Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Medo da vida Alexander Löwen Medo da vida CÍRCULO DO LIVRO Círculo do Livro S.A. Caixa postal 7413 01051 São Paulo, Brasil Edição integral Título do original: "Fear of life"̂ Copyright © 1980 Dr. Alexander Lowen Tradução: Maria Sílvia Mourão Netto Capa: colagem de Tide Hellmeister Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Summus Editorial Ltda., mediante acordo com The International Institute for Bioenergetic Analysis Venda permitida apenas aos sócios do Círculo Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A. 2 4 6 8 10 9 7 5 3 89 91 92 90 Dedicado com amor a Roffeta L . walker. Empurrei minha carroça até sua es/rela. “Que coisa é o homem! Dentre todas as maravilhas A maravilha do mundo é o próprio homem. Sim, assombrosa é a Sagacidade do homem: Por e/a, atinge os cumes; Por e/a, também cai. Na confiança de seu poder, tropeça; Na obstinação de sua vontade, é derrotado.” Sófocles, Antígona Sumário Introdução .................................................... 11 1. O caráter neurótico...................................... 21 Problema edipiano A lenda de Édipo Complexo de Édipo 2. Destino e caráter........................................... 47 Funcionamento do destino Natureza do destino Destino do amor 3. Ser e destino ............................................... 81 Ser como autenticidade Ser como sexualidade Ser enquanto não-fazer 4. O medo de s e r ............................................. 115 Medo de viver e de morrer Medo do sexo Medo da insanidade 5. Uma terapia par s e r ...................................... 145 Espiral de crescimento Ruptura e colapso Ansiedade de castração 9 6. Atitude heróica perante a v id a ................... 175 Regressão e progressão Desespero, morte e renascimento 7. O conflito edipiano torna-se um fato da vida m oderna........................................................ 205 Surge a dominância do ego Hierarquia de poder e lutas pelo poder Progreáir produz conflito 8. A sabedoria do fracasso ............................. 237 O enigma da esfinge Reconciliando contradições A sabedoria da esfinge 10 Introdução A neurose não é, em geral, definida como medo da vida, mas é exatamente isso. A pessoa neurótica tem medo de abrir seu coração ao amor, teme estender a mão para pedir ou para agredir; amedronta-a ser plenamente si mesma. Po- demos explicar esses temores psicologicamente. Quando abri- mos o coração ao amor, ficamos vulneráveis ao risco da mágoa; quando estendemos os braços à frente, arriscamo-nos à rejeição; quando agredimos, há a possibilidade de sermos destruídos. Existe, contudo, uma outra dimensão desse pro blema. Vida ou sensações de maior intensidade do que aque las a que a pessoa está habituada é algo perigoso, pois ameaça inundar o ego, ultrapassar seus limites, liquidar sua identida de. É assustador sentir mais vitalidade, ter sensações mais intensas. Trabalhei com um rapaz ainda jovem cujo corpo estava bastante destituído de vitalidade. Era tenso e con traído, de olhos amortecidos, pele pálida, respiração superfi- cial. Seu corpo tornou-se mais vivo através de exercícios de respiração profunda e outros movimentos terapêuticos. Seus olhos se iluminaram, sua pele ganhou vida, sentia formiga- mento em algumas partes de seu corpo, suas pernas começa ram a vibrar. Aí, ele me disse: "Cara, é vida demais. Não consigo agüentar” . Acredito que, em certa medida, estamos todos na mes- ma situação desse rapaz. Queremos nos tornar mais cheios de vida, sentir mais, e temos medo disso. Nosso medo da vida se reflete em nossa maneira de nos mantermos ocupa dos a fim de não sentirmos, de permanecermos na correria, não nos encararmos de frente, de entregarmo-nos ao álcool ou às drogas. Por termos medo da vida, procuramos contro- lá-la, dominá-la. Acreditamos que é ruim ou perigoso sermos 11 levados de roldão por nossas emoções. Admiramos a pessoa fria, capaz de agir sem sentimentos. Nosso herói é James Bond, o agente 007. A ênfase de nossa cultura recai Sobre o fazer, Sobre o conseguir resultados. O indivíduo de nosso tempo está comprometido com seu sucesso, não em ser uma pessoa. Justificadamente, pertence à "geração da ação” cujo lema é: faça mais, sinta menos. Essa atitude caracteriza gran de parte da moderna sexualidade: mais atuação, menos paixão. Independentemente de nosso desempenho, como pes soas somos um fracasso. Acredito que a maioria de nós sinta o fracasso em si mesmo. Temos uma percepção apenas nebu losa da dor, da angústia, do desespero que jazem somente a milímetros da nossa superfície. Mas estamos determinados a superar nossas franquezas, dominar nossos temores, conter nossas ansiedades. Eis por que são tão populares livros que tratam do auto-aperfeiçoamento ou do tipo "Como fazer. . . ” Infelizmente, esses esforços estão fadados a fracassar. Ser uma pessoa não é algo que se possa fazer. Não é um desem penho. Talvez exija uma parada nos negócios desenfreados para termos tempo de respirar e sentir. Talvez percamos a dor nesse processo, e se tivermos coragem para aceitá-lo, também sentiremos prazer. Se pudermos encarar nosso vazio interior, encontraremos um preenchimento. Se pudermos atravessar nosso desespero, descobriremos a alegria. Talvez precisemos de ajuda para esse empreendimento terapêutico. Será destino do homem moderno ser neurótico, ter me- do da vida? Sim, é a minha resposta, se por homem moderno definirmos o membro de uma cultura cujos valores predomi- nantes sejam o poder e o progresso. Uma vez que são esses os valores que assinalam a cultura ocidental no século XX, toda pessoa criada nessa sociedade é neurótica. O neurótico está em conflito consigo mesmo. Parte de seu ser tenta sobrepujar uma outra parte. Seu ego tenta do minar seu corpo; sua mente racional, controlar seus senti- mentos; sua vontade, superar medos e ansiedades. Apesar de esse conflito ser em grande extensão inconsciente, seu efeito consiste em esvaziar a energia da pessoa e destruir sua paz de espírito. Neurose é um conflito interno. O caráter neuró tico assume muitas formas, mas todas elas envolvem uma luta, no interior da pessoa, entre o que ela é e o que acredita que deva ser. Toda pessoa neurótica é prisioneira desse con flito. Como surge um tal estado de conflito interno? Por que 12 Darleny o homem moderno padece desse conflito? No caso indivi- dual, a neurose emerge no bojo de um contexto familiar. A situação familiar, contudo, reflete a cultural, pois a família está sujeita a todas as forças da sociedade da qual faz parte. Para entendermos a condição existencial do homem moderno e conhecermos seu destino, devemos investigar as fontes de conflito de sua cultura. Já estamos familiarizados com alguns conflitos de nossa cultura. Por exemplo, falamos de paz, mas nos preparamos para a guerra. Defendemos a preservação ecológica, mas, de- sapiedadamente, exploramos os recursos naturais da Terra com vistas ao lucro financeiro. Estamos comprometidos com metas de poder e progresso e, no entanto, desejamos prazer, paz de espírito, estabilidade. Não nos damos conta de que poder e prazer são valores opostos e que o primeiro exclui o segundo. O poder desencadeia, inevitavelmente, o conflito pela posse, o qual com freqüência coloca pai contra filho, irmão contra irmão. É uma força divisional, dentro de uma comunidade. O progresso denota uma atividade constante que leva à mudança do velho em novo, devido à crença de que o novo é sempre superior ao velho. Embora isso possa ser verdade em algumas áreas técnicas, como crença é peri- goso. Disso decorre que o filho é superior ao pai e que a tra- dição é somente o peso morto do passado. Existem culturas nas quais prevalecem outros valores, nas quais o respeito pelo passado e pela tradição é mais importante do que o de sejo de mudar. Nessas culturas, os conflitos são minimizados, a neurose é rara. Ospais, como representantes da cultura, têm a respon sabilidade de inspirar nos filhos os valores dessa sociedade. Exigem de um filho atitudes e comportamentos destinados a inseri-lo na matriz social e cultural. Por um lado, a criança resiste a essas exigências, pois elas significam uma domesti cação de sua natureza animal. A criança tem que ser "viola- da” para que a façam pertencer ao sistema. Por outro lado, a criança deseja acatar aquelas exigências, a fim de garantir o amor e a aprovação de seus pais. O resultado final depen- derá da natureza dessas exigências e do modo como serão cumpridas. Com amor e compreensão, é possível ensinar a uma criança os hábitos e rituais de uma cultura, sem violar seu espírito. Infelizmente, na maioria dos casos, o processo de adaptação de uma criança à cultura não deixa por menos; viola efetivamente seu espírito, tornando-a então neurótica, fazendo-a sentir medo da vida. 13 O aspecto central do processo de adaptação cultural é o controle da sexualidade. Não há cultura que não imponha al guma forma de restrição sobre o comportamento sexual. Tais rédeas parecem necessárias como forma de prevenção das discórdias dentro de uma comunidade. Seres humanos são criaturas ciumentas, predispostas à violência. Mesmo nas mais primitivas sociedades o laço do matrimônio é sagrado. Os conflitos que surgem dessas restrições, porém, são exter- nos à personalidade. Na cultura ocidental, a prática tem sido fazer a pessoa se sentir culpada por suas sensações e práticas sexuais, como a masturbação, que de modo algum ameaça a paz da comunidade. Quando culpa ou vergonha são vincu- ladas aos sentimentos e às sensações, o conflito é internali zado e cria um caráter neurótico. O incesto é tabu em todas as sociedades humanas, mas as atrações sexuais de uma criança pelo genitor do sexo opos to são passíveis de repreensão apenas nas sociedades moder- nas. Acredita-Se que tais sentimentos colocam em risco o direito exclusivo de um dos pais aos afetos