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São Paulo 2013 REVISTA BRASILEIRA DE Literatura Comparada Diretoria Abralic 2012-2013 Presidente Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB) Vice-Presidente Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB) Secretário José Hélder Pinheiro Alves (UFCG) Tesoureiro Diógenes André Vieira Maciel (UEPB) Conselho Fiscal Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Univ. Mackenzie) Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto) Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) Rogério Lima (UnB) Germana Maria Araújo Sales (UFPA) Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL) Suplentes Adeítalo Manoel Pinho (UEFS) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) Conselho Editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Sou- za, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel. A B R A L I C CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Estadual da Paraíba Central de Integração Acadêmica de Aulas R. Domitila Cabral de Castro S/N 3º Andar/Sala 326 CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó) Campina Grande PB E-mail: revista@abralic.org.br REVISTA BRASILEIRA DE ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.23 p. 1-230 2013 Literatura Comparada 2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa rada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Editora Ana Cristina Marinho Lúcio Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva Diógenes André Vieira Maciel José Hélder Pinheiro Alves Revisão Priscilla Ferreira Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.) Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991- v.1, n.23, 2013 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05) Sumário Apresentação Antônio de Pádua Dias da Silva 7 Artigos Por um comparativismo do pobre: notas para um programa de estudos Alfredo Cesar Melo 9 Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional Eurídice Figueiredo 31 A Intertextualidade em prol de uma Estética da Transgressão no Heavy Metal: Ozzy Osbourne, o Louco, o Demônio, a Celebridade Flavio Pereira Senra 49 Da literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagens João Manuel dos Santos Cunha 79 Focos múltiplos: comparatismo e mídia nas crônicas de Xico Sá Luiz Carlos Santos Simon 97 Outros Países das Maravilhas para Alice: novas perspectivas para a Literatura Comparada apresentadas a partir do estudo de caso de Alice no País das Maravilhas Manaíra Aires Athayde Paulo Pereira 119 Amor e morte em “Dido, a Rainha de Cartago” de Christopher Marlowe Maria da Conceição Oliveira Guimarães 171 Literatura comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários Paulo Sérgio Nolasco dos Santos 189 Afrontando fronteiras da literatura comparada: da transnacionalidade à transculturalidade Zilá Bernd 211 Pareceristas ad hoc 223 Normas da revista 225 7 Apresentação A proposta de lançar um número da Revista Brasileira de Literatura Comparada – RBLT cuja discussão estivesse centrada na problematização e apresentação de outros ou novos parâmetros de viabilização do comparativismo literário, se deu em razão de a própria Associação Brasileira de Literatura Comparada, sobretudo em seus congressos, se mostrar propensa a novas relações dos estudos comparados, ora reiterando as antigas bases, ora proporcionando outros caminhos que contemplem os outros suportes, as outras linguagens, outras questões. Com o número 23 – A literatura comparada hoje – esperávamos receber artigos que problematizassem estas questões postas, principalmente porque os estudos comparados no Brasil, como todos percebem, foram atravessados por outras propostas e modos de abordar os textos literários na medida em que estes também migraram do seu antes e quase único suporte – o livro – para outras mídias, o que exige, na perspectiva comparativista, adequações necessárias antes pensadas unicamente na relação livro-livro e seus condicionantes: língua, cultura, contextos, imagens, tempo, autores, estilos. Nessa linha de raciocínio, os estudos culturais ganharam foro privilegiado em nossa cultura, alterando a paisagem do comparativismo literário fortemente enraizado na cultura acadêmica. As relações literatura e outras mídias também contribuíram para o enlarguecimento dessa visão que, sem abandonar a tradição da disciplina literatura comparada, avança, de forma migratória, para os estudos comparatistas, muitas vezes tomando estes estudos “fora do eixo” da antiga base, provocando aligeiradas tensões 8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 entre os estudiosos e co-fundindo-se em sua dinâmica ou práxis de trabalho. Os artigos selecionados para compor o número desta RBLT, não somente pela chamada, mas, sobretudo, pela composição de outros olhares dentro e sobre o mesmo campo de estudo, trazem esta discussão. O leitor irá encontrar textos que revisam o conceito de literatura comparada a partir do tema motivador do XIII Congresso Internacional da ABRALIC: o regional, o nacional e o transnacional ou “à luz de conceitos de multi, inter e trans-disciplinaridade e multi, inter e trans-culturalidade”. A discussão do eixo temático por pesquisadores experientes na área é uma prova de que a chamada da RBLT avança naquilo que sustenta a sua filosofia de existência: a base comparativista e suas interfaces com outras mídias, outros suportes, outros aportes, outros modos de ver e interpretar, sobretudo o que ainda se fazia estranho para os estudos clássicos que era incorporar à prática dos estudos comparados em literatura, porque somente em literatura, os objetos da cultura de massa, por exemplo. Dessa forma, os artigos deste volume contemplam também estudos na perspectiva interdisciplinar, intermidiática e intertextual, a literatura que migra para produtos new media como iPad, o Second Life e os games. A RBLT quer contribuir com as discussões em torno do objeto que a sustenta e que é o fundamento da ABRALIC. Problematizar suas bases, seu modus operandi, seu suporte, sua base teórico-metodológica parece-nos viável em tempos de criação e invenção de outras práticas interpretativas. Campina Grande - Paraíba Antônio de Pádua Dias da Silva 9 Por um comparativismo do pobre: notas para um programa de estudos Alfredo Cesar Melo* * Universidade Estadual de Campinas. 1 Tal indistinção chega a ser uma questão institucionalizada, a ponto de José Luis Jobim, então presidente da Abralic, ter que refletir sobre as razões que levam a Abralic se chamar Associação Brasileira de Literatura Comparada, e não, simplesmente, Associação Brasileira de Literatura (JOBIM, 2006, p. 95). Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir, em caráter exploratório, possíveis caminhos para os estudos de literatura comparada no Brasil, levando em conta a crescente importância dos debates em torno da inserção do Brasil no Sul Global. No artigo discuto duas possibilidades de abordagem para o estudo da cultura brasileira num contexto de comunicação Sul-Sul. PalavRas-Chave: Sul Global; Estudos pós-coloniais, Literatura Comparada. abstRaCt: This article sets as its goal to discuss, in an experimental fashion, possible routes to the comparative literary studies in Brazil, bearing in mind the growing importance of the debatesabout the Brazilian insertion into the Global South. In this article, I discuss two possible approaches to the study of Brazilian literature within a context of South-South communication. KeywoRds: Global South; Postcolonial Studies; Comparative Literature. Se “estudar literatura brasileira é, em boa parte, estudar literatura comparada”, como afirmava Antonio Candido, em 1946, pode-se dizer que a melhor crítica literária brasileira do século 20 fez justiça ao lema elaborado por Candido (2000, p. 213). E fizeram de tal modo que é difícil separar os estudos de literatura brasileira da literatura comparada.1 Essa indistinção é notória, por exemplo, na obra mais significativa de Antonio Candido. Como caracterizar um livro como Formação da literatura brasileira senão 10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 como um finíssimo exercício de literatura comparada, em que os modelos europeus, tanto da Arcádia como do Romantismo, vão sendo gradualmente adaptados às terras americanas? Um texto como “Dialética da malandragem”, já na fase mais madura de Candido, sintetiza bem o emprego de uma moldura comparatista para entender as especificidades do Brasil. No seu estudo sobre Memórias de um sargento de milícias, Candido inicia a discussão sobre gênero literário definindo o romance malandro a partir de uma contraposição ao gênero do romance picaresco. Para isso, faz distinções entre o pícaro e o malandro que se remetem às diferenças de formações sociais da Espanha e do Brasil. No decorrer de sua análise, para demarcar as singularidades de uma ética malandra, Candido