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BLANCHOT o espaco literario

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II
ABORDAGEM DO ESPAÇO
LITERÁRIO
O POEMA — a literatura — parece vinculado a uma fala que 
não pode interromper-se porque ela não fala, ela é. O poema 
não é essa fala, é começo, e ela própria jamais começa mas 
diz sempre de novo e sempre recomeça. Entretanto, o poeta é 
aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o me­
diador, que lhe impôs o silêncio pronunciando-a. Nela, o poema 
está próximo da origem, pois tudo o que é original é à prova 
dessa pura impotência do recomeço, dessa prolixidade estéril, a 
superabundância do que nada pode, do que jamais é a obra, 
arruina a obra e nela restaura a ociosidade sem fim. Talvez seja 
a fonte, mas fonte que, de uma certa maneira, deve ser exaurida 
para tornar-se recurso. Jamais o poeta, aquele que escreve, o 
“criador”, podería exprimir a obra a partir da ociosidade es­
sencial; jamais, por si só, do que está na origem, ele pode 
fazer brotar a pura palavra do começo. É por isso que a obra 
somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de 
alguém que a escreveu e de alguém que a leu, o espaço vio­
lentamente desvendado pela contestação mútua do poder de 
dizer e do poder de ouvir. E aquele que escreve é igualmente 
aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu 
como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua 
exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado 
corretamente, fê-la cessar, tomou-a compreensível nessa inter- 
mitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, 
dominou-a ao medi-la.
29
A EXPERIÊNCIA DE MALLARMÉ
CUMPRE recordar aqui as alusões, hoje muito conhecidas, que 
permitem pressentir a que transformação Mallarmé foi exposto, 
desde que se empenhou a fundo em escrever. Essas alusões 
não têm, em absoluto, um caráter anedótico. Quando ele afir­
ma: “Senti sintomas deveras inquietantes causados pelo ato só 
de escrever”, o que importa são essas últimas palavras: por 
elas é esclarecida uma situação essencial; algo de extremo é 
apreendido, que tem por campo e substância “o ato só de escre­
ver”. Escrever apresenta-se como uma situação extrema que 
supõe uma reviravolta radical, à qual Mallarmé fez breve alusão 
quando disse: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei, la­
mentavelmente, dois abismos que me desesperam. Um deles é 
o Nada...” (a ausência de Deus, o outro é a sua própria mor­
te). Também nesse comentário do poeta o que é rico de senti­
do é a expressão sem envergadura que, da maneira mais singela, 
parece remeter-nos para um simples trabalho de artesão. “Ao 
sondar o verso”, o poeta entra nesse tempo de desamparo que 
é o da ausência dos deuses. Fala surpreendente. Quem sonda 
o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses au­
sentes, vive na intimidade dessa ausência, toma-se responsável 
dela, assume-lhe o risco e sustenta-Lhe o favor. Quem sonda o 
verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper 
com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por 
morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve, 
pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencon­
tra a sua morte como abismo.
31
Palavra bruta, palavra essencial
Se ele procura exprimir a linguagem tal como lhe foi des­
coberta pelo “o ato só de escrever”, Mallarmé reconhece “um 
duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui, essencial acolá”. 
Essa distinção é, em si mesma, brutal, logo difícil de apreender, 
pois ao que ele distingue tão absolutamente confere Mallarmé 
a mesma situação, encontra, para defini-la, a mesma palavra, 
que é o silêncio. Silêncio puro, a fala em estado bruto: “. .. 
talvez bastasse a cada um, a fim de permutar a fala humana, 
tomar ou pôr na mão de outrem, uma moeda...” Silenciosa, 
portanto, porque nula, pura ausência de palavras, permuta pura 
em que nada se troca, onde nada existe de real a não ser o 
movimento de permuta, que nada é. Mas o mesmo pode ser 
dito a respeito da fala confiada à pesquisa do poeta, essa lin­
guagem cuja força reside toda em não ser, toda a glória em 
evocar, na sua própria ausência, a ausência do todo: linguagem 
do irreal, fictícia, e que nos entrega à ficção, ela provém do 
silêncio e ao silêncio retoma.
A fala em estado bruto “relaciona-se com a realidade das 
coisas”. “Narrar, ensinar, até descrever”, dá-nos as coisas na 
própria presença delas, “representa-as”. A fala essencial distan- 
cia-as, fá-las desaparecer; ela é sempre alusiva, sugestiva, evo­
cativa. Mas o que significará então tomar ausente “um fato da 
natureza”, apreendê-lo por essa ausência, “transpô-lo em seu 
quase desaparecimento vibratório?” Significa essencialmente 
falar, mas também pensar. O pensamento é fala pura. Tem que 
se reconhecer nele a língua suprema, aquela cuja extrema va­
riedade de línguas apenas nos permite reavaliar a deficiência: 
“Sendo pensar escrever sem acessórios, nem murmúrios, mas 
a fala imortal ainda tácita, a diversidade, na terra dos idiomas 
impede que se profiram palavras que, caso contrário, graças 
a uma única matriz, seriam a própria concretização material da 
verdade.” (O que constitui o ideal de Crátilo mas é também a 
definição da escrita automática.) Somos tentados a dizer, por­
tanto, que a linguagem do pensamento é, por excelência, a lin­
guagem poética, e que o sentido, a noção pura, a idéia, devem 
tornar-se a preocupação do poeta, sendo isso somente o que 
nos liberta do peso das coisas, da informe plenitude natural. 
“A Poesia, perto a idéia.”
Entretanto, a fala em estado bruto nada tem de brutal. 
O que ela representa não está presente. Mallarmé não quer 
32
Á
“incluir no papel sutil ... a madeira intrínseca e densa das 
árvores”. Mas nada de mais estranho para a árvore do que a 
palavra árvore, tal como a utiliza, não obstante, a linguagem 
cotidiana. Uma palavra que não denomina nada, que não re­
presenta nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem 
mesmo é uma palavra e que desaparece maravilhosamente, por 
inteiro e de imediato, em seu uso. O que pode ser mais digno 
do essencial e mais próximo do silêncio? A palavra é verda­
deira, ela “serve”. Aparentemente, toda a diferença está aí: ela 
é usada, usual, útil; por ela, estamos no mundo, somos devolvi­
dos à vida do mundo, aí falam os objetivos, as metas finais, 
e impõe-se a preocupação de sua realização. Um puro nada, 
certamente, o próprio não-ser, mas em ação, o que age, traba­
lha, constrói o puro silêncio do negativo que culmina na rui­
dosa febre das tarefas.
A fala essencial é, nesse aspecto, o oposto. Por si mesma, 
ela é imponente, ela impõe-se, mas nada impõe. Muito longe 
também de todo o pensamento, desse pensamento que repele 
sempre a obscuridade elementar, pois o verso “atrai não menos 
que afasta”, “aviva todos os jazimentos esparsos, ignorados e 
flutuantes”: nele as palavras voltam a ser “elementos”, e a pa­
lavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a 
noite.1
1 Depois de ter lamentado que as palavras não sejam “materialmente 
a verdade”, que jour (dia), por seu timbre, seja sombrio, e nuit (noite) 
brilhante, Mallarmé encontra nesse defeito das línguas o que justifica 
a poesia; o verso é delas o “complemento superior”, “filosoficamente, 
o verso recompensa o defeito das línguas”. O que é esse defeito? As 
línguas não têm a realidade que exprimem, sendo estranhas à realidade 
das coisas, à obscura profundidade natural, pertinente a essa realidade 
fictícia que é o mundo humano, divorciado do ser e ferramenta para 
todos os seres.
Na fala bruta ou imediata, a linguagem cala-se como lin­
guagem mas nela os seres falam e, em conseqüência do uso que 
é o seu destino, porque serve, em primeiro lugar, para nos rela­
cionarmos com os objetos, porque é uma ferramenta num mun­
do de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso, 
nela os seres falam como valores, assumem a aparência estável 
de objetos existentes um por um e que se atribuem a certeza do 
imutável.
A fala em estado bruto não é bruta nem imediata. Mas dá 
a ilusão de que o é.Extremamente refletida, está impregnada 1 
33
da história. Mas, a maioria das vezes, e como se não fôssemos 
capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do 
tempo, os guardiões do devir, a fala parece o lugar de uma re­
velação imediatamente dada, parece o sinal de que a verdade é 
imediata, sempre a mesma e sempre disponível. A fala imediata 
talvez seja, com efeito, relação com o mundo imediato, com 
aquele que nos é imediatamente próximo e nosso vizinho, mas 
esse imediato que nos comunica a fala comum não passa do lon­
gínquo velado, o absolutamente estranho que se faz passar por 
habitual, o insólito que tomamos por rotineiro graças a esse véu 
que é a linguagem e a esse hábito da ilusão das palavras. A fala 
tem nela o momento que a dissimula; ela tem em si mesma, por 
esse poder de dissimulação, a potência pela qual a mediação 
(o que, portanto, destrói o imediato) parece ter a espontaneida­
de, o frescor, a inocência da origem. E, além disso, ela tem esse 
poder, comunicando-nos a ilusão do imediato, quando o que 
nos dá é somente o habitual, faz-nos crer que o imediato nos é 
familiar, de modo que a essência deste nos aparece, não como o 
mais terrível, o que deveria perturbar-nos, que é o erro da soli­
dão essencial, mas como a felicidade tranqüilizadora das har­
monias naturais ou a familiaridade do lugar natal.
Na linguagem do mundo, a linguagem cala-se como ser da 
linguagem e como linguagem do ser, silêncio graças ao qual os 
seres falam, no qual encontram também esquecimento e repou­
so. Quando Mallarmé fala da linguagem essencial, logo a opõe 
somente à linguagem ordinária que nos dá a ilusão, a seguran­
ça do imediato, o qual, contudo, nada é senão o rotineiro — e 
depois retoma, por conta da literatura, a fala do pensamento, 
esse movimento silencioso que afirma, no homem, a sua decisão 
de não ser, de se separar do ser e, ao tornar real essa separação, 
de fazer o mundo, silêncio que é o trabalho e a fala da própria 
significação. Mas essa fala do pensamento é também, de qual­
quer modo, a fala “corrente”: ela devolve-nos sempre ao mun­
do, ora como o infinito de uma tarefa e o risco de um trabalho, 
ora como uma posição firme onde nos é lícito acreditar que es­
tamos em lugar seguro.
