários advocatícios.
Recurso conhecido e provido em parte” (TJRN, Acórdão 2009.010644-0, Natal, 3.ª Câmara Cível, Rel. Juíza Conv. Maria Neize de Andrade Fernandes, DJRN 03.12.2009, p. 39).
Tratando da coexistência entre as leis, enunciado fundamental da teoria do diálogo das fontes, destaque-se decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul:
“Embargos de declaração. Ensino particular. Desnecessidade de debater todos os argumentos das partes. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Diálogo das fontes. 1. Formada a convicção pelo julgador que já encontrou motivação suficiente para alicerçar sua decisão, e fundamentada nesse sentido, consideram-se afastadas teses, normas ou argumentos porventura esgrimidos em sentidos diversos. 2. Em matéria de consumidor vige um método de superação das antinomias chamado de diálogo das fontes, segundo o qual o diploma consumerista coexiste com as demais fontes de direito como o Código Civil e Leis esparsas. Embargos desacolhidos” (TJRS, Embargos de Declaração 70027747146, Caxias do Sul, 6.ª Câmara Cível, Rel. Des. Liége Puricelli Pires, j. 18.12.2008, DOERS 05.02.2009, p. 43).
Por fim, sem prejuízo de inúmeros outros julgados que utilizaram a teoria do diálogo das fontes, merecem relevo os seguintes acórdãos do Tribunal de São Paulo, do mesmo modo buscando uma interação entre o CC/2002 e o CDC:
“Civil. Compromisso de compra e venda de imóvel. Transação. Carta de crédito. Relação de consumo. Lei 8.078/90. Diálogo das fontes. Abusividade das condições consignadas em carta de crédito. Validade do instrumento quanto ao reconhecimento de dívida. Processual civil. Honorários. Princípio da sucumbência e da causalidade. Arbitramento em conformidade com o disposto no artigo 20, § 3.º do CPC. Recurso desprovido” (TJSP, Apelação com Revisão 293.227.4/4, Acórdão 3233316, São Paulo, 2.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Boris Padron Kauffmann, j. 09.09.2008, DJESP 01.10.2008).
“Responsabilidade civil. Defeito em construção. Contrato de empreitada mista. Responsabilidade objetiva do empreiteiro. Análise conjunta do CC e CDC. Diálogo das fontes. Sentença mantida. Recurso improvido” (TJSP, Apelação com Revisão) 81.083.4/3, Acórdão 3196517, Bauru, 8.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 21.08.2008, DJESP 09.09.2008).
“Responsabilidade civil por vícios de construção. Desconformidade entre o projeto e a obra. Paredes de espessura inferior às constantes do projeto, que provocam alterações acústicas e de temperatura nas unidades autônomas. Responsabilidade da incorporadora e construtora pela correta execução do empreendimento. Vinculação da incorporadora e construtora à execução das benfeitorias prometidas, que integram o preço. Desvalorização do empreendimento. Indenização pelos vícios de construção e pelas desconformidades com o projeto original e a oferta aos adquirentes das unidades. Inocorrência de prescrição ou decadência da pretensão ou direito à indenização. Incidência do prazo prescricional de solidez da obra do Código Civil. Diálogo das fontes com o Código de Defesa do Consumidor. Ação procedente. Recurso improvido” (TJSP, Apelação Cível 407.157.4/8, Acórdão 2635077, Piracicaba, 4.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 29.05.2008, DJESP 20.06.2008).
Superada essas exemplificações de diálogos entre o Direito Civil e o Direito do Consumidor, é imperioso dizer que também são possíveis diálogos entre o Direito Civil e o Direito do Trabalho, particularmente entre o Código Civil e a legislação trabalhista, o que é totalmente viável e, mais do que isso, plenamente recomendável. Para esse diálogo, de início, é importante apontar que o Direito do Trabalho é ramo do Direito Privado, assim como o é o Direito Civil. Quanto ao contrato de trabalho, a sua própria concepção é feita com vistas à proteção do vulnerável dessa relação privada, o empregado ou trabalhador. Há tempos que o Direito do Trabalho lida com a diferença existente no contrato em questão, visando tutelar camadas da população desprotegidas e desamparadas. Talvez a legislação trabalhista seja o primeiro exemplo de dirigismo contratual, de intervenção do Estado e da lei nos contratos.
Conforme o art. 8.º da CLT, o direito comum e, logicamente, o Direito Civil são fontes subsidiárias do Direito do Trabalho. Na verdade, pela aplicação da tese do diálogo das fontes, o que se propõe é uma nova leitura desse comando legal. Não se deve mais considerar o Direito Civil como simples fonte subsidiária, mas, em alguns casos, como fonte direta do Direito do Trabalho.