sexuais do par ceiro. A criança é vista como rival pelo genitor do mesmo sexo. Apesar de não ocorrer nenhum incesto, a criança é levada a sentir-se culpada por esses sentimentos e desejos completamente naturais. Quando Freud investigou as causas dos problemas emo cionais de seus pacientes através de análise, descobriu que todos os casos envolviam a sexualidade do primeiro ano de vida ou da infância posterior, principalmente as atrações se xuais pelo genitor do sexo oposto. Descobriu também que, associados a essas sensações sexuais, existiam desejos de morte relacionados ao genitor do mesmo sexo. Observando o paralelo com a lenda de Édipo, ele descreveu a situação da criança como edípica. Ele acreditava que, se um menino não suprimisse seus sentimentos sexuais pela mãe, sofreria o des tino de Édipo, ou seja, mataria o pai e se casaria com a mãe. Para impedir esse destino, o filho é ameaçado de castração caso não reprima tanto seu desejo sexual quanto seus senti mentos de hostilidade. A análise revelou ainda que não só essas sensações e sentimentos eram suprimidos, como também a situação edí pica em si era reprimida; quer dizer, o adulto não tinha lem- brança do triângulo em que esteve envolvido entre os três e seis anos de idade. Minha própria experiência clínica confir ma essa observação. Poucos pacientes conseguem recordar-se de algum desejo sexual pelo genitor. Sobretudo, Freud acre 14 ditava que essa repressão era necessária para que a pessoa pudesse estabelecer uma vida sexual normal, na fase adulta. Ele considerava que a repressão possibilitava a transferência do desejo sexual precoce, destinado ao genitor, para alguém semelhante em termos de desenvolvimento. Se isso não ocor resse, a pessoa estaria fixada no genitor. Sendo assim, para Freud, a repressão era o caminho de solução de Édipo, per- mitindo que a criança, depois de atravessar um período de latência, ingressasse numa maturidade normal. Se a repressão fosse incompleta, a pessoa se tornaria neurótica. Segundo Freud, o caráter neurótico representa uma in- capacidade de adaptação à situação cultural. Ele admitia que a civilização nega ao indivíduo uma completa gratificação instintiva, mas achava que essa negativa fosse necessária ao progresso cultural. Na realidade, ele aceitava a idéia de que o destino do homem moderno fosse ser infeliz. Esse destino não pertencia ao âmbito da psicanálise, limitada como era a ajudar a pessoa a se enquadrar adequadamente dentro do sis tema cultural. A neurose era vista como um sintoma (fobia, obsessão, compulsão, melancolia, etc.) que interferia nesse enquadramento. Wilhelm Reich tinha uma concepção diferente. Apesar de ter estudado com Freud e de ser membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, percebeu que a ausência de um sinto ma invalidante não constituía critério de saúde emocional. Em seu trabalho com pacientes neuróticos, descobriu que o sintoma se desenvolvia a partir de uma estrutura neurótica de caráter e que podia ser completamente eliminado, mas apenas se fosse modificada a estrutura de caráter da pessoa. Para Reich, o problema não se resumia no enquadramento na cultura; o importante era a capacidade da pessoa de en- tregar-se integralmente ao sexo e ao trabalho. Tal capacidade permitiria à pessoa experimentar uma completa satisfação em sua vida. O indivíduo seria neurótico na medida em que lhe faltasse essa capacidade. Em seu trabalho terapêutico, Reich enfatizou a sexua lidade como chave para o entendimento do caráter. Toda pessoa neurótica apresentava algum distúrbio em sua respos ta orgástica, não tendo condições de entregar-se por inteiro as agradáveis e involuntárias convulsões do orgasmo. Essa pessoa estaria com medo da sensação avassaladora do orgas- mo total. O neurótico mostrava-se orgasticamente impotente, em determinado grau. Se, em resultado da terapia, conquis- tasse essa capacidade, tornar-se-ia emocionalmente saudável. 15 Desapareceriam quaisquer distúrbios neurtóicos dos quais padecesse. Sobretudo, sua liberdade em relação à neurose prosseguiria enquanto conservasse sua potência orgástica. Reich vislumbrou o vínculo entre impotência orgástica e o problema edipiano. Alegava que a neurose tinha suas raízes na família patriarcal autoritária, em que se suprimia a sexualidade. Ele não aceitava o homem como inexoravelmen te fadado a um destino infeliz. Acreditava que um sistema social que negasse aos cidadãos a plena satisfação de suas necessidades instintivas estava doente e precisava ser altera do. Nos primeiros anos de trabalho como psicanalista, Reich também foi um ativista social. Contudo, nos últimos anos, veio a concluir que pessoas neuróticas não podem modificar uma sociedade neurótica. Fui profundamente influenciado pelas idéias de Reich. Foi meu professor de 1940 a 1953. E meu analista, de 1942 a 1945. Tornei-me um psicoterapeuta porque acreditei que sua abordagem dos problemas humanos, tanto ao nível teóri co (análise de caráter), quanto técnico (vegetoterapia), repre sentava um avanço significativo no tratamento do caráter neurótico. A análise do caráter foi a grande contribuição de Reich à teoria psicanalítica. Para ele, o caráter neurótico era o solo fértil em que medrava o sintoma neurótico. Portanto, acreditava que a análise deveria focalizar o caráter, ao invés do sintoma, para efetuar uma melhora substancial. A vegeto terapia assinalou a vigorosa entrada do processo terapêutico no domínio do somático. Reich acreditava que a neurose manifestava-se num funcionamento vegetativo perturbado, bem como em conflitos psíquicos. A respiração, a mobilida de, os movimentos involuntários de prazer do orgasmo so- friam acentuada diminuição no indivíduo neurótico, através de tensões musculares crônicas. Descreveu essas tensões como processo de formação da couraça, a qual reflete o cará- ter ao nível somático. Reich afirmava que a atitude física de uma pessoa é fundamentalmente idênticaà sua atitude psí quica. O trabalho de Reich é a base sobre a qual desenvolvi minha análise bioenergética, que amplia as conceituações reichianas em vários e importantes ângulos. Primeiro: a análise bioenergética fornece uma com preensão sistemática da estrutura de caráter tanto ao nível psíquico quanto somático. Com essa compreensão, a pessoa tem condições de ler o caráter e os problemas emocionais, a partir da expressão de seu corpo; tem também condições de imaginar a história daquele ináivíduo, pois suas experiências 16 de vida estão estruturadas em seu corpo1. A informação obtida por essa leitura da linguagem do corpo integra-se ao processo analítico. Segundo: através de seu conceito de " grounding” 2, a análise bioenergética oferece uma‘ visão mais profunda dos processos de energia dentro do corpo, em sua influência sobre a personalidade. G rounding refere-se à conexão energética entre os pés da pessoa e a terra ou chão. Reflete o montante de energia ou sensação que ela permite fluir para a parte inferior de seu corpo. Denota o relacionamento da pessoa com a base sobre a qual se firma. Está bem plantada no chão ou suspensa no ar? Os pés estão bem plantados? Qual é sua postura? As sensações de segurança e independência estão intimamente relacionadas à função das pernas e pés. Essas sensações têm poderosa influência sobre a sexualidade. Terceiro: a análise bioenergética emprega muitas técni cas e exercícios físicos ativos que ajudam a pessoa a forta lecer sua postura, aumentar sua energia, ampliar e aprofun dar sua autopercepção e acentuar sua auto-expressão. Na análise bioenergética, o trabalho corporal é realizado em coordenação com o processo analítico, tornando essa modali dade terapêutica uma abordagem em que corpo e mente são combinados para o enfrentamento dos problemas emocionais. Venho praticando terapia há mais de trinta anos, a fim de ajudar os pacientes a conquistar alguma alegria e felicida de em suas vidas. Para essa atividade, tem sido necessário um esforço contínuo de compreensão do caráter neurótico do homem moderno, tanto da perspectiva cultural quanto indi vidual. Meu enfoque foi e continua sendo a pessoa e sua luta para encontrar algum significado e alguma satisfação em sua vida; em outras palavras, a pessoa em sua luta contra seu destino. No entanto, como pano de fundo dessa luta existe o contorno cultural. Sem conhecimento dos processos culturais, não podemos compreender a profundidade do problema. O processo cultural que deu origem à sociedade moder- na e ao homem moderno foi o desenvolvimento do ego. Esse desenvolvimento associa-se à aquisição de conhecimento e à 1 O leitor deverá procurar no livro do mesmo autor, O corpo em terapia, uma apresentação mais elaborada desse conceito. (N. do A.) 2 "Ground” significa "solo”, "chão”, "área”, "espaço”, "superfície”, "base”, "fundamen/o”, entre outros sentidos. "Grounding”, "ligação a terra” . Em linguagem bioenergética, designa o contato com o chão e, a partir des/e, a conscientização do corpo "bem plantado no chão”, o uso consagrou entre nós o termo em sua forma original. (N. do T.) 17 conquista da natureza. O homem, como qualquer outro ani- mal, faz parte da natureza e está absolutamente submetido a suas leis; mas também está acima da natureza, atuando so bre ela, controlando-a. Procede da mesma maneira com sua própria natureza: parte de sua personalidade, o ego, volta-se contra sua parte animal, seu corpo. A antítese entre ego e corpo produz uma tensão dinâmica que propicia o amadure cimento da cultura, mas também comporta um potencial des trutivo. Isso pode ser mais bem entendido por uma analogia, a do arco e flecha. Quanto mais se verga o arco, mais longe voará a flecha. Mas se a curvatura do arco for excessiva, ele se quebrará. Quando o ego e o corpo distanciam-se a ponto de não haver contato entre eles, o resultado é uma cisão psi- cótica. Acredito que tenhamos atingido esse ponto de perigo em