compara a sociabilidade iluminada no romance brasileiro com a ética puritana figurada no romance A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne (CANDIDO, 1998). Algo semelhante pode ser visto na obra de Roberto Schwarz, que já no seu primeiro estudo de fôlego sobre Machado de Assis, disserta sobre “as ideias fora do lugar”. Todo o argumento do famoso ensaio de Schwarz está estruturado em bases comparatistas. Para Schwarz, o liberalismo seria uma ideologia de segundo grau, pois, no Brasil, o discurso liberal não apresentava qualquer verossimilhança ao tentar mascarar o processo social de exploração. Na Europa, o discurso liberal correspondia às aparências da vida social, necessitando da contra- intuição de um Marx para revelar a sua lógica; enquanto no Brasil, devido à escravidão, a qualquer transeunte o discurso liberal soaria grotescamente falso. A partir desse arcabouço conceitual eminentemente comparativo, Schwarz estuda as dificuldades de importação do romance no Brasil – sobretudo na obra de José de Alencar – para, finalmente, analisar a maneira como Machado de Assis consegue transformar gradualmente os pressupostos sociais do Brasil – bastante diversos dos europeus- em triunfos formais do melhor romance brasileiro (SCHWARZ, 1977, p. 13-26). Outro crítico que, ao longo da segunda metade do século 20, se debruçou sobre esse mecanismo de diferenciação da forma literária brasileira frente aos modelos europeus foi Silviano Santiago. No seu clássico 11 ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, Santiago teoriza sobre esse estatuto secundário ou derivativo geralmente atribuído às culturas periféricas como a brasileira. Combatendo as noções de fonte e influência – que haviam marcado até então a disciplina da literatura comparada -, Santiago argumenta que “[a] maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 2000, p. 16, grifos do autor). Empregando o conceito barthesiano de “obra escrevível”, Santiago argumenta que o escritor latino- americano está sempre produzindo “a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira” sobre o texto europeu, contaminando-o e transformando-o em algo novo (SANTIAGO, 2000, p. 20). Apesar de serem críticos literários se utilizando de marcos teóricos bem distintos entre eles, como a antropologia social britânica, o marxismo e o pós- estruturalismo, os três críticos mencionados referem-se a um problema real, cuja presença é identificada desde os primórdios da literatura brasileira: ansiedade dos letrados brasileiros de pertencerem a uma cultura secundária, incapaz de originalidade. Se há algo em comum nos trabalhos de Candido, Schwarz e Santiago é a teorização sobre uma derivação criativa na cultura brasileira. Ao dar um sinal positivo na diferença da cultura brasileira frente à europeia – algo que os modernistas haviam feito no plano artístico –, a geração de críticos literários da segunda metade do século 20 talvez tenha dado, assim, sua mais valiosa contribuição para o estudo da literatura comparada no Brasil: a relativização da hierarquia entre centro e periferia. Esse talvez seja o grande paradigma do comparativismo brasileiro no século 20 – o paradigma da antropofagia modernista, da ressignificação do legado europeu por parte do letrado brasileiro, visto agora como ativo produtor de cultura. Em outras palavras, ao colocar em relevo a questão da autonomia criadora da literatura brasileira, estamos também nos referindo ao paradigma da formação da literatura brasileira. Tal paradigma está longe de ter se exaurido e continua a render frutos para a nossa mais exigente crítica literária. A pujança dessa episteme – apenas para dar Por um comparativismo do pobre... 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 alguns poucos exemplos entre os pesquisadores mais jovens – pode ser identificada na fecunda análise de Pedro Meira Monteiro sobre a relação entre Visconde de Cairu e as máximas moralistas de La Rochefoucauld (MONTEIRO, 2004); no fino estudo de José Luiz Passos sobre o diálogo do romance machadiano com temas shakespereanos (PASSOS, 2009); ou na investigação incontornável de Gilberto Pinheiro Passos sobre o intertexto francês na obra de Machado de Assis (PASSOS, 1996). O que estou propondo neste artigo é pensar as relações do Brasil com o mundo além dessa bipolaridade (Brasil X Europa; periferia X centro; ex-colônia X ex- metrópole), o que não significa, já adianto, negar a sua importância, nem negligenciar o fato de que as relações assimétricas de poder com a Europa estruturam a nossa cultura. Não se trata, portanto, de invalidar uma moldura de análise, focada na relação entre centro e periferia, para celebrar uma outra, marcada pelas relações Sul-Sul, nem sugerir que a relação do Brasil com países igualmente periféricos implique alguma forma idealista de simetria de poder. É necessário examinar os dois tipos de relação (centro X periferia; Sul-Sul) simultaneamente, abraçando suas dificuldades e ambiguidades. Como veremos a seguir, trata-se de adicionar mais um grau de complexidade a essa moldura comparativa que já temos, mostrando que há outras relações além das bipolaridades tradicionalmente estudadas pela crítica brasileira. Seria o caso, conforme a sugestão de Silviano Santiago (2013), de não apenas focar na noção de formação – muito centrada na autonomia em relação ao centro – e pensar mais seriamente a ideia de inserção no mundo, levando em conta outras possíveis relações do Brasil com outras culturas que não aquelas centrais. Para isso, proponho dois tipos de moldura de análise para um comparativismo mais direcionado às relações Sul- Sul: o primeiro teria a ver com a ideia de comparação como co-aparição, que poderia servir de paradigma para estudos comparativos de autores e culturas que, na maior parte das vezes, se ignoram em razão da própria dinâmica da divisão internacional de conhecimento, que dificulta a comunicação e difusão de cultura entre países do Sul Global; enquanto a segunda moldura teria 13 a ver com uma moldura interidentitária do Brasil (entre Próspero e Caliban), que obriga a revisão de uma série de representações cristalizadas na crítica cultural sobre o Brasil. Se estamos acostumados a compreender a cultura brasileiracomo uma desvio criativo de um modelo europeu, a inserção do Brasil no contexto lusófono africano pode nos ajudar a criar uma outra representação, na qual muitas vezes o Brasil se mostra como modelo para as culturas lusófonas na África. Comparação como com-parison (co-aparição) Utilizo o termo co-aparição, inicialmente empregado por Jean Luc-Nancy e depois retrabalhado por Natalie Melas no seu livro All the difference in the World. Co-aparição seria um conceito que tenderia afastar a conotação normativa que a palavra “comparação” ganhou no decorrer de sua institucionalização nos estudos literários (MELAS, 2007, pp. 58-72). Co-aparição também permite o estudo comparativo de formas, culturas, e dinâmicas sociais que não necessariamente entraram em contato, mas que, nem por isso, seria de menor interesse deixar de cotejá-las. A divisão de conhecimento eurocêntrica irradia do centro para as margens. A estrutura rígida desse fluxo de informação permite pouco compartilhamento e trocas culturais entre os países na periferia. As consequências dessa divisão internacional do conhecimento são notórias. Seria impensável que intelectuais mexicanos, brasileiros e argentinos, por exemplo, não tivessem um conhecimento amplo da história cultural europeia. De outro lado, um intelectual brasileiro que não tenha familiaridade com grandes autores peruanos e cubanos não teria sua formação considerada falha ou precária. Somos impelidos a conhecer o centro e ignoramos outros países, cujas histórias e processos sociais são bastante semelhantes.2 É importante frisar que houve considerável contato cultural entre brasileiros e hispano-americanos e que bons estudos comparativos foram feitos acerca desse intercâmbio. Apenas para dar alguns poucos exemplos: Raul Antelo estudou a apropriação que Mário de Andrade Dipesh Chakrabarty analisa esse sintoma causado pela divisão internacional do conhecimento em seu livro Provincializing Europe: “There are at least two everyday symptoms of the subalternity of non-Western, third-world histories. Third- world historians feel a need to refer to works in European history; historians of Europe do not feel any need to reciprocate. Whether it is an Edward Thompson, a Le Roy Ladurie, a George Duby, a Carlo Ginzburg, a Lawrence Stone, a Robert Darnton, or a Natalie Davis - to take but a few names at random from our contemporary world - the “greats” and the models of the historian’s enterprise are always at least culturally “European.” “They” produce their work in relative ignorance of non-Western histories, and this does not seem to affect the quality of their work. This is a gesture, however, that “we” cannot return. We cannot even afford an equality or symmetry of ignorance at this level without taking the risk of appearing “old-fashioned” or “outdated.”” (CHAKRABARTY, 2007, p. 28). Tradução minha: “Há ao menos dois sintomas cotidianos da subalternidade de histórias não-ocidentais e terceiro- mundistas. Historiadores do terceiro mundo sentem a necessidade de se referir aos historiadores europeus, enquanto estes não sentem necessidade de agir reciprocamente. Seja um historiador como um Edward Thompson, um Le Roy Ladurie, um George Duby, um Carlo Ginzburg, um Lawrence Stone, um Robert Darnton, ou uma Natalie Davis – apenas para mencionar alguns nomes contemporâneos -, seu modelo historiográfico é sempre culturalmente europeu. Eles escrevem seus trabalhos ignorando as histórias não- ocidentais e isso não parece afetar a qualidade de seus trabalhos. Este é um gesto que, no entanto, não podemos retribuir. Não podemos nos dar ao luxo de propormos uma simetria de ignorâncias, sob o risco de parecermos “antiquados” e “desatualizados”. Por um comparativismo do pobre... 