A fala poética não se opõe somente, portanto, à linguagem 
ordinária mas também à linguagem do pensamento. Nessa fala, 
já não somos devolvidos ao mundo, nem ao mundo como abri­
go, nem ao mundo como metas. Nela, o mundo recua e as metas 
cessaram; nela, o mundo cala-se; os seres em suas preocupa­
ções, seus desígnios, suas atividades, não são, finalmente, quem 
34
fala. Na fala poética exprime-se esse fato de que os seres se ca­
lam. Mas como é que isso acontece? Os seres calam-se, mas é 
então o ser que tende a voltar a ser fala, e a palavra quer ser. 
A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém 
fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fa­
la ‘’se fala”. A linguagem assume então toda a sua importância; 
torna-se o essencial; a linguagem fala como o essencial e é por 
isso que a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala 
essencial. Isso significa, em primeiro lugar, que as palavras, 
tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa 
nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins. 
Doravante, não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que 
se fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem.
Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um po­
tente universo de palavras cujas relações, a composição, os po­
deres, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmi­
ca, num espaço unificado e soberanamente autônomo. Assim, o 
poeta faz obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é 
retomo à sua essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal co­
mo o pintor não reproduz com as cores o que é mas busca o 
ponto onde as suas cores dão o ser. Ou ainda, como tentou Ril­
ke na época do expressionismo, ou talvez hoje Ponge, ele quer 
criar “o poema-coisa” que seja como a linguagem do ser mudo, 
fazer do poema o que será por ele mesmo forma existência e 
ser: obra.
Entretanto, essa poderosa construção da linguagem, esse 
conjunto calculado para excluir dele o acaso, que subsiste por 
si só e repousa sobre si mesmo, chamamos-lhe obra e chama­
mos-lhe ser mas, sob essa perspectiva, não é uma coisa nem 
outra. Obra, pois que é construída, composta, calculada, mas, 
neste sentido, obra como toda a obra, como todo o objeto forma­
do pelo entendimento de um ofício e a habilidade de um espe­
cialista. Não obra de arte, obra que tem a arte por origem, pela 
qual a arte, da ausência de tempo onde nada se conclui, é ele­
vada à afirmação única, fulminante, do começo. E, do mesmo 
modo, o poema entendido como um objeto independente, auto- 
suficiente, um objeto de linguagem criado para si só, mônada de 
palavras onde só se refletiría a natureza das palavras e nada 
mais, talvez seja então uma realidade, um ser particular, de 
uma dignidade, de uma importância excepcional, mas um ser 
e, por isso mesmo, de forma nenhuma mais próximo do ser, do 
35
que escapa a toda a determinação e a toda a forma de exis­
tência.
A experiência própria de Mallarmé
Parece que a experiência pessoal de Mallarmé começa no mo­
mento em que ele passa da consideração da obra feita, aquela 
que é sempre um tal ou tal poema em particular, um tal ou tal 
quadro, para uma preocupação mediante a qual a obra passa a 
ser a busca de sua origem e quer identificar-se com a sua ori­
gem, “visão horrível de uma obra pura”. Aí está sua profundi­
dade, aí a preocupação que envolve, para ele, “o ato só de es­
crever”. O que é a obra? O que é a linguagem na obra? Quando 
Mallarmé se pergunta: “Existe alguma coisa como as Letras?”, 
essa indagação constituí a própria literatura, a literatura quan­
do esta se converte em preocupação com a sua própria essência. 
Tal indagação não pode ser relegada. O que é que acontece em 
decorrência do fato de que temos a literatura? Qual o paradei­
ro do ser, se dizemos que “existe alguma coisa como Letras”?
Mallarmé teve sobre a própria natureza da criação literá­
ria um sentimento profundamente atormentado. A obra de arte 
reduz-se ao ser. Aí está a sua tarefa, ser, tornar presente “essa 
palavra; é”. . . “todo o mistério está aí”.2 Mas, ao mesmo tem­
po, não se pode dizer que a obra pertence ao ser, que ela existe. 
Pelo contrário, o que se deve dizer é que ela jamais existe à ma­
neira de uma coisa ou de um ser em geral. O que cumpre dizer, 
em resposta à nossa questão, é que a literatura não existe ou 
então que, se acontece, é como alguma coisa “que não aconte­
ce como qualquer objeto que existe”. Certamente, a linguagem 
está presente, é “posta em evidência”, afirma-se com mais auto­
ridade do que nenhuma outra forma de atividade humana, mas 
realiza-se totalmente, o que quer dizer que tampouco tem outra 
realidade senão a do todo: ela é tudo — e nada mais, sempre 
disposta a passar do tudo ao nada. Passagem que é essencial, 
2 Carta a Vielé-Griffin, 8 de agosto de 1891: “...Nada que eu não 
me diga a mim mesmo, menos bem, no murmurar esparso de minha 
solidão, mas onde vós sois o adivinho, é, sim, relativamente a essa pa­
lavra mesma: é, notas que tenho sob a mão, e que reina no derradeiro 
lugar do meu espírito. Todo o mistério está aí: estabelecer as identi­
dades secretas por um dois a dois que rói e gasta os objetos, em nome 
de uma pureza central.”
36
que pertence à essência da linguagem, visto que, precisamente, 
nada está trabalhando nas palavras. As palavras, como sabe­
mos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer 
aparecer enquanto desaparecidas, aparência que nada mais é 
senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, re­
toma à ausência pelo movimento de erosão e de usura que é a 
alma e a vida das palavras, que extrai delas luz pelo fato de 
que se extinguem, a claridade através da escuridão. Mas, tendo 
esse poder de fazer as coisas “erguerem-se” no seiode sua au­
sência, senhoras dessa ausência, as palavras também têm o po­
der de se dissiparem a si mesmas, de se tornarem maravilhosa­
mente ausentes no seio de tudo o que realizam, de tudo o que 
proclamam anulando-se, do que etemamente executam destru­
indo-se, ato de autodestruição sem fim, em tudo semelhante ao 
tão estranho evento do suicídio, o qual confere precisamente 
toda a sua verdade ao instante supremo do Igitur.3
3 Remetemos o leitor a uma outra seção deste livro, “A Obra e o Es­
paço da Morte”, que é o estudo apropriado da experiência de Igitur, 
experiência que só pode ser interrogada se se tiver alcançado um ponto 
mais central do espaço literário. Em seu ensaio tão importante, La 
Distance Interieure, Georges Poulet mostra-nos que Igitur é “um exem­
plo perfeito do suicídio filosófico”. Sugere, desse modo, que o poema, 
para Mallarmé, depende de uma relação profunda com a morte, só é 
possível se a morte for possível, se, pelo sacrifício e a tensão a que o 
poeta se expõe, ela se converter no poeta em poder, possibilidade, se 
ela for um ato, o ato por excelência. “A morte é o único ato possível. 
Acossados que estamos entre um mundo material verdadeiro cujas 
combinações fortuitas produzem-se em nós sem nós, a um mundo ideal 
falso cuja mentira nos paralisa e nos enfeitiça, só dispomos de um meio 
para nunca mais sermos entregues ao nada nem ao acaso. Esse meio 
único, esse ato único, é a morte. A morte voluntária. Por ela nos abo­
limos mas por ela também nos fundamos... Foi esse ato de morte vo­
luntária que Mallarmé cometeu. Cometeu-o no Igitur.”
Faz-se necessário, porém, prolongar esse comentário de Georges 
Poulet: Igitur é um relato abandonado que testemunha uma certeza a 
que o poeta não pôde ater-se. Pois não é certo que a morte seja um 
ato, já que poderia ocorrer a impossibilidade de suicídio. Posso dar-me 
a morte? Tenho o poder de morrer? Un coup de dés jamais n’abolira 
le hazard [Um lance de dados jamais abolirá o acaso, título do poema 
de Mallarmé considerado o precursor da poesia concreta em seu projeto 
do livro “absoluto”. N. do T.J é como que a resposta em que essa 
pergunta se detém. E a “resposta” deixa-nos pressentir que o movi­
mento que, na obra, é experiência, abordagem e uso da morte, não é 
o da possibilidade — ainda que fosse a possibilidade do nada — mas 
a abordagem daquele ponto em que a obra está à prova de impossibi­
lidade.
37
O ponto central
Tal é o ponto central, a que Mallarmé volta sempre como à inti­
midade do risco a que nos expõe a experiência literária. Esse 
ponto é aquele em que a realização da linguagem coincide com 
o seu desaparecimento, em que tudo se fala (como ele disse, 
“nada subsistirá sem ser proferido’’), tudo é fala, mas em que 
a fala já não é mais do que a aparência do que desapareceu, é 
o imaginário, o incessante e o interminável.
Esse ponto é a própria ambiguidade.
De um lado, na obra, ele é o que a obra realiza, é aquilo 
em que ela se afirma, onde é preciso que ela “não admita outra 
evidência luminosa senão a de existir”. Nesse sentido, esse pon­
to é presença da obra e somente a obra o toma presente. Mas, 
ao mesmo tempo, é “presença da Meia-Noite”, o aquém, aquilo 
a partir do qual nada jamais começa, a profundidade vazia da 
ociosidade do ser, essa região sem saída e sem reserva na qual 
a obra, por meio do artista, torna-se a preocupação, a busca 
sem fim de sua origem.
Sim, centro, concentração da ambigüidade. É bem verdade 
que só a obra, se caminhamos para esse ponto pelo movimento 
e o poder da obra, só a plena realização da obra o torna possí­
vel, em última instância. Atentemos de novo para o poema: o 
que de mais real, de mais evidente e a própria linguagem é nele 
“evidência luminosa”. Essa evidência, entretanto, nada mostra, 
em nada assenta, é o inapreensível em movimento. Não é ter­
mos nem momentos. Onde acreditamos ter palavras, traspassa- 
nos uma “virtual rajada de fogos”, uma prontidão, uma exal­
tação cintilante, reciprocidade por onde o que não é se elucida 
nessa passagem, reflete-se nessa pura agilidade de reflexos onde 
nada se reflete. Então, “tudo fica em suspenso, disposição frag­
mentária com alternância e face a face”. Então, ao mesmo tem­
po que brilha para extinguir-se o frêmito do irreal convertido 
em linguagem, afirma-se a presença insólita das coisas reais 
convertidas em pura ficção, em pura ausência, lugar de glória 
onde resplandecem “festas à vontade e solitárias”. Gostar-se-ia 
de dizer que o poema, como o pêndulo que marca o ritmo, pelo 
tempo, da abolição do tempo em Igitur, oscila maravilhosa­
mente entre a sua presença como linguagem e a ausência das 
coisas do mundo, mas essa mesma presença é, por seu turno, 
perpetuidade oscilante, oscilação entre a irrealidade sucessiva 
38
de termos que não terminam nada e a realização total desse mo­
vimento, a linguagem convertida no todo da linguagem, aí onde 
se concretiza, como todo, o poder de rejeitar e de retornar ao 
nada que se afirma em cada palavra e se aniquila em todas, 
“ritmo total”, “com o quê o silêncio”.
