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1 Histórias de Gente Que Lê Galeno Amorim 2 Índice Prefácio Maria Antonieta Cunha .............................................................. 6 Prólogo Missionários da Leitura ................................................................ 8 Introdução Os livros não mudam o mundo ................................................ 11 Parte I Os livros mudam as pessoas. A sacola de Dona Jamila .......................................................... 22 Leitor de florestas e de mundo ............................................... 25 Morador das ruas e leitor ......................................................... 30 Os olhos de Dona Lydia .......................................................... 33 O menino do Desemboque ..................................................... 36 3 Amyr e o mar ............................................................................. 42 O livro dos livros ....................................................................... 46 O livreiro que não sabia ler....................................................... 50 Livro de “um reais” .................................................................... 55 A bola e o livro ............................................................................ 59 Lições de Dona Maria ................................................................ 63 O homem que não vendia os livros ........................................ 68 Do outro lado do muro ............................................................. 72 Ele é o cara! ................................................................................. 75 Marinheiro só .............................................................................. 78 Pequenos leitores do sisal .......................................................... 81 No profundo mar azul ............................................................... 86 A que foi sem nunca ter sido .................................................... 90 Parte II E as pessoas mudam o mundo. O livreiro do Alemão ................................................................. 94 4 Esmeralda cansada de guerra .................................................... 99 O zelador de livros ................................................................... 104 A Bibliojegue do sertão ........................................................... 108 Ler para o outro é um ato de amor ......................................... 113 Santo Antônio Casamenteiro ................................................. 117 O pescador de leitores ............................................................. 120 A biblioteca na roça .................................................................. 125 O semeador do Seridó ............................................................. 128 Operário em construção ......................................................... 132 Mães que amam demais ........................................................... 135 Entre livros e pneus ................................................................. 139 A encantadora de leitores ........................................................ 143 O pedreiro e os livros ............................................................... 147 João que virou juiz .................................................................... 153 Histórias que acolhem ............................................................. 155 O tapete mágico da Tia Aninha .............................................. 159 Sobre carnes e livros ................................................................ 163 Bibliotecárias não sabem disfarçar ......................................... 168 5 Epílogo ..................................................................................... 172 6 Prefácio e todas as pessoas que conhecem Galeno Amorim, acredito que nenhuma deixaria de identificar sua paixão maior: a causa da leitura, que, das mais variadas maneiras e pelos mais diferentes pontos do país, ele procura obstinadamente defender para todos os brasileiros! Porque, para ele – como para muita gente boa –, a leitura é mesmo um direito de todos, tão fundamental quanto a saúde, a habitação, o saneamento básico, a liberdade de expressão – por exemplo. Um direito, mas também uma esperança: “Os livros transformam pessoas, e pessoas transformam o mundo.” E, em muitas frentes, procura fazer chegar essa posição ao maior número possível de pessoas. D 7 Pois nessa busca de novas formas de propagá-la, Galeno resolveu reunir em um livro algumas histórias exemplares: apresenta-nos figuras brasileiras, que, nas mais diversas regiões do Brasil e nas mais distintas condições (sempre adversas), tiveram suas vidas modificadas pela descoberta da leitura (mais precisamente, do livro) e, a partir daí, conseguiram mudar a vida de alguém, ou de muita gente - transformados todos, também, em leitores. Várias das histórias e personagens apresentadas por Galeno são também do meu conhecimento, e atesto – embora desnecessário – a sua veracidade. São relatos comoventes, às vezes impressionantes, a maioria, de pessoas muito simples (à época dos fatos iniciais, pelo menos), com ações igualmente modestas, e que ganharão de imediato a admiração dos leitores, assim como têm o reconhecimento de suas comunidades. Que fiapo de luz, que traço especial terão em comum todas essas figuras? Acredito que é isto que espera o Galeno: que essas vitórias, aparentemente pequenas, se pensarmos nas dimensões e carências brasileiras, sejam o atestado de possibilidades, que ele quer ver multiplicadas. Da minha parte, é isso que também eu desejo que aconteça. Tenho a convicção de que estas histórias podem inspirar outras tantas, da mesma forma que a arte em si (e, portanto, a literatura lida pelas figuras desses relatos) pode ser inspiradora. Prefiro, no entanto, 8 relativizar a força da leitura (mais ainda, a força do livro), sempre possível, mas nem sempre exercida: a história da humanidade (inclusive a de artistas extraordinários) e a história do Brasil (a que se desenrola diante de nossos olhos assustados, por exemplo) mostram que homens “letrados e cultos” podem não se tornar melhores, nem mais conscientes, nem mais patriotas, pela leitura e pela arte. Imagino, por outro lado, que possa haver vida feliz, produtiva e sábia mesmo fora da leitura de material impresso, ou mesmo virtual. Pode ser mais difícil, pode funcionar mais em determinadas comunidades, pode fazer mais sentido para uns do que para outros, mas acredito que seja possível. Preciso ter também essa esperança. O que me parece justo afirmar é que, por si, a leitura não fará mal algum – a ninguém, e que poderá fazer um enorme bem – a todos, ou quase. Todas as lutas em favor da leitura são, portanto, muito importantes. Por isso, desejo fortemente que, tal como nestas histórias, este livro caia também em mãos de muitos leitores que tenham - quem sabe? – aquele mesmo fio de luz das suas personagens e que eles se sintam motivados a engrossar as fileiras do bom combate do nosso corajoso autor. 9 Missionários da Leitura Aos professores, bibliotecários, gestores, técnicos e demais pessoas que se colocam entre livros e leitores a fim de aproximá-los. inguém pode ser obrigado a ler, nem a escrever, a cantar ou a dançar. Tampouco deve ser obrigado a saber o significado das coisas todas da vida. Por que ler, acima de tudo, é um ato de liberdade: introspectivo, espontâneo, libertador. Por isso, livros nos fazem livres! Ninguém nasce sabendo ler. Como não se nasce sabendo escrever, cantar ou dançar. Também não se nasce sabendo pronunciarpalavras ou apreciar um bom filme, teatro ou quadro. N 10 O certo é que ler – como tantas coisas na vida – não é um ato natural. Natural, isto sim, é respirar, comer e andar, se proteger do frio e do calor. É sentir medo e reagir. Natural é esse desejo intrínseco de, em algum tempo, ser feliz. Mas ler, não. Ler pede atitude, esforço, aprendizado – habilidade mesmo. Demanda oportunidade e investimento pessoal. E requer que se pratique, até que se tome gosto pela coisa – tal como se aprende a gostar de música boa, de jogar xadrez ou de admirar dribles geniais numa pelada de rua. Ler é coisa do espírito, que também pede certo esforço do corpo, boa vontade e dedicação, até que, um dia, torna-se absolutamente algo essencial, um alimento mesmo da alma. Não por outra razão cabe a toda a gente instigar esse namoro – que vira noivado e, depois, casório – entre livros e leitores, tal qual um Santo Antônio Casamenteiro dos dias de hoje. Um missionário a espalhar a boa nova do conhecimento pra tudo quanto é canto. Mas que isso seja feito com jeito, com delicadeza e com amor. Pois não há outro jeito de cultivar e cativar o bicho leitor. Esse que cresce e ganha corpo na medida da sustança das boas histórias, da sonoridade das palavras, do afeto que elas encerram. Da magia e da engenhosidade de quem cria e inventa o tempo todo. Tratemo-lo, pois, o bicho leitor, com carinho. Como a um filho que nasce, cresce e conquista a autonomia de voar. 11 Façamo-lo, pois, gostar dos livros como a criança gosta da flor, para que, seduzido e encantado, possa jamais ser curado dessa vontade irresistível de se deixar levar pela beleza das palavras e, assim, mergulhar fundo nesse oceano de ideias. Porque, para ele, o leitor, há um sentido especial em cada palavra impressa: aquilo a que se chama de a força mesma das coisas. Daí, a necessidade, danada, e jamais saciada, de se ter, sempre, à mão, uma página que seja pelo simples prazer de apalpar, de cheirar e sorver com os olhos tudo o que faz lembrar um livro. Ao aprender a decifrar os sinais, bebendo dessa fonte, descortinam-se os horizontes e descobre-se, enfim, o bom prazer de ler. Agora, um leitor de mundo, ele é capaz de aprender e apreender, de se reinventar o tempo todo. De compreender e interpretar cada coisa ao seu redor. E, ao ler pelos olhos do outro, de se tornar um sujeito melhor, tolerante e amoroso. Ao tomar para si o conhecimento universal e construir o seu próprio, o leitor, alarga a inteligência, supera o improvável e descobre a capacidade própria para o amor – fundamento elementar para se mudar o mundo, o de dentro e o de fora. Pois para quem, agora, já tem a sabedoria para ler o mundo, tudo é absolutamente possível! 