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II ABORDAGEM DO ESPAÇO LITERÁRIO O POEMA — a literatura — parece vinculado a uma fala que não pode interromper-se porque ela não fala, ela é. O poema não é essa fala, é começo, e ela própria jamais começa mas diz sempre de novo e sempre recomeça. Entretanto, o poeta é aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o me diador, que lhe impôs o silêncio pronunciando-a. Nela, o poema está próximo da origem, pois tudo o que é original é à prova dessa pura impotência do recomeço, dessa prolixidade estéril, a superabundância do que nada pode, do que jamais é a obra, arruina a obra e nela restaura a ociosidade sem fim. Talvez seja a fonte, mas fonte que, de uma certa maneira, deve ser exaurida para tornar-se recurso. Jamais o poeta, aquele que escreve, o “criador”, podería exprimir a obra a partir da ociosidade es sencial; jamais, por si só, do que está na origem, ele pode fazer brotar a pura palavra do começo. É por isso que a obra somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de alguém que a escreveu e de alguém que a leu, o espaço vio lentamente desvendado pela contestação mútua do poder de dizer e do poder de ouvir. E aquele que escreve é igualmente aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tomou-a compreensível nessa inter- mitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a ao medi-la. 29 A EXPERIÊNCIA DE MALLARMÉ CUMPRE recordar aqui as alusões, hoje muito conhecidas, que permitem pressentir a que transformação Mallarmé foi exposto, desde que se empenhou a fundo em escrever. Essas alusões não têm, em absoluto, um caráter anedótico. Quando ele afir ma: “Senti sintomas deveras inquietantes causados pelo ato só de escrever”, o que importa são essas últimas palavras: por elas é esclarecida uma situação essencial; algo de extremo é apreendido, que tem por campo e substância “o ato só de escre ver”. Escrever apresenta-se como uma situação extrema que supõe uma reviravolta radical, à qual Mallarmé fez breve alusão quando disse: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei, la mentavelmente, dois abismos que me desesperam. Um deles é o Nada...” (a ausência de Deus, o outro é a sua própria mor te). Também nesse comentário do poeta o que é rico de senti do é a expressão sem envergadura que, da maneira mais singela, parece remeter-nos para um simples trabalho de artesão. “Ao sondar o verso”, o poeta entra nesse tempo de desamparo que é o da ausência dos deuses. Fala surpreendente. Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses au sentes, vive na intimidade dessa ausência, toma-se responsável dela, assume-lhe o risco e sustenta-Lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencon tra a sua morte como abismo. 31 Palavra bruta, palavra essencial Se ele procura exprimir a linguagem tal como lhe foi des coberta pelo “o ato só de escrever”, Mallarmé reconhece “um duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui, essencial acolá”. Essa distinção é, em si mesma, brutal, logo difícil de apreender, pois ao que ele distingue tão absolutamente confere Mallarmé a mesma situação, encontra, para defini-la, a mesma palavra, que é o silêncio. Silêncio puro, a fala em estado bruto: “. .. talvez bastasse a cada um, a fim de permutar a fala humana, tomar ou pôr na mão de outrem, uma moeda...” Silenciosa, portanto, porque nula, pura ausência de palavras, permuta pura em que nada se troca, onde nada existe de real a não ser o movimento de permuta, que nada é. Mas o mesmo pode ser dito a respeito da fala confiada à pesquisa do poeta, essa lin guagem cuja força reside toda em não ser, toda a glória em evocar, na sua própria ausência, a ausência do todo: linguagem do irreal, fictícia, e que nos entrega à ficção, ela provém do silêncio e ao silêncio retoma. A fala em estado bruto “relaciona-se com a realidade das coisas”. “Narrar, ensinar, até descrever”, dá-nos as coisas na própria presença delas, “representa-as”. A fala essencial distan- cia-as, fá-las desaparecer; ela é sempre alusiva, sugestiva, evo cativa. Mas o que significará então tomar ausente “um fato da natureza”, apreendê-lo por essa ausência, “transpô-lo em seu quase desaparecimento vibratório?” Significa essencialmente falar, mas também pensar. O pensamento é fala pura. Tem que se reconhecer nele a língua suprema, aquela cuja extrema va riedade de línguas apenas nos permite reavaliar a deficiência: “Sendo pensar escrever sem acessórios, nem murmúrios, mas a fala imortal ainda tácita, a diversidade, na terra dos idiomas impede que se profiram palavras que, caso contrário, graças a uma única matriz, seriam a própria concretização material da verdade.” (O que constitui o ideal de Crátilo mas é também a definição da escrita automática.) Somos tentados a dizer, por tanto, que a linguagem do pensamento é, por excelência, a lin guagem poética, e que o sentido, a noção pura, a idéia, devem tornar-se a preocupação do poeta, sendo isso somente o que nos liberta do peso das coisas, da informe plenitude natural. “A Poesia, perto a idéia.” Entretanto, a fala em estado bruto nada tem de brutal. O que ela representa não está presente. Mallarmé não quer 32 Á “incluir no papel sutil ... a madeira intrínseca e densa das árvores”. Mas nada de mais estranho para a árvore do que a palavra árvore, tal como a utiliza, não obstante, a linguagem cotidiana. Uma palavra que não denomina nada, que não re presenta nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem mesmo é uma palavra e que desaparece maravilhosamente, por inteiro e de imediato, em seu uso. O que pode ser mais digno do essencial e mais próximo do silêncio? A palavra é verda deira, ela “serve”. Aparentemente, toda a diferença está aí: ela é usada, usual, útil; por ela, estamos no mundo, somos devolvi dos à vida do mundo, aí falam os objetivos, as metas finais, e impõe-se a preocupação de sua realização. Um puro nada, certamente, o próprio não-ser, mas em ação, o que age, traba lha, constrói o puro silêncio do negativo que culmina na rui dosa febre das tarefas. A fala essencial é, nesse aspecto, o oposto. Por si mesma, ela é imponente, ela impõe-se, mas nada impõe. Muito longe também de todo o pensamento, desse pensamento que repele sempre a obscuridade elementar, pois o verso “atrai não menos que afasta”, “aviva todos os jazimentos esparsos, ignorados e flutuantes”: nele as palavras voltam a ser “elementos”, e a pa lavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a noite.1 1 Depois de ter lamentado que as palavras não sejam “materialmente a verdade”, que jour (dia), por seu timbre, seja sombrio, e nuit (noite) brilhante, Mallarmé encontra nesse defeito das línguas o que justifica a poesia; o verso é delas o “complemento superior”, “filosoficamente, o verso recompensa o defeito das línguas”. O que é esse defeito? As línguas não têm a realidade que exprimem, sendo estranhas à realidade das coisas, à obscura profundidade natural, pertinente a essa realidade fictícia que é o mundo humano, divorciado do ser e ferramenta para todos os seres. Na fala bruta ou imediata, a linguagem cala-se como lin guagem mas nela os seres falam e, em conseqüência do uso que é o seu destino, porque serve, em primeiro lugar, para nos rela cionarmos com os objetos, porque é uma ferramenta num mun do de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso, nela os seres falam como valores, assumem a aparência estável de objetos existentes um por um e que se atribuem a certeza do imutável. A fala em estado bruto não é bruta nem imediata. Mas dá a ilusão de que o é.Extremamente refletida, está impregnada 1 33 da história. Mas, a maioria das vezes, e como se não fôssemos capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do tempo, os guardiões do devir, a fala parece o lugar de uma re velação imediatamente dada, parece o sinal de que a verdade é imediata, sempre a mesma e sempre disponível. A fala imediata talvez seja, com efeito, relação com o mundo imediato, com aquele que nos é imediatamente próximo e nosso vizinho, mas esse imediato que nos comunica a fala comum não passa do lon gínquo velado, o absolutamente estranho que se faz passar por habitual, o insólito que tomamos por rotineiro graças a esse véu que é a linguagem e a esse hábito da ilusão das palavras. A fala tem nela o momento que a dissimula; ela tem em si mesma, por esse poder de dissimulação, a potência pela qual a mediação (o que, portanto, destrói o imediato) parece ter a espontaneida de, o frescor, a inocência da origem. E, além disso, ela tem esse poder, comunicando-nos a ilusão do imediato, quando o que nos dá é somente o habitual, faz-nos crer que o imediato nos é familiar, de modo que a essência deste nos aparece, não como o mais terrível, o que deveria perturbar-nos, que é o erro da soli dão essencial, mas como a felicidade tranqüilizadora das har monias naturais ou a familiaridade do lugar natal. Na linguagem do mundo, a linguagem cala-se como ser da linguagem e como linguagem do ser, silêncio graças ao qual os seres falam, no qual encontram também esquecimento e repou so. Quando Mallarmé fala da linguagem essencial, logo a opõe somente à linguagem ordinária que nos dá a ilusão, a seguran ça do imediato, o qual, contudo, nada é senão o rotineiro — e depois retoma, por conta da literatura, a fala do pensamento, esse movimento silencioso que afirma, no homem, a sua decisão de não ser, de se separar do ser e, ao tornar real essa separação, de fazer o mundo, silêncio que é o trabalho e a fala da própria significação. Mas essa fala do pensamento é também, de qual quer modo, a fala “corrente”: ela devolve-nos sempre ao mun do, ora como o infinito de uma tarefa e o risco de um trabalho, ora como uma posição firme onde nos é lícito acreditar que es tamos em lugar seguro. A fala poética não se opõe somente, portanto, à linguagem ordinária mas também à linguagem do pensamento. Nessa fala, já não somos devolvidos ao mundo, nem ao mundo como abri go, nem ao mundo como metas. Nela, o mundo recua e as metas cessaram; nela, o mundo cala-se; os seres em suas preocupa ções, seus desígnios, suas atividades, não são, finalmente, quem 34 fala. Na fala poética exprime-se esse fato de que os seres se ca lam. Mas como é que isso acontece? Os seres calam-se, mas é então o ser que tende a voltar a ser fala, e a palavra quer ser. A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fa la ‘’se fala”. A linguagem assume então toda a sua importância; torna-se o essencial; a linguagem fala como o essencial e é por isso que a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala essencial. Isso significa, em primeiro lugar, que as palavras, tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins. Doravante, não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que se fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem. Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um po tente universo de palavras cujas relações, a composição, os po deres, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmi ca, num espaço unificado e soberanamente autônomo. Assim, o poeta faz obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é retomo à sua essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal co mo o pintor não reproduz com as cores o que é mas busca o ponto onde as suas cores dão o ser. Ou ainda, como tentou Ril ke na época do expressionismo, ou talvez hoje Ponge, ele quer criar “o poema-coisa” que seja como a linguagem do ser mudo, fazer do poema o que será por ele mesmo forma existência e ser: obra. Entretanto, essa poderosa construção da linguagem, esse conjunto calculado para excluir dele o acaso, que subsiste por si só e repousa sobre si mesmo, chamamos-lhe obra e chama mos-lhe ser mas, sob essa perspectiva, não é uma coisa nem outra. Obra, pois que é construída, composta, calculada, mas, neste sentido, obra como toda a obra, como todo o objeto forma do pelo entendimento de um ofício e a habilidade de um espe cialista. Não obra de arte, obra que tem a arte por origem, pela qual a arte, da ausência de tempo onde nada se conclui, é ele vada à afirmação única, fulminante, do começo. E, do mesmo modo, o poema entendido como um objeto independente, auto- suficiente, um objeto de linguagem criado para si só, mônada de palavras onde só se refletiría a natureza das palavras e nada mais, talvez seja então uma realidade, um ser particular, de uma dignidade, de uma importância excepcional, mas um ser e, por isso mesmo, de forma nenhuma mais próximo do ser, do 35 que escapa a toda a determinação e a toda a forma de exis tência. A experiência própria de Mallarmé Parece que a experiência pessoal de Mallarmé começa no mo mento em que ele passa da consideração da obra feita, aquela que é sempre um tal ou tal poema em particular, um tal ou tal quadro, para uma preocupação mediante a qual a obra passa a ser a busca de sua origem e quer identificar-se com a sua ori gem, “visão horrível de uma obra pura”. Aí está sua profundi dade, aí a preocupação que envolve, para ele, “o ato só de es crever”. O que é a obra? O que é a linguagem na obra? Quando Mallarmé se pergunta: “Existe alguma coisa como as Letras?”, essa indagação constituí a própria literatura, a literatura quan do esta se converte em preocupação com a sua própria essência. Tal indagação não pode ser relegada. O que é que acontece em decorrência do fato de que temos a literatura? Qual o paradei ro do ser, se dizemos que “existe alguma coisa como Letras”? Mallarmé teve sobre a própria natureza da criação literá ria um sentimento profundamente atormentado. A obra de arte reduz-se ao ser. Aí está a sua tarefa, ser, tornar presente “essa palavra; é”. . . “todo o mistério está aí”.2 Mas, ao mesmo tem po, não se pode dizer que a obra pertence ao ser, que ela existe. Pelo contrário, o que se deve dizer é que ela jamais existe à ma neira de uma coisa ou de um ser em geral. O que cumpre dizer, em resposta à nossa questão, é que a literatura não existe ou então que, se acontece, é como alguma coisa “que não aconte ce como qualquer objeto que existe”. Certamente, a linguagem está presente, é “posta em evidência”, afirma-se com mais auto ridade do que nenhuma outra forma de atividade humana, mas realiza-se totalmente, o que quer dizer que tampouco tem outra realidade senão a do todo: ela é tudo — e nada mais, sempre disposta a passar do tudo ao nada. Passagem que é essencial, 2 Carta a Vielé-Griffin, 8 de agosto de 1891: “...Nada que eu não me diga a mim mesmo, menos bem, no murmurar esparso de minha solidão, mas onde vós sois o adivinho, é, sim, relativamente a essa pa lavra mesma: é, notas que tenho sob a mão, e que reina no derradeiro lugar do meu espírito. Todo o mistério está aí: estabelecer as identi dades secretas por um dois a dois que rói e gasta os objetos, em nome de uma pureza central.” 36 que pertence à essência da linguagem, visto que, precisamente, nada está trabalhando nas palavras. As palavras, como sabe mos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer aparecer enquanto desaparecidas, aparência que nada mais é senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, re toma à ausência pelo movimento de erosão e de usura que é a alma e a vida das palavras, que extrai delas luz pelo fato de que se extinguem, a claridade através da escuridão. Mas, tendo esse poder de fazer as coisas “erguerem-se” no seiode sua au sência, senhoras dessa ausência, as palavras também têm o po der de se dissiparem a si mesmas, de se tornarem maravilhosa mente ausentes no seio de tudo o que realizam, de tudo o que proclamam anulando-se, do que etemamente executam destru indo-se, ato de autodestruição sem fim, em tudo semelhante ao tão estranho evento do suicídio, o qual confere precisamente toda a sua verdade ao instante supremo do Igitur.3 3 Remetemos o leitor a uma outra seção deste livro, “A Obra e o Es paço da Morte”, que é o estudo apropriado da experiência de Igitur, experiência que só pode ser interrogada se se tiver alcançado um ponto mais central do espaço literário. Em seu ensaio tão importante, La Distance Interieure, Georges Poulet mostra-nos que Igitur é “um exem plo perfeito do suicídio filosófico”. Sugere, desse modo, que o poema, para Mallarmé, depende de uma relação profunda com a morte, só é possível se a morte for possível, se, pelo sacrifício e a tensão a que o poeta se expõe, ela se converter no poeta em poder, possibilidade, se ela for um ato, o ato por excelência. “A morte é o único ato possível. Acossados que estamos entre um mundo material verdadeiro cujas combinações fortuitas produzem-se em nós sem nós, a um mundo ideal falso cuja mentira nos paralisa e nos enfeitiça, só dispomos de um meio para nunca mais sermos entregues ao nada nem ao acaso. Esse meio único, esse ato único, é a morte. A morte voluntária. Por ela nos abo limos mas por ela também nos fundamos... Foi esse ato de morte vo luntária que Mallarmé cometeu. Cometeu-o no Igitur.” Faz-se necessário, porém, prolongar esse comentário de Georges Poulet: Igitur é um relato abandonado que testemunha uma certeza a que o poeta não pôde ater-se. Pois não é certo que a morte seja um ato, já que poderia ocorrer a impossibilidade de suicídio. Posso dar-me a morte? Tenho o poder de morrer? Un coup de dés jamais n’abolira le hazard [Um lance de dados jamais abolirá o acaso, título do poema de Mallarmé considerado o precursor da poesia concreta em seu projeto do livro “absoluto”. N. do T.J é como que a resposta em que essa pergunta se detém. E a “resposta” deixa-nos pressentir que o movi mento que, na obra, é experiência, abordagem e uso da morte, não é o da possibilidade — ainda que fosse a possibilidade do nada — mas a abordagem daquele ponto em que a obra está à prova de impossibi lidade. 37 O ponto central Tal é o ponto central, a que Mallarmé volta sempre como à inti midade do risco a que nos expõe a experiência literária. Esse ponto é aquele em que a realização da linguagem coincide com o seu desaparecimento, em que tudo se fala (como ele disse, “nada subsistirá sem ser proferido’’), tudo é fala, mas em que a fala já não é mais do que a aparência do que desapareceu, é o imaginário, o incessante e o interminável. Esse ponto é a própria ambiguidade. De um lado, na obra, ele é o que a obra realiza, é aquilo em que ela se afirma, onde é preciso que ela “não admita outra evidência luminosa senão a de existir”. Nesse sentido, esse pon to é presença da obra e somente a obra o toma presente. Mas, ao mesmo tempo, é “presença da Meia-Noite”, o aquém, aquilo a partir do qual nada jamais começa, a profundidade vazia da ociosidade do ser, essa região sem saída e sem reserva na qual a obra, por meio do artista, torna-se a preocupação, a busca sem fim de sua origem. Sim, centro, concentração da ambigüidade. É bem verdade que só a obra, se caminhamos para esse ponto pelo movimento e o poder da obra, só a plena realização da obra o torna possí vel, em última instância. Atentemos de novo para o poema: o que de mais real, de mais evidente e a própria linguagem é nele “evidência luminosa”. Essa evidência, entretanto, nada mostra, em nada assenta, é o inapreensível em movimento. Não é ter mos nem momentos. Onde acreditamos ter palavras, traspassa- nos uma “virtual rajada de fogos”, uma prontidão, uma exal tação cintilante, reciprocidade por onde o que não é se elucida nessa passagem, reflete-se nessa pura agilidade de reflexos onde nada se reflete. Então, “tudo fica em suspenso, disposição frag mentária com alternância e face a