No poema, a linguagem nunca é real em nenhum dos mo­
mentos por onde passa, porquanto no poema a linguagem afir­
ma-se como todo e sua essência, não tendo realidade senão nes­
se todo. Mas, nesse todo em que ela é a sua própria essência, 
em que é essencial, é também soberanamente irreal, é a realiza­
ção total dessa irrealidade, ficção absoluta que diz o ser, quan­
do, tendo “usado”, “roído” todas as coisas existentes, suspen­
dido todos os seres possíveis, colide com esse resíduo ineliminá- 
vel, irredutível. O que resta? “Apenas essa palavra: é”. Palavra 
que sustenta todas as palavras, que as sustenta deixando-se dis­
simular por elas, que, dissimulada, é a presença delas, a reserva 
delas, mas que, quando cessam, se apresenta (“o instante em 
que brilham e morrem numa flor rápida sobre alguma transpa­
rência como de éter’’), “momento de raio”, “relâmpago fulgu­
rante”.
Esse momento de raio jorra da obra como o impetuoso jor­
ro da obra, sua presença total, sua “visão simultânea”. Esse mo­
mento é, ao mesmo tempo, aquele em que a obra, a fim de dar 
ser e existência a esse “engodo” de que “a literatura existe”, 
pronuncia a exclusão de tudo mas, por esse meio, exclui-se a si 
mesma, de sorte que esse momento em que “toda a realidade 
se dissolve” pela força do poema é também aquele em que o 
poema se dissolve e, instantaneamente feito, instantaneamente 
se desfaz. Isso, sem dúvida, já é ambíguo ao extremo. Mas a 
ambiguidade toca no mais essencial. Pois esse momento, que é 
como a obra da obra, que, à margem de toda a significação, de 
toda a afirmação estética e histórica, exprime que a obra é, esse 
momento só será tal se a obra, nele, enfrentar a experiência do 
que sempre arruina de antemão a obra e sempre restaura nela a 
superabundância vã de ociosidade.
A profundidade da ociosidade
Eis o momento mais escondido da experiência. Que a obra deva 
ser a claridade única do que se extingue e pela qual tudo se ex­
tingue, que ela se apresente tão-só onde o extremo da afirmação 
39
é verificado pelo extremo da negação, ainda compreendemos 
tais exigências, embora sejam contrárias à nossa necessidade de 
paz, de simplicidade, de sono; compreendemo-las intimamente, 
como a intimidade dessa decisão que somos nós próprios e que 
nos dá o ser, somente quando, correndo os nossos riscos e peri­
gos, rejeitamos, pelo fogo, pelo ferro, pela recusa silenciosa, sua 
permanência e favor. Sim, compreendemos que a obra, nesse 
aspecto, seja puro começo, o momento primeiro e último em 
que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz ex­
cluí-lo soberanamente, sem incluí-lo ainda, porém, na aparência 
dos seres. Mas essa exigência que faz da obra o que declara o 
ser no momento único da ruptura, “essa mesma palavra: é”, 
esse ponto que ela faz brilhar enquanto recebe o clarão relam- 
pejante que a consome, devemos também compreender e sentir 
que toma a obra impossível, porquanto é o que jamaispermite 
que aconteça à obra, o aquém onde, do ser, nada é feito, nada 
se realiza, a profundidade da ociosidade, da inação do ser.
Parece, pois, que o ponto onde a obra nos conduz não é 
somente aquele onde ela se realiza na apoteose de seu desapare­
cimento, onde ela diz o começo, dizendo o ser na liberdade que 
o exclui — mas é também o ponto onde ela jamais poderá con- 
duzir-nos, porque já é sempre aquele a partir do qual nunca 
existe obra.
Talvez estejamos tornando as coisas fáceis demais quando, 
ao reconstituir o movimento que é o de nossa vida ativa, ao con- 
tentarmo-nos em invertê-lo, acreditamos dominar assim o movi­
mento do que chamamos arte. É a mesma facilidade que nos 
faz encontrar a imagem ao falar do objeto, que nos faz dizer: 
em primeiro lugar, temos o objeto, depois vem a imagem, 
como se a imagem fosse apenas o distanciamento, a recusa, a 
transposição do objeto. Do mesmo modo, gostamos de dizer que 
a arte não reproduz as coisas do mundo, não imita o “real”, e 
que a arte se encontra onde, a partir do mundo comum, o artis­
ta afastou pouco a pouco o que é utilizável, imitável, o que in­
teressa à vida ativa. A arte parece então o silêncio do mundo, o 
silêncio ou a neutralização do que há de usual e de atual no 
mundo, tal como a imagem é a ausência do objeto.
Assim descrito, esse movimento concedernos as facilidades 
da análise comum. Essas facilidades permitem-nos crer que do­
minamos a arte, porque nos fornecem um meio de nos represen­
tarmos o ponto de partida do trabalho artístico. Representação 
que, aliás, não responde à psicologia da criação. Jamais um ar­
40
tista será capaz de elevar-se, através do uso que faz de um obje­
to no mundo, ao nível do quadro onde esse objeto tornou-se pin­
tura, jamais poderá bastar-lhe colocar esse uso entre parênte­
ses, neutralizar o objeto para entrar na liberdade do quadro. 
Pelo contrário, é porque, por uma inversão radical, ele já per­
tence à exigência da obra que, ao olhar tal objeto, ele não se 
contenta, em absoluto, em vê-lo tal como poderia ser se estives­
se fora de uso, mas faz do objeto o ponto por onde passa a exi­
gência da obra e, por conseguinte, o momento em que o possível 
atenua-se, as noções de valor, de utilidade, se apagam, e o mun­
do “dissolve-se”. É porque o artista pertence já a um outro tem­
po, o outro do tempo, e saiu do trabalho do tempo, para expor- 
se à experiência da solidão essencial, onde o fascínio ameaça, é 
porque se aproximou desse “ponto”, que, respondendo à exi­
gência da obra, nessa pertença original, ele parece olhar de ma­
neira diferente os objetos do mundo usual, neutralizar neles o 
uso, torná-los puros, elevá-los por uma estilização sucessiva ao 
equilíbrio instantâneo onde se convertem em quadro. Por ou­
tras palavras, nunca ocorre uma elevação do “mundo” para a 
arte, nem mesmo pelo movimento de recusa que descrevemos, 
mas vai-se sempre da arte para o que parece serem as aparên­
cias neutralizadas do mundo •— e que, na realidade, só se apre­
sentam como tais sob o olhar domesticado que é geralmente o 
nosso, esse olhar do espectador insuficiente, pregado ao mundo 
dos fins e capaz, no máximo, de ir do mundo ao quadro.
Quem não pertence à obra como origem, quem não perten­
ce a esse outro tempo em que a obra se preocupa com sua es­
sência, jamais fará obra. Mas quem pertence a esse outro tempo, 
pertence também à profundidade vazia da ociosidade onde do 
ser ele nunca logrou fazer nada.
Para exprimirmos ainda de outra maneira: quando uma 
fala conhecida demais parece reconhecer ao poeta o poder de 
“dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, isso quer di­
zer que o poeta é aquele que, por um dom ou por um savoir-faire 
criador, contentar-se-ia em fazer passar a linguagem “bruta ou 
imediata” para a linguagem essencial, elevaria a nuhdade silen­
ciosa da fala corrente para o silêncio consumado do poema onde, 
pela apoteose do desaparecimento, tudo está presente na ausên­
cia de tudo? Isso não poderia ser. Teria tanto sentido quanto 
imaginar que escrever consiste somente em utilizar as palavras 
usuais com mais mestria, uma memória mais rica ou um enten­
dimento mais harmonioso de seus recursos musicais. Escrever 
41
jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em tomá- 
la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abor­
dar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dis­
simulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala, 
linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, lingua­
gem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém 
fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso 
impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir.
Quando contemplamos as esculturas de Giacometti, há 
um determinado ponto onde elas deixam de estar submetidas 
às flutuações da aparência ou ao movimento da perspectiva. 
Vemo-las de um modo absoluto. Já não reduzidas mas subtraí­
das à redução, irredutíveis e, no espaço, senhoras do espaço pe­
lo poder que têm de substituí-lo pela profundidade não mane- 
jável, não viva, a do imaginário. Esse ponto, donde as vemos 
irredutíveis, coloca-nos no infinito, é o ponto onde o infinito 
coincide com lugar nenhum. Escrever é encontrar esse ponto. 
Ninguém escreve se não produzir a linguagem apropriada para 
manter ou suscitar o contato com esse ponto.
42
Ill
O ESPAÇO
E
A EXIGÊNCIA DA OBRA
A OBRA E A FALA ERRANTE
EM que consiste esse ponto?
Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos tra­
ços que a abordagem do espaço literário permitiu-nos reconhe­
cer. Aí, a linguagem não é um poder, não é o poder de dizer. 
Não está disponível, não é o poder de dizer. Não está disponí­
vel, de nada dispomos nela. Nunca é a linguagem que eu falo. 
Nela, jamais falo, jamais me dirijo a ti e jamais te interpelo. 
Todos esses traços são de forma negativa. Mas essa negação so­
mente mascara o fato mais essencial de que, nessa linguagem, 
tudo retoma à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que 
ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa, 
persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio 
fala-se nela. O próprio da fala habitual é que ouvi-la faz parte 
da sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a lingua­
gem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é 
aquele que ouve uma linguagem sem entendimento.
Isso fala, mas sem começo. Isso diz, mas isso não remete 
a algo a dizer, a algo de silencioso que o garantiría como seu 
sentido. Quando a neutralidade fala, somente aquele que lhe 
impõe silêncio prepara as condições do entendimento e, no en­
tanto, o que há para entender é essa fala neutra, o que sempre 
já foi dito, não pode deixar de se dizer e não pode ser ouvido, 
entendido.
Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de 
si mesma. Ela designa o de fora infinitamente distendido que 
substitui a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o 
eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmu-
45
rado mas confunde-se com a imensidade sussurrante, é o silên­
cio convertido no espaço repercutente, o lado de fora de toda a 
fala. Só que, aqui, o lado de fora está vazio, e o eco repete ante­
cipadamente, “profético na ausência de tempo”.