nossa cultura. Colapsos psicóticos são muito comuns, mas o temor ainda mais disseminado é o do colapso ao nível pes soal e social. Dada essa sua cultura e o caráter por ela produzido, qual é o destino do homem moderno? Se a lenda de Édipo pode servir como profecia, a profecia é buscar atingir o su cesso e o poder apenas para encontrar o próprio mundo, des- fazendo-se em pedaços ou sofrendo um colapso. Se sucesso é algo que se mede pelas posses materiais, como ocorre nos países industrializados, e poder, pela capacidade de fazer e ir (máquinas e energia), a maioria das pessoas do mundo oci dental tem tanto sucesso quanto poder. O colapso de seu mundo está no empobrecimento de sua vida emocional inte- rior. Depois de se comprometerem com sucesso e poder, as pessoas têm muito pouco em nome do que viver. E, como Édipo, acabam por tornar-se andarilhos sobre a terra, seres desarraigados que não podem encontrar paz em lugar algum. Toda pessoa, até certo ponto, sente-se alienada em relação aos outros seres humanos, carregando em seu íntimo uma profunda sensação de culpa que não entende. Essa é a con- dição existencial do homem moderno. Seu desafio é reconciliar esses aspectos antitéticos de sua personalidade. Ao nível corporal, ele é animal; ao nível egóico, um pseudodeus. O destino do animal é a morte, que o ego, em suas aspirações divinas, tenta evitar. Mas, na ten tativa de evitar seu destino, o homem cria um outro ainda pior, a saber, viver com medo da vida. A vida humana está cheia de contradições. É sinal de sabedoria reconhecer e aceitar tais contradições. Pode dar a impressão de uma contradição dizer que aceitar o próprio 18 destino conduz a uma modificação desse mesmo destino; mas é verdade. Quando a pessoa pára de lutar contra o destino, perde sua neurose (conflito interno) e conquista paz de es- pírito. O resultado é uma atitude diferente (ausência do medo da vida), que se expressa num caráter diferente e se associa a um destino diferente. Essa pessoa terá coragem para viver e morrer, conhecerá a plena realização da vida. É assim que termina a história de Édipo, figura cujo nome identifica o problema central da personalidade do homem moderno. 19 1 . O caráter neurótico Problema edipiano Diz-se que as pessoas aprendem pela experiência, e, em geral, isso é verdade. A experiência é o melhor e talvez único e verdadeiro professor. Mas, quando esse aprendizado está inserido no âmbito da neurose de alguém, a regra parece não ser aplicável. A pessoa não aprende pela experiência; ao contrário, repete o mesmo comportamento autodestrutivo vezes e vezes seguidas. Por exemplo, existe o homem que Sempre se encontra em condição de ajudar os outros. Res ponde com grande solicitude quando alguém o procura em busca de ajuda. Posteriormente, sente-se usado e fica ressen tido porque não acredita que a pessoa por ele ajudada apre ciou devidamente sua dedicação. Volta-se contra quem pres tou assistência e decide ser menos disponível e mais crítico em relação às solicitações de ajuda que receber da próxima vez. Porém, quando sente que existe alguém em dificuldade, oferece seus serviços, inclusive antes de ter sido requisitado, pensando que dessa vez o resultado Será diferente. Mais uma vez a cena se repete. Essa pessoa não aprende, porque seus préstimos têm uma qualidade compulsória. É levada a ajudar por forças que escapam a seu controle. Considere-se o caso da mulher que, em seus relaciona mentos com homens, assume um papel maternal. O efeito dessa postura é infantilizar o homem e privar-se de sua rea lização sexual. Ela talvez interrompa a relação sentindo-se usada e ludibriada, culpando a imaturidade e a fraqueza do homem pelo fracasso do vínculo. Da próxima vez, diz, esco lherá um homem que consiga ficar de pé por si mesmo, e não precise mais de mamãe. Mas a vez seguinte acaba sendo como as outras. Um estranho destino parece impeli-la para 21 as próprias situações que está procurando evitar.Ela é leva da a bancar a mãe de seus parceiros, por forças desconheci das em sua personalidade. Esse comportamento pode ser considerado neurótico por causa do conflito inconsciente que lhe subjaz. No caso do homem, uma parte de sua personalidade quer ajudar, uma outra, não. Se ajuda, sente-se ressentido; se não ajuda, sente-se culpado. Essa é uma típica armadilha neurótica da qual não há como sair, exceto refazendo os passos que leva ram até ela. Existe um conflito inconsciente semelhante por trás do comportamento da mulher, conflito entre seu desejo de um relacionamento sexual satisfatório e saudável com um homem e o medo desse mesmo relacionamento. Bancar a mãe para seu homem é uma tentativa de superar sua ansiedade sexual, pois isso lhe permite negar a si mesma o medo de entregar-se, de render-se a um homem. Agindo como mãe, sente-se necessária e superior. Eis aqui mais um exemplo. Uma mulher tinha grande dificuldade para estabelecer um relacionamento com um homem. Quando encontrava alguém por quem se sentia atraí da, adotava uma atitude excessivamente crítica. Enxergava todas as fraquezas e defeitos dele, rejeitando-o. Uma vez que ninguém é perfeito, suas reações impossibilitavam a consoli dação de qualquer relacionamento. Embora dissesse que de sejava muitíssimo um relacionamento, parecia incapaz de alterar esse padrão de comportamento, mesmo depois de ele ter-lhe sido apontado. Não é difícil ver que sua atitude exa- geradamente crítica é uma defesa contra o temido perigo de ser ela mesma rejeitada. Protege-se, rejeitando o homem pri meiro. Mas saber disso também não ajuda muito. Sua respos ta neurótica está além de seu controle. Para ajudá-la, devemos conhecer que forças em sua per sonalidade ditaram seu comportamento. Só acontecia quando encontrava alguém por quem se sentisse atraída. Com os outros o problema não ocorria, e ela podia mostrar-se amis tosa e descontraída. Uma vez que a dificuldade só aparecia quando ela nutria algum sentimento especial pela pessoa, podemos presumir que estivesse relacionada à sensação de desejar, de anelar. Ela não conseguia suportar essa sensação; era por demais dolorosa e, por isso, fugia da situação. Tam bém aí devemos descobrir o que aconteceu com essa pessoa, quando foi criança, para criar esse problema. Através da aná lise, iremos descobrir que experienciou ser rejeitada por um dos genitores, e essa dor foi tão avassaladora que ela precisou 22 guardá-la a sete chaves para sobreviver. Obstruiu seu cora ção para que não sentisse dor tão intensa e agora não ousa desobstruí-lo. Amar é abrir o coração, e ela tem medo de fazê-lo por causa da dor que isso implica. Em seu caso, o conflito neurótico ocorre entre seu desejo e o medo de amar. O que torna tal conflito neurótico é a repressão que a pessoa executa sobre o elemento negativo. Assim, o homem prestativo nega seu ressentimento quando lhe pedem que o ajude; a mulher que banca a mãe nega seu medo de sexo, e a pessoa exageradamente crítica nega sua incapacidade de amar. Incapaz de encarar sua dor e a raiva à qual a dor dá surgimento, a pessoa neurótica esforça-se por superar seus temores, ansiedades, hostilidades e raiva. Uma parte de si mesma procura sobrepujar outras, o que dilacera a unidade do ser e destrói sua integridade. A pessoa neurótica esforça- se para vencer a si mesma. E, evidentemente, fracassará nessa empreitada. O fracasso parece significar submissão a um destino inaceitável, mas, na realidade, significa auto-aceita- ção, o que possibilita as mudanças. A maioria das pessoas da cultura ocidental esforça-se para ser diferente e, nessa medi da, é neurótica. E, uma vez que está aí uma luta que nin guém pode vencer, todos que nela se envolverem fracassarão. Paradoxalmente, através da aceitação do fracasso, tornamo- nos livres de nossas neuroses. Um exemplo típico é o do homem que repetidamente perde dinheiro em maus investimentos ao seguir o conselho dos outros. É um otário, sempre acreditando em promessas de dinheiro rápido e fácil. Apesar de já ter saído chamuscado vezes sem conta para saber que essa promessa é ilusória, não consegue resistir à tentação. Ele age sob uma compulsão que é mais poderosa do que seu julgamento racional. Poderá ser uma compulsão de perder, pois existem pessoas aparente mente destinadas a ser perdedoras. Mas esse destino pode ser modificado se a natureza da compulsão e a sua origem forem cuidadosamente investigadas através da análise. O exemplo clássico é o da mulher que, depois de divor ciar-se de seu primeiro marido porque ele era alcoólatra e de determinar que o segundo casamento será diferente, descobre que seu novo marido também é um beberrão. Embora não soubesse disso antes do casamento, es tivera cega às muitas indicações dessa tendência. Através da análise pode-se de monstrar que ela se vê atraída por homens que bebem, sen- tindo-se, porém, repelida quando a ingestão de álcool escapa ao controle. Semelhante ao homem do exemplo anterior, ela 23 não tem consciência de seus Sentimentos e motivações pro fundos. Essa falta de percepção é típica do caráter neurótico. A expressão "caráter neurótico” refere-se a um padrão de comportamento que se baseia num conflito interno e re presenta medo da vida, do sexo, de ser. Reflete as primeiras experiências de vida da pessoa, porque ela foi formada em resultado de tais experiências. A mais crucial das experiên cias para o desenvolvimento do caráter neurótico é a edípica. Essa experiência central ocorre entre os três e seis anos de idade, quando se desenvolve a situação edipiana, a saber, o interesse sexual da criança pelo genitor do sexo oposto, e a resultante rivalidade pela pessoa do mesmo sexo. Ambos os pais desempenham papel ativo nessa situação triangular em que a criança sente-se presa, como se numa armadilha. A criança desenvolve um caráter neurótico como a única solu ção possível a uma situação que, em sua mente, está repleta de perigos