face”. Então, ao mesmo tem po que brilha para extinguir-se o frêmito do irreal convertido em linguagem, afirma-se a presença insólita das coisas reais convertidas em pura ficção, em pura ausência, lugar de glória onde resplandecem “festas à vontade e solitárias”. Gostar-se-ia de dizer que o poema, como o pêndulo que marca o ritmo, pelo tempo, da abolição do tempo em Igitur, oscila maravilhosa mente entre a sua presença como linguagem e a ausência das coisas do mundo, mas essa mesma presença é, por seu turno, perpetuidade oscilante, oscilação entre a irrealidade sucessiva 38 de termos que não terminam nada e a realização total desse mo vimento, a linguagem convertida no todo da linguagem, aí onde se concretiza, como todo, o poder de rejeitar e de retornar ao nada que se afirma em cada palavra e se aniquila em todas, “ritmo total”, “com o quê o silêncio”. No poema, a linguagem nunca é real em nenhum dos mo mentos por onde passa, porquanto no poema a linguagem afir ma-se como todo e sua essência, não tendo realidade senão nes se todo. Mas, nesse todo em que ela é a sua própria essência, em que é essencial, é também soberanamente irreal, é a realiza ção total dessa irrealidade, ficção absoluta que diz o ser, quan do, tendo “usado”, “roído” todas as coisas existentes, suspen dido todos os seres possíveis, colide com esse resíduo ineliminá- vel, irredutível. O que resta? “Apenas essa palavra: é”. Palavra que sustenta todas as palavras, que as sustenta deixando-se dis simular por elas, que, dissimulada, é a presença delas, a reserva delas, mas que, quando cessam, se apresenta (“o instante em que brilham e morrem numa flor rápida sobre alguma transpa rência como de éter’’), “momento de raio”, “relâmpago fulgu rante”. Esse momento de raio jorra da obra como o impetuoso jor ro da obra, sua presença total, sua “visão simultânea”. Esse mo mento é, ao mesmo tempo, aquele em que a obra, a fim de dar ser e existência a esse “engodo” de que “a literatura existe”, pronuncia a exclusão de tudo mas, por esse meio, exclui-se a si mesma, de sorte que esse momento em que “toda a realidade se dissolve” pela força do poema é também aquele em que o poema se dissolve e, instantaneamente feito, instantaneamente se desfaz. Isso, sem dúvida, já é ambíguo ao extremo. Mas a ambiguidade toca no mais essencial. Pois esse momento, que é como a obra da obra, que, à margem de toda a significação, de toda a afirmação estética e histórica, exprime que a obra é, esse momento só será tal se a obra, nele, enfrentar a experiência do que sempre arruina de antemão a obra e sempre restaura nela a superabundância vã de ociosidade. A profundidade da ociosidade Eis o momento mais escondido da experiência. Que a obra deva ser a claridade única do que se extingue e pela qual tudo se ex tingue, que ela se apresente tão-só onde o extremo da afirmação 39 é verificado pelo extremo da negação, ainda compreendemos tais exigências, embora sejam contrárias à nossa necessidade de paz, de simplicidade, de sono; compreendemo-las intimamente, como a intimidade dessa decisão que somos nós próprios e que nos dá o ser, somente quando, correndo os nossos riscos e peri gos, rejeitamos, pelo fogo, pelo ferro, pela recusa silenciosa, sua permanência e favor. Sim, compreendemos que a obra, nesse aspecto, seja puro começo, o momento primeiro e último em que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz ex cluí-lo soberanamente, sem incluí-lo ainda, porém, na aparência dos seres. Mas essa exigência que faz da obra o que declara o ser no momento único da ruptura, “essa mesma palavra: é”, esse ponto que ela faz brilhar enquanto recebe o clarão relam- pejante que a consome, devemos também compreender e sentir que toma a obra impossível, porquanto é o que jamaispermite que aconteça à obra, o aquém onde, do ser, nada é feito, nada se realiza, a profundidade da ociosidade, da inação do ser. Parece, pois, que o ponto onde a obra nos conduz não é somente aquele onde ela se realiza na apoteose de seu desapare cimento, onde ela diz o começo, dizendo o ser na liberdade que o exclui — mas é também o ponto onde ela jamais poderá con- duzir-nos, porque já é sempre aquele a partir do qual nunca existe obra. Talvez estejamos tornando as coisas fáceis demais quando, ao reconstituir o movimento que é o de nossa vida ativa, ao con- tentarmo-nos em invertê-lo, acreditamos dominar assim o movi mento do que chamamos arte. É a mesma facilidade que nos faz encontrar a imagem ao falar do objeto, que nos faz dizer: em primeiro lugar, temos o objeto, depois vem a imagem, como se a imagem fosse apenas o distanciamento, a recusa, a transposição do objeto. Do mesmo modo, gostamos de dizer que a arte não reproduz as coisas do mundo, não imita o “real”, e que a arte se encontra onde, a partir do mundo comum, o artis ta afastou pouco a pouco o que é utilizável, imitável, o que in teressa à vida ativa. A arte parece então o silêncio do mundo, o silêncio ou a neutralização do que há de usual e de atual no mundo, tal como a imagem é a ausência do objeto. Assim descrito, esse movimento concedernos as facilidades da análise comum. Essas facilidades permitem-nos crer que do minamos a arte, porque nos fornecem um meio de nos represen tarmos o ponto de partida do trabalho artístico. Representação que, aliás, não responde à psicologia da criação. Jamais um ar 40 tista será capaz de elevar-se, através do uso que faz de um obje to no mundo, ao nível do quadro onde esse objeto tornou-se pin tura, jamais poderá bastar-lhe colocar esse uso entre parênte ses, neutralizar o objeto para entrar na liberdade do quadro. Pelo contrário, é porque, por uma inversão radical, ele já per tence à exigência da obra que, ao olhar tal objeto, ele não se contenta, em absoluto, em vê-lo tal como poderia ser se estives se fora de uso, mas faz do objeto o ponto por onde passa a exi gência da obra e, por conseguinte, o momento em que o possível atenua-se, as noções de valor, de utilidade, se apagam, e o mun do “dissolve-se”. É porque o artista pertence já a um outro tem po, o outro do tempo, e saiu do trabalho do tempo, para expor- se à experiência da solidão essencial, onde o fascínio ameaça, é porque se aproximou desse “ponto”, que, respondendo à exi gência da obra, nessa pertença original, ele parece olhar de ma neira diferente os objetos do mundo usual, neutralizar neles o uso, torná-los puros, elevá-los por uma estilização sucessiva ao equilíbrio instantâneo onde se convertem em quadro. Por ou tras palavras, nunca ocorre uma elevação do “mundo” para a arte, nem mesmo pelo movimento de recusa que descrevemos, mas vai-se sempre da arte para o que parece serem as aparên cias neutralizadas do mundo •— e que, na realidade, só se apre sentam como tais sob o olhar domesticado que é geralmente o nosso, esse olhar do espectador insuficiente, pregado ao mundo dos fins e capaz, no máximo, de ir do mundo ao quadro. Quem não pertence à obra como origem, quem não perten ce a esse outro tempo em que a obra se preocupa com sua es sência, jamais fará obra. Mas quem pertence a esse outro tempo, pertence também à profundidade vazia da ociosidade onde do ser ele nunca logrou fazer nada. Para exprimirmos ainda de outra maneira: quando uma fala conhecida demais parece reconhecer ao poeta o poder de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, isso quer di zer que o poeta é aquele que, por um dom ou por um savoir-faire criador, contentar-se-ia em fazer passar a linguagem “bruta ou imediata” para a linguagem essencial, elevaria a nuhdade silen ciosa da fala corrente para o silêncio consumado do poema onde, pela apoteose do desaparecimento, tudo está presente na ausên cia de tudo? Isso não poderia ser. Teria tanto sentido quanto imaginar que escrever consiste somente em utilizar as palavras usuais com mais mestria, uma memória mais rica ou um enten dimento mais harmonioso de seus recursos musicais. Escrever 41 jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em tomá- la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abor dar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dis simulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, lingua gem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir. Quando contemplamos as esculturas de Giacometti, há um determinado ponto onde elas deixam de estar submetidas às flutuações da aparência ou ao movimento da perspectiva. Vemo-las de um modo absoluto. Já não reduzidas mas subtraí das à redução, irredutíveis e, no espaço, senhoras do espaço pe lo poder que têm de substituí-lo pela profundidade não mane- jável, não viva, a do imaginário. Esse ponto, donde as vemos irredutíveis, coloca-nos no infinito, é o ponto onde o infinito coincide com lugar nenhum. Escrever é encontrar esse ponto. Ninguém escreve se não produzir a linguagem apropriada para manter ou suscitar o contato com esse ponto. 42 Ill O ESPAÇO E A EXIGÊNCIA DA OBRA A OBRA E A FALA ERRANTE EM que consiste esse ponto? Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos tra ços que a abordagem do espaço literário permitiu-nos reconhe cer. Aí, a linguagem não é um poder, não é o poder de dizer. Não está disponível, não é o poder de dizer. Não está disponí vel, de nada dispomos nela. Nunca é a linguagem que eu falo. Nela, jamais falo, jamais me dirijo a ti e jamais te interpelo. Todos esses traços são de forma negativa. Mas essa negação so mente mascara o fato mais essencial de que, nessa linguagem, tudo retoma à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela. O próprio da fala habitual é que ouvi-la faz parte da sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a lingua gem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento. Isso fala, mas sem começo. Isso diz, mas isso não remete a algo a dizer, a algo de silencioso que o garantiría como seu sentido. Quando a neutralidade fala, somente aquele que lhe impõe silêncio prepara as condições do entendimento e, no en tanto, o que há para entender é essa fala neutra, o que sempre já foi dito, não pode deixar de se dizer e não pode ser ouvido, entendido. Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de si mesma. Ela designa o de fora infinitamente distendido que substitui a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmu- 45 rado mas confunde-se com a imensidade sussurrante, é o silên cio convertido no espaço repercutente, o lado de fora de toda a fala. Só que, aqui, o lado de fora está vazio, e o eco repete ante cipadamente, “profético na ausência de tempo”. A necessidade de escrever A necessidade de escrever está ligada à abordagem desse ponto onde nada pode ser feito das palavras, donde se projeta a ilusão de que, se for mantido o contato com esse momento, mas vol tando ao mundo da possibilidade, “tudo” poderá ser feito, “tudo” poderá ser dito. Essa necessidade deve ser reprimida e contida. Se não o for, torna-se tão ampla que não há mais lugar nem espaço para que se realize. Só se começa a escrever quan do, momentaneamente, por um ardil, por um salto feliz ou pela distração da vida, consegue-se driblar esse impulso que a con duta ulterior da obra deve despertar e apaziguar de modo inces sante, abrigar e afastar, dominar e sofrer sua força indomável, movimento tão difícil e tão perigoso quetodo escritor e todo artista se surpreende, de cada vez, por tê-lo realizado sem naufragar. E que muitos soçobram silenciosamente, ninguém que tenha encarado o risco de frente pode duvidar disso. Não são os recursos criativos que falam, se bem que, de todas as maneiras, sejam insuficientes, mas é o mundo que, sob esse impulso, se furta: o tempo perde então o seu poder de decisão; nada mais pode realmente começar. A obra é o círculo puro onde, enquanto escreve, o autor expõe-se perigosamente à pressão que exige que ele escreva, mas também se protege dela. Daí resulta ■—■ pelo menos em par te — o júbilo prodigioso, imenso, que é o de uma libertação, como diz Goethe, de um confronto face a face com a onipotên cia solitária do fascínio, diante do qual se permanece de pé, sem o trair e sem fugir dele, mas tampouco sem renunciar ao seu domínio. Libertação que, é verdade, terá consistido em en- cerrar-se fora de si. Na maioria das vezes, diz-se do artista que este encontra em seu trabalho um meio cômodo de viver subtraindo-se à se riedade da vida. Ele proteger-se-ia do mundo onde agir é difícil, estabelecendo-se num mundo irreal sobre o qual reina sobera namente. É esse, com efeito, um dos riscos da atividade artísti ca: exilar-se das dificuldades do tempo e do trabalho no tempo 46 sem renunciar, porém, ao conforto do mundo nem às facilidades aparentes de um trabalho fora do tempo. O artista dá, com frequência, a impressão de um ser frágil que se enrosca as sustado na esfera fechada de sua obra, onde, falando com sobranceria e agindo sem entraves, pode vingar-se de seus fracassos na sociedade. Até mesmo Stendhal e Balzac fazem surgir essa dúvida, e com muito mais razões Kafka ou Hõl- derlin — e Homero é cego. Mas esse ponto de vista exprime apenas um aspecto da situação. O outro aspecto é que o artista que se oferece aos riscos da experiência que é a dele, não se sente livre do mundo, mas privado do mundo, não senhor de si mesmo mas ausente de si mesmo, e exposto a uma exigência que, ao repeli-lo para fora da vida e de toda a vida, torna-o vulnerável a esse momento em que nada pode fazer e já não é ele próprio. Ê então que Rimbaud foge para o deserto das responsabilidades da decisão poética. Enterra sua imagina ção e sua glória. Diz “adeus” ao “impossível” da mesma manei ra que Leonardo da Vinci e quase nos mesmos termos. Não re torna ao mundo, refugia-se nele e, pouco a pouco, seus dias condenados doravante à aridez do ouro estendem sobre sua ca beça a proteção do esquecimento. Se é verdade que, segundo testemunhos duvidosos, ele já não sofria nos últimos anos quan do se fazia alusão à sua obra ou se repetia, a seu propósito: “Absurdo, ridículo, repugnante”, a violência de sua retratação, a recusa em lembrar-se de si mesmo, mostra o terror que ainda sente e a força do abalo que não pôde suportar até o fim. De serção, abdicação que se lhe censura, mas a censura é muito fácil para quem não correu risco. Na obra, o artista não se protege somente do mundo mas da exigência que o atrai para fora do mundo. A obra doma e submete momentaneamente esse “lado de fora”, restituindo-lhe uma intimidade, ela impõe silêncio, confere uma intimidade de silêncio a esse lado de fora sem intimidade e sem repouso que é a fala da experiência original. Mas o que ela encerra é tam bém o que abre sem cessar, e a obra em curso expõe-se ou a re nunciar à sua origem, esconjurando-a mediante prestígios fáceis, ou a reverter cada vez para mais perto dela, renunciando à sua plena realização final. O terceiro risco é que o autor queira conservar o contato com o mundo, consigo mesmo, com a fala em que ele pode dizer “Eu”: quer porque, se se perder, a obra também se perde, mas se permanece muito cautelosamen 47 te ele mesmo, a obra é sua obra, exprime-o, seus dons, mas não a exigência extrema da obra, a arte como origem. Todo escritor, todo artista conhece o momento em que é rejeitado e como que excluído pela obra em curso. Ela man- tém-no à margem, está fechado o círculo em que ele não tem mais acesso a si mesmo, onde ele, entretanto, está encerrado, porque a obra, inacabada, não o solta. As forças não lhe faltam, não se trata de um momento de esterilidade ou de fadiga, ou então a fadiga nada mais é do que a forma assumida por essa exclusão. Momento de surpreendente provação. O que o autor vê é uma imobilidade fria da qual não pode desviar-se mas jun to à qual não pode permanecer, que é como um enclave, uma reserva no interior do espaço, sem ar nem luz, onde uma parte de si mesmo e, ainda mais, a sua verdade, sua verdade solitária, sufocam numa separação incompreensível. E não pode deixar de errar em tomo dessa separação, quando muito pode comprimir- se fortemente contra a superfície para além da qual apenas dis tingue um tormento vazio, irreal e eterno, até o instante em que, por uma manobra inexplicável, uma distração, ou pelo ex cesso de sua expectativa, reencontra-se de súbito no interior do círculo, une-se-lhe e reconcilia-se com a sua lei secreta. Uma obra está concluída, não quando o é, mas quando aquele que nela trabalha do lado de dentro pode igualmente terminá-la do lado de fora, já não é retido interiormente pela obra, aí é retido por uma parte de si mesmo da qual se sente livre e da qual a obra contribuiu para libertá-lo. Esse desfecho ideal nem sempre, entretanto, está plenamente justificado. Mui tas obras nos comovem porque ainda vemos nelas a marca do autor, que se afastou dela apressadamente demais, na impaci ência de terminá-la, no temor de, se não a concluísse, não poder voltar à luz do dia. Nessas obras, excessivamente grandes, maio res do que aquele que as assina, sempre se deixa entrever o momento supremo, o ponto quase central onde se sabe que se o autor aí se mantiver, morrerá debruçado sobre a tarefa. É a partir desse ponto mortal que se vê os grandes criadores viris afastarem-se, mas lentamente, quase discretamente, a voltarem num passo uniforme à superfície que o traçado regular e firme do sulco permite em seguida arredondar segundo as perfeições da esfera. Mas quantos outros, pela atração irresistível do cen tro, só podem desprender-se com uma violência sem harmonia, quantos deixam em sua esteira cicatrizes de feridas mal fecha 48 das, os traços de suas sucessivas fugas, de seus regressos incon- solados, de seu vaivém aberrante. Os mais sinceros deixam ao abandono o que eles próprios abandonaram. Outros escondem as ruínas e essa dissimulação torna-se a única verdade de seus livros. O ponto central da obra como origem, aquele que não se pode atingir, o único, porém, que vale a pena atingir. Esse ponto é a exigência soberana, do qual não se pode aproximar a não ser pela realização da obra mas do qual, tam bém, é sua abordagem que faz a obra. Quem se preocupa tão- somente com brilhantes êxitos está, no entanto, em busca desse ponto onde nada pode ser coroado de êxito. E quem escreve com a preocupação exclusiva da verdade já ingressou na zona de atração desse ponto donde o verdadeiro é excluído. Certo, por não se sabe que sorte ou que falta de sorte, sofre-se-lhe a pressão sob uma forma quase pura: eles aproximaram-se como que por acaso desse instante e, onde quer que vão, o que quer que façam, ele os retém. Exigência imperiosa e vazia, a qual se exerce o tempo todo e os atrai para fora do tempo. Es crever, eles não o desejam, a glória é-lhes vã, a imortalidade das obras desagrada-lhes, as obrigações do dever são-lhes estranhas. Viver na paixão feliz dos seres, eis o que eles preferem — mas de suas preferências ele não se dá conta, e são postos à margem, impelidos para a solidão essencial de que só se desprendem es crevendo um pouco. Conhece-se a história daquele pintor a quem o seu mece nas tinha que encerrar para impedir que ele dissipasse lá fora seus dons e, mesmo assim, lograva escapar por uma janela. Mas o artista possui também em seu íntimo o seu “mecenas”, que oencerra onde ele não pode permanecer, e desta vez sem qual quer saída, que além disso não o alimenta mas o esfomeia, es craviza-o sem honra, quebra-o sem razão, faz dele um ser débil e miserável sem outro sustento senão o seu próprio e incompre ensível tormento, e por quê? em vista de uma obra grandiosa? em vista de uma obra nula? ele próprio nada sabe e ninguém o sabe. É verdade