A necessidade de escrever
A necessidade de escrever está ligada à abordagem desse ponto 
onde nada pode ser feito das palavras, donde se projeta a ilusão 
de que, se for mantido o contato com esse momento, mas vol­
tando ao mundo da possibilidade, “tudo” poderá ser feito, 
“tudo” poderá ser dito. Essa necessidade deve ser reprimida e 
contida. Se não o for, torna-se tão ampla que não há mais lugar 
nem espaço para que se realize. Só se começa a escrever quan­
do, momentaneamente, por um ardil, por um salto feliz ou pela 
distração da vida, consegue-se driblar esse impulso que a con­
duta ulterior da obra deve despertar e apaziguar de modo inces­
sante, abrigar e afastar, dominar e sofrer sua força indomável, 
movimento tão difícil e tão perigoso quetodo escritor e todo 
artista se surpreende, de cada vez, por tê-lo realizado sem 
naufragar. E que muitos soçobram silenciosamente, ninguém 
que tenha encarado o risco de frente pode duvidar disso. Não 
são os recursos criativos que falam, se bem que, de todas as 
maneiras, sejam insuficientes, mas é o mundo que, sob esse 
impulso, se furta: o tempo perde então o seu poder de decisão; 
nada mais pode realmente começar.
A obra é o círculo puro onde, enquanto escreve, o autor 
expõe-se perigosamente à pressão que exige que ele escreva, 
mas também se protege dela. Daí resulta ■—■ pelo menos em par­
te — o júbilo prodigioso, imenso, que é o de uma libertação, 
como diz Goethe, de um confronto face a face com a onipotên­
cia solitária do fascínio, diante do qual se permanece de pé, 
sem o trair e sem fugir dele, mas tampouco sem renunciar ao 
seu domínio. Libertação que, é verdade, terá consistido em en- 
cerrar-se fora de si.
Na maioria das vezes, diz-se do artista que este encontra 
em seu trabalho um meio cômodo de viver subtraindo-se à se­
riedade da vida. Ele proteger-se-ia do mundo onde agir é difícil, 
estabelecendo-se num mundo irreal sobre o qual reina sobera­
namente. É esse, com efeito, um dos riscos da atividade artísti­
ca: exilar-se das dificuldades do tempo e do trabalho no tempo 
46
sem renunciar, porém, ao conforto do mundo nem às facilidades 
aparentes de um trabalho fora do tempo. O artista dá, com 
frequência, a impressão de um ser frágil que se enrosca as­
sustado na esfera fechada de sua obra, onde, falando com 
sobranceria e agindo sem entraves, pode vingar-se de seus 
fracassos na sociedade. Até mesmo Stendhal e Balzac fazem 
surgir essa dúvida, e com muito mais razões Kafka ou Hõl- 
derlin — e Homero é cego. Mas esse ponto de vista exprime 
apenas um aspecto da situação. O outro aspecto é que o 
artista que se oferece aos riscos da experiência que é a dele, 
não se sente livre do mundo, mas privado do mundo, não 
senhor de si mesmo mas ausente de si mesmo, e exposto a uma 
exigência que, ao repeli-lo para fora da vida e de toda a vida, 
torna-o vulnerável a esse momento em que nada pode fazer e 
já não é ele próprio. Ê então que Rimbaud foge para o deserto 
das responsabilidades da decisão poética. Enterra sua imagina­
ção e sua glória. Diz “adeus” ao “impossível” da mesma manei­
ra que Leonardo da Vinci e quase nos mesmos termos. Não re­
torna ao mundo, refugia-se nele e, pouco a pouco, seus dias 
condenados doravante à aridez do ouro estendem sobre sua ca­
beça a proteção do esquecimento. Se é verdade que, segundo 
testemunhos duvidosos, ele já não sofria nos últimos anos quan­
do se fazia alusão à sua obra ou se repetia, a seu propósito: 
“Absurdo, ridículo, repugnante”, a violência de sua retratação, 
a recusa em lembrar-se de si mesmo, mostra o terror que ainda 
sente e a força do abalo que não pôde suportar até o fim. De­
serção, abdicação que se lhe censura, mas a censura é muito 
fácil para quem não correu risco.
Na obra, o artista não se protege somente do mundo mas 
da exigência que o atrai para fora do mundo. A obra doma e 
submete momentaneamente esse “lado de fora”, restituindo-lhe 
uma intimidade, ela impõe silêncio, confere uma intimidade de 
silêncio a esse lado de fora sem intimidade e sem repouso que 
é a fala da experiência original. Mas o que ela encerra é tam­
bém o que abre sem cessar, e a obra em curso expõe-se ou a re­
nunciar à sua origem, esconjurando-a mediante prestígios fáceis, 
ou a reverter cada vez para mais perto dela, renunciando à sua 
plena realização final. O terceiro risco é que o autor queira 
conservar o contato com o mundo, consigo mesmo, com a fala 
em que ele pode dizer “Eu”: quer porque, se se perder, a 
obra também se perde, mas se permanece muito cautelosamen­
47
te ele mesmo, a obra é sua obra, exprime-o, seus dons, mas não 
a exigência extrema da obra, a arte como origem.
Todo escritor, todo artista conhece o momento em que 
é rejeitado e como que excluído pela obra em curso. Ela man- 
tém-no à margem, está fechado o círculo em que ele não tem 
mais acesso a si mesmo, onde ele, entretanto, está encerrado, 
porque a obra, inacabada, não o solta. As forças não lhe faltam, 
não se trata de um momento de esterilidade ou de fadiga, ou 
então a fadiga nada mais é do que a forma assumida por essa 
exclusão. Momento de surpreendente provação. O que o autor 
vê é uma imobilidade fria da qual não pode desviar-se mas jun­
to à qual não pode permanecer, que é como um enclave, uma 
reserva no interior do espaço, sem ar nem luz, onde uma parte 
de si mesmo e, ainda mais, a sua verdade, sua verdade solitária, 
sufocam numa separação incompreensível. E não pode deixar de 
errar em tomo dessa separação, quando muito pode comprimir- 
se fortemente contra a superfície para além da qual apenas dis­
tingue um tormento vazio, irreal e eterno, até o instante em 
que, por uma manobra inexplicável, uma distração, ou pelo ex­
cesso de sua expectativa, reencontra-se de súbito no interior do 
círculo, une-se-lhe e reconcilia-se com a sua lei secreta.
Uma obra está concluída, não quando o é, mas quando 
aquele que nela trabalha do lado de dentro pode igualmente 
terminá-la do lado de fora, já não é retido interiormente pela 
obra, aí é retido por uma parte de si mesmo da qual se sente 
livre e da qual a obra contribuiu para libertá-lo. Esse desfecho 
ideal nem sempre, entretanto, está plenamente justificado. Mui­
tas obras nos comovem porque ainda vemos nelas a marca do 
autor, que se afastou dela apressadamente demais, na impaci­
ência de terminá-la, no temor de, se não a concluísse, não poder 
voltar à luz do dia. Nessas obras, excessivamente grandes, maio­
res do que aquele que as assina, sempre se deixa entrever o 
momento supremo, o ponto quase central onde se sabe que se 
o autor aí se mantiver, morrerá debruçado sobre a tarefa. É a 
partir desse ponto mortal que se vê os grandes criadores viris 
afastarem-se, mas lentamente, quase discretamente, a voltarem 
num passo uniforme à superfície que o traçado regular e firme 
do sulco permite em seguida arredondar segundo as perfeições 
da esfera. Mas quantos outros, pela atração irresistível do cen­
tro, só podem desprender-se com uma violência sem harmonia, 
quantos deixam em sua esteira cicatrizes de feridas mal fecha­
48
das, os traços de suas sucessivas fugas, de seus regressos incon- 
solados, de seu vaivém aberrante. Os mais sinceros deixam ao 
abandono o que eles próprios abandonaram. Outros escondem 
as ruínas e essa dissimulação torna-se a única verdade de seus 
livros.
O ponto central da obra como origem, aquele que não se 
pode atingir, o único, porém, que vale a pena atingir.
Esse ponto é a exigência soberana, do qual não se pode 
aproximar a não ser pela realização da obra mas do qual, tam­
bém, é sua abordagem que faz a obra. Quem se preocupa tão- 
somente com brilhantes êxitos está, no entanto, em busca desse 
ponto onde nada pode ser coroado de êxito. E quem escreve 
com a preocupação exclusiva da verdade já ingressou na zona 
de atração desse ponto donde o verdadeiro é excluído. Certo, 
por não se sabe que sorte ou que falta de sorte, sofre-se-lhe a 
pressão sob uma forma quase pura: eles aproximaram-se como 
que por acaso desse instante e, onde quer que vão, o que 
quer que façam, ele os retém. Exigência imperiosa e vazia, a 
qual se exerce o tempo todo e os atrai para fora do tempo. Es­
crever, eles não o desejam, a glória é-lhes vã, a imortalidade das 
obras desagrada-lhes, as obrigações do dever são-lhes estranhas. 
Viver na paixão feliz dos seres, eis o que eles preferem — mas 
de suas preferências ele não se dá conta, e são postos à margem, 
impelidos para a solidão essencial de que só se desprendem es­
crevendo um pouco.
Conhece-se a história daquele pintor a quem o seu mece­
nas tinha que encerrar para impedir que ele dissipasse lá fora 
seus dons e, mesmo assim, lograva escapar por uma janela. Mas 
o artista possui também em seu íntimo o seu “mecenas”, que oencerra onde ele não pode permanecer, e desta vez sem qual­
quer saída, que além disso não o alimenta mas o esfomeia, es­
craviza-o sem honra, quebra-o sem razão, faz dele um ser débil 
e miserável sem outro sustento senão o seu próprio e incompre­
ensível tormento, e por quê? em vista de uma obra grandiosa? 
em vista de uma obra nula? ele próprio nada sabe e ninguém o 
sabe.
É verdade que muitos criadores parecem mais fracos do 
que os outros homens, menos capazes de viver e, por conseguin­
te, mais suscetíveis de se espantar com a vida. Talvez isso assim 
seja com frequência. Mas conviría acrescentar que eles são for­
tes no que têm de fraco, que para eles surge uma força nova 
49
nesse mesmo ponto em que se desfazem na extremidade de sua 
fraqueza. E cumpre dizer mais ainda: quando eles metem mãos 
à obra na despreocupação de seus dons, muitos são seres nor­
mais, amáveis, de bem com a vida, e é somente à obra, à exigên­
cia que está na obra, que eles devem esse acréscimo que só se 
mede pela maior fraqueza, uma anomalia, a perda do mundo e 
de si mesmos. Assim Goya, assim Nerval.