relativos à vida e à Sanidade. Não Se pode dizer se o perigo é tão real quanto o crê a criança. Nenhuma crian ça nessa situação pode dar-se ao luxo de testar a validade dessa crença. Deve transigir, refreando sua paixão com a superação de sua sexualidade. Ilustrarei esse processo com os seguintes casos. Margaret consultou-me porque estava deprimida e sen tia que sua vida era vazia. Era uma mulher atraente, na casa dos trinta e poucos anos, e enfermeira profissional. Jamais se casara, apesar de ter tido muitos relacionamentos com homens. Nenhum destes tinha sido plenamente satisfatório para ela. Alguns anos antes, sua depressão tinha sido tão grave que ameaçara suicidar-se. Suas tendências suicidas haviam diminuído através de tratamento psicanalítico, mas suas tendências depressivas continuavam. Contudo, nunca deixara de trabalhar. Era uma profissional dedicada, altamen te considerada em seu trabalho. A nota marcante no corpo de Margaret era sua falta de vitalidade. Se não falasse nem se mexesse, poderia ser to mada por uma estátua. Seus olhos eram opacos; a voz, mo nótona. No entanto, de tempos em tempos, ao olhar para mim, seus olhos se iluminavam e seu rosto ficava mais ani mado. Isso nunca durava mais que alguns minutos, mas era uma transformação espantosa. Quando acontecia, eu notava que ela me olhava com sentimento. Normalmente, ela parecia preocupada e só tomava conhecimento de mim para comuni car-me seus pensamentos. Enquanto trabalhávamos, percebi que sua falta de vitalidade era muito profunda. Quando ela 24 arregalava bem os olhos, eles apresentavam uma expressão “ encovada” . Sua respiração era muito superficial e seus mo vimentos nunca tinham vigor. A tarefa terapêutica era ajudar Margaret a descobrir por que o brilho desaparecera de seus olhos. Por que não era capaz de manter o brilho da vida? O que temeria inconscien temente? A falta de vida em Margaret era o resultado da autonegação e de uma atitude autodestrutiva. Na maioriadas pessoas, essa atitude é inconsciente. No entanto, Margaret tinha consciência de ser autodestrutiva. Ela disse: "Estou sempre tentando matar meu corpo não comendo direito, não dormindo o suficiente, preocupando-me com a minha apa rência, sendo frenética no meu trabalho. Nunca estou dispo nível para mim mesma, nunca consigo me divertir sozinha, não cuido de mim” . Quando lhe perguntei como e por que essa atitude Se desenvolvera, respondeu: "Fui literalmente destruída por minha mãe e cdm tamanha freqüência que acabei me identi ficando com ela” . Anteriormente, Margaret me havia conta do que sua mãe costumava espancá-la regularmente. Ela descreveu sua mãe como uma hipocondríaca que se deitava num sofá e lia e se queixava o dia todo. Contudo, a mãe era realmente doente. Era diabética, mas Margaret disse que também era autodestrutiva no Sentido de não assumir res ponsabilidade por sua própria vida. Com cinqüenta e poucos anos, morreu de problemas cardíacos. "M as” , disse Margaret, "meu pai era igualmente autodestrutivo, trabalhava vinte horas por dia e nunca se permitia um tempo de lazer. Ele era Cristo, o mártir. Morreu de um ataque cardíaco, aos qua renta e poucos anos.” E ela acrescentou: "Meu pai era um peso para mim. Eu sentia que precisava salvá-lo. Isso estava na minha cabe ça o tempo todo. Fez-me muito triste e infeliz. Nunca conse guia atingi-lo. Lembro-me de olhar para ele quando ele estava Sofrendo as conseqüências de um ataque cardíaco e seu olhar tinha uma expressão patética. Na verdade, era pior do que patético. Era o olhar do sofrimento. Ele era um sofredor. Preciso ajudar as pessoas” . Não podemos entender Margaret, nem seu problema, Sem uma imagem da situação familiar em cujo seio foi criada. Compõem tal imagem como elementos de primeira linha as personalidades de seus pais. Sua influência sobre a filha de veu-se mais no seu modo de ser do que às suas ações. As crianças são muito sensíveis e apreendem o estado de espírito 25 dos pais, seus sentimentos e sensações, suas atitudes incons cientes, por assim dizer, por osmose. Isso foi bastante verda deiro para Margaret, principalmente por ter sido filha única. A influência dos pais não foi atenuada pela presença de outros filhos. Consideremos o seguinte: "Minha mãe disse que meu pai era um amante brutal. Percebo que escolho homens que de certa maneira se asse melham a ele em seu sofrimento e na brutal intensidade de sua necessidade sexual. Não enxergo o sofrimento desses ho mens até o momento em que isso me entope. Então descubro que estou tomando conta deles, ajudando-os, e que dali não vai sobrar nada para mim. Essa é uma forma de eu ser auto destrutiva. Mas não sei se poderia gostar de uma pessoa que não estivesse sofrendo. Meu coração não se abriria para ela. O último homem com quem me envolvi tentou o suicídio. Tive uma longa fila de homens que precisei ajudar. Parece que, se eu não puder fazer o que é neurótico, não faço mais nada” . Qual foi, exatamente, o relacionamento entre Margaret e seu pai? Ela comenta que sua mãe dizia que ela era muito apegada ao pai até a idade de quatro ou cinco anos. Ela não tem lembrança desse apego nem qualquer noção que pôs fim a esse sentimento. Ela só se lembra de que seu pai estava fora de alcance. Sentia-se próxima a ele em seu coração, mas não havia contato entre eles. "Era como num sonho. Ainda estou nesse sonho. Relaciono-me com homens nessa base. Construo fantasias enormes do que seria a vida com eles, apenas para descobrir, depois de alguns encontros, que eles não conseguiriam preencher meus sonhos, com toda a certeza” . A partir dessa exposição, fica claro que em seus conta tos com homens Margaret está procurando o tipo de relacio namento que teve com seu pai, antes dos cinco anos. É a busca do paraíso perdido. Ela está tentando encontrar seu Xangrilá. Ela perguntou-me: "Por que estou sempre sendo acariciada pelos homens, nos bares? Devo passar alguma sensação” . Suas maneiras e sua expressão indicavam que ela também era uma sofredora. Da mesma forma que era atraída pelos sofredores, estes também eram atraídos por ela. Cada um esperava que o outro pudesse aliviar seu próprio sofri mento, mas cada um só trazia mais sofrimentos para o outro. Nenhum dos dois tinha alegria para oferecer. Fica evidente, a partir disso, que Margaret sofreu uma perda severa com cerca de cinco anos de idade, quando o 26 relacionamento amoroso que tinha com o pai chegou ao fim. Sua tendência depressiva está condicionada por essa perda 1. Indubitavelmente, havia ocorrido uma perda anterior de amor em seu relacionamento com a mãe, mas essa perda pre coce tinha sido mitigada pelo calor de seu contato com o pai. Quando isso terminou, Margaret estava perdida. Sobreviveu devido a uma grande força de vontade, manifestada atual mente por um queixo duro, determinado, e um sorriso escar- ninho. Mas as lembranças do tempo em que se iluminava no calor do amor de seu pai ainda se refletem no brilho momen tâneo de seus olhos e rosto. O que causou a destruição do relacionamento amoroso que tinha com o pai? Por que isso teve um efeito tão devas tador sobre sua personalidade? Margaret não tinha recorda ções desse período. Elas estavam completamente reprimidas. Contudo, havia passado por muitos e muitos anos de psica nálise, e estava familiarizada com o problema edipiano. Du rante nossa conversa a respeito desse tema, ela assinalou: “ Não me recordo de nenhuma sensação sexual por meu pai, mas durante minha análise tive um sonho em que dormia com ele. Depois de ter feito análise por um certo tempo, senti que podia ter esse sonho sem pensar que estava louca. Contudo, no sonho, senti que não conseguia me soltar. Eu realmente não conseguia curtir” . Margaret ainda não tem prazer no sexo. Ela ainda não pode se soltar e ter um orgasmo. Ela usa o sexo para contato e intimidade. Não consegue abandonar-se a suas sensações sexuais porque está com medo de que elas a inundem e a deixem louca. Comentarei esse aspecto do medo do sexo num capítulo posterior. Minha intenção aqui é demonstrar a rela ção entre o caráter neurótico e o problema edipiano. O que realmente aconteceu em sua família? Qual era a relação entre seus pais? Margaret disse: "Eu costumava fan tasiar, quando criança, que meus pais eram muito unidos e que era eu quem ficava de fora. Sentia-me isolada. Depois, conforme fui ficando mais velha, vi que minha mãe era soli tária, e meu pai também. Percebi que ela falava a respeito dele como se ele fosse um estranho” . Efetivamente, recor dou-se de uma cena em que seu pai tentava jogar sua mãe pela janela, mas ela não sabe por quê. Podemos imaginar. Como tantos outros casamentos, o relacionamento de seus 1 Veja-se em meu livro O corpo em depressão uma discussão com pleta das causas e do tratamento da depressão. 