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 faz da literatura hispano-americana (ANTELO, 1986); Jorge Schwartz analisou como o artista argentino XulSolar incorpora temas brasileiros (SCHWARZ, 2011); assim como Leopoldo Bernucci meticulosamente examina o quanto da obra de Euclides da Cunha fora transfigurada pela pena de Mário Vargas Llosa (BERNUCCI, 1989). Todos esses são estudos que mapeiam bem o contato entre a cultura brasileira e as culturas hispano-americanas. Tratam-se de investigações comparativas que se fiam no liame existente entre dois sistemas literários, o que não deixa de ser um fator limitante. Uma das vantagens da ideia de comparação como co-aparição é exatamente a de poder estabelecer pontes nas quais a divisão internacional do conhecimento criou abismos. É poder perceber a co-emergência de formas literárias e dinâmicas sociais de culturas que se ignoram, mas que vivem, cada uma a seu modo, as contingências da experiência pós-colonial. Estudar as co-aparições dessas sociabilidades periféricas constitui um passo importante para criarmos um arquivo pós-colonial, isto é, de unir e comparar produções culturais geralmente segregadas pela divisão internacional de conhecimento e seu fluxo frequentemente unidirecional (centro em direção à periferia). Tomemos o exemplo do ensaísmo latino- americano. Qualquer leitor da tradição do pensamento social brasileiro que entre em contato com os ensaios de cunho interpretativo- histórico-sociológico da América hispânica perceberá inicialmente duas coisas: a imensa similaridade que os textos hispano-americanos e brasileiros guardam entre si, na infrene busca para dar um sentido à nação; e a solene ignorância mútua que cerca, na imensa maioria das vezes, essas duas tradições do pensamento. O caso da convergência entre as obras do brasileiro Gilberto Freyre e do cubano Fernando Ortiz é paradigmático. Afinal de contas, as semelhanças entre os dois ensaístas latino-americanos são dignas de nota: ambos estiveram na fronteira entre a literatura e a antropologia, escrevendo as obras seminais do nacionalismo cultural de seus respectivos países (Casa-grande & senzala no Brasil e Contrapunteo cubano em Cuba), além de terem inserido 15 seus discursos numa moldura por muito tempo considerada antirracista - que almejava separar os conceitos de raça e cultura - e de terem criado metáforas de incorporação e negociação culturais: plasticidade e transculturação (que juntamente com a antropofagia são metáforas centrais do campo discursivo latino-americano). No entanto, praticamente não existe diálogo entre esses dois autores. Não se pode dizer que houve qualquer influência de um sobre o outro. Torna-se imperativo estudar, como dois intelectuais, completamente independentes e apartados um do outro, desenvolvem estratégias bastante similares para lidar com a questão da originalidade criativa das culturas periféricas. Para isso, proponho uma comparação entre os conceitos centrais de seus projetos intelectuais: plasticidade na obra de Gilberto Freyre e transculturação na obra de Fernando Ortiz. Esses conceitos são metáforas poderosas de negociação cultural que iluminam aspectos diferentes, e às vezes complementares, desse mesmo processo de negociação. O encontro entre diferentes culturas e etnias na América Latina se deu sob a égide da colonização, com todas as assimetrias de poder típicas desse sistema. As metáforas forjadas pelas obras de Freyre e Ortiz têm como referente as dimensões ambivalentes de tal processo. Da tensão desse encontro cultural tanto surgem formas de dominação que prezam pela continuidade das relações de poder colonial (o entendimento do conceito de plasticidade será fundamental para destrinchar analiticamente essas tendências), como manifestações de resistência e tentativas de subversão das relações vigentes (aspectos esses que ganham maior inteligibilidade à luz do conceito de transculturação). A importância de tais metáforas de negociação é percebida mais agudamente quando se leva em conta o papel que desempenharam, numa época em que culturas periféricas, como a brasileira e a cubana, tinhamque lidar com o mal-estar da cópia, que levava que tais nações se considerassem culturas sem originalidade, e, portanto, condenadas a reproduzir as ideias e instituições européias (SCHWARZ, 1987, p.29). No entanto, mais do que lidar com esses problemas, por meio de suas metáforas, num plano meramente teórico Por um comparativismo do pobre... 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 ou abstrato, pode-se dizer que a própria construção de seus textos também se deve a um processo de negociação cultural. Mais do que um simples objeto de estudo, a negociação cultural estava no núcleo da prática discursiva de Gilberto Freyre e Fernando Ortiz. Tanto Gilberto Freyre quanto Fernando Ortiz buscavam legitimidade para seus trabalhos por meio da associação de suas respectivas obras à autoridade de grandes nomes da antropologia de então (Franz Boas e Bronislaw Malinowski, respectivamente). Mas, ao mesmo tempo em que inscrevem seus discursos como sendo parte dessas tradições antropológicas, delas também muito discrepam. Enrico Mario Santí é enfático em afirmar que Fernando Ortiz não era e nem podia ser considerado funcionalista, como Malinowski assim o havia designado, no seu famoso prefácio a Contrapunteo (SANTÍ, 2002, p.230-35). De acordo com o próprio Malinowski, para o funcionalista, a cultura seria um vasto aparato com que homens faziam frente a problemas concretos com a finalidade de satisfazer suas necessidades. Ora, nada mais longe da abordagem que Ortiz faz do tabaco, que é um vício, e do açúcar, que é um luxo. Nenhum dos produtos é uma necessidade vital nas suas respectivas comunidades. Outra diferença significativa entre Ortiz e os funcionalistas é o uso da História. O funcionalismo estudava as comunidades sincronicamente, enquanto Ortiz sempre encontrou na História e no desenvolvimento diacrônico da sociedade as fontes para sua reflexão antropológica (RIVEREND, 1978, p. 25). De qualquer modo, sempre que a diferença entre Ortiz e o funcionalismo é colocada pela crítica do autor de Contrapunteo, há um resultado positivo. A diferença é marcada pela criatividade, pelo senso imaginativo e pela maneira pouco convencional de escrever do antropólogo cubano (CORONIL, 1995: p. 35). Algo semelhante pode ser dito em relação a Freyre. Seu estudo estaria muito distante daquilo que, na teoria antropológica, tem-se chamado de culturalismo boasiano. A prosa de Freyre está longe da aridez metódica da escrita de Franz Boas, e muito mais próxima da imaginação romanesca, antecessora daquilo que seria cunhado posteriormente como “história íntima”, com seu apego ao concreto, às cores, aos sabores, aos detalhes, nisso 17 antecipando toda a tradição francesa de história da vida privada (MELLO, 2002, p. 261). O que podemos concluir é que tanto Freyre como Ortiz reivindicam a legitimidade do centro de produção de saber como uma forma de se comunicar com esse centro, sem, no entanto, submeter-se à totalidade de suas normas disciplinares. Eles entremeiam a antropologia com imaginação e sugestões da oralidade de suas culturas. Muitas vezes se rendem a uma mimese do objeto, ou seja, deixam-se misturar, imiscuir-se ao objeto que estudam, aderindo a seu ponto de vista, acrescentando, assim, uma dicção própria a seus textos. Compare-se a maneira empática com que Ortiz narra a chegada do tabaco na Europa para curar as doenças da razão, com os ensaios sobre magia e mito de Malinowski, e se verá que, enquanto o antropólogo polonês segue todas as regras de distanciamento e neutralidade discursivas, Ortiz desenvolve uma narrativa que adere ao ponto de vista do tabaco. Da mesma forma, Gilberto Freyre revitaliza a língua portuguesa, fazendo uso da oralidade e das construções mais eruditas, realizando na sua própria linguagem “um equilíbrio de antagonismos”, que seria o próprio objeto de estudo do ensaísta brasileiro. Desse modo, Ortiz e Freyre criam textos que são marcados pela diferença em relação ao discurso do centro - com o qual, não obstante, nunca deixam de dialogar. Se é certo que o ensaio resiste à pureza discursiva das disciplinas intelectuais - como a Antropologia - ao mesmo tempo em que mobiliza esses mesmos discursos (RAMOS, 2001, p. 233), será com Gilberto Freyre e Fernando Ortiz que o ensaísmo latino-americano atingirá a mais plena consciência de sua dimensão heterogênea e aglutinadora de discursos. Gustavo Pérez Firmat chama a atenção para a dicção ensaística de Contrapunteo (PÉREZ FIRMAT, 1995, p. 52), na qual Fernando Ortiz habilmente emprega a paralepsis – que é uma figura de linguagem que consiste em querer dizer algo, afirmando o seu contrário (por exemplo, quando Ortiz afirma que não pretende emular El libro de buen amor, para em seguida escrever sua versão própria do livro de Juan Ruiz). Já Ricardo Benzaquen de Araújo destaca o tom de conversa que o Por um comparativismo do pobre... 