A obra exige do escritor que ele perca toda a “natureza”, 
todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros 
e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, converta-se no lu­
gar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal. Exigência 
que não é uma, porquanto nada exige, é desprovida de conteú­
do, não obriga, é tão-só o ar que se deve respirar, o vazio sobre 
o qual se paira, a usura do dia onde se tomam invisíveis os ros­
tos que se prefere. Como os homens mais corajosos só enfren­
tam o risco sob o manto de um subterfúgio, muitos pensam que 
responder a esse apelo é responder a um apelo de verdade: eles 
têm algo a dizer, um mundo dentro deles a libertar, um manda­
to a assumir, suas vidas injustificáveis a justificar. E é verdade 
que se o artista não se entregasse à experiência original que o 
coloca à margem, que esse distanciamento o despoja de si mes­
mo, se ele não se abandonasse ao descomedimento do erro e à 
migração do recomeço infinito, a palavra recomeço perder-se-ia. 
Mas essa justificação não se apresenta ao artista, não é dada na 
experiência, pelo contrário, é excluída desta — e o artista pode 
muito bem sabê-lo “em geral”, do mesmo modo que crê na arte 
em geral, mas sua obra não o sabe e sua busca ignora-o, e pros­
segue na preocupação dessa ignorância.
KAFKA E A EXIGÊNCIA DA OBRA
Alguém põe-se a escrever, determinado pelo desespero. Mas o 
desespero nada pode determinar, “ele sempre e de imediato su­
plantou o seu objetivo” (Kafka, Diário, 1910). E, do mesmo mo­
do, escrever só poderia ter sua origem no “verdadeiro” desespe­
50
ro, aquele que a nada convida e desvia de tudo e, em primeiro 
lugar, retira a quem escreve sua caneta. Isso significa que os 
dois movimentos nada têm de comum a não ser sua própria in- 
determinação, portanto, que só têm de comum o modo interro­
gativo, o único em que é possível apreendê-los. Ninguém pode 
dizer a si mesmo, “Eu estou desesperado”, mas “Tu estás deses­
perado?”, e ninguém pode afirmar, “Eu escrevo”, mas somente 
“Tu escreves? Sim? Escreverás?”
O caso de Kafka é confuso e complexo.1 A paixão de 
Hõlderlin é pura paixão, ela atrai-o para fora de si mesmo por 
uma exigência que não tem outro nome. A paixão de Kafka 
também é puramente literária mas nem sempre e nem o tempo 
todo. A preocupação de salvação é nele imensa, tanto mais 
forte porquanto é desesperada, tanto mais desesperada porque 
1 Quase todos os textos citados nas páginas que se seguem são extraí­
dos da edição completa do Diário de Kafka, a qual reproduz os 13 ca­
dernos in quarto em que, de 1910 a 1923, Kafka escreveu tudo o que 
lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre 
esses acontecimentos, descrição de pessoas e lugares, descrição de seus 
sonhos, relatos iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não 
é apenas um “Diário” como se entende hoje em dia, mas o próprio 
movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo 
e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra. É 
sob essa perspectiva que o Diário deve ser lido e interrogado.
Max Brod afirma que fez apenas algumas supressões insignifican­
tes; não há razões para duvidar disso. Em contrapartida, ele está con­
vencido de que Kafka, em vários momentos decisivos destruiu grande 
parte de suas notas. E, depois de 1923, o Diário falta por completo. 
Ignoramos se os manuscritos destruídos a seu pedido por Dora Dymant 
compreendiam a continuação de seus cadernos: é muito provável. Cum­
pre dizer, pois, que depois de 1923 Kafka toma-se-nos desconhecido, 
pois sabemos que aqueles que melhor o conheciam julgavam-no de um 
modo muito diferente do que ele se imaginava ser para si mesmo.
O Diário (que os cadernos de viagem completam) quase nada nos 
revela de suas opiniões sobre os grandes temas que poderiam interessar- 
lhe. O Diário fala-nos de Kafka nessa fase anterior em que ele ainda 
não tem opiniões e em que mal se vislumbra um Kafka. Tal é o seu 
valor essencial. O livro de G. Janouch (Conversations avec Kajka, 
trad, na França com o título Kafka m’a dif) permite-nos, pelo contrário, 
ouvir Kafka ao sabor de conversações mais cotidianas, em que fala 
tanto do futuro do mundo quanto do problema judaico, do sionismo, 
das formas religiosas e, por vezes, de seus livros. Janouch conheceu 
Kafka em 1920, em Praga. Começou quase de imediato tomando nota 
das conversas que descreve e Brod confirmou a fidelidade de tal eco. 
Mas, para não haver enganos sobre o alcance desses depoimentos, cum­
pre lembrar que eles foram feitos a um jovem de 17 anos, cuja juven­
51
é sem compromisso. Essa preocupação passa, sem dúvida, com 
uma surpreendente constância pela literatura e confunde-se com 
ela por largo tempo, depois passa de novo por ela mas já não 
se perde nela, tende a servir-se dela e, como a literatura jamais 
aceita converter-se num meio e Kafka sabe-o, daí resultam con­
flitos obscuros, mesmo para ele, ainda mais para nós, e uma 
evolução difícil de esclarecer mas que, no entanto, nos elucida.
O jovem Kafka
Kafka não foi sempre o mesmo. Até 1912, seu desejo de escre­
ver é enorme, dá lugar a obras que não o persuadem de seus 
dotes, e ainda menos o persuadem de que possua uma cons­
ciência direta deles: forças selvagens, de uma plenitude devas­
tadora, que ele quase não explora, por falta de tempo, mas 
também porque nada pode fazer delas, porque “teme esses 
momentos de exaltação, tanto quanto os deseja”. Sob muitos 
aspectos, Kafka assemelha-se então a todo jovem em que 
desperta o gosto de escrever, que reconhece estar aí a sua vo­
cação, que reconhece as exigências nela implícitas e não tem 
qualquer prova de que esteja à altura de satisfazê-las. O indí­
cio mais claro de que ele é, em certa medida, um jovem escri­
tor como os outros, é esse romance que começa a escrever 
em colaboração com Brod. Tal partilha de sua solidão mostra 
que Kafka ainda vagueia em tomo dela. Apercebe-se muito 
rapidamente disso, como indica esta nota do Diário: “Max e 
eu profundamente diferentes. Ora admiro seus escritos quando 
estão diante de mim como um todo inacessível ao meu alcance 
e a todo o alcance. . ora cada frase que ele escreve para 
Ricardo e Samuel me parece ligada, de minha parte, a uma 
concessão que me repugna e que experimento dolorosamente 
até ao fundo de meu ser. Pelo menos hoje” (novembro de 
1911).
52
tude, inocência e espontaneidade confiante comoveram Kafka mas 
também o levaram, sem dúvida, a suavizar seus pensamentos, a fim 
de não os tomar perigosos para uma alma tão jovem. Kafka, amigo 
escrupuloso, receou frequentemente perturbar seus amigos com a ex­
pressão de uma verdade que só era desesperadora para ele. Isso não 
significa que ele não diga o que pensa, mas que diz, por vezes, o que 
não pensa profundamente.
Até 1912, se não se consagra por inteiro à literatura, dá-se 
esta desculpa: “Nada posso arriscar enquanto não tiver reali­zado um trabalho maior, capaz de me satisfazer plenamente.” 
Essa prova é-lhe proporcionada na noite de 22 de setembro de 
1912, a noite em que ele escreve de uma penada A Sentença e 
que o avizinha de maneira decisiva daquele ponto em que 
lhe parece que “tudo pode exprimir-se, que para tudo, para 
as idéias mais estranhas, está pronto um grande fogo no qual 
elas perecem e desaparecem”. Pouco depois, lê esse conto aos 
seus amigos, leitura que o confirma: “Tinha lágrimas nos olhos. 
O caráter indubitável da história confirmava-se.” (Essa necessi­
dade de ler aos amigos, frequentemente às irmãs dele, até ao 
pai, o que acabara de escrever, pertence também à região mé­
dia. Nunca a renunciará por completo. Não é vaidade literá­
ria — embora ele próprio a denuncie — mas uma necessidade 
de embate físico com sua obra, de se deixar empolgar, impelir 
por ela, fazendo-a revelar-se no espaço vocal que seus grandes 
dotes de leitor lhe conferem o poder de suscitar.)
Kafka sabe agora que pode escrever. Mas esse saber não é 
simples, esse poder não é o dele. Com raras exceções, nunca 
encontra no que escreve a prova de que escreve verdadeira­
mente. É quando muito um prelúdio, um trabalho de aproxi­
mação, de reconhecimento. Sobre A Metamorfose, diz ele: 
“Acho-o ruim; talvez eu esteja definitivamente perdido”, ou, 
mais tarde: “Grande aversão por A Metamorfose. Final ilegí­
vel. Quase radicalmente imperfeito. Teria sido muito melhor, 
se eu não tivesse sido perturbado pela viagem de negócios” 
(19 de janeiro de 1914).
O conflito
Esta última passagem alude ao conflito com que Kafka se choca 
e se divide. Ele tem uma profissão, uma família. Pertence ao 
mundo e deve pertencer-lhe. O mundo dá o tempo mas faz dele 
__ «dIa n+a 1O1^ __ aôfn ♦•annocn/ínV ’•jU’-'l, lymUU A11V11K-/0 atv 1^/1^-- VOLU 1VJJUCOUUV
de comentários desesperados, onde se repetem os pensamentos 
suicidas, porque lhe falta o tempo: o tempo, as forças físicas, 
a solidão, o silêncio. Sem dúvida, as circunstâncias exteriores 
não lhe são favoráveis, deve trabalhar pela tarde ou à noite, 
o sono perturba-o, a inquietação esgota-o, mas seria ocioso acre­
ditar que o conflito teria podido desaparecer mediante “uma 
53
melhor organização das coisas”. Mais tarde, quando a doença 
lhe propicia o ócio, o conflito subsiste, agrava-se, muda de for­
ma. Não há circunstâncias favoráveis. Mesmo que dê “todo o 
seu tempo” à exigência da obra, “todo” ainda não é bastante, 
pois não se trata de consagrar o tempo ao trabalho, de passar 
o tempo escrevendo, mas de passar para um outro tempo onde 
não existe mais trabalho, de se aproximar desse ponto em que 
o tempo está perdido, onde se ingressa no fascínio e na solidão 
da ausência de tempo. Quando se tem o tempo todo, não se tem 
mais tempo, e as circunstâncias exteriores “amistosas” conver­
teram-se — inamistosas — na inexistência de circunstâncias.