12 Os livros não mudam o mundo “Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas. E as pessoas mudam o mundo.” a primeira vez em que ouvi alguém pronunciar o conjunto de frases acima, que me parecem traduzir, com precisão e uma clareza incrível, o papel que os livros exercem na vida de homens e mulheres na sociedade, sorri, discretamente. Afinal, aquela dúzia e meia de palavras sintetizavam, em boa medida, com objetividade extraordinária, centenas de páginas de consistentes reflexões a respeito do tema sobre as quais eu já me debruçara antes. N 13 Esse contentamento também era movido por ver a quem sua autoria era, naquele momento, atribuída: José Bento Monteiro Lobato – ele mesmo, autor que, mais de setenta anos após sua morte, continua a ser referência, e preferência, nacional. Nada de se estranhar, portanto, que o pai da boneca Emília, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e Dona Benta, e de uma porção de invencionices do Brasil da primeira metade do século XX, pudesse ter trazido à luz uma síntese de pensamento tão definitiva sobre a função social dos livros para a humanidade. Já fora ele, Monteiro Lobato, o grande precursor da literatura infantil brasileira. Antes dele, só se via, por aqui, livros infantis com textos estrangeiros e, em geral, muito distantes da nossa cultura. Lobato foi responsável direto pelo surgimento, durante as décadas seguintes, de brilhantes gerações de escritores do gênero. Embora haja quem discorde, a ele também se deve o crédito pela invenção do mercado editorial tal qual se conhece hoje em dia. Isso graças às suas geniais sacadas como editor para aumentar as tiragens de suas publicações e para fazer com que os livros chegassem onde o povo letrado estava. Das prosaicas pharmácias às vendas, os armazéns de antigamente, predecessores dos megas e hipermercados da atualidade: qualquer canto deveria, segundo dizia, abrigar um ponto de venda de livros. Nada de espantoso, portanto, creditar a Lobato, venerado por seu papel incansável na defesa dos livros e da literatura do Brasil, 14 tamanho acerto e capacidade de concisão, e justo por algo pelo qual sempre batalhou. Não fora ele, afinal, que apregoara que “uma nação só se faz com homens e livros”? Mas qual não foi a minha surpresa ao, muito tempo depois, tomar conhecimento de que aquilo era, simplesmente, um erro terrível: — Isso não é Lobato nem aqui, nem na China... – tratou, de me explicar (gentilmente, a bem da verdade) um amigo pesquisador, anos mais da tarde. Nos anos seguintes, ouviria e leria, em muitas ocasiões, gentes de universidades, academias, editoras, livrarias e do governo darem, enfim, o devido crédito a alguém que, sem sombra de dúvida, faz por merecer todo e qualquer tipo de gratidão do povo brasileiro e dos amantes, em geral, da boa literatura: Mário Quintana, o genial poeta gaúcho. Ao que parecia, seria, mesmo, Quintana quem teria dito – com a simplicidade, sensibilidade e sabedoria de poeta – esta e uma porção de outros ditos e frases que, na era internet, têm sido propagados com espantosa rapidez. Graças às ferramentas modernas que permitem buscas incríveis em frações de segundo, podemos recorrer e utilizar, a todo instante, frases belas que costumam causar efeito imediato. 15 Quando, contudo, obediente e disciplinado, e desta vez também resignado, já me habituara com o novo – e, ao que tudo indicava, definitivo esclarecimento do senso comum em torno de tão importante questão – eis que seria, novamente, surpreendido por uma nova e, a essa altura, arrasadora errata: — Estão todos redondamente enganados – foi o que ouvi, aturdido. A nova e, sim, definitiva corrigenda viria, desta vez, amparada por alguma base científica. Pesquisadores, leitores e admiradores do poeta gaúcho chegaram a criar blogs e comunidades virtuais, na internet, para alertar contra a enxurrada de frases e pensamentos indevidamente atribuídos a Quintana. Nada contra ele, faziam questão de explicar. Aliás, muito pelo contrário: — O grande problema é que corremos o risco de levar os jovens e as novas gerações a conhecer, e até a aprender a admirar, um Quintana que, simplesmente, não existe – argumenta um deles, com boa dose de razão. Uma comunidade criada no finado site de relacionamentos Orkut, precursor do atual Facebook, explicava, já no próprio título, ao que viera: “O verdadeiro Mário Quintana”. A página se propunha, com relativo sucesso para a época, “a pesquisar e a desmistificar, com a ajuda de colaboradores voluntários, o que não consta da obra conhecida do poeta”, dando “nomes aos verdadeiros bois, no caso, http://emiliopacheco.blogspot.com.br/2005/05/o-verdadeiro-mario-quintana.html 16 os autores de versos e pensamentos creditados indevidamente ao gaúcho”. Quem se debruçou sobre toda a obra de Quintana (que pode ser encontrada em Poesia Completa, da Nova Aguilar) ou leu as suas entrevistas ou mesmo o livro Ora Bolas, que Juarez Fonseca escreveu sobre ele, jamais encontrou a dita cuja. Uma pesquisadora dá overedito sobre a citação: — Até hoje não foi possível identificar a autoria por absoluta ausência de fonte. Mas uma coisa é certa: do Quintana é que não é... Há especialistas que atribuem a autoria da frase ao senador romano Caio Graco, que viveu entre 157 e 121 antes de Cristo. Eles sustentam que a frase teria sido traduzida inúmeras vezes até ganhar o seu formato atual, agora com uma referência explícita aos livros. Desde então, tenho preferido imaginar que qualquer um dos três – ou, quem sabe, todos eles, cada qual a seu tempo – pode, muito bem, ter dito isso ou algo parecido, tamanha a força e a capacidade que essas três pequenas frases têm para expressar tão poderosa ideia sobre esse objeto conhecido como livro e a sua vocação transformadora, e, assim, perigosa. Sobretudo se, depois de se apropriar do seu conteúdo, dá-se dentro desse leitor um rebuliço interno de inquietações e de novas percepções, formulações e atitudes. 17 Tenho ido a diversas localidades conversar com gente atrás de boas histórias de leitores. A primeira impressão que dá é que as práticas sociais da leitura têm propiciado, de fato, microrrevoluções por toda parte. Tão íntimas que, por vezes, nem dá para percebê-las. Mas também outras que se materializam das mais diversas formas e promovem pequenas, porém vigorosas, modificações no cotidiano e no próprio entorno social desses leitores. E, cada vez que um só leitor, que seja, opera em si alguma mudança mínima – e esta se soma a tantas outras que se dão, simultaneamente, nos mais diferentes rincões do planeta –, ele move uma força poderosa, capaz de tornar o mundo um lugar melhor para se viver. Afinal, desde que Gutemberg inventou a prensa que deu origem ao livro, tal qual o conhecemos e admiramos hoje, – este que é considerado a maior invenção do último milênio – não são poucas as histórias de personalidades que, sendo leitores e tendo lido qualquer uma das dezenas de milhões de obras já publicadas pela humanidade, acabariam por protagonizar feitos importantes que causaram massivas transformações na sociedade. Se Quintana, Lobato ou Caio Graco disseram, ou não, tais palavras mágicas sobre o poder dos livros nem é o mais importante. Pode, muito bem, ter saído da boca de uma pessoa qualquer, às margens da história, e, mesmo assim, ter chegado ao nosso tempo, de forma tão imponente, a ponto de ter influenciado tantas gerações. Prefiro crer que todos possam, sim, ter dito! 18 E, mais do que isso, que outras tantas pessoas, em diferentes épocas da história humana, tenham se importado e levado adiante a poderosa força dessa ideia. Assim como eu e você, por exemplo, podemos estar, agora, fazendo, ou já fizemos, ou ainda haveremos de fazer no futuro. O que você vai ler neste livro é uma pequena coleção de pequenas histórias de pequenos leitores que são, na verdade, enormes. Após tantas buscas, pesquisas e conversas, a conclusão é que, de fato, os livros, por si só, não têm qualquer condição de mudar as coisas e o mundo. Talvez, ainda, os livros venham a ocupar espaço ligeiramente maior no tempo livre das pessoas, propiciando, assim, conhecimento, melhoramento pessoal, lazer e entretenimento cultural de qualidade. Mas, a julgar pelas histórias colhidas em diferentes locais ao longo dos últimos anos, vivenciadas por homens e mulheres, negros e pobres, crianças e velhos, os livros, com suas histórias e personagens formidáveis, têm sido capazes de provocar pequenas grandes mudanças em cada um de nós. E, então, como nos têm ensinado Quintana, ou Lobato, ou Graco (ou, então, nenhum deles!), serão essas pessoas – que podem atender por nomes como Evando, Otávio ou Esmeralda, personagens deste livro – que encontramos em nosso dia a dia, num açougue, numa 19 borracharia ou numa viagem de barco pelo interior da Amazônia, que seguirão mudando, em tempo real, o