18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 ensaísmo freyreano adota, “parecendo facilitar que ele arme um raciocínio francamente paradoxal, fazendo com que cada avaliação positiva possa se suceder uma crítica e vice-versa”, criando, assim, “um ziguezague que acaba por dar um caráter antinômico à sua argumentação” (ARAÚJO, 1994, p. 208). Por trás de cada uma dessas estratégias – a paralepsis de Ortiz e a argumentação antinômica de Freyre –, pode-se entrever um pensamento em movimento, sendo estruturado e organizado por uma subjetividade criadora, o que dá uma tensão peculiar aos seus textos. Isso não se daria com a monografia científica, já que a sistematização teórica trata de elidir as possíveis arestas que só a inconsistência epistemológica e a heterogeneidade dos tons ideológicos do ensaio são capazes de potencializar. É curioso notar como, mesmo estando tão apartados, e ignorando-se mutuamente, Freyre e Ortiz chegam a um resultado formal – o ensaio, com seus limites e potenciais – muito similar. Voltando à idéia de comparação como co- aparição, espero ter demonstrado como ganhamos com cotejamentos em torno a configurações socioculturais que não necessariamente influenciam uma a outra (como os ensaios de Freyre e Ortiz), mas que têm uma imensa capacidade heurística de iluminar dimensões muito semelhantes da experiência pós-colonial, ao mesmo tempo em que auxilia a estabelecer os contornos específicos da cada uma dessas experiências. Comparar produções culturais feitas no Brasil com aquelas de países caribenhos, africanos, ou asiáticos pode ajudar a mapear identidades e marcar diferenças entre as maneiras dessas culturas se auto-representarem. A constituição de um arquivo pós-colonial, que seja capaz de resgatar a pluralidade da experiência pós-colonial, se faz cada vez mais necessária numa época em que os estudos pós- coloniais nas universidades metropolitanas estão sendo guiados por uma perspectiva “indiocêntrica” (para usar a expressão da escritora argentina Beatriz Sarlo, apud ORTEGA; NATALI, 2007, p.310). Há teóricos como Jorge Klor de Alva (1995) e Gayatri Spivak (1993) que consideram que o processo da descolonização não seria extensivo à América Latina, uma vez que o continente tem uma outra história, e seu 19 processo de emancipação política, ocorrida no século XIX, passou por outras dinâmicas sociopolíticas. A teoria pós-colonial, embutida no argumento de Klor de Alva e Spivak, é tão indiocêntrica que toma a Índia como um modelo normativo de pós-colonialidade. Se os estudos latino-americanos podem incorporar os estudos pós- coloniais aos seus debates, a recíproca também deveria ser verdadeira para os estudos pós-coloniais praticados nas universidades metropolitanas. Como lembra Fernando Coronil, obras importantes como Colonial Discourse and Postcolonial Theory (WILLIAMS AND CHRISMAN, 1994), Post-Colonial Studies Reader (ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2006), Relocating Postcolonialism (GOLDBERG E QUAYSON, 2002), Postcolonialism Theory: ACritical Introduction (GANDHI, 1998), não incorporam a longa experiência latino-americana à sua reflexão (CORONIL, 2008, pp. 402-403). Mais recentemente, Robert Young, um dos mais atuantes representantes dos estudos pós-colonial nas universidades metropolitanas, reconhece que a teoria pós-colonial tem uma genealogia plural, encontrada nos diversos discursos anticoloniais do terceiro mundo. No seu livro Postcolonialism: An Historical Introduction, Young menciona intelectuais que pensaram a experiência latino-americana (Las Casas, Mariátegui, Ortiz, Che Guevara) como participantes desse discurso anti-colonial. No entanto, faz uma distinção bastante vacilante entre a “crítica pós-colonial” e os “discursos anti-coloniais”. Segundo Young, a crítica pós-colonial marca o momento em que a experiência política e cultural da periferia marginalizada “developed into a more general theoretical position to be set against western political, intellectual and academic hegemony” (YOUNG, 2001, p. 65).3 Tal “posição teórica geral” está associada aos “heartlands of the former colonial power”(YOUNG, 2001, p. 65), isto é, aos centros europeus de produção intelectual. Em outras palavras, Young reproduz uma hierarquia colonial na sua distinção: a teoria pós-colonial é um produto das universidades ocidentais, que estuda e examina os discursos anti-coloniais para colocar em xeque concepções eurocêntricas. O discurso anti- colonial, produzido localmente, é matéria a ser moldada 3 Tradução: evoluiu para uma posição teórica mais geral para ser contraposta à hegemonia política, intelectual e acadêmi- ca no Ocidente Por um comparativismo do pobre... 20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 pelas categorias produzidas pela teoria metropolitana. O desnível é evidente. É preciso estar atento para não reproduzir, dentro dos estudos pós-coloniais, hierarquias que foram alvo de tanta luta e resistência entre intelectuais de países periféricos. É necessário pensar o Brasil no contexto do Sul Global, dentro de sua heterogeneidade. Comparar é imperativo, mas sempre dentro de uma moldura de co- aparição, sem criar hierarquia entre os termos, isto é, sem estabelecer a experiência anglófona como um marco normativo que deve mensurar a experiência brasileira. Moldura interidentitária: entre Próspero e Caliban No seu artigo “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade”, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, um dos principais teóricos do Sul Global, defende uma hipótese arrojada e polêmica, que tem causado intensos debates nos estudos pós-coloniais lusófonos: a cultura portuguesa habitaria uma zona de “interidentidade”, por ter sido um poder colonizador (Próspero), ao mesmo tempo em que uma “colônia informal” (Caliban) da Inglaterra. A hipótese de Boaventura, que coloca Portu- gal como ponto articulador dessa identidade poro- sa entre colonizador e colonizado, vem sendo se- riamente questionada por muitos estudiosos (cf. MADUREIRA, 2008). Ainda assim, creio que uma moldura interidentitária - entre Próspero e Caliban - daria rendimentos até mais interessantes caso aplicada à situação do Brasil. Se levarmos a sério essa posição interidentitária do Brasil, muito da própria imagem que construímos acerca da cultura brasileira precisaria ser revista. Como notamos no início do artigo, boa parte da crítica literária e cultural brasileira tem compreendido o Brasil dentro do paradigma centro-periferia, no qual o Brasil é frequentemente identificado como um país periférico, sofrendo com a dependência cultural. Ora, já está mais do que na hora de tirar as conseqüências do status de média potência mundial desfrutado pelo Brasil, 21 no qual estabelece relações de poder com outros países a partir de outros arranjos. O caso da África lusófona parece ser o mais ilustrativo. Faz-se necessário discutir com mais vagar essa posição ambivalente da cultura brasileira no mundo. Numa monografia dedicada ao estudo das relações entre Brasil e África, Fernando Arenas mostra a ambivalência que rege a interação entre Brasil e África lusófona. De um lado, há ações que claramente denotam solidariedade entre países “terceiro-mundistas”. O Brasil, por exemplo, exportou para Moçambique a tecnologia social do Bolsa Família; e ajudou a fundar a primeira universidade pública do Cabo Verde. Por outro lado, a presença de empresas brasileiras, como Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás e Odebrecht, tem exercido um impacto predatório nas economias e no meio-ambiente de Angola e Moçambique. Fazemos as vezes de parceiros pós-coloniais no mundo lusófono e, ao mesmo tempo, de neocolonizadores. Ademais, a cultura brasileira teria aquilo que Arenas chama de “capital afetivo” (ARENAS 2011) - que é a simpatia nutrida pelos africanos diante de nossas manifestações culturais como música, telenovela e futebol. Convém lembrar que essa relação ambígua com a África não vem dos tempos recentes, com a política externa do governo Lula. Pelo contrário, trata-se de relação antiga, que nunca foi devidamente teorizada. Basta lembrar que, nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil defendeu Portugal nos fóruns multilaterais para que a antiga metrópole pudesse manter suas colônias. Gilberto Freyre foi um intelectual instrumental para essa missão, forjando a teoria do lusotropicalismo - teoria que estudaria a predisposição do lusitano para colonizar regiões tropicais. O Brasil narrado por Freyre serviria como exemplo da boa colonização portuguesa. No entanto, o que acontece no Atlântico Sul é mais complexo do que uma simples colaboração de um intelectual conservador com um regime fascista. Se o Brasil narrado por Freyre passa a ser extremamente conveniente para as narrativas oficiais do governo português, esse mesmo Brasil discutido nas obras seminais de Freyre servirá de inspiração para intelectuais caboverdianos - como Baltasar Lopes e Gabriel Mariano Por um comparativismo do pobre... 