Kafka não pode ou não aceita escrever “em pequenas 
quantidades” no inacabamento de momentos separados. É o 
que lhe foi revelado na noite de 22 de setembro quando, tendo 
escrito de uma assentada, recuperou em sua plenitude o movi­
mento ilimitado que o leva a escrever: “Só assim é possível 
escrever, com uma tal continuidade, uma abertura tão comple­
ta do corpo e da alma.” E mais tarde (8 de dezembro de 1914): 
“Vejo de novo que tudo o que é escrito por fragmentos, e não 
de enfiada no decorrer da maior parte da noite, ou da noite 
inteira, tem menos valor, e que estou condenado pelo meu 
gênero de vida a esse menor valor.” Aí temos uma primeira 
explicação para tantos relatos abandonados sobre os quais o 
Diário, em seu estado atual, nos revela destroços impressio­
nantes. Com muita frequência, “a história” não vai além de 
algumas linhas, ora atinge rapidamente coerência e densidade e, 
no entanto, ao fim de uma página, detém-se, ora desenvolve-se 
ao longo de várias páginas, afirma-se, estende-se — e, no en­
tanto, pára. Há para isso muitas razões mas, em primeiro lu­
gar, Kafka não encontra no tempo de que dispõe a extensão 
que permitiría à história desenvolver-se, segundo ela quer, em 
todas as direções: a história nunca é mais do que um fragmen­
to, depois outro fragmento. “Como, a partir de pedaços, posso 
fundir uma história capaz de ganhar impulso e desenvolver-se?” 
De modo que, não tendo sido dominada, não tendo suscitado o 
espaço adequado onde a necessidade de escrever é simultanea­
mente reprimida e exprimida, a história desencadeia-se, extravia- 
se, junta-se à noite donde saiu e aí retém dolorosamente aquele 
que não soube dar-lhe a luz do dia.
Kafka precisava de mais tempo mas necessitava também 
de menos mundo. O mundo é, em primeiro lugar, sua famí­
lia, cujas coerções ele dificilmente suporta, sem que consiga 
jamais libertar-se delas, é, em seguida, sua noiva, seu desejo 
essencial de cumprir a lei que manda o homem realizar o seu 
destino no mundo, tenha uma família, filhos, pertença à comu­
nidade. Aí, o conflito assume uma aparência nova, entra numa 
contradição que a situação religiosa de Kafka torna especial­
mente forte. Quando, em torno de seu noivado anunciado, des­
feito, renovado com F.B., ele examina infatigavelmente, com 
uma tensão cada vez maior, “tudo o que é pró ou contra o 
meu casamento”, esbarra sempre com esta exigência: “A minha 
única aspiração e a minha única vocação.. . é a literatura. • . 
Tudo o que eu fiz nada mais é do que um resultado da soli­
dão. .. ao passo que nunca mais estaria então só. Isso não, 
isso não.” Durante seu noivado em Berlim: “Estava manietado 
como um criminoso; se me tivessem jogado para um canto com 
grilhões de verdade, os gendarmes à minha frente. . . isso não 
teria sido pior. E era o meu noivado, e todos se esforçavam 
por me conduzir à vida e, não o conseguindo, por me suportar 
como eu era.” Pouco depois desfaz-se o noivado, mas a aspira­
ção subsiste, o desejo de uma vida “normal”, em que o tormen­
to por ter ferido alguém que lhe é próximo se impregna de uma 
força dilacerante. Comparou-se, e o próprio Kafka o fez, a sua 
história com a do noivado de Kierkegaard. Mas o conflito é 
diferente. Kierkegaard pôde renunciar a Regine, pôde renunciar 
ao estágio ético: o acesso ao estágio religioso não foi compro­
metido, pelo contrário, foi facilitado. Mas Kafka, se abandona 
a felicidade terrena de uma vida normal, abandona também a 
firmeza de uma vida justa, coloca-se fora da lei, priva-se do 
solo e da base sólida de que necessita para ser e, numa certa 
medida, priva-se da lei. é o eterno dilema de Abraão. O que é 
exigido a Abraão não é somente que sacrifique seu filho mas o 
próprio Deus: o filho é o futuro de Deus na terra, porquanto 
é o tempo que, na verdade, é a Terra Prometida, a verdadeira, 
a única morada do povo eleito e de Deus em seu povo. Ora, 
Abraão, ao sacrificar seu filho único, deve sacrificar o tempo, e 
o tempo sacrificado não lhe será dado, por certo, na eternidade 
do além: no além nada mais existe senão o futuro, o futuro de 
Deus no tempo. O além é Isaac.
A prova, para Kafka, é mais pesada do que tudo o que lhe 
toma leve (o que seria a prova de Abraão se, não tendo filho, 
lhe fosse exigido, porém, o sacrifício desse filho? Não poderia 
ser levado a sério, só se poderia rir disso, riso que é a forma 
da dor de Kafka). Assim, o problema é tal que se esquiva àque-
55
le que, em sua indecisão, procura sustentá-lo. Outros escritores 
conheceram conflitos semelhantes: Hõlderlin luta contra a mãe 
que queria vê-lo tornar-se pastor, não pode ligar-se a uma tare­
fa determinada, não pode ligar-se àquela que o ama e ama 
precisamente aquela a quem não pode ligar-se, conflitos que 
sente em toda a sua força e que, em parte, o dilaceram mas 
jamais inculpam a exigência absoluta da fala poética, fora da 
qual, pelo menos a partir de 1800, ele já não possui existência. 
Para Kafka, tudo é mais confuso, porque ele procura confun­
dir a exigência da obra e a exigência que poderia trazer o nome 
de sua salvação. Se escrever o condena à solidão, fazde sua 
existência a existência de um celibatário, sem amor e sem vín­
culos, se, entretanto, escrever parece-lhe ser — pelo menos 
com freqüência e durante largo tempo — a única atividade que 
poderia justificá-lo, é porque, de todos os modos, a solidão amea­
ça nele e fora dele, é porque a comunidade não passa de um 
fantasma e a lei que ainda fala nela nem mesmo é a lei esque­
cida mas a dissimulação do esquecimento da lei. Escrever con­
verte-se, então, no seio do desamparo e da fraqueza de que esse 
movimento é inseparável, numa possibilidade de plenitude, 
num caminho sem objetivo capaz de corresponder, talvez, a esse 
objetivo sem caminho que é o único que cumpre atingir. 
Quando não escreve, Kafka está não somente só, “só como 
Franz Kafka”, dirá ele a G. Janouch, mas numa solidão estéril, 
fria, de uma frialdade petrificante a que chama hebetude e 
que parece ter sido a grande ameaça por ele temida. O pró­
prio Brod, tão cioso de fazer de Kafka um homem sem anoma­
lias, reconhece que ele está, por vezes, como que ausente e 
como que morto. Muito semelhante, uma vez mais, a Hõlder­
lin, ao ponto de ambos, para se queixarem de si mesmos, em­
pregarem as mesmas palavras; Jdõlderlin: “Estou entorpecido, 
sou de pedra”, e Kafka: “Minha incapacidade para pensar, 
observar, constatar, para me recordar, para falar e participar 
da vida dos outros, toma-se cada vez maior; viro pedra... 
Se não me salvo pelo trabalho, estou perdido” (28 de julho 
de 1914).
A salvação pela literatura
“Se não me salvo pelo trabalho. . .” Mas por que esse trabalho 
poderia salvá-lo? Parece que Kafka teria precisamente reconhe-
56
cido nesse terrível estado de autodissolução, onde está perdido 
para os outros e para si mesmo, o centro de gravidade da exi- 
i gência de escrever. Onde ele se sente destruído até ao fundo
nasce a profundidade que substitui a destruição pela possibili­
dade da criação suprema. Maravilhosa reviravolta, esperança 
sempre igual ao maior desespero, e como se compreende que, 
dessa experiência, ele extrai um movimento de confiança que 
não questionará de bom grado. O trabalho toma-se então, so­
bretudo em seus anos de juventude, como que um meio de 
salvação psicológica (ainda não espiritual), o esforço de uma 
criação que “possa estar vinculada, palavra por palavra, à sua 
vida, que ele atrai a si para que ela o retire de si mesmo”, o 
, que ele exprime do modo mais cândido e mais forte nestes ter- 
| [ mos: “Tenho hoje um grande desejo de pôr para fora de mim,
I escrevendo, todo o meu estado ansioso e, tal como chega das
i profundezas do meu íntimo, introduzi-lo na profundidade do
I papel, de tal sorte que possa introduzir inteiramente em mim 
a coisa escrita” (8 de dezembro de 1911).2 Por mais sombria 
que possa vir a ser, essa esperança jamais será totalmente des­
mentida, e encontraremos sempre no seu Diário, em todas as 
épocas, apontamentos deste gênero: “A firmeza que me pro­
porciona a menor coisa escrita é indubitável e maravilhosa. O 
olhar com que ontem, durante o passeio, abraçava tudo num só 
golpe de vista!” (27 de novembro de 1913). Escrever não é 
nesse momento, um apelo, a expectativa de uma graça ou um 
obscuro cumprimento profético, mas algo mais simples e pre­
mente, de um modo mais imediato: a esperança de não su­
cumbir ou, mais exatamente, de soçobrar mais depressa do que 
ele próprio e, assim, recuperar-se no último momento. Dever 
mais premente, portanto, do que todos os outros, e que o leva 
a escrever em 31 de julho de 1914 estas palavras extraordiná­
rias: “Não tenho tempo. É a mobilização geral. K. e P. são 
convocados. Agora recebo o salário da solidão. É, apesar de 
tudo, um salário minguado. A solidão só traz punições. Não 
importa, sou pouco afetado por toda essa miséria e mais deci­
dido do que nunca... Escreverei a despeito de tudo, a todo o 
custo: é o meu combate pela sobrevivência.”
Kafka acrescenta: “Não é um desejo artístico.”2
57
Mudança de perspectiva
Entretanto, é o abalo da guerra, mas ainda mais a crise aberta 
por seu noivado, o movimento e o aprofundamento do ato de 
escrever, as dificuldades com que se defronta, é a sua situação 
infeliz em geral, que vão pouco a pouco elucidar de maneira 
diferente a existência do escritor que existe nele. Essa mu­
dança é afirmada, não culmina numa decisão, é apenas uma 
perspectiva pouco nítida, mas existem, no entanto, certos indí­
cios: em 1914, por exemplo, ele ainda está apaixonadamente, 
desesperadamente voltado para esse único objetivo, encontrar 
alguns instantes para escrever, conseguir quinze dias de li­
cença que serão empregados apenas em escrever, subordinar 
tudo a essa única, a essa suprema exigência; escrever. Mas em 
1916, se volta a pedir uma licença, é para alistar-se. “O dever 
imediato e sem condições: tomar-me soldado”, projeto que não 
terá seguimento mas não importa, o desejo que estava no seu 
centro mostra como Kafka já estava longe do “Escreverei a 
despeito de tudo” do dia 31 de julho de 1914. Mais tarde, 
pensará seriamente em juntar-se aos pioneiros do sionismo e 
ir para a Palestina. Di-lo a Janouch: “Sonhava em partir para 
a Palestina como operário ou trabalhador agrícola.”