mundo em que vivemos. *** Nas páginas que se seguem, eu vou defender as habilidades de leitura e de escrita como ferramentas ímpares para o desenvolvimento individual das pessoas e a transformação da sociedade ao seu redor. Por vezes, pode ficar a impressão de que parece não existir vida inteligente e salvação para a humanidade fora do cultura letrada. Não é assim. O certo é que a leitura e a escrita são formas fundamentais, ou até mesmo superiores, para apoiar e estimular nosso crescimento íntimo, bem como as mudanças no nosso dia a dia do ponto de vista da vida social. E, ainda, as estruturas que lhe dão forma e ritmo. Isso tudo, claro, tendo como referência as formas de sociedade que conformam – mais como regra do que exceção – o mundo como conhecemos atualmente Quando se fala da leitura e da escrita, se fala de capacidades de desvendar códigos e de se manifestar a partir desses sistemas codificados, e, mais do que isso, de capacidades de análise, de reflexão e de sentimento, treinadas pelo contato mais profundo com a literatura. A dignidade que todo ser humano tem por ser humano – por respirar, por se mover, por se alimentar, por sentir, por pensar, por 20 se expressar, por trabalhar, por se emocionar, por sofrer, por sonhar – independe de se saber ler e escrever. Só que o analfabetismo e a incapacidade de uma leitura mais aprofundada criam legiões de excluídos, em locais espalhados ao redor do globo ou áreas específicas de um mesmo país, de uma mesma região, de uma mesma cidade. Assim, é inegável que o domínio sobre a palavra escrita é, sim, uma porta de entrada para um mundo de direitos. A mesma estrutura de poder que não garante uma educação de qualidade para todos, cria oportunidades ou dificuldades distintas àqueles que dominam ou não a palavra escrita e todo o conhecimento formal por ela delimitado. A marginalização dessas pessoas devido à falta de familiaridade com as letras costuma se combinar a outras, tais como classe, raça, gênero, e, mediante às diferentes combinações desses e outros traços, são punidos de formas diferentes. Mas, além da sua dignidade pessoal inerente à experiência humana, a sensibilidade, o conhecimento e a faculdade de expressão, que distinguem alguns como brilhantes, não dependem das habilidades de leitura e escrita. Aquela coisa mágica que torna certos indivíduos grandes – não exatamente aquelas grandes personalidades da história, mas os que conseguem brilhar na sua vida, não importa qual a sua ocupação – nasce em si e independe da leitura e da escrita. 21 O que há de mais mágico, e de mais humano, no ser humano sãos as suas capacidades de sentir, de pensar e de se comunicar. Não é a leitura, não é a escrita. Só que, além de impulsionarem oportunidades e evitarem punições em um mundo seletivo, injusto e cruel, essas habilidades e, especialmente, a leitura e escrita de literatura aproximam as pessoas, por meio da comunicação, de todo o pensar e o sentir que já foram registrados, preservados e que se encontram disponíveis aos potenciais leitores. Aproxima as pessoas de pessoas. A leitura e a escrita trazem em si uma enorme possibilidade de tornar alguém mais humano, na medida em que o colocam para partilhar da humanidade dos outros e, com os outros, compartilhar a sua humanidade. Somada a essa tarefa de mediação e aproximação exercida pela palavra escrita, o consumo de arte, de uma forma geral, e, em especial, da literatura tem a tarefa de promover um tipo de nivelação da sociedade. Enquanto, para alguns, o brilho da sensibilidade e do conhecimento se apresentam de forma natural, para outros, a literatura pode aproximá-los de toda reflexão que não conseguiriam alcançar sem a experiência da leitura. 22 Parte I Os livros mudam as pessoas. 23 A sacola da Dona Jamila ona Jamila já passou dos oitenta, mas conserva uma vitalidade, física e intelectual, impressionante.Uma ou duas vezes por mês, ela sai, cedo, de casa e se dirige ao centro da cidade. Lá chegando, entra direto no velho e imponente casarão que, no passado, serviu de moradia para alguns dos mais poderosos coronéis do café da Velha República. Ela repete, há anos, esse mesmo ritual. Vasculha, cuidadosamente, entre as prateleiras envelhecidas pelo tempo em busca de novidades. Ela só sai de lá quando a sacola estiver cheia. Então, sorrirá aliviada: seu mês está garantido! Ou, como costuma ela mesma dizer, sua vida está, por mais algum tempo, salva. D 24 O que será que a mulher idosa, de cabelos esbranquiçados e de aparência frágil, uma decorrência da idade, carrega na sacola com tamanho apego? — Livros! – ela responde. São quatro ou cinco deles que, invariavelmente, Dona Jamila toma emprestado a cada vez que vai à Biblioteca Altino Arantes, em frente à praça principal da cidade. Mais tarde, quando chegar em casa, vai abrir, calmamente, cada um deles e sorver, primeiro, o que vai impresso na capa e na contracapa. Depois, fará um breve passeio pelas orelhas da brochura e dará uma espiada no prefácio para, então, e, finalmente, mergulhar de cabeça numa nova viagem. Esse ritual é um verdadeiro roteiro de prazer para a mulher. A vista cansada nunca é desculpa. Professora aposentada, Dona Jamila lê quatro horas todos os dias. Em média, é um livro novo por semana. Ou quatro por mês. Ou, ainda, em torno de cinquenta a cada ano. Chova ou faça sol, é sempre assim. Dona Jamila adora os livros de ficção, e, especialmente, as novelas policiais. Nos dias em que vai à biblioteca, ela mais parece uma adolescente revirando as prateleiras atrás de novidades literárias. A mulher trabalhou, boa parte da sua vida, como assistente social, inicialmente em São Paulo, capital, e, mais tarde, no interior do 25 Estado. Embora nunca tenha viajado para fora do país, descreve com detalhes algumas das principais cidades do mundo. — Já estive em Paris, Roma, Londres... – ela anota mentalmente, enquanto relembra curiosidades sobre ruas e lugares das metrópoles mais charmosas do planeta que viu a partir das páginas da literatura. — Minha vida jamais seria a mesma sem os livros – ela assegura, com convicção. A história de Dona Jamila é uma história simples. De uma pessoa comum, “Sem nada demais”, conforme ela própria diz. Mas é a história de alguém que vive a buscar, todo santo dia, em cada nova aventura literária em que se mete, na sua sala de estar ou na calmaria do seu quarto, conhecimento, prazer e novos sentidos para a vida. Rumo aos noventa, a velha professora continua a ensinar uma lição diária sobre o amor pelos livros num país que ainda carece de gente que leia ou que leia mais. A experiência da senhora, é, de fato, algo alvissareiro, exemplo de um bom rumo para o Brasil trilhar. Diante da legião de leitoras de idade avançada como Dona Jamila, que se vê cada vez mais pelos quatro cantos do País, e da força – para os menos atentos – invisível que elas transmitem, não dá para permanecer indiferente. 26 Leitor de florestas e de mundo ilho e neto de ribeirinhos, Tenório passou a infância entre cipoais e banhos de rio na Costa do Cabaleana, lugarejo ermo escondido às margens do Rio Solimões, perto de São Tomé, onde nasceu. Um dos povoados que formam o município de Manacapuru, no interior da selva amazônica, aquela era uma localidade abandonada à própria sorte, onde escola era um luxo que jamais existira. Quem quisesse aprender o bê-á-bá para ser, como se dizia por lá, alguém na vida; que se virasse por conta própria. Com sorte, talvez encontrasse uma boa alma que se dispusesse a ensinar o pouco de escrita e leitura que sabia. Nesse caso, a sala de aula podia ser F 27 improvisada num canto qualquer, pois a falta de espaço não era, propriamente, um problema por ali. Não por outra razão, a mãe de Tenorinho levou um susto danado naquele fim de tarde, ao voltar do trabalho no campo de juta. Ela ficara, justificadamente, surpreendida diante da cena insólita: e não é que seu menino, que jamais botara os pés numa escola, estava lendo de verdade? Devota e temente a Deus que era, a mulher sequer teve tempo para tentar compreender o milagre, já que Tenorinho desembestara a falar e a exibir os seus novos prodígios diante da mãe, estupefata. Parecia ser mais um daqueles mistérios inexplicáveis da floresta, onde a sobrevivência, por si só, já é uma grande façanha, tamanhas as adversidades do cotidiano. O fato é que o moleque agora sabia ler. Aprendera, sabe-se lá como, a juntar letras e a formar palavras. Os poucos entendidos do lugar garantiam que aquela mistureba toda de rabiscos, feitos com um toco de lápis sobre um pedaço de papel puído, fazia, sim, algum sentido. — Bê... Ah... BÁ! – Tenorinho soletrou, com pompa e todo cheio de si. Era uma sílaba, alguém se apressou a explicar. Enfileiradas umas às outras, com certa parcimônia, poderiam constituir palavras ou frases inteiras. Um espanto! 28 Era assim, tratou-se de esclarecer, que as pessoas estudadas da cidade transpunham para o papel suas ideias, o conhecimento que recebiam de seus ancestrais e tudo aquilo que era dito com a boca ou sentido com o coração. Tenorinho enchia o peito: — BA – NA – NEI – RA! À medida que aquele som gutural saía de suas entranhas, parecia ganhar forma, diante de seus olhinhos, a imagem exuberante da planta tropical, com seus cachos amarelos dependurados. O menino Tenório, agora, conseguia ligar nomes e coisas e ampliava, mais e mais, o seu universo pessoal. Anotava, num caderninho, as novas palavras que aprendia e cantarolava, repetidas vezes, para si mesmo até conseguir guardá-las. Cada descoberta era um novo troféu para a sua coleção. A bem da verdade, Tenorinho havia tido, sim, um mestre. Fora um velho tio, que mal conseguia ler e escrever o próprio nome. Mas, como em terra de cego quem tem um olho é rei, dava bem para o gasto. No entanto, danado e ligeiro como só ele, Tenorinho havia, em pouco tempo, aprendido quase todas as palavras disponíveis. Como seguiria aprendendo? Foi quando alguém apareceu com uma bíblia, o livro mais lido do mundo e, por meio do qual, muita gente, como Tenorinho, aprendera a ler. Assim que se alfabetizou, o menino passou a ler, todos os dias, os versículos e salmos para a mãe, que era analfabeta. 