Isso porque, em muitas situações atualmente comuns à prática trabalhista, não há normas de Direito do Trabalho regulamentando a matéria. Em casos tais é que as normas do Código Civil terão aplicação. Outro argumento interessante é que, quando a CLT entrou em vigor, não vivíamos esse momento de complexidade legislativa atual. Trazendo clarividência a essa complexidade, anote-se que a Emenda Constitucional 45/2004 ampliou enormemente a competência da Justiça do Trabalho para tratar de casos que antes eram da competência da Justiça Comum, como a responsabilidade civil por acidente de trabalho ou em decorrência do contrato de trabalho. Como não há legislação trabalhista a tratar do tema, o aplicador do Direito deve procurar socorro nas normas do Código Civil que tratam da responsabilidade civil.
Em suma, a partir da interação científica a doutrina civilista deve preencher as estantes do intérprete que atua na área trabalhista, para motivar o seu convencimento e os seus argumentos. Na área trabalhista, já podem ser encontrados arestos que fazem menção à teoria do diálogo das fontes, com destaque para o seguinte:
“Trabalho temporário. Aplicação da CLT ou outro diploma legal. Possibilidade. Diálogo das fontes. A circunstância de o trabalho temporário ser disciplinado pela lei 6.019/74. Não importa, de per si, em inaplicabilidade da CLT ou mesmo de outros diplomas legais, como o Código Civil, por exemplo, e isso porque, como se sabe, hodiernamente, diante do aumento dos microssistemas, regulando situações específicas, imprescindível o recurso ao denominado diálogo das fontes, como meio mais eficaz de proteção à parte mais fraca de uma relação jurídica, preservando-se a sua dignidade de pessoa humana e também por possibilitar uma visão de conjunto que um olhar parcial,por óbvio, não proporciona. Trabalho temporário. Contrato. Validade. Requisitos. A se entender que a mera celebração de contrato escrito e normalmente com cláusulas já previamente estabelecidas, entre as empresas prestadora e tomadora de serviços e entre aquela e o obreiro, apontando, passe a singeleza do vocábulo, ‘secamente’ qual o motivo da contratação, às vezes apenas assinalando com um ‘X’ um espaço em branco, atende ao quanto disposto na referida ‘lex’, bem é de ver que muito raramente se encontrará algum contrato de trabalho temporário que padeça de algum vício de nulidade, todos serão celebrados com a mais absoluta observância das normas legais pertinentes, de modo que, em situações nas quais se fala em substituição transitória de pessoal permanente ou quando o motivo determinante é o acréscimo extraordinário de serviços, há de ser apontado o que levou a que se desse uma ou outra situação, sendo totalmente insuficiente a mera alusão, sem maiores especificações, a respeitante necessidade. Em outras palavras, não basta dizer que o motivo da contratação do trabalho temporário é este ou aquele, mesmo porque, só em razão dos mesmos é que tal concerto pode ser ajustado, imprescindível o deixar claro qual a situação que provocou e/ou que dá sustentação ao motivo alegado; por exemplo, um pedido de cliente absolutamente imprevisto e que, para ser atendido, provoca – aí sim – um acréscimo extraordinário de serviço, do contrário, se mencionada situação não ficar devidamente apontada, a rigor, as normas aplicáveis não restaram satisfeitas, como deveriam sê-lo, o que leva à decretação de nulidade do contrato de trabalho temporário, por não demonstrado o preenchimento das condições necessárias à sua celebração” (TRT da 15.ª Região, Recurso Ordinário 1146-2007-059-15-00-9, Acórdão 45622/08, 5.ª Câmara, Rel. Des. Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani, DOESP 01.08.2008, p. 95).
A encerrar o presente tópico, destaque-se que a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no futuro. No momento, ainda é possível conciliar tais critérios com a aclamada tese, premissa que guiará a presente obra, que tenta conciliar o clássico e o contemporâneo, o moderno e o pós-moderno.
A interação entre as teses expostas e a visão unitária do ordenamento jurídico
Para finalizar o estudo da introdução ao Código Civil de 2002, pode-se demonstrar uma relação direta entre o diálogo das fontes, a constitucionalização do Direito Civil (com o surgimento do Direito Civil Constitucional), a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a personalização do Direito Civil e o sistema de cláusulas gerais construído pela ontognoseologia realeana.
Ora, a constitucionalização do Direito Civil nada mais é do que um diálogo entre o Código Civil e a Constituição (Direito Civil Constitucional). Com isso se vai até a Constituição, onde repousa a proteção da pessoa como máxime do nosso ordenamento jurídico (personalização).
Para que essa proteção seja possível, deve-se reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, que as normas que protegem a pessoa, previstas no Texto Maior, têm aplicação imediata nas relações entre particulares. A porta de entrada dessas normas protetivas, nas relações privadas, pode se dar por meio das cláusulas gerais (eficácia horizontal mediata), ou mesmo de forma direta (eficácia horizontal imediata).
Em síntese, percebe-se que todas essas teorias possibilitam a visão de um sistema unitário, em que há mútuos diálogos e o reconhecimento da interdisciplinaridade. Assim está sendo construído o Direito Civil Contemporâneo.

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