22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 - articularem um projeto de independência cultural em relação a Portugal. A imagem do Brasil no Atlântico lusófono passa, então, a ser pendular - apropriada tanto por Próspero (Portugal), como por Caliban (Cabo Verde). Baltasar Lopes foi um dos fundadores do movimento Claridade, formado por um grupo de letrados interessados na investigação da identidade cultural cabo-verdiana. Desde seu início, o grupo se inspirou principalmente no modernismo nordestino do Brasil. Lopes confessa ter lido avidamente os romances de Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Armando Fontes e Marques Rebelo, e as poesias de Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Seu romance Chiquinho, publicado em 1947, tem uma forte afinidade com os romances sociais do Nordeste brasileiro, guardando alguma coisa do memorialismo de José Lins do Rêgo e da crítica social de Jorge Amado. Para Lopes “esta ficção e esta poesia revelava-nos um ambiente, tipos, estilos, formas de comportamento, defeitos e virtudes, atitudes perante a vida que se assemelhavam aos destas ilhas” (LOPES, 1956, p. 6). O impacto que a cultura brasileira teve sobre o fundador do Grupo Claridade pode ser percebido na descrição pormenorizada que o próprio Lopes faz de sua leitura de “Evocação do Recife”, poema de Manuel Bandeira. Lopes lia o poema visualizando Cabo Verde. Vila da Ribeira Brava, sua cidade natal, seria o Recife da poesia; um velho conhecido seu, Nhô Pedro António, faria as vezes de Totônio Rodrigues com o pince-nez, e a moça tomando banho nua, observada com alumbramento por Bandeira na Caxangá, era imaginada nos tanques da Ribeira do João. Tal como Tomás Antonio Gonzaga, poeta arcádico estudado por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira, que colocava uma ninfa neoclássica nos ribeirões de Minas Gerais, Lopes vislumbrava os personagens e situações narrados pela literatura brasileira dentro de cenário cabo-verdiano.Numa das passagens de Aventura e rotina, Freyre reconhece os fortes vínculos culturais que unia Cabo Verde ao Brasil: “Mais de um cabo-verdiano foi o que me disse com a maior clareza: que se sentia mais brasileiro do que português da Europa. Que Cabo Verde deveria ser província do Brasil” (FREYRE, 1953, p. 246). É possível verificar, no testemunho de Baltasar 23 Lopes, o imenso impacto do livro brasileiro em Cabo Verde. Pode-se dizer que tal impacto - ainda não teorizado - não se restringiu a Cabo Verde. Em seu estudo sobre a recepção de Guimarães Rosa na África lusófona, Anita Moraes oferece subsídios importantes para essa reflexão (MORAES, 2012, p. 29-45). No seu estudo, Moraes mostra como o encontro - muitas vezes fortuito - com a ficção de Guimarães Rosa marca um ponto de inflexão nas trajetórias de escritores como Luandino Vieira, Ruy Duarte e Mia Couto. Em todos os relatos, os escritores revelam como a obra rosiana mostrou-se fortemente inspiradora para que tais escritores pudessem escrever os seus livros. Se, de acordo com Homi Bhabha, em seu “Signs taken for wonders”, o livro inglês representa, inicialmente, uma fonte de recalque para o colonizado; o livro brasileiro descortinava, por sua vez, possibilidades de desrecalque. Minha principal hipótese é a de que a literatura brasileira (sobretudo a prosa de Guimarães Rosa) forneceu aos escritores lusófonos africanos um modelo de narrativa transcultural que foi de extrema importância e utilidade no processo de formação das literaturas nacionais africanas de língua portuguesa. Se as ligações entre literatura brasileira e literatura africana lusófona estão bem documentada bem documentadas (HAMILTON, 1994; ORNELAS, 1996; CHABAL, 1995), faz-se necessário tirar as consequências da natureza emuladora dessa relação. Ao incorporar a oralidade de uma cultura tradicional (caipira) à alta literatura, a ficção rosiana apresentava aos escritores africanos de língua portuguesa um achado formal que seria imprescindível na construção das literaturas nacionais africanas de língua portuguesa. Tanto o escritor angolano Luandino Vieira como o romancista moçambicano Mia Couto já declararam que Guimarães Rosa foi uma fonte de inspiração determinante na maneira como estes próprios escritores conceberam a literatura de seus países. Como a maioria dos estudos comparativos em literatura (estudos pós-coloniais, estudos sociológicos, marxismo) tem focado suas análises na dicotomia entre colonizador/colonizado, ocidental/oriental, centro/peri- feria, Norte/Sul, Prospero/Caliban, uma questão necessita ser colocada: como devemos dar conta de relações Por um comparativismo do pobre... 24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 entre países que são considerados de “terceiro mundo”, “subdesenvolvidos”, “não-ocidentais” e do hemisfério Sul? Essa relação Sul-Sul seria uma relação baseada na emulação ou na colaboração? Que tipo de dinâmica de poder seria criada entre esses países? Essas são as principais questões que devem estruturar um programa de estudos focados no Sul Global. Primeiro, no entanto, são necessários alguns esclarecimentos conceituais. O que vem a ser narrativa transcultural e porque esse tipo de narrativa ofereceria uma moldura conceitual importante para entender as relações literárias Sul-Sul? Narrativa transcultural é um termo cunhado pelo crítico literário uruguaio Angel Rama. De acordo com Rama, escritores latino-americanos como José Maria Arguedas, Gabriel García Marquez, Roa Bastos e João Guimarães Rosa seriam “narradores transculturais” (RAMA, 1982, pp. 15-67). Esse tipo de narrador trabalharia como uma espécie de “tecedor” literário, costurando alta literatura com a oralidade de culturas mais tradicionais. Vale a pena salientar que o conceito transculturación, cunhado por Fernando Ortiz e apropriado por Rama, implica necessariamente a formação de novas identidades e culturas. Transculturação é um processo que sempre leva à síntese de um binarismo, formando, assim, um terceiro espaço, resultante de negociações várias. Logo, a narrativa transcultural não seria propriamente nem literatura modernista nem ficção regionalista, mas uma produção cultural num entrelugar epistemológico, capaz de incorporar avanços formais da vanguarda com a revitalização do legado popular. Parece, portanto, bastante compreensível que esse modo particular de narrativa tenha atraído escritores africanos lusófonos, uma vez que países como Moçambique e Angola estavam enfrentando o desafio de reconstruir a nação das ruínas de guerras coloniais e civil. Costurar as diferentes vozes e visões de mundo dos variados grupos sociais e étnicos num texto nacional seria uma maneira de cicatrizar simbolicamente as feridas do conflito e criar uma comunidade imaginada. É sintomático, por exemplo, que o angolano Luandino Vieira tenha escolhido o musseque (uma vizinhança inter-étnica) como o local primordial de 25 sua ficção. De acordo com Patrick Chabal, “Vieira´s musseques are a frontier area where a mixture of social and racial groups meet: from the poor white settler to the rich mestiço trader, from Cape Verdean merchant to the black laborer, from the impoverished assimilado to the pretentious ambaquista” (CHABAL, 1995, p. 22).4 O musseque seria, assim, um espaço poroso no qual a comunicação e a negociação entre diferentes grupos ainda eram possíveis. Já o escritor moçambicano Mia Couto, no seu romance Terra Sonâmbula, narra a história de um encontro entre um idoso, Tuahir, e um orfão, Muidinga, dois fugitivos de um campo de refugiados que acabam