“Você abandonaria tudo aqui?”
“Tudo, para encontrar uma vida repleta de sentido, na 
segurança e na beleza.”
Mas Kafka, estando já doente, o sonho não passa de um 
sonho, e nunca saberemos se ele teria podido, como um outro 
Rimbaud, renunciar à sua única vocação pelo amor de um de­
serto onde teria encontrado a segurança de uma vida justificada 
— nem se a teria aí encontrado. De todas as tentativas a que 
se dedica a fim de orientar sua vida de um modo diferente, ele 
mesmo dirá que são apenas tentativas frustradas, outros tantos 
raios que eriçam de pontas o centro desse círculo inacabado 
que é sua vida. Em 1922, ele enumera todos os seus projetos 
onde só vê outros tantos fracassos: piano, violino, línguas, estu­
dos germânicos, anti-sionismo, sionismo, estudos hebraicos, jar­
dinagem, marcenaria, literatura, tentativas de casamento, resi­
dência independente, e acrescenta; “Quando me aconteceu 
impelir o meu raio de ação um pouco mais longe do que o 
habitual, estudos de direito ou noivado, tudo era pior quando 
mais representava meu esforço para ir mais longe” (13 de ja­
neiro de 1922).
58
Seria despropositado extrair de notas passageiras as afir­
mações absolutas que elas contêm, e ainda que ele mesmo o 
esqueça aqui, não se pode esquecer que Kafka nunca deixou 
de escrever, que escreverá até o fim. Mas entre o jovem que 
dizia àquele a quem considerava como seu futuro, “Eu nada 
_mais__sou_^enão literatura, e não posso nem quero .ser..outra 
coisa”, e o homem maduro que, dez anos depois, colocava a 
literatura no mesmo plano de seus pequenos ensaios de jardi­
nagem, a diferença é grande, mesmo que exteríormente a força 
de escritor permaneça a mesma, parecendo até mais rigorosa e 
mais precisa perto do fim, aquela a que devemos O Castelo.
Donde provém essa diferença? Dizê-lo seria assenhorear- 
mo-nos da vida interior de um homem infinitamente reservado, 
secreto até para seus amigos e, aliás, pouco acessível a ele mes­
mo. Ninguém pode pretender reduzir a um certo número de 
afirmações precisas o que não podia atingir, para ele, a trans­
parência de uma fala compreensível. Seria necessário, além 
disso, uma comunidade de intenções que é impossível. Pelo 
menos, não se cometerão, sem dúvida, erros exteriores ao dizer 
que, embora a confiança dele nos poderes da arte tenha, com 
freqüência, continuado grande, sua confiança nos próprios po­
deres, postos sempre e cada vez mais à prova, esclarece-o sobre 
essa prova, sobre a sua exigência, esclarece-o, sobretudo, sobre 
o que ele próprio exige da arte: não mais dar à sua pessoa rea­
lidade e coerência, isto é, salvá-lo da loucura, mas salvá-lo da 
perdição, e quando Kafka pressentir que, banido deste mundo 
real, ele talvez já seja cidadão de um outro mundo onde tem 
que lutar não somente por si mesmo mas também por esse outromundo, então escrever apresentar-se-lhe-á apenas como um meio 
de luta, ora decepcionante, ora maravilhoso, que ele pode per­
der sem tudo perder.
Comparem-se estas duas notas. A primeira é de janeiro de 
1912: “É preciso reconhecer em mim uma concentração muito 
boa na atividade literária. Quando o meu organismo se deu 
conta de que escrever era a direção mais fecunda do meu ser, 
tudo para aí se dirigiu e foram abandonadas todas as outras 
capacidades, aquelas que têm por objetivo os prazeres do sexo, 
da bebida, da comida, da meditação filosófica e, sobretudo, da 
música. Emagrecí em todas as direções. Era necessário, porque 
as minhas forças, mesmo reunidas, eram tão escassas que só 
podiam alcançar pela metade o objetivo de escrever... A 
compensação de tudo isso é clara. Bastar-me-á rejeitar o tra­
59
balho de escritório — estando concluído o meu desenvolvimen­
to e não tendo eu próprio mais nada a sacrificar, até onde me 
é possível enxergar — para começar a minha vida real, na qual 
o meu rosto poderá, enfim, envelhecer de maneira natural, se­
gundo os progressos do meu trabalho.” A leveza da ironia não 
deve, sem dúvida, enganar-nos, mas essa leveza, essa despreo­
cupação, no entanto sensíveis, esclarecem por contraste a tensão 
desta outra nota, cujo sentido é aparentemente o mesmo (datada 
de 6 de agosto de 1914): “Do ponto de vista da literatura, o 
meu destino é muito simples. O sentido que me leva a repre­
sentar os devaneios da minha vida interior repeliu tudo o mais 
para a esfera do acessório, e tudo isso definhou terrivelmente, 
não pára de definhar. Nenhuma outra coisa poderá jamais sa­
tisfazer-me. Mas, agora, a minha força de representação escapa 
a todos os cálculos; talvez tenha desaparecido para sempre; 
talvez ainda retorne um dia; as circunstâncias de minha vida 
não lhe são naturalmente favoráveis. Assim é que vacilo, que 
arremeto incessantemente para o cume da montanha, onde mal 
posso manter-me um instante sequer. Outros também vacilam 
mas em regiões mais baixas, com forças bem maiores; se amea­
çam despencar, há sempre um familiar, o pai, a mãe, que os 
amparam e que, com esse intuito, caminham junto deles. Mas, 
eu, é lá no alto que vacilo; infelizmente não é a morte mas 
os tormentos eternos do Morrer.”
Cruzam-se aqui três movimentos. Uma afirmação: “Ne­
nhuma outra coisa (senão a literatura) poderá jamais satisfa­
zer-me.” Uma dúvida sobre si, ligada à essência inexoravelmente 
incerta de seus dons, a qual “frustra todos os cálculos”. O senti­
mento de que essa incerteza — o fato de que escrever nunca 
é um poder de que se disponha — pertence ao que existe de 
mais extremo na obra, exigência central, mortal, que “infeliz­
mente não é a morte”, que é a morte mas mantida a distância, 
os “tormentos eternos do Morrer”.
Pode-se dizer que esses três movimentos constituem, por 
suas vicissitudes, a provação que esgota em Kafka a fidelidade 
à sua vocapão única”, a nual, coincidente com as preocupações 
religiosas, leva-o a ler nessa exigência única uma coisa diferente 
do que ela é, uma outra exigência que tende a subordiná-la ou, 
pelo menos, a transformá-la. Quanto mais Kafka escreve, menos 
seguro ele está de escrever. Por vezes, tenta readquirir segu­
rança pensando que, “uma vez recebido o conhecimento da arte 
de escrever, isso não poderá mais faltar nem soçobrar, mas 
60
também, embora raramente, surge alguma coisa que excede a 
medida”. Consolação sem força: quanto mais ele escreve, mais 
se aproxima desse ponto extremo para o qual a obra tende como 
para a sua origem, mas que aquele que a apresenta só pode 
ver como a profundidade vazia do indefinido. “Não posso mais 
continuar a escrever. Estou no limite definitivo, diante do qual 
talvez deva permanecer de novo durante anos, antes de poder 
recomeçar uma nova história que, uma vez mais, ficará inaca­
bada. Esse destino me persegue” (30 de novembro de 1914).
Parece que em 1915-1916, por fútil que seja querer datar 
um movimento que escapa ao tempo, cumpre-se a mudança de 
perspectiva. Kafka reatou com sua antiga noiva. Essas relações, 
que culminaram em 1917 em noivado, de novo, e logo em se­
guida terminaram com a doença que então se declara, lançam- 
no em tormentos que não pode superar. Descobre sempre, cada 
vez com maior acuidade, que não sabe viver sozinho e que não 
pode viver com outros. O que há de culpável na sua situação, 
em sua existência entregue ao que ele chama os vícios buro­
cráticos, mesquinhez, indecisão, espírito calculista, domina-o 
e obceca-o. É preciso escapar, custe o que custe, a essa buro­
cracia, e para isso já não pode contar com a literatura, pois esse 
trabalho esquiva-se-lhe, pois esse trabalho tem sua participação 
na impostura da irresponsabilidade, pois o trabalho exige a so­
lidão mas é também aniquilado por ela. Daí resulta a decisão: 
“Fazer-se soldado”. Ao mesmo tempo aparecem no Diário 
alusões ao Antigo Testamento, fazem-se ouvir os gritos de um 
homem perdido: “Toma-me em teus braços, é o abismo, acolhe- 
me no abismo; se recusas agora, então mais tarde.” “Toma-me, 
toma-me, a mim, que nada mais sou do que um entrelaçamento 
de loucura e dor.” “Tende piedade de mim, sou um pecador 
em todos os recessos do meu ser. . . Não me rejeites entre os 
perdidos.”
Traduziram-se outrora em edições francesas alguns desses 
textos acrescentando-lhes a palavra Deus. Ela não figura aí. A 
palavra Deus quase nunca aparece no Diário e nunca de um 
modo significativo. Isso não significa que essas invocações, em 
sua incerteza, não tenham uma direção religiosa, mas que cum­
pre conservar a força dessa incerteza e não privar Kafka do 
espírito de reserva de que ele sempre deu prova a respeito do 
que lhe era mais importante. Essas palavras de desamparo, de 
impotência, são de julho de 1916 e correspondem a uma estada 
em Marienbad com F. B. Estada no início pouco feliz mas que, 
61
finalmente, os aproximará intimamente. Um ano mais tarde, 
está noivo de novo; um mês depois, cospe sangue; em setem­
bro, deixa Praga, mas a doença ainda é moderada e só se tor­
nará ameaçadora (parece) a partir de 1922. Ainda em 1917 
escreve os “Aforismos”, único texto em que a afirmação espiri­
tual (sob uma forma geral que não o preocupa em particular) 
escapa, por vezes, à experiência de uma transcendência negativa.