29 Ele não sabia, mas naquele singelo gesto de amor começava a ser forjado um eloquente orador. O menino da selva crescia. Por dentro e por fora. Mas as dificuldades não tardaram a surgir. A primeira delas: não havia outros livros no vilarejo. Sem escola, biblioteca, livraria ou uma banca de jornal que fosse, como ele poderia continuar aprendendo? A mãe entendeu que a única maneira de propiciar ao filho a oportunidade que ela própria não tivera – arrumar um bom emprego na cidade grande – seria se mudar para a capital. Tomou o filho pela mão e subiu num barco rumo a Manaus. Era uma mulher de poucas, porém sábias palavras: — Pobre só tem chance de ser alguém na vida se sabe ler e escrever – ela sentenciou, resoluta, antes de partirem. A mudança para a capital do Amazonas, no entanto, não fora suficiente para deixar, de vez, os tempos difíceis para trás. As dificuldades só faziam crescer. O dinheiro mal dava para alimentar as bocas da casa, quanto mais para comprar livros. Mas Tenório não se fazia de rogado. Varava noites, em claro, até decorar trechos inteiros das cartilhas emprestadas dos amigos. Era esse o único jeito de ter acesso ao mundo dos livros e da cultura letrada. O tempo passou e o meninote cresceu. À custa de muita leitura sob a luz de lamparina, Tenório entrou para o curso de Direito da 30 Universidade Federal do Amazonas. Concluiu o curso e, como almejava trabalhar com algode que gostasse muito, acabou indo fazer também o curso de Letras. — Eu estava perdidamente apaixonado pelas palavras... – lembra o, hoje, poeta e professor universitário Tenório Telles, autor de críticas e ensaios, além de editor de livros. No coração da Amazônia, ativista cultural dos bons, ele guarda na ponta da língua trechos inteiros dos livros que decorava. Assim que sobrou o primeiro dinheiro, ele cuidou de comprar vários deles, para poder exibir em lugar de destaque da estante. — São eles a prova viva do poder dos livros de mudar a vida das pessoas. Porque são essas pessoas, depois, que vão mudar o mundo – apregoa doutor Tenório, com a autoridade que a vida e os livros lhe deram. 31 Morador das ruas e leitor ndereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e vive nas ruas. Só não admite que o tratem como mendigo. Mesmo porque, diz, ganha a vida com o suor de seu trabalho como vendedor de pipoca e biscoito nas esquinas da grande cidade. No fim da tarde, separa uma parte da féria do dia, algo em torno de cinco reais, para pagar pelo banho e comida. Sem um teto e um endereço fixo para morar, Márcio costuma dizer que é, de certo modo, uma dessas pessoas que passa todo o dia e dorme no próprio local de trabalho. Pode passar uma noite sob uma marquise ou um viaduto, ou, mesmo, em uma calçada ou praça, dependendo da conveniência do dia. A localidade muda, mas a moradia, em si, é sempre a mesma: o carrinho de mão que ele E 32 próprio construiu com pedaços de madeira e bugigangas encontradas nas ruas. Para quem o vê puxando seu carrinho-dormitório pelas ruas do Rio de Janeiro, é impossível notar qualquer diferença entre Márcio Pereira dos Santos, o Gaúcho, e os moradores de rua que são vistos perambulando pelas cidades brasileiras de Norte a Sul do País. Como qualquer um deles, o rapaz também enfrenta o frio, a chuva, a violência e o julgamento público, independentemente dos motivos que possam ter levado cada um deles a essa situação. Márcio trocou, há três anos, a vida na casa dos pais no Rio Grande do Sul pelas ruas do Rio. Diz que foi uma escolha. Para tentar manter um pouco de sanidade, recorre, diariamente, à leitura. Lê jornais e revistas usados e livros, de ficção aos ensaios sobre política e sociologia. Também é leitor assíduo da bíblia, na qual diz buscar a força necessária para levar sua vida adiante. Por um bom tempo, Márcio, um rapaz bem apessoado de seus 34 anos, lia tão somente para se entreter e fazer o tempo passar, mas, desde que resgatou da lata de lixo a obra Biblioteca de Sociologia Geral, de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar mais pelos temas sociais. Ele gosta de ler e, então, analisar e refletir sobre o conteúdo do que leu, fazendo um cruzamento das leituras com situações pelas quais passou e suas escolhas pessoais. Ultimamente, tem pensado muito, por exemplo, sobre o funcionamento das políticas públicas destinadas aos moradores de rua. 33 — É importante confrontar suas opiniões com as do autor do livro, pois sempre se aprende com isso – ele conclui. Mas não é só nisso que os livros têm mexido com a vida de Márcio. Após uma dessas leituras, ele percebeu que também é um cidadão, com direitos e deveres, como qualquer outro. Ao ler uma notícia sobre o Bolsa Família, um direito de todo cidadão que vive abaixo da linha da pobreza, ele foi atrás e obteve o auxílio. Aonde vai, carrega sempre junto o título de eleitor e sua cédula de identidade. Também possui conta bancária, cartão de crédito e conta de e-mail, que acessa de alguma lan house. Márcio, um admirador confesso de Monteiro Lobato, diz que também encontra nos livros uma forma de serenidade: — Ler me faz relaxar a mente. 34 Os olhos de Dona Lydia ona Lydia sempre teve uma queda pelas palavras. Como não sabia ler, passava horas ouvindo e tentando distinguir, pela sonoridade, o sentido e o significado delas. Analfabeta até a idade madura, Dona Lydia viveu a maior parte de sua vida apartada da forma grafada e impressa das palavras. Estas que se materializam e vêm à luz quando se juntam letras, esses sinais que, se bem empregados, dão vitalidade e perenidade a frases, ideias e pensamentos. Embora nunca tenha se dado conta disso, Dona Lydia sempre foi uma poetisa de mão cheia. Morando a vida toda num povoado caiçara no litoral de São Paulo, ela buscava no mar a inspiração para D 35 expressar, do seu jeito, como enxergava e sentia o mundo e as coisas ao seu redor. Podia ser de um acontecimento simples do seu cotidiano a algo subjetivo que a deixava emocionada, como a beleza diária daquele cenário composto de montanhas, céu e mar. Para não deixar se perder a magia daqueles instantes, a mulher criava e armazenava os versos na cabeça. Como Deus costuma escrever certo por linhas tortas, o destino fez com que ela sentisse na pele, amargamente, o quanto a falta de intimidade com a palavra escrita pode afetar, negativamente, a vida das pessoas. Mas, por outro lado, Dona Lydia foi sacudida para a percepção do quanto a leitura e a escrita ainda poderiam modificar a vida dela e de outras pessoas. Já na entrada da velhice, Dona Lydia se viu na obrigação de regularizar as terras herdadas do avô, entre Peruíbe e Itanhaém. Eram o único bem material dela e da sua família nesta vida. Foi onde toda a parentela nasceu, cresceu e de onde, durante décadas a fio, tirou o sustento. Mas o advogado que foi contratado para solucionar o imbróglio se aproveitou do fato de ela não saber ler para ficar com metade da propriedade – único ganha-pão da família, que sobrevivia do cultivo de milho, batata e melancia. Depois disso, a mulher, resoluta, tomou uma decisão. Iria para a escola e nunca mais seria enganada por não saber ler. Mas Dona Lydia, além de aprender a ler e a escrever, encantou-se com os livros 36 e com os estudos. Apaixonou-se pelos versos de Carlos Drummond de Andrade e Castro Alves e, aos 75 anos, resolveu fazer faculdade. Dez anos depois, Dona Lydia S. Gonçalves – como passou a grafar o próprio nome – tornou-se escritora, tendo publicado vários livros com os seus poemas e os aforismos que colecionou por toda a vida. Com os vários diplomas numa parede e uma farta coleção de livros nas outras, é ela agora que ensina, do alto da autoridade do seu próprio exemplo de vida: — Aprender é como abrir os olhos. E nunca é tarde para isso! 37 O menino do Desemboque ascido menino pobre no Desemboque, interior de Minas Gerais, Ariclenes sonhava, desde pequeno, com a cidade grande. Queria ser famoso e, um dia, conhecer as cantoras do rádio, ícones daquele Brasil rural da primeira metade do século XX. Vivia suspirando pelos cantos só de pensar em namorar alguma delas. Acontece que Ariclenes, ou Ari, vivia num lugarejo longínquo, em meio a um punhado de vivas almas, no coração perdido do Brasil. Por mais que tentasse pensar numa saída, não lhe ocorria nada tão genial que pudesse, enfim, fazê-lo, um dia, chegar lá. N 38 Enquanto sua sorte grande não chegava, Ari ajudava o pai, boiadeiro, na lida com o gado. Para faturar uns trocos, ele vendia fotos da mãe, que era artista de circo. Assim seguia o menino tocando sua vidinha, que dizia, ser sem eira nem beira. Mas, um dia, Ari tomou coragem, subiu na carroceria de um caminhão e seguiu no rumo de São Paulo. Estava firmemente decidido a cair na estrada em busca do seu Eldorado. No meio do caminho, contudo, o menino apeou da condução. Nunca tinha ouvido falar daquele lugar onde estava. Se ainda não era aquela a metrópole com a qual tanto sonhara, ele, ao menos, poderia, ali, ir se acostumando, aos poucos, com a vida de cidade grande. RibeirãoPreto ficava bem no meio do seu caminho para a capital. Com os seus cabarés, teatros, radionovelas e uma vida noturna movimentada até demais para o garoto caipira recém-chegado do Desemboque, no Triângulo Mineiro, bem que podia servir como experiência e, ainda, um trampolim para um salto na vida. Resolveu ficar uns tempos por lá. Na esteira da derrocada dos barões do café, a cidade vivia novo surto de prosperidade. A industrialização nascente e os novos ricos, daqueles tempos de mudança do Brasil rural para o Brasil urbano, dominavam o cenário político e econômico da cidade. 