27 pais tinha começado no enlevo do romance e terminado na amargura da frustração. Esse é o terreno em que se desenvol ve o problema edipiano. O genitor frustrado geralmente se volta para o filho do sexo oposto, em busca de sintonia e afeição. O sentimento que existia entre Margaret e o pai era muito profundo. A despeito da barreira entre eles, seu pai ocupava lugar de destaque em Seu coração, e ela no dele. Margaret disse que lhe contaram que, quando ela ganhava prêmios na escola e na igreja, chorava. Por que teria sido abortada qualquer expressão desses sentimentos? Só existe uma resposta. Tinham se tornado sexuais, dos dois lados. O perigo de incesto parecia real. O pai precisou afastar-se de todo contato com a filha e esta precisou ser forçada à su pressão de sua sexualidade, dado que isso o ameaçava. O desejo sexual da criança por um dos genitores é uma expressão de sua vitalidade natural. A criança é inocente até que os pais projetem nela sua própria culpa sexual. Margaret era a ruim porque sua sexualidade era cheia de vida, livre. Tinha que ser extraída de seu corpo à força,o que sua mãe fez literalmente — com um chicote que seu pai usava para treinar cavalos. Ela foi forçada a negar seu corpo e a investir toda a sua energia nos trabalhos escolares. O pai não a pro tegia por se sentir culpado demais para interferir. Ela foi eficientemente violada, como é violado o espírito selvagem e livre de um cavalo, para que possa ser arreado e montado por um homem. Desde Eva, a mulher tem sido considerada como a tentação. Esse viés reflete o duplo padrão de morali dade, característico da cultura patriarcal. No passado, a so ciedade ocidental considerou necessário suprimir a Sexuali dade da mulher mais do que a do homem. Podemos agora entender por que Margaret desenvolveu seu caráter neurótico. Não lhe foi concedida permissão de relacionar-se com seu pai ao nível sexual, e esse tabu passou a fazer parte da estrutura de sua personalidade, generalizando- se a todos os homens. Ela pode ser a garotinha que deseja ser aconchegada, ou a prestativa, compreensiva e empática pessoa que tentará amenizar o sofrimento de um homem. Uma vez que nenhuma das duas abordagens preenche Sua necessidade de relacionamento sexual (que é mais do que simplesmente praticar o sexo), ela fica deprimida. Não creio que ela consiga superar suas tendências depressivas enquanto não recuperar sua sexualidade. Tendo perdido sua sexuali dade, ela perdeu sua vida. Ser sexual é ter vitalidade, e ter 28 vitalidade é Ser sexual. Nos capítulos subseqüentes, demons trarei o que implica trabalhar na resolução desse problema. O caso de Margaret não é único. Poderá diferir do co mum pela severidade dos espancamentos que recebeu, pelo grau de sexualidade reprimida na família e pela forma espe cial que assumiu seu caráter neurótico. Contudo, isso é típico do que acontece nas famílias modernas, a saber, sensações incestuosas entre pais e filhos, rivalidades, ciúmes e ameaças ao filho. Também é típico da maneira pela qual o problema edipiano modela o caráter neurótico da pessoa. Eis a seguir um outro caso que revela muitas semelhanças com o de Mar garet, apesar de tratar-se de um homem. Robert era um arquiteto altamente bem sucedido que me consultou porque estava deprimido. Sua depressão fora causada pelo término de seu casamento. Quando lhe pergun tei por que a união havia fracassado, ele disse que sua esposa se queixava de não haver comunicação entre eles, que ele fugia ao contato, e que era sexualmente passivo. Ele concor dava com as queixas dela. Reconhecia que tinha grandes di ficuldades para expressar sentimentos e sensações. Subme tera-se anteriormente a tratamento psicanalítico, por vários anos. O tratamento ajudara-o em parte, mas ele ainda estava despreparado em termos de responsividade emocional. Robert era um homem atraente, de quase cinqüenta anos. Seu corpo era bem-constituído e proporcionado, com feições de rosto reguläres. Quando olhei para ele, ele sorriu depressa demais. Senti que o contato visual direto deixava-o embaraçado. Examinando-o mais detidamente, percebi que seus olhos eram precavidos e destituídos de sentimento. O aspecto mais notável de seu corpo, no entanto, era sua tensão, sua rigidez. Sem roupa ele parecia uma estátua grega. Vesti do, poderia ser tomado por um manequim animado. Era tão controlado, que seu corpo não dava a sensação de ser vivo. O que aconteceu na infância de Robert para que se de sencadeasse essa paralisação emocional? Como Margaret, era filho único. Sua mãe, no entanto, idolatrava o filho, des de pequeno. Embora seus pais não fossem ricos, ele se vestia com roupas muito caras, que estavam sempre em ordem e limpas. Ele disse que nas fotografias aparecia sempre prepa rado para ser um garotinho adorável. Sua pior molecagem era se sujar. Ia imediatamente para o banho e suas roupas eram trocadas. Jamais levou um tapa. A punição para even tuais transgressões consistia em vergonha e negação de amor. Robert comentou que quando menino tinha a fantasia 29 de não ser filho de seus pais. Disse que eles realmente dese javam uma menina. Imaginava que um dia seus verdadeiros pais o descobririam. Esse sentimento de não pertencer surge sempre que existe a falta de contato emocional entre pais e filho. No caso de Robert, seus pais também sentiam que ele não lhes pertencia. Eles diziam que seu filho era diferente deles. Robert explicou esse sentimento pela fato de sua mãe e seu pai serem tão próximos que ele se sentia de fora. "Eu sentia que queria esmurrar a porta e dizer 'Deixem-me en trar’. Em outros momentos, queria fugir e encontrar minha família verdadeira.” Podemos nos lembrar de que Margaret tinha a sensação semelhante de ser uma estranha e de não pertencer à sua família. Posteriormente, veio a descobrir que a aparente proximidade de seus pais era mais farsa que rea lidade. Qual era a situação na família de Robert? Robert descreveu sua mãe como uma amazona que con duzia cavalos selvagens com chicotes. Apesar de não ser bonita, de usar óculos e de socialmente sentir-se pouco à vontade, tinha feito um casamento esplêndido. Ele dizia que seu pai era bem-apessoado, encantador e muito requisitado. Era um vencedor, homem fadado a ser bem-sucedido. Ro bert admitia que sua mãe era ambiciosa. Ele disse: "Ela tentava projetar uma imagem de refinamento. Seus pais ti nham sido lavradores. Ela queria mostrar que era a melhor esposa para meu pai e que a união deles era o casamento perfeito” . Também tentava projetar a imagem de ser a mãe per feita. Para realizar plenamente essa imagem, Robert tinha que ser o filho perfeito, o que ele procurou ser. Mas crian ças perfeitas ficam sujas, fazem bagunça. Para conservar o amor de sua mãe, Robert tinha que se tornar uma imagem, uma estátua ou um manequim. E, pela mesma razão, o pai também não era real. Quem pode ser um homem real para uma esposa perfeita? Robert não tinha nenhuma lembrança de qualquer discussão entre seus pais. Inclusive quando ain da criança, Robert sentia que a situação da família tinha um clima de irrealidade. Sentir-se vivo, em qualquer intensi dade, representava que não poderia ser o filho daquele casal. Ele só podia lhes pertencer se fosse irreal para si mesmo. Seria um erro pensar que não houve paixões nessa fa mília. Robert nunca comentou a vida sexual de seus pais, mas eles devem ter tido algo nesse sentido. Ele nunca men cionou sensações sexuais que poderia ter tido quando crian ça, mas deve ter sentido alguma coisa. Ele havia reprimido 30 todas as recordações de Seus primeiros anos de vida. Essa repressão ocorreu lado a lado com a morte de seu corpo. A informação que me passava era quase toda de segunda mão. Contudo, não deixamos de ter algumas evidências da existência de uma situação edipiana. Robert disse que, quan do menino, tinha tido fantasias de conquistar a mãe e derro tar fragorosamente o pai. Em sua fantasia, sua mãe preferia a ele em detrimento do pai. Outro elemento significativo, como evidência, é o fato de Robert ter realmente derrotado seu pai fragorosamente. Ele disse: "Passei tão à sua frente que fiquei envergonhado disso” . Na verdade, seu pai nunca demonstrou ser um vencedor. Foi Robert quem se tornou o grande vencedor no mundo dos negócios e quem realizou as ambições da mãe. Havia, entretanto, o preço dessa vitória. O preço foi a perda de sua potência orgástica, a saber, a capacidade de seu corpo entregar-se plenamente ao sexo. A sexualidade de Robert estava limitada a seu órgão genital; o resto de seu corpo não participava da excitação ou da descarga. Sua inca pacidade de entregar-se plenamente a suas sensações sexuais era devida à rigidez e à tensão de seu corpo, fatores igual mente responsáveis por sua morte emocional. Não merece discussão se sua morte emocional resultou do medo do sexo, ou se sua impotência orgástica foi causada pela morte emo cional. O problema precisava ser simultaneamente trabalhado em ambos os níveis, o sexual e o emocional. Em nível mais profundo,representavam o medo da vida. Contudo, Robert não tinha consciência do medo do sexo ou da vida. O medo, enquanto emoção semelhante a todas as outras, fora igualmente suprimido, dentro do estado de morte emocional. Isso torna o problema muito difícil, pois tudo o que se pode mobilizar é a ausência de sentimen to. Por exemplo, Robert não tinha recordação de atrações sexuais pela mãe. Não conseguia imaginar essas sensações, pois considerava sua mãe como sexualmente não atraente. Não se lembrava de tê-la visto nua em momento algum, nem de ter tido qualquer curiosidade a respeito de seu corpo de mulher. Lembrava-se de que uma noite ele decidira colar o ouvido na porta do quarto dos pais, mas fora rapidamente descoberto e enviado de volta ao seu quarto. Não associava esse incidente com curiosidade sexual. Evidentemente, sua curiosidade fora esmagada bem cedo. Quando estava com tres anos de idade, tivera ocasião de ver uma menininha 31 tomando banho, mas tinha sido admoestado por estar bisbi- lhotando. Não é por Robert não se lembrar de que não se pode assumir ter ele tido sensações sexuais quando criança. Uma vez que essas sensações são normais, deve-se assumir que foram vigorosamente suprimidas e que a sua lembrança foi reprimida. Esse pressuposto é apoiado pela severidade da tensão muscular e da rigidez corporal, que são os meios da supressão. Ao discutir esse problema, Robert comentou que interceptar os próprios sentimentos e sensações era uma ma nobra comum, que usava sempre que alguém o magoava. Ele suprimia qualquer sentimento ou sensação relativos à pessoa e "suprimia” a pessoa, como se ela não existisse. Disse que essa fora a tática usada contra ele pela mãe e, por sua vez, ele a usava contra ela. Na minha opinião, mãe e filho estavam às voltas com uma luta pelo poder em que os meios de controle eram a sedução e a rejeição. Sua mãe o "paparicava” , vestindo-o como um "pequeno Lorde Faun- tleroy” , para usar suas palavras, mas também o "suprimia” quando ele não fazia o que ela desejava. Ele fazia o que ela exigia, mas também a rejeitava sexualmente. Existe um outro aspecto do problema de Robert. Sua rigidez corporal deve ser interpretada como sinal de que se paralisava de medo. Trabalhei com ele tempo suficiente para saber que isso era verdade. Mas ele não o sentia. Evidente mente, estando morto no plano emocional, ele não poderia mesmo sentir muito. Não obstante, era necessário descobrir de quem tinha tanto medo, e por quê. Robert disse que fora criado como o pequeno Lorde Fauntleroy. Eu o via como um príncipe. Sua mãe assumiu o papel da rainha. A situação exigiria que seu pai fosse o rei, mas este não desempenhou tal papel. Ao invés de pairar nos píncaros, empurrou seu filho para essa posição. O filho deveria atingir o que ele não conseguia. O príncipe deveria tomar seu lugar, tornando-se rei. Porém, embora o pai pu desse realmente desejar que o filho fosse bem-sucedido, era natural também que se sentisse ressentido e zangado pelo fato de ter sido deslocado da posição de destaque, rebaixado de nível. Quando dois machos competem pela mesma fêmea, a luta pode ser mortal. Mas o filho não é um desafio à altura para o pai e fica aterrorizado de pensar em enfrentar um verdadeiro desafio. Deve recuar, admitir a derrota, de sistir de seu desejo sexual pela mãe. Aceita a castração 32 psicológica e, desse modo, afasta-se do papel de competidor e de ameaça ao pai. A situação edípica está então resolvida. O menino pode crescer e conquistar o mundo, mas, no nível sexual, ainda permanece um menino. Robert tinha consciência de que, num certo nível de sua personalidade, ainda se sentia ima turo, não plenamente homem. Emocionalmente, permanecia príncipe. Num capítulo subseqüente, discutirei o tratamento do problema edipiano. Primeiro, precisamos compreendê-lo tan to como fenômeno cultural, quanto na qualidade de resul tado da dinâmica familiar. Na próxima seção, abordaremos com alguns detalhes a lenda do Édipo para ver o grau de proximidade desses casos com o mito. A lenda de Édipo Édipo era um príncipe, filho de Laio, rei de Tebas. Quando nasceu, seu pai consultou um oráculo, em Delfos, para saber do futuro de seu filho. Foi-lhe informado que quando o menino crescesse mataria o pai e se casaria com a mãe. A fim de evitar essa calamidade, Laio fez com que seu filho fosse amarrado numa estaca, no campo, para morrer à míngua. Édipo foi salvo por um pastor que dele se apie- dou e o levou para Corinto, onde foi adotado por Políbio, rei da cidade; este o criou como se fosse seu próprio filho. Uma vez que seu pé tinha inflamado depois de ter ficado amarrado na estaca, recebeu o nome de Édipo, que significa “pé inchado” . Quando Édipo cresceu e se tornou homem feito, tam bém consultou o oráculo de Delfos para saber de seu desti no. E foi informado de que mataria seu pai e se casaria com a mãe. Uma vez que acreditava ser Políbio seu pai, Édipo decidiu evitar esse destino previsto pelo oráculo, deixando Corinto para buscar fortuna em outro lugar. No caminho que levava à Beócia, foi insolentemente abordado por um viajante que lhe ordenou sair de seu caminho. Seguiu-se uma discussão, durante a qual Édipo atacou o homem com seu cajado, matando-o. Desconhecendo a identidade de sua vitima, Édipo prosseguiu até Tebas. Ao chegar ali, soube 33 que a cidade estava sendo aterrorizada pela Esfinge, um estranho monstro com cara de mulher, corpo de leão e asas de pássaro. A Esfinge apresentava uma charada para todo viajante que apanhasse. Aqueles que não conseguiam deci frá-la eram devorados. Creonte, governador da cidade após a morte de seu irmão Laio, prometera a coroa e a mão da rainha viúva, Jocasta, àquele que libertasse a cidade das investidas mortí feras do monstro. Édipo aceitou o desafio e confrontou a Esfinge. À pergunta "Que animal anda de quatro patas de manhã, duas ao meio dia e três à noite?” , Édipo respon deu: "O homem” . Durante seu primeiro ano de vida, enga- ' tinha de quatro, na maturidade anda sobre suas duas pernas e à noite, em sua velhice, usa uma bengala para apoiar-se, ao andar. Quando a Esfinge ouviu essa resposta, lançou-se no mar e morreu afogada. Édipo retornou a Tebas, casou-se com a rainha e governou a cidade por mais de vinte anos. Dessa união nasceram dois filhos, Etéocles e Polinices, e duas filhas, Antígona e Ismênia. Foi próspero o reinado de Édipo em Tebas e ele era homenageado como soberano justo e dedicado. Na mitologia grega, existe com freqüência alguma tra gédia na vida do herói. Por exemplo, tanto Hércules, o grande destruidor de monstros, quanto Teseu, que assassi nou o Minotauro, pereceram tragicamente. Dentre outros, Erictonio, que, enquanto rei de Atenas, introduziu a adora ção de Atena e o uso da prata, foi morto por um raio desfe chado por Zeus. O feito do herói, apoiado por um deus, ofende a outro. Sua proeza super-humana faz com que pa reça ser divino. Os deuses são notoriamente ciumentos. O herói deve pagar um preço por sua insolência, pois, afinal de contas, é um mortal. Édipo é considerado um herói por ter derrotado a Es finge. As Erínias, como se chamava o destino, estavam aguardando, sorrateiras. Uma praga terrível devastou a ci dade de Tebas. Houve seca e fome. Quando se consultou o oráculo de Delfos, ele informou que as desgraças não cessa riam enquanto o assassino de Laio não fosse descoberto e expurgado da cidade. Édipo jurou descobrir o culpado. Para sua surpresa, suas investigações revelaram que ele era o culpado. Ele matara seu pai na estrada para Tebas e, invo luntariamente, casara-se com sua mãe. Transpassada de vergonha, Jocasta se enforcou. Édipo cegou a si mesmo. Depois, acompanhado por Antígona, sua 34 fiel filha, deixou Tebas e tornou-se andarilho. Após muitos anos, descobriu finalmente um refúgio na cidade de Colona, próxima a Atenas. Lá, reconciliado com seu destino e puri ficado de seus crimes, desapareceumisteriosamente da Terra. Fica implícito que foi levado para a morada dos deuses, como cabe a um herói grego. Na qualidade de último asilo de Édipo, Colona tornou-se um lugar sagrado. A lenda relata o fim dessa desgraçada família. Os dois filhos de Édipo tinham concordado em alternar-se no gover no do reino. Mas, quando chegou o momento de Etéocles passar o poder para o irmão, ele se recusou a cumprir o acordo. Poli- nices reuniu um exército de egeus e sitiou Tebas. No decur so da batalha, os dois irmãos assassinaram um ao outro. Creonte, que se tornou então o governador da cidade, decre tou que Polinices fosse tratado como traidor e que seu corpo fosse deixado ao léu, desenterrado. Antígona desafiou o decreto, movida pelo amor fraternal, enterrando-o com honras. Por sua desobediência foi condenada a ser enterrada viva. Sua irmã Ismênia teve o mesmo destino. Considerando novamente os casos de Margaret e Ro bert, podemos ver que suas vidas não têm paralelo com a história de Édipo. Nenhum dos dois foi culpado dos crimes de incesto e assassinato do genitor, apesar do fato de ambos estarem envolvidos em situações edipianas, durante sua me ninice. Como evitaram o destino de Édipo é explicado por Freud, a primeira pessoa a reconhecer a importância da si tuação edipiana e o significado da história de Édipo, para o homem moderno. Na seção seguinte, examinaremos a visão psicanalítica do desenvolvimento do complexo de Édipo. Complexo de Édipo Freud foi atraído pela história de Édipo porque acre ditava que os dois crimes dessa personagem, matar o pai e casar-se com a mãe, coincidem com os "dois desejos primais das crianças, que, insuficientemente reprimidos ou então rea- ümentados, formam, talvez, o núcleo de toda a psiconeuro- se” 1. Esse núcleo tornou-se conhecido como "complexo de 1 S. Freude Totem e tabu, W.w. Norton & Co., Nova York. 35 Édipo” . Anteriormente, Freud tinha escrito: "Pode ser que estejamos todos fadados a dirigir nossos primeiros impulsos sexuais para nossas mães e nossos primeiros impulsos de ódio e violência contra nossos pais; nossos sonhos conven cem-nos de que isso é verdade” *. Se fosse assim, então o destino de Édipo seria o destino comum de toda a humani dade. Freud admitia essa possibilidade, pois dizia: "O des tino dele nos mobiliza porque poderia ter sido o nosso também, já que o oráculo rogou contra nós a mesma praga que infernizou a vida dele” 2. Segundo o pensamento psicanalítico, considerava-se que todas as crianças passam por um período edípico, entre os três e sete anos, aproximadamente. Nessa fase, precisam en frentar sentimentos e sensações de atração sexual pelo geni tor do sexo oposto, além de ciúme, medo e hostilidade em relação ao genitor do mesmo sexo. O complexo também inclui montantes diversos de culpa associada a esses senti mentos. Otto Fenichel diz: "Em ambos os sexos, o complexo de Édipo pode ser chamado de clímax da sexualidade infan til, o desenvolvimento erógeno desde o erotismo oral, pas sando pelo erotismo anal, até a genitalidade” 3. Em termos deste nosso estudo, é importante compreen der o que significa sexualidade infantil e como difere da forma adulta. O termo "sexualidade infantil” refere-se, na realidade, a todas as manifestações Sexuais, do nascimento até a idade de seis anos, mais ou menos. O prazer erótico que um bebê tem com a amamentação ou chupando um dedo é considerado de natureza sexual. Entre as idades de três e cinco anos, a sexualidade infantil começa a se focalizar nos genitais. No quinto ano de vida, de acordo com Freud, no auge do desenvolvimento da sexualidade infantil, o foco torna-se próximo ao que é atingido na maturidade. A dife rença entre a sexualidade da criança e do adulto é que faltam à primeira os elementos da penetração e da ejaculação, os aspectos reprodutivos da sexualidade. A sexualidade infantil, portanto, é um fenômeno superficial. Freud descreveu-a como fálica, ao invés de genital. Essa distinção é válida se admitirmos que "fálico” refere-se a um aumento de excita- 1 S. Freud, "The in/erpre/a/ion of dreams”, in Basic writings of Sigmund Freud, Random House, Modern Library Ed., 1938, p. 308, Nova York. 2 Ibid., P. 308. 