que muitos criadores parecem mais fracos do que os outros homens, menos capazes de viver e, por conseguin te, mais suscetíveis de se espantar com a vida. Talvez isso assim seja com frequência. Mas conviría acrescentar que eles são for tes no que têm de fraco, que para eles surge uma força nova 49 nesse mesmo ponto em que se desfazem na extremidade de sua fraqueza. E cumpre dizer mais ainda: quando eles metem mãos à obra na despreocupação de seus dons, muitos são seres nor mais, amáveis, de bem com a vida, e é somente à obra, à exigên cia que está na obra, que eles devem esse acréscimo que só se mede pela maior fraqueza, uma anomalia, a perda do mundo e de si mesmos. Assim Goya, assim Nerval. A obra exige do escritor que ele perca toda a “natureza”, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, converta-se no lu gar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal. Exigência que não é uma, porquanto nada exige, é desprovida de conteú do, não obriga, é tão-só o ar que se deve respirar, o vazio sobre o qual se paira, a usura do dia onde se tomam invisíveis os ros tos que se prefere. Como os homens mais corajosos só enfren tam o risco sob o manto de um subterfúgio, muitos pensam que responder a esse apelo é responder a um apelo de verdade: eles têm algo a dizer, um mundo dentro deles a libertar, um manda to a assumir, suas vidas injustificáveis a justificar. E é verdade que se o artista não se entregasse à experiência original que o coloca à margem, que esse distanciamento o despoja de si mes mo, se ele não se abandonasse ao descomedimento do erro e à migração do recomeço infinito, a palavra recomeço perder-se-ia. Mas essa justificação não se apresenta ao artista, não é dada na experiência, pelo contrário, é excluída desta — e o artista pode muito bem sabê-lo “em geral”, do mesmo modo que crê na arte em geral, mas sua obra não o sabe e sua busca ignora-o, e pros segue na preocupação dessa ignorância. KAFKA E A EXIGÊNCIA DA OBRA Alguém põe-se a escrever, determinado pelo desespero. Mas o desespero nada pode determinar, “ele sempre e de imediato su plantou o seu objetivo” (Kafka, Diário, 1910). E, do mesmo mo do, escrever só poderia ter sua origem no “verdadeiro” desespe 50 ro, aquele que a nada convida e desvia de tudo e, em primeiro lugar, retira a quem escreve sua caneta. Isso significa que os dois movimentos nada têm de comum a não ser sua própria in- determinação, portanto, que só têm de comum o modo interro gativo, o único em que é possível apreendê-los. Ninguém pode dizer a si mesmo, “Eu estou desesperado”, mas “Tu estás deses perado?”, e ninguém pode afirmar, “Eu escrevo”, mas somente “Tu escreves? Sim? Escreverás?” O caso de Kafka é confuso e complexo.1 A paixão de Hõlderlin é pura paixão, ela atrai-o para fora de si mesmo por uma exigência que não tem outro nome. A paixão de Kafka também é puramente literária mas nem sempre e nem o tempo todo. A preocupação de salvação é nele imensa, tanto mais forte porquanto é desesperada, tanto mais desesperada porque 1 Quase todos os textos citados nas páginas que se seguem são extraí dos da edição completa do Diário de Kafka, a qual reproduz os 13 ca dernos in quarto em que, de 1910 a 1923, Kafka escreveu tudo o que lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre esses acontecimentos, descrição de pessoas e lugares, descrição de seus sonhos, relatos iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não é apenas um “Diário” como se entende hoje em dia, mas o próprio movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra. É sob essa perspectiva que o Diário deve ser lido e interrogado. Max Brod afirma que fez apenas algumas supressões insignifican tes; não há razões para duvidar disso. Em contrapartida, ele está con vencido de que Kafka, em vários momentos decisivos destruiu grande parte de suas notas. E, depois de 1923, o Diário falta por completo. Ignoramos se os manuscritos destruídos a seu pedido por Dora Dymant compreendiam a continuação de seus cadernos: é muito provável. Cum pre dizer, pois, que depois de 1923 Kafka toma-se-nos desconhecido, pois sabemos que aqueles que melhor o conheciam julgavam-no de um modo muito diferente do que ele se imaginava ser para si mesmo. O Diário (que os cadernos de viagem completam) quase nada nos revela de suas opiniões sobre os grandes temas que poderiam interessar- lhe. O Diário fala-nos de Kafka nessa fase anterior em que ele ainda não tem opiniões e em que mal se vislumbra um Kafka. Tal é o seu valor essencial. O livro de G. Janouch (Conversations avec Kajka, trad, na França com o título Kafka m’a dif) permite-nos, pelo contrário, ouvir Kafka ao sabor de conversações mais cotidianas, em que fala tanto do futuro do mundo quanto do problema judaico, do sionismo, das formas religiosas e, por vezes, de seus livros. Janouch conheceu Kafka em 1920, em Praga. Começou quase de imediato tomando nota das conversas que descreve e Brod confirmou a fidelidade de tal eco. Mas, para não haver enganos sobre o alcance desses depoimentos, cum pre lembrar que eles foram feitos a um jovem de 17 anos, cuja juven 51 é sem compromisso. Essa preocupação passa, sem dúvida, com uma surpreendente constância pela literatura e confunde-se com ela por largo tempo, depois passa de novo por ela mas já não se perde nela, tende a servir-se dela e, como a literatura jamais aceita converter-se num meio e Kafka sabe-o, daí resultam con flitos obscuros, mesmo para ele, ainda mais para nós, e uma evolução difícil de esclarecer mas que, no entanto, nos elucida. O jovem Kafka Kafka não foi sempre o mesmo. Até 1912, seu desejo de escre ver é enorme, dá lugar a obras que não o persuadem de seus dotes, e ainda menos o persuadem de que possua uma cons ciência direta deles: forças selvagens, de uma plenitude devas tadora, que ele quase não explora, por falta de tempo, mas também porque nada pode fazer delas, porque “teme esses momentos de exaltação, tanto quanto os deseja”. Sob muitos aspectos, Kafka assemelha-se então a todo jovem em que desperta o gosto de escrever, que reconhece estar aí a sua vo cação, que reconhece as exigências nela implícitas e não tem qualquer prova de que esteja à altura de satisfazê-las. O indí cio mais claro de que ele é, em certa medida, um jovem escri tor como os outros, é esse romance que começa a escrever em colaboração com Brod. Tal partilha de sua solidão mostra que Kafka ainda vagueia em tomo dela. Apercebe-se muito rapidamente disso, como indica esta nota do Diário: “Max e eu profundamente diferentes. Ora admiro seus escritos quando estão diante de mim como um todo inacessível ao meu alcance e a todo o alcance. . ora cada frase que ele escreve para Ricardo e Samuel me parece ligada, de minha parte, a uma concessão que me repugna e que experimento dolorosamente até ao fundo de meu ser. Pelo menos hoje” (novembro de 1911). 52 tude, inocência e espontaneidade confiante comoveram Kafka mas também o levaram, sem dúvida, a suavizar seus pensamentos, a fim de não os tomar perigosos para uma alma tão jovem. Kafka, amigo escrupuloso, receou frequentemente perturbar seus amigos com a ex pressão de uma verdade que só era desesperadora para ele. Isso não significa que ele não diga o que pensa, mas que diz, por vezes, o que não pensa profundamente. Até 1912, se não se consagra por inteiro à literatura, dá-se esta desculpa: “Nada posso arriscar enquanto não tiver realizado um trabalho maior, capaz de me satisfazer plenamente.” Essa prova é-lhe proporcionada na noite de 22 de setembro de 1912, a noite em que ele escreve de uma penada A Sentença e que o avizinha de maneira decisiva daquele ponto em que lhe parece que “tudo pode exprimir-se, que para tudo, para as idéias mais estranhas, está pronto um grande fogo no qual elas perecem e desaparecem”. Pouco depois, lê esse conto aos seus amigos, leitura que o confirma: “Tinha lágrimas nos olhos. O caráter indubitável da história confirmava-se.” (Essa necessi dade de ler aos amigos, frequentemente às irmãs dele, até ao pai, o que acabara de escrever, pertence também à região mé dia. Nunca a renunciará por completo. Não é vaidade literá ria — embora ele próprio a denuncie — mas uma necessidade de embate físico com sua obra, de se deixar empolgar, impelir por ela, fazendo-a revelar-se no espaço vocal que seus grandes dotes de leitor lhe conferem o poder de suscitar.) Kafka sabe agora que pode escrever. Mas esse saber não é simples, esse poder não é o dele. Com raras exceções, nunca encontra no que escreve a prova de que escreve verdadeira mente. É quando muito um prelúdio, um trabalho de aproxi mação, de reconhecimento. Sobre A Metamorfose, diz ele: “Acho-o ruim; talvez eu esteja definitivamente perdido”, ou, mais tarde: “Grande aversão por A Metamorfose. Final ilegí vel. Quase radicalmente imperfeito. Teria sido muito melhor, se eu não tivesse sido perturbado pela viagem de negócios” (19 de janeiro de 1914). O conflito Esta última passagem alude ao conflito com que Kafka se choca e se divide. Ele tem uma profissão, uma família. Pertence ao mundo e deve pertencer-lhe. O mundo dá o tempo mas faz dele __ «dIa n+a 1O1^ __ aôfn ♦•annocn/ínV ’•jU’-'l, lymUU A11V11K-/0 atv 1^/1^-- VOLU 1VJJUCOUUV de comentários desesperados, onde se repetem os pensamentos suicidas, porque lhe falta o tempo: o tempo, as forças físicas, a solidão, o silêncio. Sem dúvida, as circunstâncias exteriores não lhe são favoráveis, deve trabalhar pela tarde ou à noite, o sono perturba-o, a inquietação esgota-o, mas seria ocioso acre ditar que o conflito teria podido desaparecer mediante “uma 53 melhor organização das coisas”. Mais tarde, quando a doença lhe propicia o ócio, o conflito subsiste, agrava-se, muda de for ma. Não há circunstâncias favoráveis. Mesmo que dê “todo o seu