39 Ari, um frangote de não mais do que dezesseis anos, foi morar numa pensão e, logo, arrumou ocupação. Empregou-se como carregador numa loja de materiais de construção. Lá, no embalo do progresso daqueles anos 30, os canteiros de obras pipocavam por toda parte e, com isso, punham mais mercadoria na cacunda do rapaz. Por isso, foi uma benção aquele santo dia em que os livros entraram na vida dele. Foi tudo por acaso. Ari só queria mesmo dar uma escapadela do sol fatigante que fazia a carga sobre seus ombros magricelas parecer pesar toneladas. Ao passar diante daquele casarão majestoso, de frente para a praça central da cidade, o rapaz empacou. Pessoas que entravam e saíam chamaram a sua atenção para aquele lugar que parecia ser um espaço público. Sem muito pudor, ele ajeitou no chão, calmamente, o vaso sanitário que trazia sobre as costas. Só deu uma olhadela para os lados para se certificar de que ninguém o espiava para dedurá-lo ao patrão e entrou. Quase diante do Theatro Pedro II, majestosa casa de ópera daquela terra de coronéis, o velho Solar dos Junqueira já não era o mesmo. Em vez das romarias de líderes políticos e de apadrinhados atrás dos favores dos barões do café, no casarão, agora, funcionava uma... biblioteca. Ele levou um baita susto. Mas, já que estava lá dentro mesmo, Ari resolveu permanecer. Afinal, pior do que a carga pesada e do sol escaldante que o aguardavam do lado de fora é que não podia ser. 40 Aquela seria, anos mais tarde ele diria, a mais sábia decisão de sua vida. No início, precisou controlar o pavor que passou a tomar conta de si. Tentava adivinhar quem seriam aquelas criaturas bem vestidas, totalmente estranhas a sua vida roceira. Circulavam, com desenvoltura, entre as estantes, poltronas e as largas mesas em estilo colonial. Talvez fossem, ele deduziu, poetas, professores ou alunos do Ginásio do Estado – que era uma espécie de chave do céu para os rapazes e moças que, na transição de uma monocultura cafeeira para uma economia mais industrializada, aspiravam por ascensão social. Se quisesse, portanto, permanecer mais tempo no local, misturado aos leitores intelectuais, teria ao menos que disfarçar. Pegou o primeiro livro à sua frente e folheou algumas páginas, mas, logo, fechou e o colocou sobre a mesa escura. Voltou o olhar para a capa do livro e o título impresso em letras garrafais chamou a sua atenção: Grandes Esperanças. O autor era um certo Charles Dickens, um famoso desconhecido para o garoto do Desemboque. Decidido que estava a parecer, ao menos aos olhos dos que ali estavam, um leitor de verdade, tinha que se esforçar mais. Num gesto largo e pausado, sentiu-se no meio de um palco no circo, vivendo a vida de outro personagem, como tantas vezes sua mãe fizera. Olhou, atentamente, as letras miúdas, franziu a testa e fingiu concentração. Só conseguiu relaxar minutos mais tarde, quando, ao 41 tatear uma vez mais a brochura e, finalmente, abri-la, deixou-se levar pela narrativa vibrante. Ao contrário do que esperava, sorvera com certo gosto as páginas iniciais. Aventurou-se por mais algumas e, sem que se desse conta, fora, repentinamente, abduzido por aquela história, e totalmente absorto pela leitura. Já não conseguia mais desgrudar os olhos do livro. E tampouco se preocupava em disfarçar; agora, já devorava uma página após a outra, e tudo, num fôlego só, vivenciando um terrível conflito íntimo. Ao mesmo tempo em que desejava, ardentemente, chegar à última página do livro, já sofria com a possibilidade de fim daquela história. Ari, definitivamente, fora fisgado pelos livros. Daquele dia em diante, a literatura nunca mais sairia de sua vida. O moço estava sempre com um livro nas mãos – eles seriam, por sinal, uma companhia constante na vida do caipira recém-chegado à cidade. Sua sensação era que, finalmente, encontrara a chave para uma vida melhor que tanto procurara em sua vida. Em seu primeiro teste para locutor, já em São Paulo, Ariclenes tropeçou no sotaque caipira. Mas não desistiu, arrumou um emprego de contínuo na Rádio Difusora e seguiu adiante. Logo depois, foi promovido a sonoplasta. Na primeira oportunidade, conseguiu um papel para uma ponta numa radionovela. Nunca mais parou. 42 Meio século depois, e agora famoso, sob o pseudônimo de Lima Duarte, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira de todos os tempos (afinal, como ele dizia, Ariclenes Venâncio não era nome de artista que se prezasse), o menino do Desemboque está mais convencido do que nunca que foram os livros a sua tábua da salvação. — Antes dos livros entrarem na minha vida – ele se diverte, com o sotaque ainda inconfundível – eu não passava era de um anarfa... 43 Amyr e o mar mbora vivesse não muito longe do Atlântico, Amyr morria de medo do mar. Era um trauma de infância. Ainda pequeno, estava com o pai e os irmãos na praia quando foi derrubado por uma onda forte, algo que acontece com, basicamente, todo mundo que vai à praia quando criança. Porém, o que em alguns resvalam, em outros fere fundo. O caso é que, mesmo adulto, ele teve muitas dificuldades para superar aquilo. Por isso, arriscar-se além da beira-mar não era, exatamente, sua diversão predileta. Quando terminou a faculdade de economia, Amyr optou por fincar mais os pés em terra firme, tomando a decisão de administrar a E 44 fazenda da família e lidar com gado e leite. Tudo que desejava era ter um chão seguro e palpável. Mas os livros fariam esse Amyr, já adulto e recém-saído da faculdade, a reaprender a gostar do mar, rendendo-se à possibilidade infindável de aventuras oferecida tanto pela imensidão da literatura quanto a dos oceanos. As histórias fascinantes sobre marujos, navios e ilhas perdidas ajudaram a trazer de volta aquele menino que se assustara com as ondas. Uma dessas histórias que o encantaram foi A Expedição Kon-Tiki, do antropólogo norueguês Thor Heyerdahl, que navegou do Peru à Polinésia, numa jangada construída por nativos, para provar que civilizações sul-americanas podiam muito bem ter cruzado mares para povoar as ilhas do Pacífico. Também ficou fascinado pelas aventuras de O Último Lugar da Terra, de Roland Huntford, sobre a disputa, no século passado, entre exploradores ingleses e noruegueses pelo Polo Sul. E se maravilhou com os poemas do poeta Fernando Pessoa, um de seus prediletos, que vivia a soprar em seu ouvido que, sim, navegar era preciso. Mas o que o faria voltar de corpo e alma para o mar, que não desistira dele, foi O Grande Inverno, escrito por um casal de aventureiros que ele conhecera em uma de suas férias em Parati. Sally e Jérôme Poncet viviam uma vida modesta e sem grandes solavancos num barco velho e enferrujado, no qual haviam 45 compartido uma inédita viagem ao território desconhecido e gelado da Antártica. A história nem era tão espetacular assim e, de certo modo, até desmistificava um pouco a ideia de grandes epopeias vivenciadas por aventureiros em alto-mar. Era tão somente um singelo, porém apaixonado e poético relato sobre a experiência do casal francês. Durante a viagem, Sally engravidou em pleno inverno polar e decidiu ter o filho lá mesmo, naentão desabitada e inóspita Geórgia do Sul. Ao chegar à última página, Amyr sabia exatamente o que faria da vida dali em diante: seria um navegador. Ele começou a se preparar lendo mais relatos de navegação e manuais, e passou a se dedicar mais aos treinos da sua equipe de remo do Espéria, clube da elite paulistana. O passo seguinte foi comprar uma canoa e, em seguida, um barco a remo. Com o tempo, passou a construir os próprios barcos. Não tardou para Amyr Khan Klink, filho de um imigrante libanês e uma artista plástica sueca, tornar-se um dos grandes heróis nacionais dos nossos tempos. Sua primeira grande proeza foi atravessar o litoral brasileiro numa pequena canoa. Em seguida, cruzou, solitário, desde a África, o Oceano Atlântico a remo. Depois disso, circunavegou o globo, perfazendo mais de 400 mil quilômetros nos mares. 