3 Otto Fenichel, The psychoanalytic theory of neurosis, w. W. Nor ton & Co., 1945, p. 91, Nova York. 36 ção, mais do que a descargas. A sexualidade adulta enfatiza este último elemento. Contudo, as sensações e sentimentos associados à sexualidade infantil dificilmente podem ser dis- tinguidos dos que estão relacionados à forma adulta. Embora o complexo de Édipo seja considerado um desenvolvimento normal para todas as crianças de nossa cul tura, isso não significa que seja determinado biologicamente. Devemos distinguir dois fenômenos diferentes. Um é o flo rescimento preliminar da sexualidade, que ocorre nessa época e que se manifesta em atividades masturbatórias e numa acentuada curiosidade acerca do sexo. Está também presente no interesse sexual da criança pelo genitor do sexo oposto. As evidências desse florescimento preliminar aparecem nos sonhos e nas recordações dos pais. Podem ser também con firmadas por um pai ou mãe observadores, pois as crianças não fazem esforço para ocultar seus sentimentos e sensações sexuais. Além disso, a pesquisa médica tem demonstrado que existe uma maior produção de hormônios sexuais du rante esse período. Esse primeiro desabrochar da sexualidade é em geral seguido de um período de aquietamento, período de latência, que prossegue até a puberdade, quando então tanto a atividade hormonal quanto a sexual começam a assu mir sua forma adulta. Outro fenômeno biológico ocorre paralelamente a esse duplo desabrochar da sexualidade: o desenvolvimento dos dentes. Temos dois conjuntos de den tes; o primeiro, de dentes-de-leite, chega ao seu ponto máxi mo em torno dos seis ou sete anos, quando começam a cair e são substituídos pelos dentes permanentes. É também por essa época, seis anos de idade, que a maioria das crianças começa sua educação formal. O outro fenômeno é a criação de um triângulo em que a mãe é um objeto sexual para o pai e para o filho, ou o pai, um objeto sexual para a mãe e a filha. Quando isso acontece, como invariavelmente observamos em nossa cul tura, temos que lidar com o ciúme e a hostilidade de um genitor pelo filho. Pode ser muito natural que o menino sinta um certo ciúme da relação sexual entre seu pai e sua mãe. Esse ciúme de modo algum ameaça o pai. Mas a his tória é muito diferente quando é o pai que se torna ciumen to do filho porque pressente que sua esposa favorece ou prefere o filho homem. Essa situação está repleta de perigos reais para a criança. Da mesma forma, o ciúme da mãe pela filha representa uma ameaça grave para a menina. Esse as pecto do complexo de Édipo é determinado culturalmente. 37 Nesse sentido, segundo Fenichel, "o complexo de Édipo é sem dúvida um produto da influência familiar” 1. Portanto, sua forma específica dependerá da dinâmica da situação familiar. Outro elemento, a saber, a culpa sexual, também entra nesse complexo. Embora todos os interessados estejam no mesmo triângulo, a criança é levada a sentir-se culpada por seus comportamentos, sentimentos e sensações sexuais. A criança age inocentemente, seguindo seus impulsos instinti vos, mas aos olhos dos pais qualquer manifestação sexual por parte da criança é "m á” , "su ja” , "pecaminosa” . Os pais projetam sua culpa sexual no filho. Assim, o complexo de Édipo da criança geralmente reflete os conflitos edipianos de seus pais, ainda não resolvidos. O sentimento de culpa do filho a respeito de sua sexualidade deriva menos do que dizem ou fazem e mais, como o assinala Fenichel, "da ati tude geral dos pais com respeito ao sexo, que lhe é cons tantemente demonstrada pelos mesmos, com ou sem conhe cimento destes” 2. Mas essa afirmação só localiza o problema na geração precedente. Para entender como essa culpa Surgiu pela pri meiravez, devemos estudar a origem daquelas forças cul turais que criaram a situação edípica. Em capítulo subse qüente, empreenderemos esse estudo analisando a mitologia e a história da Grécia antiga. Podemos antecipar o resultado dessa investigação dizendo que o medo e a hostilidade entre pais e filhos, bem como a culpa sexual, são resultado da mudança do princípio de relacionamento matriarcal para o patriarcal. Essa mudança se deu no início da civilização, quando a humanidade conquistou a natureza pelo poder. A conquista do poder levou a uma luta pelo poder que prosse gue ainda hoje, em todas as sociedades "civilizadas” . Por fim, o complexo inclui também um ódio assassino por parte da criança, em relação ao genitor do mesmo sexo. O filho que quer matar o pai, mas tem mais medo de ser morto por este. Devido ao medo intenso, a raiva é suprimida e só emerge em desejos de morte contra o genitor, ou como medo de que ele morra ou seja morto num acidente. No final, a criança é levada a sentir-se culpada por sua hostili dade em relação ao genitor. 1 Ibid., p. 97 2 Ibid., p. 95. 38 A postura freudiana tem sido a de que a raiva e a hos tilidade da criança contra o genitor estão diretamente rela cionadas e associadas a seus desejos incestuosos. Assim, es creve Erik Erickson: "O s desejos ‘edipianos’ expressos (com tanta simplicidade e confiança pela certeza do menino de que se casará com a mãe e a fará sentir-se orgulhosa dele, e pela certeza da menina de que se casará com o pai e to mará conta dele muito melhor) levam a fantasias secretas e vagas de assassinato e estupro. A conseqüência é uma pro funda sensação de culpa, sensação estranha porque implicará para sempre que a pessoa cometeu um crime que, afinal de contas, não foi cometido e que teria sido biologicamente bastante impossível. Essa culpa secreta, contudo, ajuda a dirigir todo o peso da iniciativa para ideais desejáveis e para objetivos práticos imediatos” 1. Essa colocação defende a idéia de que o complexo de Édipo não é biologicamente determinado como fator essencial ao contínuo progresso da cultura. Não parece estranho que sentimentos e sensações tão adoráveis por parte de uma criança, em relação a seu genitor, possam levar a "fantasias secretas e vagas de assassi nato e estupro” ? Parece-me mais lógico adotar o seguinte raciocínio: só depois de a criança ser levada a sentir-se cul pada a respeito de seus desejos incestuosos é que as fan tasias secretas de assassinato e estupro emergem. Essa era também a visão de meu professor, Wilhelm Reich. Em seu estudo, Der triebhafte Charakter (O caráter impulsivo), publicado em 1925, quando ainda era membro do movimento psicanalítico, escreve: "A fase edípica está entre as mais significativas da experiência humana. Sem exceção, seus conflitos encontram-se no cerne de toda a neu rose e mobilizam poderosos sentimentos de culpa. . . Esses sentimentos de culpa desenvolvem-se com intensidade par ticular e tornam-se atitudes de ódio, que faz parte integrante do complexo de Édipo” 2. Observe-se que o ódio é derivado da culpa e não o contrário. Reich também tinha uma visão diferente do valor dos sentimentos de culpa. Erickson con siderava-os como motores do progresso cultural. Para Reich, decorriam de uma educação familiar repressora do sexo cuja 1 Erik Erickson, Childhood and society, W. W. Norton & Co., 1950, P• 86, Nova York. 2 Wilhelm Reich, The impulsive character, trad. de Barbara G. Koopman, New American Library, 1974, p. 17, Nova York. 39 função é “ consolidar os fundamentos de uma cultura autori tária e da escravidão econômica” l. Depois de delinearmos o complexo de Édipo, estamos interessados em saber qual é seu destino sobre a personali dade. Como são resolvidos os conflitos nele contidos? Se fosse simplesmente uma questão dos sentimentos e sensações sexuais de uma criança por seu pai ou mãe, estes por serem de natureza infantil, seriam superados durante o crescimento natural. Criança alguma fica com seus dentes-de-leite para sempre. Eles são forçados a cair pelos dentes permanentes, quando estes emergem. Deveria ocorrer o mesmo com as sensações sexuais infantis. Com a consolidação da sexuali dade madura na puberdade, o jovem dirigiria suas sensações sexuais para objetos fora de sua família. Infelizmente, em nossa cultura, esse desenvolvimento natural não ocorre sem distúrbios. As sensações sexuais infantis estão por demais mescladas aos sentimentos de culpa, medo e ódio para que possa ocorrer uma resolução tão simples. O complexo todo é reprimido. A repressão do complexo de Édipo acontece sob a ameaça da castração. Nesse aspecto, tanto Freud quanto Reich estão de acordo. O menino desiste de esforçar-se para se aproximar sexualmente da mãe e desiste da hostilidade pelo pai, devido ao medo da castração. Freud diz especifica mente que “ o complexo de Édipo do menino sucumbe à terrível ameaça da castração” 2. A criança teme que seu pênis venha a ser cortado ou eliminado. Quando as crianças são ameaçadas de punição por se masturbarem, essa ameaça aos genitais, em geral, é explicitamente declarada. Mas, mesmo quando nenhum dos genitores faz uma ameaça tão aberta, 0 medo da castração não está ausente. O menino tem cons ciência de que está competindo com seu pai e pode sentir sua hostilidade. Uma vez que o pênis é o órgão ofensor, nada mais natural do que presumir que será lesionado ou suprimido. A castração humana foi praticada no passado. As pessoas perdiam as mãos se roubassem. Não é difícil enten der por que os meninos desenvolvem essa imagem da puni ção ameaçada. Muitas pessoas têm típicos sonhos de ansie dade a respeito dessa possibilidade. Um de meus pacientes relatou um desses sonhos de sua juventude. Sonhou que seu 1 Wilhelm Reich, The function of orgasm, The Orgone Ins/i/ute Press, 1942, p. 20, Nova York. 2 Sigmund Freud, "The passing of the Oedipus complex”, 1924, in Collected Papers, vol. II, Hogarth Press, 1953, p. 276, Londres. 