tempo” à exigência da obra, “todo” ainda não é bastante, pois não se trata de consagrar o tempo ao trabalho, de passar o tempo escrevendo, mas de passar para um outro tempo onde não existe mais trabalho, de se aproximar desse ponto em que o tempo está perdido, onde se ingressa no fascínio e na solidão da ausência de tempo. Quando se tem o tempo todo, não se tem mais tempo, e as circunstâncias exteriores “amistosas” conver teram-se — inamistosas — na inexistência de circunstâncias. Kafka não pode ou não aceita escrever “em pequenas quantidades” no inacabamento de momentos separados. É o que lhe foi revelado na noite de 22 de setembro quando, tendo escrito de uma assentada, recuperou em sua plenitude o movi mento ilimitado que o leva a escrever: “Só assim é possível escrever, com uma tal continuidade, uma abertura tão comple ta do corpo e da alma.” E mais tarde (8 de dezembro de 1914): “Vejo de novo que tudo o que é escrito por fragmentos, e não de enfiada no decorrer da maior parte da noite, ou da noite inteira, tem menos valor, e que estou condenado pelo meu gênero de vida a esse menor valor.” Aí temos uma primeira explicação para tantos relatos abandonados sobre os quais o Diário, em seu estado atual, nos revela destroços impressio nantes. Com muita frequência, “a história” não vai além de algumas linhas, ora atinge rapidamente coerência e densidade e, no entanto, ao fim de uma página, detém-se, ora desenvolve-se ao longo de várias páginas, afirma-se, estende-se — e, no en tanto, pára. Há para isso muitas razões mas, em primeiro lu gar, Kafka não encontra no tempo de que dispõe a extensão que permitiría à história desenvolver-se, segundo ela quer, em todas as direções: a história nunca é mais do que um fragmen to, depois outro fragmento. “Como, a partir de pedaços, posso fundir uma história capaz de ganhar impulso e desenvolver-se?” De modo que, não tendo sido dominada, não tendo suscitado o espaço adequado onde a necessidade de escrever é simultanea mente reprimida e exprimida, a história desencadeia-se, extravia- se, junta-se à noite donde saiu e aí retém dolorosamente aquele que não soube dar-lhe a luz do dia. Kafka precisava de mais tempo mas necessitava também de menos mundo. O mundo é, em primeiro lugar, sua famí lia, cujas coerções ele dificilmente suporta, sem que consiga jamais libertar-se delas, é, em seguida, sua noiva, seu desejo essencial de cumprir a lei que manda o homem realizar o seu destino no mundo, tenha uma família, filhos, pertença à comu nidade. Aí, o conflito assume uma aparência nova, entra numa contradição que a situação religiosa de Kafka torna especial mente forte. Quando, em torno de seu noivado anunciado, des feito, renovado com F.B., ele examina infatigavelmente, com uma tensão cada vez maior, “tudo o que é pró ou contra o meu casamento”, esbarra sempre com esta exigência: “A minha única aspiração e a minha única vocação.. . é a literatura. • . Tudo o que eu fiz nada mais é do que um resultado da soli dão. .. ao passo que nunca mais estaria então só. Isso não, isso não.” Durante seu noivado em Berlim: “Estava manietado como um criminoso; se me tivessem jogado para um canto com grilhões de verdade, os gendarmes à minha frente. . . isso não teria sido pior. E era o meu noivado, e todos se esforçavam por me conduzir à vida e, não o conseguindo, por me suportar como eu era.” Pouco depois desfaz-se o noivado, mas a aspira ção subsiste, o desejo de uma vida “normal”, em que o tormen to por ter ferido alguém que lhe é próximo se impregna de uma força dilacerante. Comparou-se, e o próprio Kafka o fez, a sua história com a do noivado de Kierkegaard. Mas o conflito é diferente. Kierkegaard pôde renunciar a Regine, pôde renunciar ao estágio ético: o acesso ao estágio religioso não foi compro metido, pelo contrário, foi facilitado. Mas Kafka, se abandona a felicidade terrena de uma vida normal, abandona também a firmeza de uma vida justa, coloca-se fora da lei, priva-se do solo e da base sólida de que necessita para ser e, numa certa medida, priva-se da lei. é o eterno dilema de Abraão. O que é exigido a Abraão não é somente que sacrifique seu filho mas o próprio Deus: o filho é o futuro de Deus na terra, porquanto é o tempo que, na verdade, é a Terra Prometida, a verdadeira, a única morada do povo eleito e de Deus em seu povo. Ora, Abraão, ao sacrificar seu filho único, deve sacrificar o tempo, e o tempo sacrificado não lhe será dado, por certo, na eternidade do além: no além nada mais existe senão o futuro, o futuro de Deus no tempo. O além é Isaac. A prova, para Kafka, é mais pesada do que tudo o que lhe toma leve (o que seria a prova de Abraão se, não tendo filho, lhe fosse exigido, porém, o sacrifício desse filho? Não poderia ser levado a sério, só se poderia rir disso, riso que é a forma da dor de Kafka). Assim, o problema é tal que se esquiva àque- 55 le que, em sua indecisão, procura sustentá-lo. Outros escritores conheceram conflitos semelhantes: Hõlderlin luta contra a mãe que queria vê-lo tornar-se pastor, não pode ligar-se a uma tare fa determinada, não pode ligar-se àquela que o ama e ama precisamente aquela a quem não pode ligar-se, conflitos que sente em toda a sua força e que, em parte, o dilaceram mas jamais inculpam a exigência absoluta da fala poética, fora da qual, pelo menos a partir de 1800, ele já não possui existência. Para Kafka, tudo é mais confuso, porque ele procura confun dir a exigência da obra e a exigência que poderia trazer o nome de sua salvação. Se escrever o condena à solidão, fazde sua existência a existência de um celibatário, sem amor e sem vín culos, se, entretanto, escrever parece-lhe ser — pelo menos com freqüência e durante largo tempo — a única atividade que poderia justificá-lo, é porque, de todos os modos, a solidão amea ça nele e fora dele, é porque a comunidade não passa de um fantasma e a lei que ainda fala nela nem mesmo é a lei esque cida mas a dissimulação do esquecimento da lei. Escrever con verte-se, então, no seio do desamparo e da fraqueza de que esse movimento é inseparável, numa possibilidade de plenitude, num caminho sem objetivo capaz de corresponder, talvez, a esse objetivo sem caminho que é o único que cumpre atingir. Quando não escreve, Kafka está não somente só, “só como Franz Kafka”, dirá ele a G. Janouch, mas numa solidão estéril, fria, de uma frialdade petrificante a que chama hebetude e que parece ter sido a grande ameaça por ele temida. O pró prio Brod, tão cioso de fazer de Kafka um homem sem anoma lias, reconhece que ele está, por vezes, como que ausente e como que morto. Muito semelhante, uma vez mais, a Hõlder lin, ao ponto de ambos, para se queixarem de si mesmos, em pregarem as mesmas palavras; Jdõlderlin: “Estou entorpecido, sou de pedra”, e Kafka: “Minha incapacidade para pensar, observar, constatar, para me recordar, para falar e participar da vida dos outros, toma-se cada vez maior; viro pedra... Se não me salvo pelo trabalho, estou perdido” (28 de julho de 1914). A salvação pela literatura “Se não me salvo pelo trabalho. . .” Mas por que esse trabalho poderia salvá-lo? Parece que Kafka teria precisamente reconhe- 56 cido nesse terrível estado de autodissolução, onde está perdido para os outros e para si mesmo, o centro de gravidade da exi- i gência de escrever. Onde ele se sente destruído até ao fundo nasce a profundidade que substitui a destruição pela possibili dade da criação suprema. Maravilhosa reviravolta, esperança sempre igual ao maior desespero, e como se compreende que, dessa experiência, ele extrai um movimento de confiança que não questionará de bom grado. O trabalho toma-se então, so bretudo em seus anos de juventude, como que um meio de salvação psicológica (ainda não espiritual), o esforço de uma criação que “possa estar vinculada, palavra por palavra, à sua vida, que ele atrai a si para que ela o retire de si mesmo”, o , que ele exprime do modo mais cândido e mais forte nestes ter- | [ mos: “Tenho hoje um grande desejo de pôr para fora de mim, I escrevendo, todo o meu estado ansioso e, tal como chega das i profundezas do meu íntimo, introduzi-lo na profundidade do I papel, de tal sorte que possa introduzir inteiramente em mim a coisa escrita” (8 de dezembro de 1911).2 Por mais sombria que possa vir a ser, essa esperança jamais será totalmente des mentida, e encontraremos sempre no seu Diário, em todas as épocas, apontamentos deste gênero: “A firmeza que me pro porciona a menor coisa escrita é indubitável e maravilhosa. O olhar com que ontem, durante o passeio, abraçava tudo num só golpe de vista!” (27 de novembro de 1913). Escrever não é nesse momento, um apelo, a expectativa de uma graça ou um obscuro cumprimento profético, mas algo mais simples e pre mente, de um modo mais imediato: a esperança de não su cumbir ou, mais exatamente, de soçobrar mais depressa do que ele próprio e, assim, recuperar-se no último momento. Dever mais premente, portanto, do que todos os outros, e que o leva a escrever em 31 de julho de 1914 estas palavras extraordiná rias: “Não tenho tempo. É a mobilização geral. K. e P. são convocados. Agora recebo o salário da solidão. É, apesar de tudo, um salário minguado. A solidão só traz punições. Não importa, sou pouco afetado por toda essa miséria e mais deci dido do que nunca... Escreverei a despeito de tudo, a todo o custo: é o meu combate pela sobrevivência.” Kafka acrescenta: “Não é um desejo artístico.”2 57 Mudança de perspectiva Entretanto, é o abalo da guerra, mas ainda mais a crise aberta por seu noivado, o movimento e o aprofundamento do ato de escrever, as dificuldades com que se defronta, é a sua situação infeliz em geral, que vão pouco a pouco elucidar de maneira diferente a existência do escritor que existe nele. Essa mu dança é