46 Bom leitor e excelente contador de histórias, Amyr aproveita, entre uma e outra aventura, para escrever os próprios livros. Assim nasceu Cem Dias entre o Céu e o Mar, um deles, que já vendeu meio milhão de cópias. Cada vez que ele vai se lançar numa nova aventura, Amyr Klink se planeja bem e, antes de zarpar, toma todas as providências e precauções. Como é indicado nesses casos, leva só o essencial para suas temporadas sozinho em alto mar – sendo que algumas podem durar mais de ano. Algo que não pode faltar na sua listinha de prioridades: os livros. Numa das viagens, Amyr carregou nada menos do que meia tonelada deles. Afinal, diz Amyr, fazendo troça do trauma que o afastou dos mares, não fossem os livros ele estaria hoje com cracas nas canelas de tanto andar à beira-mar. Foram os livros, ele assegura, que deram um sentido novo para a sua vida. 47 O livro dos livros ma é Maria das Graças. Outra é Maria Augusta. A terceira delas atende pelo nome de Joanice. Todas elas estão com os filhos criados e frequentam a mesma igreja na periferia de Belo Horizonte, a capital mineira. Tal como as outras mulheres da mesma faixa etária com quem elas convivem no dia a dia, as três levam, mesmo em uma grande cidade, uma vida pacata. Também em comum entre as três há o fato de que, só agora, já na idade madura, é que estão tendo, pela primeira vez na vida, contato com as letras e com os livros. As duas Marias mais Joanice se conheceram lá mesmo, na igreja do bairro. Apesar de trajetórias de vida distintas, as três mulheres partilham, atualmente, de um mesmo sonho: elas estão ansiosas para U 48 conseguir ler o seu primeiro livro, o primeiro desde que se conhecem por gente. Mas, para elas, não vale um livro qualquer. As três foram fisgadas, a essa altura da vida, para frequentar a escola de jovens e adultos por causa do sonho por elas compartilhado de conseguirem, sozinhas, ler a bíblia. Até então, só tomavam conhecimento das belas passagens do Evangelho, que tanto faziam bem para seu estado de espírito, durante as preleções. A intenção delas, desde o início, era aprender a ler para, assim, tentar abrir um canal direto com Deus e, com isso, receber a palavra diretamente, a qualquer hora do dia ou da noite e, sobretudo, em horas de necessidade. Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, já se dá por contente se, um dia, conseguir ler, sozinha, um salmo inteiro. Antes de começar a ir à escola, ela chegava a decorar trechos inteiros da bíblia, para poder recorrer nas horas de precisão. Dona Joanice já foi cozinheira, faxineira, lavadeira e servente, entre outras coisas. Ela criou cinco filhos, dois dos quais foram adotados, todos os cinco alfabetizados, e garante que, agora, não desperdiçará a oportunidade de se alfabetizar e ler, ela própria, os livros que desejar. A história dela não é muito diferente das histórias de outras mulheres do Alto Vera Cruz, bairro da periferia de BH. Dona Maria das Graças da Silva, dois anos mais velha e mãe de dezenove filhos, dez dos quais, ainda vivos, tem uma história prosaica. Ela não se 49 alfabetizou porque era proibida pelo pai de ir à escola em Jequeri, na Zona da Mata mineira, para que não ficasse uma moça “assanhada” e “namoradeira”. — Nunca tive tempo pros cadernos... – ela diz, lembrando que, ao constituir a própria família, a prioridade, então, passou a ser botar comida na boca da filharada. Só bem mais tarde, Dona Maria das Graças desconfiou que, se não soubesse ler e escrever, jamais conseguiria ir muito longe. — Não há nada pior do que não saber ler – ela atesta. — Eu, mesma, nunca pude ir sozinha aos lugares por não saber o preço das coisas e nem conseguir tomar um ônibus. O mundo, ela desconfia, funciona com códigos: — E eu não conseguia decifrar nada daquilo... A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, dá o tom: — Até que analfabeto acha emprego. Mas pode ver que é faxineira, lavadeira, servente de pedreiro. Passa muita humilhação e ganha muito pouco. Para quem não sabe ler, está tudo fechado. Depois da bíblia, as futuras leitoras prometem não parar por aí e já ficam imaginando o que vão encontrar em outros livros. Em países de tradição cristã, a leitura da bíblia costuma ser uma porta de entrada para muitos não leitores ao mundo da palavra escrita. Ela é o livro mais lido e o mais relido do Brasil, além de ser, segundo os leitores, o que mais mexeu com as suas vidas. Até entre 50 quem nunca leu um livro inteiro, muita gente tem o costume de ao menos dar uma espiada nos versículos de vez em quando. É provável que boa parte dos neoleitores da bíblia nunca irá além de uns pequenos trechos do livro sagrado na hora de dormir ou ao acordar. E isso bastará a eles. O que não deixa de ser, uma experiência concreta com as práticas leitoras. Haverá, entretanto, outro grupo de leitores que, após algum tempo, já não se contentará só com esse tipo de leitura e partirá para outros, o segmento mais ampliado de livros religiosos, e, na sequência, é possível, outros gêneros. Alguns entre eles talvez se convertam em textos literários. Uma só ovelha trazida para o seio do rebanho universal dos leitores já vale muito a pena. Muito porque serão essas mesmas ovelhas – que podem atender por nomes como Maria das Graças, Maria Augusta ou Joanice – que vão ajudar, mais tarde, a semear para outros rebanhos a boa nova dos livros. E, com eles, a vitória da luz, do conhecimento e da razão sobre o obscurantismo e a ignorância das trevas. 51 O livreiro que não sabia ler m um ano comum, Seu Leonídio costuma ler, por baixo, quarenta livros. Ele lê diferentes gêneros literários, e, praticamente, ao mesmo tempo. Leitor compulsivo confesso, admite que não sabe direito o que fazer se não há um livro por perto e ao alcance da sua mão, seja no carro, ao lado da cama ou no banheiro da casa. Mas nem sempre foi assim. A aventura literária de Seu Leonídio só começou em seus 20 anos de idade. Antes disso, ele era analfabeto de pai e mãe, mas nem por isso vivia longe dos livros. Muito tempo antes de conseguir decifrar uma só letra do alfabeto, Seu Leonídio já era, creia, um livreiro. Como vendedor de livros que batia de porta em porta, atrás dos E 52 compradores, ele tinha uma freguesia fixa e era o livreiro de confiança de muita gente. Portanto, primeiro, ele estabeleceu, ainda que não soubesse ler e escrever, uma intimidade improvável com os livros e seus autores. Só muito depois é que conseguiu a habilidade necessária para poder decifrá-los e compreendê-los. No Brasil de meados do século XX, quando o analfabetismo ainda era muito alto no País, se comparado a bons indicadores internacionais, este homem saía à caça de freguês a freguês, estivessem onde estivessem. Vendia nas ruas, nas casas, permanecia plantado nas portas de fábricas e escritórios, e nos mais inesperados lugares, desde que,ali, pudesse existir algum comprador de livro em potencial. De livro em livro, ele vendeu, ao longo da vida, milhões deles. Mais tarde, já alfabetizado, chefiou pequenas legiões de vendedores porta a porta e, como editor, publicou perto de dois mil títulos. Não é pouco, principalmente para esse alagoano de Arapiraca, que, decidido a mudar de vida, correu atrás de um futuro igualmente incerto na cidade grande. Ele começou fazendo pequenos bicos em São Paulo, onde seu primeiro emprego foi de faxineiro. Nos corredores da pensão onde foi viver, nos arredores da Praça João Mendes, no centro de São Paulo, o rapaz moreno de porte atlético conheceu alguns vendedores de livro. 53 O moço, logo, encantou-se com os relatos apaixonados e, em especial, com os causos hilários que aconteciam no dia a dia dos vendedores de livros, as suas divertidas e inesperadas situações no trabalho. Aqueles homens saíam cedo da pensão e batiam de casa em casa para oferecer livros a quem não tinha tempo, gosto, dinheiro ou mesmo que não sentia a menor necessidade de ir a uma livraria. Embora não conseguisse decifrar uma só palavra estampada nos livros que deveria vender, o novo e promissor vendedor se animou com o desafio e, em pouco tempo, sentia-se como um veterano do ramo. Para que não percebessem que o homem que vendia livros não tinha a menor ideia do conteúdo do produto que tentava empurrar aos outros, Leonídio tinha suas próprias artimanhas. Ele decorava o título, o autor e o resumo da capa e da contracapa, que algum colega lia para ele, e surpreendia a clientela declamando, em alto e bom som, as informações principais. Com graça e estilo, estabelecia de cara uma empatia com o freguês, aproveitando para fugir de eventuais saias justas. Não tinha erro: tirava um pedido atrás do outro – que ele pedia para o próprio cliente preencher, como uma cortesia do seu vendedor. Os truques de venda e o talento nato para o ofício ele aprendera nos idos tempos em que vendia galinhas vivas, que carregava dependuradas em pedaços de pau sobre os ombros. Lidar com livros, ele racionou com a astúcia de vendedor, certamente, seria 54 muito mais fácil, já que eles sequer faziam barulho e tampouco se alvoroçavam. Um dia, contudo, um dos clientes percebeu que o vendedor inventava sempre uma desculpa diferente na hora de preencher os pedidos. Ele não deveria saber ler, desconfiou o homem, um advogado, que acabaria por convencer Leonídio que nunca é tarde para ir à escola. Turrão como ele só, Leonídio, que sempre havia sido autodidata, decidiu que faria do seu jeito. Acabou se alfabetizando sozinho, enquanto lia placas de rua, reclames na TV e as capas dos livros que vendia. Quando já casado e pai de seis filhos, fez questão de que todos eles tirassem o diploma da faculdade. Depois que descobriu a escrita e a leitura, jamais deixaria de transmitir, à filharada o valor da escola. Com o dinheiro que juntou vendendo livros, Leonídio comprou um prédio de apartamentos inteiro na Aclimação, bairro paulistano de classe média, e trouxe todos os parentes de Alagoas para morar perto dele. Foi lá que ele montou sua primeira editora. Se o assunto é livro, Leonídio Balbino, o livreiro que não sabia ler, transforma-se. Ele pode falar por horas a fio, sem se cansar, até convencer seu interlocutor por que ler livros é mesmo tão imprescindível e pode, realmente, melhorar a vida das pessoas. Se lhe dão trela, ele repete, à exaustão, sempre com gestos largos, sua ladainha predileta: 55 — Tem que ler, tem que ler, tem que ler... No livro autobiográfico que escreveu para narrar sua história, O Operário do Livro, Seu Leonídio, que se tornou cidadão honorário do Rio e de São Paulo, não deixa de relatar os momentos dramáticos que passou pela vida. Porém, otimista de plantão que é, Leonídio Balbino gosta de contar que chegou aonde chegou graças a uma feliz combinação de três coisas: uma vontade incrível de viver, a confiança em si próprio e, naturalmente, os livros. 