vivendo num ônibus queimado cercado de cadáveres. Muidinga encontra um caderno próximo a um dos corpos e começa a ler em voz alta os eventos escritos no caderno por alguém chamado Kindzu. A narração do romance alterna os dialógos entre Muidigina e Tuahir com entradas do caderno. Em um certo ponto do romance, voz e palavra escrita começam a se entrelaçar à medida em que Mudinga vai preenchendo as lacunas do texto de Kindzu com sua própria imaginação e desejo de ter uma família. O leitor do romance não consegue distinguir as entradas reais do diário de Kindzu da leitura que Muidinga faz do diário. No romance de Mia Couto, textos são espaços permeáveis que devem ser apropriados e contaminados pela imaginação e desejo do povo. Tais narrativas transculturais - viajando do Brasil para África lusófona - podem fomentar novas discussões teóricas da chamada literatura mundial. Baseado na teoria do sistema-mundo de ImannuelWallerstein, Franco Moretti, no seu artigo “Conjectures on World Literatura”, procura estabelecer uma “lei da evolução literária”, afirmando que “in cultures that belong to the periphery of the literary system (which means: almost all cultures, inside and outside Europe), the modern novel first arises not as autonomous development but as a compromise between a western formal influence (usually French or English) and local materials” (MORETTI, 2000, p. 58).5 Respondendo a Moretti, Efraín Kristal menciona algumas exceções à lei de Moretti, encontradas na literatura hispano-americana, assim, questionando seriamente a eficácia do modelo teórico proposto por Moretti. Kristal 4 Tradução minha: Os mus- seques de Vieira são áreas fronteiriças onde os diferentes grupos sociais e étnicos se encontram: do colono pobre europeu ao rico comerciante mestiço; do mercador cabover- diano ao trabalhador negro, do assimilado empobrecido ao pretensioso ambaquista. 5 Tradução minha: Em cultu- ras que pertencem à periferia do sistema-literário (o que quer dizer: quase todas as culturas, dentro e fora da Europa), o romance moderno surge não como um desenvolvimento autônomo, mas como um compromisso entre influências formais ocidentais (geralmente inglesas ou francesas) e mate- riais locais. Por um comparativismo do pobre... 26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 argumenta,por exemplo, que, na literatura hispano- americana, a poesia - e não o romance - era o gênero literário dominante até 1920. Ademais, ao criticar o modelo de Moretti, Kristal estaria argumentando “in favor of a view of world literature in which . . . themes and forms can move in several directions – from the centre to the periphery, from the periphery to the centre, from one periphery to another” (KRISTAL, 2002, p. 65).6 Essa visão da literatura mundial - proposta por Kristal -, na qual formas e temas viajam de um ponto periférico para outro, é certamente adequada para pensar as relações culturais, em geral, e literárias, em particular, do Sul Global - já que se trata de estudar as relações entre Brasil e África lusófona. Se nós entendermos que narrativas transculturais são um tipo de “compromisso”, dentre tantos outros possíveis, entre forma ocidental e práticas narrativas locais, seria apropriado afirmar que “compromissos” - especialmente a partir da segunda metade do século 20 - viajaram tanto quanto formas europeias. Seria tão importante mapear as viagens dos “compromissos” (narrativas transculturais) de uma periferia para outra como traçar os fluxos culturais do centro para periferia. Conclusão Se a prática da literatura comparada é constitutiva daquilo que chamamos de estudo da literatura brasileira, uma ampliação do alcance daquilo que consideramos literatura comparada certamente terá efeitos na maneira como nós entendemos a nossa cultura e o espaço que ocupa no mundo. Descrevi neste artigo duas possíveis abordagens para estudar a relação do Brasil com o Sul Global. Longe de serem exaustivas, tais abordagens devem e podem se somar a muitas outras. Reitero aqui as vantagens analíticas de cada uma: com a noção de comparação como co-aparição podemos estudar culturas, literaturas e autores que, de fato, não tenham nenhum liame entre si. Trata-se de agregar analiticamente aquilo que a divisão internacional de conhecimento fragmentou. A outra 6 Tradução minha: De uma visão de literatura mundial na qual temas e formas pudessem se movimentar em várias dire- ções – do centro para periferia, da periferia para o centro, de uma periferia para outra periferia. 27 vantagem da co-aparição estaria na maneira de cotejar experiências pós-coloniais sem parâmetros normativos da experiência anglófona ou francófona. Cada configuração cultural periférica deve ser compreendida dentro da sua especificidade, e não como desvio de um suposto modelo canônico. Trabalhar com a noção da cultura brasileira como pertencente a uma zona interidentitária - capaz de se revelar tanto como inspiração descolonizadora quanto presença neocolonizadora no continente africano - nos leva a pensar como as relações Sul-Sul estão longe de ser simétricas ou ideais. Frequentemente pensamos a cultura brasileira como aquela que de algum modo imitou, apropriou, canabalizou o alheio para se constituir. É chegada a hora também de pensar a cultura brasileira como objeto de emulação, com todas as ambivalências e problemas que essa emulação traz. Só poderemos renovar a prática comparatista quando formos capazes de conectar a disciplina da literatura comparada a uma noção mais precisa da geopolítica do saber e da cultura. Referências ANTELO, Raul. Na ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-americanos. São Paulo: Hucitec, 1986. ARAUJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. ARENAS, Fernando. Lusophone Africa: Beyond Independence. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011. ______. “Reverberações lusotropicais: Gilberto Freyre em África.” Gilberto Freyre e os estudos latino-americanos. Ed. Joshua Lund e Malcom McNee. Pittsburgh: Instituto Iberoamericano, 2006.122-145. ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. Post- Colonial Studies Reader. London: Routledge, 2006. 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PalavRas-Chave: Literatura Comparada; literaturas diaspóricas; estudos pós-coloniais. abstRaCt: This text proposes a revision of the concept of Comparative Literature considering the transformations that have taken place in the literary world since the decolonization of African countries. The work of diasporical writers who moved to Western countries calls into question the very notion of a National Literature itself. The text then suggests that it is possible to perform comparative studies of literatures of formerly colonized countries that differ from the traditional approach which focuses on the influence of Central Literatures on Peripheral ones. Key woRds: Comparative Literature; Diasporical Literatures; Post Colonial Studies. 32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 Literatura Comparada: textos fundadores Tomo como mote para a minha reflexão o livro que Eduardo Coutinho e Tania Carvalhal organizaram em 1994 com o título Literatura Comparada: textos funda- dores, no qual incluíram artigos publicados de 1886 até 1974. O livro trouxe uma relevante contribuição para os estudos da área, já que colocaram à disposição do público brasileiro artigos escritos em várias línguas, dispersos em revistas ou livros de difícil acesso. Quase vinte anos de- pois, relendo o livro para escrever este texto, parece-me importante ressaltar alguns elementos. Considerando que a Literatura Comparada nasceu na França em torno de 1830 (JEUNE, 1994, p. 223), não surpreende que haja hegemonia da linha francesa no livro. No século XIX a nova disciplina se configurou a partir da ideia de centrali- dade da Literatura Francesa, cujo principal postulado era a influência que exercia sobre as demais. O nacionalismo e a primazia da França eram os alicerces do pensamento que se delineava de maneira bastante inflexível. A contrapartida veio dos professores (muitos deles emigrados europeus) dos departamentos das universida- des americanas, que adotaram uma posição mais aberta e mais cosmopolita. Muitos deles já não faziam distinção rígida entre Literatura Geral ou Literatura Mundial e Literatura Comparada. Remak questiona a assertiva do crítico francês Van Tieghem segundo a qual a literatura comparada envolvia investigações limitadas a dois países. “Por que uma comparação entre Richardson e Rousseau deveria ser classificada como literatura comparada, ao passo que uma comparação entre Richardson, Rousseau e Goethe [...] seria atribuída à literatura geral?” (REMAK, 1994, p. 186).Além disso, uma nova questão metodoló- gica se abria para o diálogo entre a Literatura e outras áreas do saber. A definição de Remak é bem ampla e se aproxima daquilo que se pratica