afirmada, não culmina numa decisão, é apenas uma perspectiva pouco nítida, mas existem, no entanto, certos indí cios: em 1914, por exemplo, ele ainda está apaixonadamente, desesperadamente voltado para esse único objetivo, encontrar alguns instantes para escrever, conseguir quinze dias de li cença que serão empregados apenas em escrever, subordinar tudo a essa única, a essa suprema exigência; escrever. Mas em 1916, se volta a pedir uma licença, é para alistar-se. “O dever imediato e sem condições: tomar-me soldado”, projeto que não terá seguimento mas não importa, o desejo que estava no seu centro mostra como Kafka já estava longe do “Escreverei a despeito de tudo” do dia 31 de julho de 1914. Mais tarde, pensará seriamente em juntar-se aos pioneiros do sionismo e ir para a Palestina. Di-lo a Janouch: “Sonhava em partir para a Palestina como operário ou trabalhador agrícola.” “Você abandonaria tudo aqui?” “Tudo, para encontrar uma vida repleta de sentido, na segurança e na beleza.” Mas Kafka, estando já doente, o sonho não passa de um sonho, e nunca saberemos se ele teria podido, como um outro Rimbaud, renunciar à sua única vocação pelo amor de um de serto onde teria encontrado a segurança de uma vida justificada — nem se a teria aí encontrado. De todas as tentativas a que se dedica a fim de orientar sua vida de um modo diferente, ele mesmo dirá que são apenas tentativas frustradas, outros tantos raios que eriçam de pontas o centro desse círculo inacabado que é sua vida. Em 1922, ele enumera todos os seus projetos onde só vê outros tantos fracassos: piano, violino, línguas, estu dos germânicos, anti-sionismo, sionismo, estudos hebraicos, jar dinagem, marcenaria, literatura, tentativas de casamento, resi dência independente, e acrescenta; “Quando me aconteceu impelir o meu raio de ação um pouco mais longe do que o habitual, estudos de direito ou noivado, tudo era pior quando mais representava meu esforço para ir mais longe” (13 de ja neiro de 1922). 58 Seria despropositado extrair de notas passageiras as afir mações absolutas que elas contêm, e ainda que ele mesmo o esqueça aqui, não se pode esquecer que Kafka nunca deixou de escrever, que escreverá até o fim. Mas entre o jovem que dizia àquele a quem considerava como seu futuro, “Eu nada _mais__sou_^enão literatura, e não posso nem quero .ser..outra coisa”, e o homem maduro que, dez anos depois, colocava a literatura no mesmo plano de seus pequenos ensaios de jardi nagem, a diferença é grande, mesmo que exteríormente a força de escritor permaneça a mesma, parecendo até mais rigorosa e mais precisa perto do fim, aquela a que devemos O Castelo. Donde provém essa diferença? Dizê-lo seria assenhorear- mo-nos da vida interior de um homem infinitamente reservado, secreto até para seus amigos e, aliás, pouco acessível a ele mes mo. Ninguém pode pretender reduzir a um certo número de afirmações precisas o que não podia atingir, para ele, a trans parência de uma fala compreensível. Seria necessário, além disso, uma comunidade de intenções que é impossível. Pelo menos, não se cometerão, sem dúvida, erros exteriores ao dizer que, embora a confiança dele nos poderes da arte tenha, com freqüência, continuado grande, sua confiança nos próprios po deres, postos sempre e cada vez mais à prova, esclarece-o sobre essa prova, sobre a sua exigência, esclarece-o, sobretudo, sobre o que ele próprio exige da arte: não mais dar à sua pessoa rea lidade e coerência, isto é, salvá-lo da loucura, mas salvá-lo da perdição, e quando Kafka pressentir que, banido deste mundo real, ele talvez já seja cidadão de um outro mundo onde tem que lutar não somente por si mesmo mas também por esse outromundo, então escrever apresentar-se-lhe-á apenas como um meio de luta, ora decepcionante, ora maravilhoso, que ele pode per der sem tudo perder. Comparem-se estas duas notas. A primeira é de janeiro de 1912: “É preciso reconhecer em mim uma concentração muito boa na atividade literária. Quando o meu organismo se deu conta de que escrever era a direção mais fecunda do meu ser, tudo para aí se dirigiu e foram abandonadas todas as outras capacidades, aquelas que têm por objetivo os prazeres do sexo, da bebida, da comida, da meditação filosófica e, sobretudo, da música. Emagrecí em todas as direções. Era necessário, porque as minhas forças, mesmo reunidas, eram tão escassas que só podiam alcançar pela metade o objetivo de escrever... A compensação de tudo isso é clara. Bastar-me-á rejeitar o tra 59 balho de escritório — estando concluído o meu desenvolvimen to e não tendo eu próprio mais nada a sacrificar, até onde me é possível enxergar — para começar a minha vida real, na qual o meu rosto poderá, enfim, envelhecer de maneira natural, se gundo os progressos do meu trabalho.” A leveza da ironia não deve, sem dúvida, enganar-nos, mas essa leveza, essa despreo cupação, no entanto sensíveis, esclarecem por contraste a tensão desta outra nota, cujo sentido é aparentemente o mesmo (datada de 6 de agosto de 1914): “Do ponto de vista da literatura, o meu destino é muito simples. O sentido que me leva a repre sentar os devaneios da minha vida interior repeliu tudo o mais para a esfera do acessório, e tudo isso definhou terrivelmente, não pára de definhar. Nenhuma outra coisa poderá jamais sa tisfazer-me. Mas, agora, a minha força de representação escapa a todos os cálculos; talvez tenha desaparecido para sempre; talvez ainda retorne um dia; as circunstâncias de minha vida não lhe são naturalmente favoráveis. Assim é que vacilo, que arremeto incessantemente para o cume da montanha, onde mal posso manter-me um instante sequer. Outros também vacilam mas em regiões mais baixas, com forças bem maiores; se amea çam despencar, há sempre um familiar, o pai, a mãe, que os amparam e que, com esse intuito, caminham junto deles. Mas, eu, é lá no alto que vacilo; infelizmente não é a morte mas os tormentos eternos do Morrer.” Cruzam-se aqui três movimentos. Uma afirmação: “Ne nhuma outra coisa (senão a literatura) poderá jamais satisfa zer-me.” Uma dúvida sobre si, ligada à essência inexoravelmente incerta de seus dons, a qual “frustra todos os cálculos”. O senti mento de que essa incerteza — o fato de que escrever nunca é um poder de que se disponha — pertence ao que existe de mais extremo na obra, exigência central, mortal, que “infeliz mente não é a morte”, que é a morte mas mantida a distância, os “tormentos eternos do Morrer”. Pode-se dizer que esses três movimentos constituem, por suas vicissitudes, a provação que esgota em Kafka a fidelidade à sua vocapão única”, a nual, coincidente com as preocupações religiosas, leva-o a ler nessa exigência única uma coisa diferente do que ela é, uma outra exigência que tende a subordiná-la ou, pelo menos, a transformá-la. Quanto mais Kafka escreve, menos seguro ele está de escrever. Por vezes, tenta readquirir segu rança pensando que, “uma vez recebido o conhecimento da arte de escrever, isso não poderá mais faltar nem soçobrar, mas 60 também, embora raramente, surge alguma coisa que excede a medida”. Consolação sem força: quanto mais ele escreve, mais se aproxima desse ponto extremo para o qual a obra tende como para a sua origem, mas que aquele que a apresenta só pode ver como a profundidade vazia do indefinido. “Não posso mais continuar a escrever. Estou no limite definitivo, diante do qual talvez deva permanecer de novo durante anos, antes de poder recomeçar uma nova história que, uma vez mais, ficará inaca bada. Esse destino me persegue” (30 de novembro de 1914). Parece que em 1915-1916, por fútil que seja querer datar um movimento que escapa ao tempo, cumpre-se a mudança de perspectiva. Kafka reatou com sua antiga noiva. Essas relações, que culminaram em 1917 em noivado, de novo, e logo em se guida terminaram com a doença que então se declara, lançam- no em tormentos que não pode superar. Descobre sempre, cada vez com maior acuidade, que não sabe viver sozinho e que não pode viver com outros. O que há de culpável na sua situação, em sua existência entregue ao que ele chama os vícios buro cráticos, mesquinhez, indecisão, espírito calculista, domina-o e obceca-o. É preciso escapar, custe o que custe, a essa buro cracia, e para isso já não pode contar com a literatura, pois esse trabalho esquiva-se-lhe, pois esse trabalho tem sua participação na impostura da irresponsabilidade, pois o trabalho exige a so lidão mas é também aniquilado por ela. Daí resulta a decisão: “Fazer-se soldado”. Ao mesmo tempo aparecem no Diário alusões ao Antigo Testamento, fazem-se ouvir os gritos de um homem perdido: “Toma-me em teus braços, é o abismo, acolhe- me no abismo; se recusas agora, então mais tarde.” “Toma-me, toma-me, a mim, que nada mais sou do que um entrelaçamento de loucura e dor.” “Tende piedade de mim, sou um pecador em todos os recessos do meu ser. . . Não me rejeites entre os perdidos.” Traduziram-se outrora em edições francesas alguns desses textos acrescentando-lhes a palavra Deus. Ela não figura aí. A palavra Deus quase nunca aparece no Diário e nunca de um modo significativo. Isso não significa que essas invocações, em sua incerteza, não tenham uma direção religiosa, mas que cum pre conservar a força dessa incerteza e não privar Kafka do espírito de reserva de que ele sempre deu prova a respeito do que lhe era mais importante. Essas palavras de desamparo, de impotência, são de julho de 1916 e correspondem a uma estada em Marienbad com F. B. Estada no início pouco feliz mas que, 61 finalmente, os aproximará intimamente. Um ano mais tarde, está noivo de novo; um mês depois, cospe sangue; em setem bro, deixa Praga, mas a doença ainda é moderada e só se tor nará ameaçadora (parece) a partir de 1922. Ainda em 1917 escreve os “Aforismos”, único texto em que a afirmação