56 Livro de “um reais” unca soube o nome dela. E as chances de voltar a encontrá-la, algum dia, são bem remotas. De seu rosto magro, contudo, não há como esquecer. E menos ainda de seus olhos negros e redondos que não pediam, mas, com determinação, praticamente exigiam. Não era para ela, fizera questão de explicar. Era para o filho, que ainda não estava na escola. Não queria esmola. Só desejava comprar um livro, com o mísero dinheiro que dispunha no momento. Apesar de não tê-la encontrado novamente; durante anos, a imagem dessa mulher reapareceria para mim outras vezes. Como nas ocasiões em que eu precisava falar em público, para membros do governo ou representantes do mercado editorial, como os livros e a N 57 leitura podem mexer com a vida das pessoas e, portanto, sobre a necessidade de se garantir o acesso a eles, seja gratuitamente ou pagando por preços acessíveis. A mulher desconhecida – que seguirá anônima, para mim, e, talvez, sempre invisível, aos olhos do Estado e da própria sociedade – certamente teria muito a dizer sobre isso. Era uma manhã fria de agosto, primeiro dia da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso se deu lá, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Importantes editores, livreiros e escritores estavam na cidade. Muitos deles haviam cruzado o país só para isso. Nos dias seguintes, aproveitariam os holofotes para falar da função social da leitura e o quão importante é tornar o Brasil um lugar de leitores. A mulher surgiu do nada, quando ainda restavam boas horas para a cerimônia de abertura e início da programação farta – com escritores, venda de livros, cinema, teatro, exposições e outras artes, com a literatura como um fio a conectá-los. Ela, calmamente, estacionou o carrinho de mão no meio fio e, mesmo maltrapilha, não se intimidou diante dos homens de terno e gravata, que discutiam com entusiasmo sobre livros. Sem cerimônia, a catadora de papelão enfiou uma das mãos por dentro o vestido, na altura dos seios, e exibiu a cédula de R$ 1,00, que parecia ser tudo o que tinha naquela hora do dia. Talvez fosse mais sensato trocar por pães amanhecidos na padaria da esquina ou 58 inteirar para levar um litro de leite para casa no final da jornada. Mas, não. A mulher caminhou resoluta, na direção dos negociantes de livros, sabendo o que seria. Sem dirigir a palavra a nenhum deles em especial, lascou: — Tem aí livro de “um reais”?! – ela esclareceu, – É pro meu filho, que tá na idade de ir pra escola. Quero dar um livro a ele para que seja alguém na vida. A fala pungente calou fundo naqueles homens dos livros. Embora o Brasil esteja entre os dez maiores produtores de livros do mundo, o acesso a eles no País consegue ser ainda pior do que a desigualdade social. Só uma em cada oito pessoas compra livros. Mais e mais pessoas, nos dias atuais, reconhecem a função social e transformadora da leitura na sociedade. E a julgar pela fala simples, mas poderosa, dessa catadora de papel, é possível supor que a relevância da leitura também cresce, e, aos poucos, se consolida, no imaginário popular. Nesse caso, embora analfabeta, o que ela mesma afirmaria, a mulher intuiu que poderia estar ali, em meio aos livros, a chave do futuro para seu menino. Do contrário, a continuar apartado do acesso à educação e ao conhecimento – materializado diante dela na forma de livros –, deveria engrossar a lista de candidatos a engordar as estatísticas oficiais sobre miséria, desemprego, fome e violência. Mas para a catadora de papelão atrás de um livro com preço compatível ao seu bolso, um livro tem um significado que vai além 59 do objeto que seus olhos veem. Porque não se resume ao maço de papéis costurados e manchado com tinta, que, a rigor, ele é. O quea mãe catadora vê é um sonho, um futuro e oportunidades que ela e o pai da criança, provavelmente, nunca tiveram. Talvez um emprego com carteira assinada, duas ou três refeições no dia e alguma dignidade na vida. 60 A bola e o livro dward estava, porque estava, convencido de que, no futuro, ainda ganharia a vida correndo atrás de uma bola: queria ser jogador de futebol profissional. Após uma meteórica estreia no seu glorioso Mirassol Futebol Clube, orgulho da cidade, ele, em seus sonhos infantis, jogaria, em seguida, em um dos times grandes do Rio ou de São Paulo para, então, partir direto para a seleção, como um ídolo festejado do escrete nacional. Naqueles tempos, meados do século passado, jogar no exterior era algo absolutamente fora de questão. Era este o sonho de Edward e de milhões de outros garotos, fossem pobres ou fossem ricos, no futuro País do Futebol. Era difícil E 61 encontrar algum que não almejasse ganhar fama e glória nos estádios. No caso de Edward não seria exatamente por falta de treino ou dedicação diária que esse sonho deixaria de se realizar. Afinal, todo santo dia, ele e um punhado de amigos praticavam, em renhidas peladas de rua nos campinhos de terra de Mirassol, interior de São Paulo, o esporte bretão que, supunham, deveria alçá-los ao estrelato. Edward não estava de todo enganado. Uma bola de futebol estava, de fato, entre ele e seu destino. Não era, contudo, exatamente como sonhara. Certo dia, Edward participava de um concorridíssimo racha no pátio da escola. De repente, um colega de time deu um tremendo chutão que fez com que a bola fosse parar lá longe. O craque, naquele instante envergando a gloriosa farda do Grupo Escolar de Mirassol, na plenitude de seus não mais do que oito anos de idade, foi, prontamente, escalado para resgatar a pelota, que, desgraçadamente, enfiara-se por uma maldita janela aberta. O mundo era mesmo injusto. Era sempre a mesma coisa: os grandes mandavam e aos menores não cabia outra coisa senão obedecer. Convertido, momentaneamente, em gandula oficial da peleja, lá foi o candidato a futuro atleta atrás de localizar o paradeiro da preciosa. Mas alguma coisa do outro lado da parede chamou a atenção do menino. Edward se intrigou diante do cenário inesperado: jamais vira tantos livros juntos! 62 Do outro lado da janela, funcionava a biblioteca da escola que, justo naquela manhã, recebera um acervo novo de livros. Eram livros de literatura para crianças. O pequeno Edward pegou um deles nas mãos – A Banana que Comeu o Macaco, ele jamais se esqueceria – e se deixou levar pela história, que leu até o fim. Ele nunca voltou para retomar aquele jogo de futebol. Nos trezentos e sessenta e cinco dias seguintes, Edward contabilizaria nada menos do que duzentos e cinquenta livros lidos – para se ter uma ideia, basta dizer que só em 2017 a média anual de livros lidos por brasileiro chegaria a cinco livros por habitante/ano. O menino parecia mais uma máquina leitora! Como o Edward manuseava com rara habilidade a arte das palavras, um professor inscreveu, sem que ele soubesse, sua redação escolar em um concurso estadual. A notícia fez o menino pular de alegria: ele fora classificado em primeiro lugar! Enquanto abiscoitava um prêmio aqui e outro acolá, o agora rapazote passou a faturar uns trocados com a habilidade recentemente conquistada. Sua intimidade com os livros ficaria patente ao prestar concurso público para o Banco do Brasil, posto cobiçadíssimo por legiões de jovens atrás de carreira estável e do status conferido pelo cargo. A primeira notícia não fora nada boa: havia tirado um baita zero em Contabilidade. Só que, ao ver as outras notas, a surpresa: dez nas 63 demais disciplinas. Na hora H, o costume de ler bons livros o ajudara a conquistar o emprego. Noutra ocasião, o jovem corrigiu, durante uma aula, e sem grandes pretensões, a professora do cursinho preparatório. Sua argumentação fora tão consistente que a escola resolveu contratá-lo no lugar dela. Mais uma vez, os livros dariam um empurrão em sua vida. Mais tarde, já na faculdade, preocupado que estava com as dificuldades para acompanhar as aulas de latim, Edward foi a um sebo atrás de livros usados para aprimorar seus conhecimentos no idioma. Fez resumos primorosos para cada livro que lia. Ele sequer desconfiava, mas acabara de escrever o manuscrito do seu primeiro livro, um dos muitos que publicaria pela vida afora. Com o tempo, Edward Lopes se tornou um dos mais brilhantes linguistas do País e, hoje em dia, não há estudante de Letras que não tenha recorrido a uma de suas obras sobre semiótica e linguística. Quem sabe o escrete canarinho não perdeu um grande talento com a bola nos pés. Não sei. Mas, com certeza, o Brasil ganhou um tremendo talento das letras. Que, longe das quatro linhas do gramado, tem ajudado a formar várias gerações de mestres que, eles próprios, igualmente craques das palavras, têm, por sua vez, despertado o gosto de ler, a cada ano letivo, em milhões de novos leitores verde-amarelos. O País da bola carece e agradece. 