até hoje. A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes 33 [...], a filosofia, a história, as ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana (REMAK, 1994, p. 175). Note-se no livro de Coutinho e Carvalhal a au- sência da América Latina tanto como sujeito do discurso (não há autores latino-americanos) como objeto do dis- curso (não há menção às Literaturas Nacionais da região senão de passagem). A África e o Oriente aparecem uma ou outra vez nos textos como áreas exóticas que um dia viriam participar desse concerto de nações literárias. De- ve-se destacar também a ausência de negros e demulhe- res. René Wellek mostra que há um paradoxo na evolu- ção da literatura comparada já que, apesar de ela ter sur- gido como uma reação contra o nacionalismo limitado, como um protesto contra o isolacionismo, acabou desem- bocando numa competição entre países, cada um queren- do provar que mais exerceu influência sobre os demais ou que melhor assimilou um grande escritor estrangeiro (WELLEK, 1994, p. 112-114). Novas literaturas Passados quase 40 anos da publicação do último texto que compõe a antologia, o que mudou? Na Amé- rica Latina aconteceu o chamado boom que inseriu, de maneira cabal, as literaturas hispânicas do subcontinente no cânone da literatura. Mas o fenômeno talvez mais im- pressionante foi a emergência tanto de literaturas africa- nas quanto de literaturas de países asiáticos (como Índia e Paquistão) escritas nas línguas europeias. Uma nova característica mudou o mapa das grandes literaturas: es- critores “étnicos” (seja pela cor seja pela religião: negros, mestiços, muçulmanos), provenientes das antigas colô- nias, deixaram seus países e se radicaram nas metrópoles dos países ocidentais começando a dar novas configura- ções às literaturas nacionais. As primeiras publicações (tanto de poesia quanto Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional 34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 de romance ou teatro) de autores que viriam a ser con- siderados fundadores das novas literaturas africanas co- meçaram em torno dos anos 1950: no mundo da fran- cofonia, Léopold Sédar Senghor (do Senegal) publicou a Anthologie de la nouvelle poésienègre et malgaxe, em 1948, e Kateb Yacine (da Argélia) publicouo romance Nedjma, em 1956; no mundo de língua inglesa, Chinua Achebe publicava o romance, recentemente traduzido entre nós, O mundo se despedaça, enquanto Wole Soyinka (ambos da Nigéria) representava suas primeiras peças em Londres em 1958. As literaturas das antigas colônias portuguesas na África emergem no mesmo movimento. Em 1953, é publicado o caderno Poesia negra de expressão portuguesa, organizado por Francisco José Tenreiro e Mário de An- drade, que, segundo Benjamin Abdalla, foi concebido na esteira da Antologia de Senghor, que recebera como pre- fácio o famoso texto de Sartre, Orfeu Negro (ABDALLA, 2008, p. 80). Um pouco mais tarde (1964), saía Luuanda, de Luandino Vieira, que se tornaria um clássico da litera- tura angolana. O que parece ser um denominador comum nessas literaturas, bem como em alguns autores do Caribe e da América Hispânica, é a tentativa de se apropriar da tradição literária, transformando-a de modo a integrar as tradições orais que caracterizam essas culturas. O barroco Em grande parte da obra desses autores predomina o barroco, que permite a mistura, o hibridismo, a profu- são de elementos que decorrem da mestiçagem cultural. Severo Sarduy assinala que o barroco “reflete estrutural- mente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico”, ou seja, os escritores barrocos fazem uma crítica da história oficial, adotando uma visão crítica, contestatária. Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua lin- guagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótico, metaforiza a impugnação da entidade logocêntrica que 35 até então nos estruturava em sua distância e sua autori- dade; barroco que recusa toda instauração, que metafo- riza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução (SARDUY, 1979, p. 178). Esses escritores barrocos fazem uma invocação épi- ca da História através da alegoria, da fantasmagoria, si- tuando-se numa visão revisionista que se insurge contra os paradigmas de modernização difundida pelo Ocidente, ao mesmo tempo em que incorpora os elementos da tra- dição europeia, inclusive a do próprio barroco. Há neles uma visão não linear e não naturalista da História. Se- gundo Chiampi, o barroco se dinamiza no nível de uma temporalidade paralela que seria a da meta-história: “é o nosso devir permanente, o morto que continua falando, um passado que dialoga com o presente por seus fragmen- tos e ruínas, quem sabe para preveni-lo de tornar-se te- leológico e conclusivo” (CHIAMPI, 1998, p. xvii). As histórias contadas pelos escritores barrocos se embaralham, se entranham, em metamorfoses que pro- duzem uma profusão de sentidos. As narrativas não são nem lineares nem miméticas, as intrigas e as relações en- tre os personagens não são muito claras nem muito lógi- cas. O leitor encontra-se no terreno do indecidível, há uma hesitação justamente porque os romances não são “realistas” (no sentido dos romances europeus do século XIX). A liberdade destes escritores decorre do fato de eles não terem a pretensão de desvelar “a verdade”; é antes uma maneira de conservar uma liberdade que se abre a todas as liberdades. Incorpora-se a tradição rabelaisiana do barroco que a França havia apagado por séculos, intro- duzindo o riso, o erotismo, a carnavalização, a linguagem desregrada e inovadora, o realismo grotesco.1 Considerando que o Prêmio Nobel não é garantia de qualidade, mas constitui um sintoma de mudanças dos cânones, torna-se pertinente destacar o aumento signi- ficativo de não europeus que foram premiados, sobretu- do desde os anos 1980. Hispano-americanos tiveram seis prêmios (três antes de 1980, três depois): Gabriela Mis- tral (Chile), em 1945, Miguel Ángel Astúrias (Guatema- la), em 1967, Pablo Neruda (Chile), em 1971, Gabriel Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional 1 Desenvolvo este aspecto no artigo “O humor rabelaisiano de Patrick Chamoiseau e Mário de Andrade”, publicado na revista Alea: Estudos neo- latinos, vol. 7, n. 2, dez. 2005. Disponível em www.scielo. br e retomado, com pequenas modificações, no meu livro Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura (7letras, 2010). 36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 Garcia Marquez (Colômbia), em 1982, Octavio Paz (Mé- xico), em 1990, Mário Vargas Llosa (Peru), em 2010. O Caribe de língua inglesa teve dois: Derek Walcott (Santa Lúcia), em 1992, e V.S. Naipaul (Trinidad e Tobago), em 2001. A África teve quatro: Wole Soyinka (Nigéria), em 1986, Naguib Mahfouz (Egito), em 1988, Nadine Gordi- mer (África do Sul), em 1991, John Coetzee (África do Sul), em 2003. O Japão e a China tiveram dois cada um: Yasunari Kawabata (Japão), em 1968, e Kenzaburo Oe (Japão), em 1994; Gao Xingjian (China), em 2000, e Mo Yan (China), em 2012. A Turquia, um país periférico da Europa, teve um: Orhan Pamuk, em 2006. Merece des- taque o Nobel concedido à escritora afro-americana Toni Morrison, em 1993. Um aspecto que afeta a percepção do “nacional” é o fato de as línguas europeias terem sido apropriadas e transformadas por esses escritores descentrados: são mui- tas as variações de francês, inglês, espanhol e português. Acabou a relação, mesmo que tênue, da tríade: um país, uma língua, uma literatura. Assim, novas apelações sur- giram para designar o fenômeno - literaturas diaspóricas, literaturas migrantes, literaturas transnacionais. Nesse panorama movediço, em que os antigos alicerces ruíram, a Literatura Comparada já não pode mais ser a mesma. Do conceito de influência ao de intertextualidade A literatura não é mais apanágio dos países euro- peus, já que a cada ano surgem novos escritores, oriundos de países quase desconhecidos do grande público, com formas literárias inovadoras. O conceito de influência continua na berlinda. Ultrapassada a visão positivista do século XIX francês, ele foi apresentado, em artigo de 1967, pelo crítico russo Victor Zhirmunsky.2 Ele considerava que a influência envolvia sempre a transformação social do modelo, ou seja, cada modelo é reinterpretado e adap- tado “às condições literárias e sociais que determinaram sua influência, às novas relações de tempo e espaço, à tradição literária nacional em geral e à individualidade 2 É bom lembrar que a União Soviética ocupa uma posição periférica se comparada com a hegemonia francesa e norte- americana. 