espiri tual (sob uma forma geral que não o preocupa em particular) escapa, por vezes, à experiência de uma transcendência negativa. Nos anos que se seguem, o Diário é praticamente omisso. Nem uma palavra em 1918. Algumas linhas em 1919, quando fica noivo de uma jovem a cujo respeito quase nada sabemos. Em 1920 conhece Milena Jesenska, uma jovem tcheca sensível, inteligente, capaz de uma grande liberdade de espírito e de paixão, com quem durante dois anos se liga por um sentimento violento, no início repleto de esperança e felicidade, mais tarde condenado à frustração e ao desespero. O Diário toma-se de novo mais importante em 1921 e, sobretudo, em 1922, onde as vicissitudes dessa amizade, enquanto a enfermidade se agrava, levam-no a um ponto de tensão em que seu espírito parece oscilar entre a loucura e a decisão de salvação. Cumpre, neste ponto, fazer duas longas citações. O primeiro texto é datado de 28 de janeiro de 1922: “Um pouco inconsciente, cansado de patinar. Ainda exis tem armas, tão raramente empregadas, e abro caminho com tanta dificuldade até elas, porque não conheço a alegria de me servir delas, porque, criança, não aprendi. Não o aprendi, não somente ‘pela culpa do pai’ mas também porque quis destruir ‘o repouso’, perturbar o equilíbrio e, por conseguinte, não tinha o direito de deixar renascer alguém que, por outro lado, me esforçava por enterrar. É verdade, reverto aí à ‘culpa’, já que por que razão queria sair do mundo? Porque ‘ele’ não me deixava viver no mundo, em seu mundo. Naturalmente, hoje, não posso já julgá-lo tão claramente, pois agora já sou cidadão nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma relação do deserto com as terras cultivadas (durante quarenta anos vaguei fora de Canaã), e é como um estrangeiro que olho para trás; sem dúvida,nesse outro mundo, não sou eu também o menor e o mais ansioso (levei isso comigo, é a herança paterna), e se aí sou capaz de viver é apenas em virtude da organização apropriada aí existente e segundo a qual, até para os mais íntimos de todos, existem elevações fulminantes, também esmagamentos, naturalmente, que duram milhares de anos e como que sob o peso do mar todo. Apesar de tudo, não 62 deverei ser grato? Não me teria sido imprescindível encontrar o caminho para chegar até aqui? Não teria podido acontecer- me que o ‘banimento’ no outro mundo, somado à exclusão deste, me esmagasse contra a fronteira entre os dois? E não é graças à força do meu pai que a expulsão foi suficiente mente forte para que nada lhe pudesse resistir (a ela, não a mim)? É verdade, é como a viagem no deserto às avessas, com as proximidades contínuas do deserto e as esperanças in fantis (em especial no que se refere às mulheres): ‘Será que eu não estaria ainda em Canaã?’, e, no entanto, já estou há muito tempo no deserto e tudo são apenas visões de desespero, sobre tudo nestes tempos em que, também ali, sou o mais miserável de todos e onde é preciso que Canaã se ofereça como a única Terra Prometida, porquanto não existe uma terceira terra para os homens.” O segundo texto é datado do dia seguinte: “Ataques no caminho, à tarde, na neve. Sempre a mistura de representações, mais ou menos assim: neste mundo a situa ção seria assustadora — aqui, só em Spindlemühle, ademais num caminho abandonado onde a todo o instante se dão passos em falso na escuridão, na neve; além disso, um caminho priva do de sentido, sem objetivo terrestre (leva à ponte? por que lá embaixo? aliás, nem sequer o alcancei); ademais, neste lugar, eu também abandonado (não posso considerar o médico uma ajuda pessoal, não a obtive por meus méritos, no fundo só tenho com ele relações de honorários), incapaz de ser conheci do de alguém, incapaz de suportar um conhecimento, no fundo cheio de um infinito espanto diante de uma sociedade alegre ou diante de pais com seus filhos (no hotel, naturalmente, não há muita alegria, não chegarei ao ponto de dizer que a causa sou eu, na minha qualidade de ‘homem de sombra imensa’, mas, efetivamente, a minha sombra é grande demais, e com um re novado espanto constato a força de resistência, a obstinação de certos seres em quererem viver ‘apesar de tudo* nessa sombra, justamente nela; mas aqui junta-se ainda outra coisa de que falta falar); além disso, abandonado não só aqui mas em geral, até em Praga, a minha ‘terra natal’, e não abandonado dos ho mens, isso não seria o pior, enquanto viver poderia ir no encalço deles, mas abandonado de mim em relação aos seres, de minha força em relação aos seres; estou grato àqueles que amam, mas não posso amar, estou longe demais, estou excluído; sem dúvida, que sou, contudo, um ser humano e as raízes querem alimento, 63 tenho lá ‘embaixo’ (ou em cima) os meus representantes, come diantes lamentáveis e insuficientes, que me bastam (é verdade, não me bastam de maneira nenhuma e é por isso que estou tão abandonado), que me bastam pela única razão de que o meu alimento principal provém de outras raízes num outro ar, raízes essas que também são lamentáveis mas, entretanto, mais ca pazes de vida. Isso me conduz à mistura das representações. Se tudo fosse assim como se apresenta no caminho na neve, seria assustador, eu estaria perdido, não entendido como uma amea ça mas como uma execução imediata. Mas estou em outra parte. Acontece que a força de atração do mundo dos homens é mons truosa, num instante pode fazer esquecer tudo. Mas grande é também a força de atração do meu mundo, os que me amam me amam, porque estou ‘abandonado’ e não, talvez, como o vácuo de Weiss, mas porque sentem que, em tempos felizes, num outro plano, tenho a liberdade de movimento que me falta completamente aqui.” A experiência positiva Comentar essas páginas parece-me supérfluo. Cumpre assinalar, entretanto, como, nessa data, a privação do mundo se inverte numa experiência positiva,3 a de um outro mundo, do qual ele já é cidadão, onde é apenas, por certo, o menor e o mais ansioso, mas onde conhece também elevações fulminantes, onde dispõe de uma liberdade cujo valor os homens pressentem e a cujo prestígio se submetem. Contudo, para não alterar o sentido de tais imagens, é necessário lê-las, não segundo a pers pectiva cristã comum (de acordo com a qual existe este mundo aqui e o mundo de além, o único que teria valor, realidade e glória), mas sempre na perspectiva de “Abraão”, visto que, de todas as maneiras, para Kafka, ser excluído do mundo quer dizer excluído de Canaã, errar no deserto, e é essa situação que torna sua luta patética e desesperada, como se, jogado para fora do mundo, no erro da migração infinita, tivesse que lutar incessantemente para fazer desse lá fora um outro mundo e 3 Certas cartas a Milena aludem também ao que há para ele mesmo de desconhecido nesse movimento terrível (ver os estudos publicados na Nouvelle N.R.F.: Kajka et Brod e L’échec de Milena, outubro e novembro de 1954). 64 desse erro o princípio, a origem de uma liberdade nova. Luta sem saída e sem certeza, onde o que tem de conquistar é a sua própria perda, a verdade do exílio e o retorno ao próprio seio da dispersão. Luta que se aproximará das profundas espe culações judaicas, quando, sobretudo em resultado da expulsão da Espanha, os espíritos religiosos tentam superar o exflio le vando-o ao seu termo extremo.4 Kafka fez claramente alusão a “toda essa literatura” (a dele) como a “uma nova Cabala”, uma “nova doutrina secreta” que “teria podido desenvolver-se” se “o sionismo não tivesse, nesse meio tempo, ocorrido” (16 de janeiro de 1922). E compreende-se melhor por que ele é, si multaneamente, sionista e anti-sionista. O sionismo é a cura do exílio, a afirmação de que é possível permanecer na terra, de que o povo judeu não tem apenas por morada um livro, a Bí blia, mas a terra e não mais a dispersão no tempo. Kafka quer profundamente essa reconciliação, ele a quer mesmo que seja 4 A este respeito, remetemos o leitor para o livro de G. G. Scholem, Les Grands Courants de la Mystique Juive: “Os horrores do Exílio in fluenciaram a doutrina cabalística da metempsicose, a qual adquire então uma popularidade imensa ao insistir sobre as diversas etapas do exflio da alma. O mais terrível destino que pode recair sobre a alma, muito mais terrível do que os tormentos do inferno, é ser ‘rejeitada’ ou ‘posta a nu’, estado excludente ou a revivescência ou mesmo a ad missão no inferno... A privação absoluta de um lar foi o símbolo sinistro de uma impiedade absoluta, de uma degradação moral e espi ritual extrema. A união com Deus ou o banimento absoluto tomaram-se os dois pólos entre os quais se elaborou um sistema que oferece aos judeus a possibilidade de viver sob a denominação de um regime que procura destruir as forças do Exílio.” E ainda mais: “Havia um ardente desejo de superar o Exílio agravando-lhe seus tormentos, saboreando-lhe ao extremo seu azedume (até à própria noite da Chekhiná)...” (p. 267). Que o tema de A Metamorfose (assim como as obcecantes ficções da animalidade) seja uma reminiscência, uma alusão à tradição da me tempsicose cabalística, é o que se pode imaginar, embora não seja seguro que “Samsa” é uma evocação de “samsara” (Kafka e Samsa são nomes aparentados, mas Kafka recusa essa aproximação). Por vezes, Kafka afirma que ainda não nasceu: “A hesitação em face do nascimento: Se existe uma transmigração das almas, então não estou ainda no mais baixo grau; a minha vida é a hesitação em face do nas cimento.” (24 de janeiro de 1922.) Recordemos que, em Hochzeitsvor- bereitungen auf dem Lande, Raban, o herói dessa história da juventude, exprime, jocosamente, o desejo de tomar-se um inseto (Kdfer) que pode ria ficar indolentemente na cama e escapar aos deveres desagradáveis da comunidade. A “carapaça” da
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