Nos anos que se seguem, o Diário é praticamente omisso. 
Nem uma palavra em 1918. Algumas linhas em 1919, quando 
fica noivo de uma jovem a cujo respeito quase nada sabemos. 
Em 1920 conhece Milena Jesenska, uma jovem tcheca sensível, 
inteligente, capaz de uma grande liberdade de espírito e de 
paixão, com quem durante dois anos se liga por um sentimento 
violento, no início repleto de esperança e felicidade, mais tarde 
condenado à frustração e ao desespero. O Diário toma-se de 
novo mais importante em 1921 e, sobretudo, em 1922, onde as 
vicissitudes dessa amizade, enquanto a enfermidade se agrava, 
levam-no a um ponto de tensão em que seu espírito parece 
oscilar entre a loucura e a decisão de salvação. Cumpre, neste 
ponto, fazer duas longas citações. O primeiro texto é datado 
de 28 de janeiro de 1922:
“Um pouco inconsciente, cansado de patinar. Ainda exis­
tem armas, tão raramente empregadas, e abro caminho com 
tanta dificuldade até elas, porque não conheço a alegria de me 
servir delas, porque, criança, não aprendi. Não o aprendi, não 
somente ‘pela culpa do pai’ mas também porque quis destruir 
‘o repouso’, perturbar o equilíbrio e, por conseguinte, não tinha 
o direito de deixar renascer alguém que, por outro lado, me 
esforçava por enterrar. É verdade, reverto aí à ‘culpa’, já que 
por que razão queria sair do mundo? Porque ‘ele’ não me 
deixava viver no mundo, em seu mundo. Naturalmente, hoje, 
não posso já julgá-lo tão claramente, pois agora já sou cidadão 
nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma 
relação do deserto com as terras cultivadas (durante quarenta 
anos vaguei fora de Canaã), e é como um estrangeiro que 
olho para trás; sem dúvida,nesse outro mundo, não sou eu 
também o menor e o mais ansioso (levei isso comigo, 
é a herança paterna), e se aí sou capaz de viver é apenas em 
virtude da organização apropriada aí existente e segundo a qual, 
até para os mais íntimos de todos, existem elevações fulminantes, 
também esmagamentos, naturalmente, que duram milhares de 
anos e como que sob o peso do mar todo. Apesar de tudo, não 
62
deverei ser grato? Não me teria sido imprescindível encontrar 
o caminho para chegar até aqui? Não teria podido acontecer- 
me que o ‘banimento’ no outro mundo, somado à exclusão 
deste, me esmagasse contra a fronteira entre os dois? E não 
é graças à força do meu pai que a expulsão foi suficiente­
mente forte para que nada lhe pudesse resistir (a ela, não 
a mim)? É verdade, é como a viagem no deserto às avessas, 
com as proximidades contínuas do deserto e as esperanças in­
fantis (em especial no que se refere às mulheres): ‘Será que eu 
não estaria ainda em Canaã?’, e, no entanto, já estou há muito 
tempo no deserto e tudo são apenas visões de desespero, sobre­
tudo nestes tempos em que, também ali, sou o mais miserável 
de todos e onde é preciso que Canaã se ofereça como a única 
Terra Prometida, porquanto não existe uma terceira terra para 
os homens.”
O segundo texto é datado do dia seguinte:
“Ataques no caminho, à tarde, na neve. Sempre a mistura 
de representações, mais ou menos assim: neste mundo a situa­
ção seria assustadora — aqui, só em Spindlemühle, ademais 
num caminho abandonado onde a todo o instante se dão passos 
em falso na escuridão, na neve; além disso, um caminho priva­
do de sentido, sem objetivo terrestre (leva à ponte? por que lá 
embaixo? aliás, nem sequer o alcancei); ademais, neste lugar, 
eu também abandonado (não posso considerar o médico uma 
ajuda pessoal, não a obtive por meus méritos, no fundo só 
tenho com ele relações de honorários), incapaz de ser conheci­
do de alguém, incapaz de suportar um conhecimento, no fundo 
cheio de um infinito espanto diante de uma sociedade alegre ou 
diante de pais com seus filhos (no hotel, naturalmente, não há 
muita alegria, não chegarei ao ponto de dizer que a causa sou 
eu, na minha qualidade de ‘homem de sombra imensa’, mas, 
efetivamente, a minha sombra é grande demais, e com um re­
novado espanto constato a força de resistência, a obstinação de 
certos seres em quererem viver ‘apesar de tudo* nessa sombra, 
justamente nela; mas aqui junta-se ainda outra coisa de que 
falta falar); além disso, abandonado não só aqui mas em geral, 
até em Praga, a minha ‘terra natal’, e não abandonado dos ho­
mens, isso não seria o pior, enquanto viver poderia ir no encalço 
deles, mas abandonado de mim em relação aos seres, de minha 
força em relação aos seres; estou grato àqueles que amam, mas 
não posso amar, estou longe demais, estou excluído; sem dúvida, 
que sou, contudo, um ser humano e as raízes querem alimento, 
63
tenho lá ‘embaixo’ (ou em cima) os meus representantes, come­
diantes lamentáveis e insuficientes, que me bastam (é verdade, 
não me bastam de maneira nenhuma e é por isso que estou 
tão abandonado), que me bastam pela única razão de que o meu 
alimento principal provém de outras raízes num outro ar, raízes 
essas que também são lamentáveis mas, entretanto, mais ca­
pazes de vida. Isso me conduz à mistura das representações. Se 
tudo fosse assim como se apresenta no caminho na neve, seria 
assustador, eu estaria perdido, não entendido como uma amea­
ça mas como uma execução imediata. Mas estou em outra parte. 
Acontece que a força de atração do mundo dos homens é mons­
truosa, num instante pode fazer esquecer tudo. Mas grande é 
também a força de atração do meu mundo, os que me amam 
me amam, porque estou ‘abandonado’ e não, talvez, como o 
vácuo de Weiss, mas porque sentem que, em tempos felizes, 
num outro plano, tenho a liberdade de movimento que me falta 
completamente aqui.”
A experiência positiva
Comentar essas páginas parece-me supérfluo. Cumpre assinalar, 
entretanto, como, nessa data, a privação do mundo se inverte 
numa experiência positiva,3 a de um outro mundo, do qual ele 
já é cidadão, onde é apenas, por certo, o menor e o 
mais ansioso, mas onde conhece também elevações fulminantes, 
onde dispõe de uma liberdade cujo valor os homens pressentem 
e a cujo prestígio se submetem. Contudo, para não alterar o 
sentido de tais imagens, é necessário lê-las, não segundo a pers­
pectiva cristã comum (de acordo com a qual existe este mundo 
aqui e o mundo de além, o único que teria valor, realidade e 
glória), mas sempre na perspectiva de “Abraão”, visto que, de 
todas as maneiras, para Kafka, ser excluído do mundo quer 
dizer excluído de Canaã, errar no deserto, e é essa situação que 
torna sua luta patética e desesperada, como se, jogado para 
fora do mundo, no erro da migração infinita, tivesse que lutar 
incessantemente para fazer desse lá fora um outro mundo e 
3 Certas cartas a Milena aludem também ao que há para ele mesmo 
de desconhecido nesse movimento terrível (ver os estudos publicados 
na Nouvelle N.R.F.: Kajka et Brod e L’échec de Milena, outubro e 
novembro de 1954).
64
desse erro o princípio, a origem de uma liberdade nova. Luta 
sem saída e sem certeza, onde o que tem de conquistar é a 
sua própria perda, a verdade do exílio e o retorno ao próprio 
seio da dispersão. Luta que se aproximará das profundas espe­
culações judaicas, quando, sobretudo em resultado da expulsão 
da Espanha, os espíritos religiosos tentam superar o exflio le­
vando-o ao seu termo extremo.4 Kafka fez claramente alusão a 
“toda essa literatura” (a dele) como a “uma nova Cabala”, uma 
“nova doutrina secreta” que “teria podido desenvolver-se” se 
“o sionismo não tivesse, nesse meio tempo, ocorrido” (16 de 
janeiro de 1922). E compreende-se melhor por que ele é, si­
multaneamente, sionista e anti-sionista. O sionismo é a cura do 
exílio, a afirmação de que é possível permanecer na terra, de 
que o povo judeu não tem apenas por morada um livro, a Bí­
blia, mas a terra e não mais a dispersão no tempo. Kafka quer 
profundamente essa reconciliação, ele a quer mesmo que seja
4 A este respeito, remetemos o leitor para o livro de G. G. Scholem, 
Les Grands Courants de la Mystique Juive: “Os horrores do Exílio in­
fluenciaram a doutrina cabalística da metempsicose, a qual adquire então 
uma popularidade imensa ao insistir sobre as diversas etapas do exflio 
da alma. O mais terrível destino que pode recair sobre a alma, muito 
mais terrível do que os tormentos do inferno, é ser ‘rejeitada’ ou 
‘posta a nu’, estado excludente ou a revivescência ou mesmo a ad­
missão no inferno... A privação absoluta de um lar foi o símbolo 
sinistro de uma impiedade absoluta, de uma degradação moral e espi­
ritual extrema. A união com Deus ou o banimento absoluto tomaram-se 
os dois pólos entre os quais se elaborou um sistema que oferece aos 
judeus a possibilidade de viver sob a denominação de um regime que 
procura destruir as forças do Exílio.” E ainda mais: “Havia um ardente 
desejo de superar o Exílio agravando-lhe seus tormentos, saboreando-lhe 
ao extremo seu azedume (até à própria noite da Chekhiná)...” (p. 267). 
Que o tema de A Metamorfose (assim como as obcecantes ficções da 
animalidade) seja uma reminiscência, uma alusão à tradição da me­
tempsicose cabalística, é o que se pode imaginar, embora não seja 
seguro que “Samsa” é uma evocação de “samsara” (Kafka e Samsa 
são nomes aparentados, mas Kafka recusa essa aproximação). Por 
vezes, Kafka afirma que ainda não nasceu: “A hesitação em face do 
nascimento: Se existe uma transmigração das almas, então não estou 
ainda no mais baixo grau; a minha vida é a hesitação em face do nas­
cimento.” (24 de janeiro de 1922.) Recordemos que, em Hochzeitsvor- 
bereitungen auf dem Lande, Raban, o herói dessa história da juventude, 
exprime, jocosamente, o desejo de tomar-se um inseto (Kdfer) que pode­
ria ficar indolentemente na cama e escapar aos deveres desagradáveis 
da comunidade. A “carapaça” da

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