64 Lições de Dona Maria or que, afinal de contas, as pessoas leem e escrevem? E por que é absolutamente essencial a leitura para se viver na sociedade moderna? As respostas a estas perguntas costumam variar de acordo com o interlocutor e suas áreas do saber. Todas, entretanto, remetem a uma questão central: a necessidade imperiosa que temos de nos comunicar uns com os outros, de compreender coisas e de nos fazer entendidos. Também nos ensinam que saber decifrar os códigos – o que chamamos de letras e palavras, matéria prima das frases – vai nos ajudar de várias maneiras pela vida afora. Ainda nos lembram o quanto a invenção dos alfabetos foi fundamental para a estruturação P 65 da humanidade tal qual a conhecemos hoje. E, por fim, que assim podemos nos apropriar do conhecimento universal, que é o grande legado acumulado através dos tempos pelos homens e mulheres. A saudável troca de experiências entre leitores, autores e seus personagens, cada qual com sua visão distinta de mundo, que se dá no ato de ler, tem o poder de operar em nosso interior reflexões surpreendentes. Essa é uma forma de gerar, continuamente, novos modos de ver, sentir e compreender as coisas. O que abre, sem dúvidas, caminho para atitudes e posicionamentos igualmente novos. Sem contar que o exercício de enxergar com os olhos do outro é uma forma extraordinária para se gerar mais tolerância, algo, evidentemente, indispensável nos processos de paz, mas, na verdade, necessário para a vida em sociedade de um modo geral Há, enfim, todo tipo de respostas e, provavelmente, todas com boa dose de razão. Vejamos, agora, o que tem a dizer sobre isso uma mulher camponesa de seus 70 anos, mãos calejadas, que duas ou três vezes por mês comparece, religiosamente, a uma sala de aula de alvenaria improvisada no acanhado salão de reuniões do Horto Guarani, perto de Guariba – no interior de São Paulo, epicentro da revolta dos boias-frias ocorrida em maio de 1984. Ali, foi instalado o primeiro assentamento da reforma agrária no coração da mais importante e poderosa região do agronegócio no Brasil. 66 Dona Maria Terezinha – é este o nome dela – tem uma percepção e uma teoria toda própria sobre o tema, que, por mais que se esforce, tem certa dificuldade para expressar: a função social da leitura e da escrita na vida de gente como ela, que trabalha duro na roça durante o dia e, à noite, espreme-se sobre bancos toscos de madeira, enquanto o sono permite, para aprender a ler e escrever. Sem dominar a capacidade de leitura e escrita, Dona Maria se acostumou a recorrer aos rabiscos rudimentares – como nos primórdios faziao homem das cavernas – para registrar os relatos sobre seu cotidiano e o que vai dentro de sua alma. Em um desses desenhos, ela aparece jogando milho para as galinhas no quintal do sítio em um dia ensolarado. Em outro, ela está rodeada pela parentela, com a natureza exuberante às suas costas em uma ocasião que parece ter sido muito especial para ela e sua família. Dona Maria também registrou com entusiasmo o dia em que participou do mutirão que ergueu a sua primeira casa própria naquelas terras devolutas, antes tomadas por eucaliptos, no horto localizado no município de Pradópolis. Há algumas semanas frequentando a escola noturna do assentamento, por ora, Dona Maria mal consegue desenhar o nome. Para ela, entretanto, isso já é muito, e ela comemora com um sorriso de criança cada nova letra que consegue transpor, na forma de garranchos quase ilegíveis, do quadro negro da parede para o 67 caderno. E ela o faz com a mesma devoção com que faz a oração do dia antes de se deitar. Para esta mulher camponesa, desenhar o próprio nome já foi uma grande vitória. No dia em que ela foi à agência bancária receber a aposentadoria, o gerente a convidou para ir até sua mesa. Nessa hora, ela se emocionou: seria a primeira vez em sua vida que não teria que passar pelo constrangimento de carimbar as digitais e sair da agência com os dedos sujos de tinta. A felicidade que a mulher septuagenária sentiu naquele momento não tem preço! Dona Maria saiu do banco tão leve e confiante que encomendou, na mesma hora, uma nova carteira de identidade, na qual já não apareceria a expressão que calava tão fundo em seu peito: “analfabeta”. Mas Dona Maria sabe que é só o começo e que há um longo caminho pela frente para que possa adentrar, para valer, no complexo universo das letras. Também está consciente de que, apesar da idade avançada e da fadiga diária que deixa as vistas mais cansadas do que antes, terá que dar duro nas aulas. Mas dar duro no batente é algo que, afinal, ela já faz a vida inteira na roça. Empurrada por uma força que não sabe dizer de onde vem, essa mulher faz questão de registrar no caderno cada nova palavra que vê nos livros. Nessas horas, é tomada por uma alegria incomum. Ainda assustada diante de tantas sensações desconhecidas, Dona Maria Terezinha – mais uma candidata a integrar a legião de 68 neoleitores que se forma nos assentamentos da reforma agrária nos grotões do Brasil – tem um palpite: — Acho que é isso que as pessoas da cidade chamam de cidadania – ela arrisca, com simplicidade e com o jeito de quem não quer mais tirar o pé dessa estrada. 69 O homem que não vendia livros onde vai, afinal, aquele homem carregando tantos livros debaixo do braço? Ele mal dobrou a esquina e aparece, ainda pequenino, lá longe, mas nota-se que ele leva uns belos duns livrões sob os braços arqueados. Aos poucos, enquanto caminha celeremente, gesticula e parece conversar sozinho, sua figura franzina vai tomando corpo na calçada. Talvez nem sejam tantos livros assim. Agora que ele está mais perto, dá para ver que são enciclopédias, esses livrões danados de pesados, que condensam nos volumes, de quem se mete a colecioná-los, toda sorte de conhecimento, curiosidades e informações, úteis ou não. Parece fazer valer o dito, segundo o qual o conhecimento vale quanto pesa. A 70 O homem segue, agitado e solitário, em seu caminho sem rumo. Vai de casa em casa, bate de porta em porta. Em algumas, toca a campainha estridente. Em parte delas, vai dar com o nariz na porta, ele sabe disso. Certas residências estarão mesmo vazias, enquanto, noutras, os moradores vão fingir que não há ninguém na casa, sua estratégia eficaz e mal educada para barrar os inconvenientes. Mesmo entre aqueles que vão abrir a porta, suas estatísticas dizem que só uma pequena parcela será capaz de fazer ao menos ideia do quão importante é o conteúdo contido naqueles livrões. Com sorte, no final da jornada, uma parte ínfima dos seus interlocutores terá ouvido sua preleção até o fim e, encerrada a ladainha, assinado o pedido e preenchido os cheques parcelados. Diariamente, o homem repete, à exaustão, seu discurso sobre verbetes, personagens, excentricidades e a roda viva da história. Quer incutir na cabeça das pessoas por que aquilo tudo tem a ver com a sua vida e, sobretudo, com o seu futuro. Não é uma tarefa fácil. Só que Seu Luciano não leva jeito para vender livros. Pode falar por horas a fio com quem quer que seja e der o azar (ou seria sorte?) de abrir-lhe a porta. Circunspecto e gestos largos, é de sua natureza parlar. Mas nunca teve tino comercial para nada. Contudo, é um brilhante vendedor de ideias, como se verá. Foi de uma hora para outra que vender livro de porta em porta se tornou, pelas circunstâncias, seu ganha-pão. Seu Luciano era um 71 homem importante, desses que saem muitas vezes nas páginas dos jornais, ora escrevendo, ora sendo ele mesmo a própria notícia. Jornalista dos bons, foi eleito vereador e deputado, e apareceu já na primeira leva dos cassados às vésperas do golpe militar de 1964. Tornou-se uma lenda nos movimentos de trabalhadores paulistas pelo apoio firme em milhares de greves no estado São Paulo. Suas campanhas eram feitas pelos próprios eleitores, que se incumbiam até de imprimir seus panfletos e pedir votos por ele, que também não levava lá muito jeito para a coisa. Até os adversários se deixavam enfeitiçar pela sua pureza e coerência na defesa das ideias, com sua invejável eloquência e teimosia calabresas. Era justamente nos livros, bem como nos jornais e no próprio cotidiano das pessoas mais pobres, que Seu Luciano aprendera tudo o que sabia na vida. Filho de calabreses, lia sobre política, lutas do proletariado e o que aparecesse pela frente. Lia, confabulava com os próprios botões e devolvia tudo, devidamente deglutido e processado, em forma de artigos ou discursos eloquentes sobre caixotes de madeira. Era assim que o homem dos livros cativava amigos e simpatizantes num tempo em que não existia cabo eleitoral pago ou campanhas milionárias. Proibido de escrever e legislar nos anos de chumbo, Seu Luciano chegou a recusar, por questão de princípios, o emprego fajuto que lhe arrumaram. Preferia vender livros, que ele considerava um trabalho mais digno. Mas não durou muito naquele emprego, já que, 72 em vez de vender, dava os livros de presente para quem não podia pagar. Só anos mais tarde, com a redemocratização do País, Seu Luciano Lepera voltaria às redações. Comunista das antigas e tão generoso quanto teimoso, ele se tornou um mestre, pelo caráter irretocável, para várias gerações de jornalistas. Era capaz de tirar a comida da boca para dar a alguém que necessitasse mais do que ele. Antes de morrer, doou a própria casa, seu único bem material. Quem quer que cruzasse seu caminho nunca mais era o mesmo. O vendedor que não vendia os livros tinha o poder inexplicável de tocar e comover pessoas. Embora ateu, os amigos carolas garantiam que o homem dos livros era mais cristão do que qualquer um deles. — Ele nem precisa acreditar em Deus, pois Deus acredita nele. 73 Do outro lado do muro aíssa é uma guria que acaba de completar três anos. Ela nunca saiu dali. Mesmo que quisesse, não teria como. No lugar das janelas, há pesadas grades de ferro chumbadas na parede, e a porta, que dá acesso ao térreo, permanece o tempo todo trancada à chave. Há outras gurias na mesma situação. No meio da noite, uma delas sempre chora. Se de fome, frio ou medo, não se sabe. Na cabecinha daquelas crianças inocentes, privadas da sua liberdade desde que vieram ao mundo, lá fora é, de certo modo, um lugar que não existe. Parece algo tão incerto quanto pueril, mesmo porque