37 ideológica, psicológica e artística do autor em questão” (ZHIRMUNSKY, 1994, p. 208).Franco Moretti, em ar- tigo publicado em 2000, afirma que o romance europeu, transposto em culturas periféricas, revela “uma conci- liação entre uma influência formal ocidental (em geral francesa ou inglesa) e matérias locais” (MORETTI apud VASCONCELOS, 2011, p. 68). Como Sandra Guardini Vasconcelos (2011, p. 68) aponta, a adoção de modelos abstratos para explicar a difusão do romance, tal como é feito por Moretti, tende a deixar de lado o particular, ou seja, o objeto em seu contexto histórico. No Brasil, já há algum tempo, evita-se falar de “in- fluência”, porque nela subjaz a ideia de uma relação de subalternidade das literaturas dos países colonizados em relação às dos países colonizadores. A crítica a essa rela- ção de dependência foi feita por ensaístas brasileiros, den- tre os quais eu destacaria a figura de Silviano Santiago, no sentido de repensar o estatuto da literatura brasileira em relação às literaturas europeias, com destaque para arti- gos como “O entre-lugar do discurso latino-americano” (Uma literatura nos trópicos, de 1978), “Apesar de depen- dente, universal” (Vale quanto pesai, de 1982). Do ponto de vista da teoria do texto, desde Mikhaïl Bakhtin, Julia Kristeva e Roland Barthes, fala-se muito mais de intertextualidade, conceito mais neutro, que dá conta do fato de que todo escritor é, antes de tudo, leitor. Para Barthes, a “escritura é a destruição detoda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).3 Ao mos- trar que “o texto é um tecido de citações” (BARTHES, 1988), as quais, por sua vez, emanam de outros textos, Barthes dessacralizava a figura do autor como criador único e autoconsciente do texto. Ao tirar o foco do autor, Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o encargo de dar sentido ao texto no processo de leitura: “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, p. 70). Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional 3 O tradutor usa a palavra es- critura para écriture; eu prefiro usar o termo mais comum da língua portuguesa, escrita, e creio que esta é a tendência atual. 38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 Manifeste pour une “Littérature-Monde” enfrançais No dia 16 de março de 2007, o jornal Le Monde publicou um Manifeste pour une “littérature-monde” em français, assinado por 44 escritores, dentre os quais Edou- ard Glissant, Tahar Ben Jelloun, Dany Laferrière e Maryse Condé. Alguns meses mais tarde, foi publicado um livro, Pour une littérature-monde, do qual participaram alguns dos signatários do Manifeste e outros escritores que não o haviam assinado. Inicialmente é preciso observar que o ponto de comparação postulado é a existência de uma literatura de língua inglesa que não teria um rótulo aná- logo a “francófono” e cujos autores produziram “roman- ces ruidosos, coloridos, mestiços, que diziam, com uma força rara e palavras novas, o rumor destas metrópoles exponenciais em que se chocavam, se misturavam, se mesclavam as culturas de todos os continentes” (Mani- feste, tradução minha). Na reivindicação dos signatários do Manifeste, percebe-se a superação do “nacional” em benefício de uma visão “transnacional” da literatura na medida em que a maioria deles pertence, ao mesmo tem- po, a várias “comunidades imaginadas” (Anderson), ou seja, são escritores que vivem uma realidade de hibridis- mo e mestiçagem. O livro Les littératures de langue française à l’heure de la mondialisation (2010), organizado por Lise Gauvin, pu- blicou o Manifeste pour une littérature-monde em français, que estava inédito em livro desde sua publicação no jor- nal. Este livro assinala a posição crítica dos quebequenses em relação ao Manifesto e a favor da francofonia literária, embora reconheça o ranço colonial que subsiste no termo francofonia, tal como usado no terreno da política inter- nacional. Literatura do Commonwealth Contrariamente à afirmação presente no Manifesto de que em inglês não haveria rótulo análogo à francofo- nia, Salman Rushdie, em artigo intitulado “A literatura 39 do Commonwealth não existe”, escrito em 1983 (1993, p. 77), mostrava que a expressão “literatura do Com- monwealth” — utilizada então para agrupar os escritores oriundos dos países que outrora fizeram parte do Império Britânico — era inapropriada, porque incluía escritores provenientes de países que não faziam parte do Com- monwealth (como a África do Sul e o Paquistão). Mas o argumento principal tinha a ver com as mesmas questões colocadas pelos signatários do Manifeste pour une “littéra- ture-monde” quase 25 anos depois, ou seja, que o termo ti- nha uma ressonância paternalista e colonialista. Haveria, de um lado, a literatura inglesa propriamente dita — a superior, a sagrada — e, de outro lado, a literatura da pe- riferia que reagruparia um bando de rudes recém-chega- dos ao mundo das letras. Ele considerava particularmente desagradável a expressão “literatura do Commonwealth” por ela se constituir em “gueto de exclusão”. É importante destacar que ele concebe a literatura inglesa como toda a literatura escrita em língua inglesa, como Tahar Ben Jelloun considera que todos os que escrevem em fran- cês fazem literatura francesa (e não francófona). Assim, separar a literatura inglesa seria conferir-lhe um caráter “segregacionista nos planos topográfico, nacionalista e talvez até mesmo racista” (RUSHDIE, 1993, p. 79). A regra base que sustenta o edifício do gueto “literatura do Commonwealth” seria que a literatura é expressão da na- cionalidade, o que ele contesta. Assim, a recepção nos países centrais varia: se os livros recriam tradições orais e populares, com elementos das culturas ancestrais, eles são apreciados, enquanto que aqueles que mesclam as tradi- ções ou rompem com elas parecem suspeitos. O escritor pós-colonial é, então, acusado de falta de autenticidade. Ora, por que se exige autenticidade de um escritor afri- cano, asiático ou latino-americano, e não se exige auten- ticidade de um escritor francês ou inglês? Porque, como afirma Rushdie, a autenticidade é a herdeira do velho exotismo. “Ela exige que as fontes, as formas, o estilo, a língua e os símbolos derivem todos de uma tradição pre- tensamente homogênea e contínua” (RUSHDIE, 1993, p. 83). A busca de autenticidade é falaciosa, porque mes- mo as tradições são múltiplas e já misturadas, não existe Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional 40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013 nada puro e homogêneo, senão de forma abstrata e ima- ginária. Nimrod, escritor nascido no Chade, afirma que o que os racistas europeus recusam é a mestiçagem cultural: O que dizer do escritor africano? Tudo se passa como se ele tivesse de produzir uma literatura exótica destina- da aos europeus e a si próprio, o que leva a destinar à nostalgia uma África que desapareceu há muito tempo [...] A literatura atravessa sua existência e o leva a es- crever não uma literatura de africanos autênticos mas a de africanos urbanos — em todos os sentidos do termo — que é a prova inaudita do mestiço cultural em que eles se transformaram (NIMROD, 2007, p. 223). A exigência de representar o autenticamente na- cional coloca-se tão somente para os periféricos, porque ninguém pergunta sobre a francidade dos escritores fran- ceses nem sobre a anglicidade dos escritores ingleses. A criação literária, nos dias de hoje, tanto nos países cen- trais quanto nos países que passaram pelo processo de co- lonização, não segue paradigmas rígidos. Lusofonia? No que se refere aos países africanos de língua por- tuguesa, o termo lusofonia tende a não ser apreciado por atrelá-los de modo simbólico a Portugal, como salienta Laura Padilha (2007), que vê a lusofonia como extensão do lusismo, maneira de afirmação de Portugal. Ela consi- dera que lusofonia significa mais do que o simples aspecto linguístico e, nesse sentido, vai de encontro à posição de Eduardo Lourenço. Como nos espaços de língua francesa e inglesa, o português foi transformado para se moldar às peculiari- dades da vida cultural dos diferentes países africanos e, principalmente, para incorporar elementos da tradição oral, como acontece em outras áreas diglóssicas, ou seja, países que falam mais de uma língua, com estatutos dife- rentes (a língua ocidental e outra/s língua/s ágrafa/s). Essa “reinvenção linguística e cultural” da língua portuguesa foi chamada por David Mestre de “geogramática” (PADI- LHA, 2007, p. 106). 41 Do ponto de vista da legitimação, publicação e dis- tribuição de livros, os autores africanos ainda passam por Lisboa, mas é de se destacar a amplitude do mercado edi- torial brasileiro que abre as portas para esses escritores. E é também importante lembrar que os laços com o Brasil são antigos, já que os primeiros escritores, que participa- ram dos movimentos de independência, foram leitores dos brasileiros, como Guimarães Rosa e Jorge Amado, o que provocou uma transversalidade bastante produtiva. Língua e linguagem Rushdie ressalta que a flexibilidade do inglês possi- bilita
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