40 pênis tinha se alongado, passado pela janela, descido pela frente do edifício, cruzado a rua e subido pela frente de outro edifício ao lado oposto para penetrar por uma janela. Nessa rua havia os trilhos de um bonde. No exato momento em que seu pênis estava prestes a entrar pela janela, ele ouviu o ruído metálico de um bonde que se aproximava. Ele estava tentando recolher Seu pênis rapidamente de volta para seu quarto, antes que o bonde passasse por cima, quando acordou. Eu poderia propor uma outra hipótese para explicar por que todos os meus pacientes têm medo de castração. Qualquer hostilidade dirigida contra um filho, devida à sua sexualidade, por um genitor, produzirá no soalho pélvico da criança uma retração para cima e uma contração. A hostili dade causará esse efeito, mesmo que assuma a forma de um olhar de ódio. E, enquanto a criança estiver assustada em relação ao pai, a tensão do soalho pélvico permanecerá. Uma vez que tensão e medo são equivalentes, a contração do soalho pélvico está associada ao medo de prejudicar os geni- tais. A pessoa não terá consciência do medo se não estiver consciente da tensão. Nesse caso, o temor da castração pode ser expresso em sonhos ou lapsos lingüísticos. Contudo, o uso de técnicas corporais que ajudem a pessoa a ficar cons ciente da tensão, freqüentemente, traz esse medo à cons ciência. Minhas pacientes do sexo feminino também sofrem de um temor da castração, experimentado com medo de lesão da área genital. No entanto, na maioria dos casos, esse medo não é consciente e poderá exigir um considerável trabalho analítico e corporal antes que a pessoa se permita sentir esse medo. Em geral, é mais fácil para o paciente experimentar a hostilidade de um genitor como ameaça à vida. Tais amea ças, devido ao medo que evocam, funcionam como ameaças de castração. Além disso, as meninas envergonham-se e sen tem-se humilhadas com quaisquer expressões ostensivas de sentimentos e sensações sexuais,especialmente se dirigidas ao pai. Já que o medo da humilhação produz uma supressão da sexualidade, age como uma ameaça de castração. A arma mais eficiente que um pai ou uma mãe têm para controlar seu filho é a retirada do amor ou a ameaça disso. Uma criancinha entre três e seis anos depende excessi vamente do amor e da aprovação dos pais para resistir a essa pressão. Como vimos anteriormente, a mãe de Robert controlava-o "suprimindo-o” . A mãe de Margaret batia na 41 filha para obter sua submissão, mas foi a perda do amor do pai a força devastadora. Sejam quais forem os meios empre gados pelos pais, o resultado é que a criança vê-se forçada a desistir de seus anseios instintivos, a suprimir seu desejo sexual por um dos genitores e a hostilidade dirigida contra o outro. No lugar desses sentimentos, desenvolverá senti mento de culpa por sua sexualidade e medo das figuras de autoridade. Essa rendição constitui a aceitação do poder e da autoridade parentais e uma submissão aos valores e exi gências dos pais. A criança torna-se "boa” , o que quer dizer que abandona seu vetor sexual em favor de um vetor de realizações. A autoridade dos pais é introjetada na forma de superego, assegurando que a criança obedecerá aos desejos dos genitores, dentro do processo de aculturação. Na reali dade, a criança passa então a identificar-se com o genitor ameaçador. Freud diz: "Por um lado, o processo todo pre serva o órgão genital, protege-o do perigo de ser eliminado; por outro lado, paralisa-o, retira dele sua função” 1. A supressão eficaz dos sentimentos e sensações associa dos ao complexo de Édipo conduz ao desenvolvimento do superego. Como vimos, essa é uma função psíquica que re presenta as proibições parentais internalizadas. Embora esse processo psíquico tenha sido adequadamente descrito na lite ratura psicanalítica, pouco tem sido escrito sobre o fato de que essa supressão de sentimentos e sensações acontece no corpo. O mecanismo para essa supressão é o desenvolvimen to de tensões musculares crônicas, que bloqueiam os movi mentos que iriam expressar tais sentimentos e sensações. Se, por exemplo, uma pessoa quer suprimir um impulso de cho rar porque tem vergonha de chorar, tensionará os músculos da garganta para impedir que os soluços sejam expressos. Poderíamos dizer que o impulso foi sufocado ou que a pes soa engoliu as lágrimas. Nesse caso, a pessoa tem consciência do sentimento de tristeza ou da vontade de chorar. Contudo, se o não chorar tornar-se parte do modo de ser da pessoa, quer dizer, parte de seu caráter (só bebês choram), então as tensões dos músculos de sua garganta ganham uma quali dade crônica e passam para o nível da inconsciência. Uma pessoa dessas pode vangloriar-se de que não chora quando é magoada, mas o fato é que não conseguiria chorar mesmo que o desejasse, porque a inibição tornou-se estruturada em seu corpo e está agora fora do controle consciente. A incapa- 1 Ibid., p. 273. 42 cidade para chorar é comumente encontrada nos homens que se queixam de falta de sentimentos ou sensações. A pessoa talvez esteja deprimida e reconheça que está infeliz, mas não consegue expressar sua tristeza. Um mecanismo semelhante funciona na supressão de sentimentos e sensações tanto sexuais quanto de outra na tureza. Encolhendo a barriga para dentro, retraindo o soalho pélvico para cima e imobilizando a pelve, a pessoa consegue reduzir o fluxo de sangue para os órgãos genitais e bloquear os movimentos sexuais naturais da pelve. Primeiramente, isso é feito com consciência, tensionando os músculos apro priados. Mas, com o tempo, a tensão passa a ser crônica e sai da esfera da consciência. Em certos casos, a tensão é tão severa que a pessoa não tem consciência de quaisquer sensa ções sexuais. Tenho em terapia uma paciente que é incapaz de ter qualquer desejo sexual, apesar de querê-lo muito. Em outros casos, o efeito da tensão é reduzir o montante de sensações sexuais que a pessoa pode experimentar. Nessas pessoas, podemos encontrar as proibições do superego con tra sentir e expressar desejos sexuais. Os determinantes psíquicos e somáticos do comportamento são funcionalmente idênticos. Mas, sem uma atuação sobre o componente somá tico, não se pode modificar eficientemente o caráter. Em termos gerais, a sensação é a percepção do movi mento. Se a pessoa mantiver seu braço absolutamente imóvel por cinco minutos, perderá a sensibilidade do braço. Não sentirá mais que tem braço. O leitor poderá experimentar a perda da sensação, deixando que seu braço fique pendurado ao lado do corpo, completamente imóvel, durante cerca de cinco minutos. Acontece o mesmo se você põe um chapéu; observe como você tem, por alguns minutos, consciência de estar de chapéu; mas, se ele não se mexer, essa percepção desaparece e você se esquece do chapéu. Mas nem todos os movimentos provocam sensação. A percepção é necessária. Se a pessoa se mexe durante o sono, não há sensação. Mas, sem movimento, nada há para ser percebido. Uma vez que a supressão de sensações é conquistada por tensões muscula res crônicas que imobilizam o corpo, é impossível à pessoa perceber uma sensação suprimida. Ela poderá pela lógica saber que sensações são suprimidas, mas não conseguirá Senti-las, nem percebê-las. Pelo mesmo motivo, o caráter estruturado no corpo como tensão crônica geralmente está ' fora de percepção consciente da pessoa. Um observador pode notar as tensões e, se tiver treino 43 para tanto, poderá interpretá-las para compreender a pessoa e sua história. O comentário habitual "os outros nos vêem diferentes de como nós nos vemos” é verdadeiro, pois nossos olhos estão voltados para dentro. "Vemo-nos” subjetiva mente, quer dizer, através das sensações, enquanto os outros nos vêem objetivamente, através da visão. Assim, um obser vador pode ver pelo modo como nos colocamos (lábio su perior contraído, queixo protuberante, garganta tensa) que não podemos nos permitir uma entrega ao choro. Sentimos apenas que não temos vontade de chorar. A mesma coisa acontece em termos de sexualidade. A maneira como nos colocamos expressa nossa relação com a sexualidade. Se a pelve está inclinada para trás, mas solta e com movimento de balanço, isso denota uma forte identificação da pessoa com a própria sexualidade. Se estiver empinada para a fren te (rabo entre as pernas) e mantida com rigidez, expressa a atitude oposta. Somos nossos corpos e eles revelam quem somos. Tanto Freud quanto Fenichel acreditavam que a neuro se resultava de uma repressão inadequada do complexo de Édipo. Supunha-se que a sua persistência fixasse a pessoa num nível infantil do desenvolvimento sexual. Estamos acos tumados a ver homens que moram na casa paterna, com a mãe, e que não são casados nem levam uma vida sexual regular. Sua vida parece realmente ter uma qualidade infan til. A maioria das pessoas percebe o relacionamento inces tuoso entre mãe e filho, exceto as duas pessoas em questão. O homem nega enfaticamente que tenha qualquer tipo de sensação ou de interesse sexual pela mãe. Eu acredito nele. Ele suprimiu todo desejo sexual por ela e teve êxito total na repressão de lembranças de sensações que porventura algum dia tivesse tido. Sua culpa não lhe permitiria perma necer nessa situação se tivesse a menor consciência de atra ções sexuais pela própria mãe. Está "amarrado” nela, não por causa de uma repressão inadequada, mas porque a re pressão foi severa demais. Não lhe restou sensação sexual alguma com a qual sair para o mundo como homem. Uma supressão tão severa de sensações sexuais só pode ser expli cada presumindo-se que houve uma ligação incestuosa igual mente intensa, durante o período edipiano. A repressão do complexo de Édipo permite à criança avançar para o período de latência. Teoricamente, isso lhe permite investir suas energias no mundo exterior, mas, como acabamos de ver, se a repressão for severa, essa saída é 44 muito limitada.
Compartilhar