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download-189667-eBook Histórias de Gente Que Lê-6850580

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1 
 
Histórias de Gente Que Lê 
 
Galeno Amorim 
2 
 
Índice 
 
Prefácio 
Maria Antonieta Cunha .............................................................. 6 
 
Prólogo 
Missionários da Leitura ................................................................ 8 
 
Introdução 
Os livros não mudam o mundo ................................................ 11 
 
 
Parte I 
Os livros mudam as pessoas. 
 
A sacola de Dona Jamila .......................................................... 22 
Leitor de florestas e de mundo ............................................... 25 
Morador das ruas e leitor ......................................................... 30 
Os olhos de Dona Lydia .......................................................... 33 
O menino do Desemboque ..................................................... 36 
3 
 
Amyr e o mar ............................................................................. 42 
O livro dos livros ....................................................................... 46 
O livreiro que não sabia ler....................................................... 50 
Livro de “um reais” .................................................................... 55 
A bola e o livro ............................................................................ 59 
Lições de Dona Maria ................................................................ 63 
O homem que não vendia os livros ........................................ 68 
Do outro lado do muro ............................................................. 72 
Ele é o cara! ................................................................................. 75 
Marinheiro só .............................................................................. 78 
Pequenos leitores do sisal .......................................................... 81 
No profundo mar azul ............................................................... 86 
A que foi sem nunca ter sido .................................................... 90 
 
 
Parte II 
E as pessoas mudam o mundo. 
 
O livreiro do Alemão ................................................................. 94 
4 
 
Esmeralda cansada de guerra .................................................... 99 
O zelador de livros ................................................................... 104 
A Bibliojegue do sertão ........................................................... 108 
Ler para o outro é um ato de amor ......................................... 113 
Santo Antônio Casamenteiro ................................................. 117 
O pescador de leitores ............................................................. 120 
A biblioteca na roça .................................................................. 125 
O semeador do Seridó ............................................................. 128 
Operário em construção ......................................................... 132 
Mães que amam demais ........................................................... 135 
Entre livros e pneus ................................................................. 139 
A encantadora de leitores ........................................................ 143 
O pedreiro e os livros ............................................................... 147 
João que virou juiz .................................................................... 153 
Histórias que acolhem ............................................................. 155 
O tapete mágico da Tia Aninha .............................................. 159 
Sobre carnes e livros ................................................................ 163 
Bibliotecárias não sabem disfarçar ......................................... 168 
5 
 
 
Epílogo ..................................................................................... 172 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prefácio 
 
e todas as pessoas que conhecem Galeno Amorim, 
acredito que nenhuma deixaria de identificar sua paixão 
maior: a causa da leitura, que, das mais variadas maneiras 
e pelos mais diferentes pontos do país, ele procura obstinadamente 
defender para todos os brasileiros! Porque, para ele – como para 
muita gente boa –, a leitura é mesmo um direito de todos, tão 
fundamental quanto a saúde, a habitação, o saneamento básico, a 
liberdade de expressão – por exemplo. Um direito, mas também 
uma esperança: “Os livros transformam pessoas, e pessoas transformam o 
mundo.” E, em muitas frentes, procura fazer chegar essa posição ao 
maior número possível de pessoas. 
D 
7 
 
Pois nessa busca de novas formas de propagá-la, Galeno resolveu 
reunir em um livro algumas histórias exemplares: apresenta-nos 
figuras brasileiras, que, nas mais diversas regiões do Brasil e nas mais 
distintas condições (sempre adversas), tiveram suas vidas 
modificadas pela descoberta da leitura (mais precisamente, do livro) 
e, a partir daí, conseguiram mudar a vida de alguém, ou de muita 
gente - transformados todos, também, em leitores. 
Várias das histórias e personagens apresentadas por Galeno são 
também do meu conhecimento, e atesto – embora desnecessário – 
a sua veracidade. São relatos comoventes, às vezes impressionantes, 
a maioria, de pessoas muito simples (à época dos fatos iniciais, pelo 
menos), com ações igualmente modestas, e que ganharão de 
imediato a admiração dos leitores, assim como têm o 
reconhecimento de suas comunidades. Que fiapo de luz, que traço 
especial terão em comum todas essas figuras? 
Acredito que é isto que espera o Galeno: que essas vitórias, 
aparentemente pequenas, se pensarmos nas dimensões e carências 
brasileiras, sejam o atestado de possibilidades, que ele quer ver 
multiplicadas. 
Da minha parte, é isso que também eu desejo que aconteça. Tenho 
a convicção de que estas histórias podem inspirar outras tantas, da 
mesma forma que a arte em si (e, portanto, a literatura lida pelas 
figuras desses relatos) pode ser inspiradora. Prefiro, no entanto, 
8 
 
relativizar a força da leitura (mais ainda, a força do livro), sempre 
possível, mas nem sempre exercida: a história da humanidade 
(inclusive a de artistas extraordinários) e a história do Brasil (a que 
se desenrola diante de nossos olhos assustados, por exemplo) 
mostram que homens “letrados e cultos” podem não se tornar 
melhores, nem mais conscientes, nem mais patriotas, pela leitura e 
pela arte. 
Imagino, por outro lado, que possa haver vida feliz, produtiva e 
sábia mesmo fora da leitura de material impresso, ou mesmo virtual. 
Pode ser mais difícil, pode funcionar mais em determinadas 
comunidades, pode fazer mais sentido para uns do que para outros, 
mas acredito que seja possível. Preciso ter também essa esperança. 
O que me parece justo afirmar é que, por si, a leitura não fará mal 
algum – a ninguém, e que poderá fazer um enorme bem – a todos, 
ou quase. Todas as lutas em favor da leitura são, portanto, muito 
importantes. 
Por isso, desejo fortemente que, tal como nestas histórias, este livro 
caia também em mãos de muitos leitores que tenham - quem sabe? 
– aquele mesmo fio de luz das suas personagens e que eles se sintam 
motivados a engrossar as fileiras do bom combate do nosso 
corajoso autor. 
 
 
9 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Missionários da Leitura 
 
Aos professores, bibliotecários, gestores, técnicos e demais pessoas que se 
colocam entre livros e leitores a fim de aproximá-los. 
 
inguém pode ser obrigado a ler, nem a escrever, a 
cantar ou a dançar. Tampouco deve ser obrigado a saber 
o significado das coisas todas da vida. 
Por que ler, acima de tudo, é um ato de liberdade: introspectivo, 
espontâneo, libertador. 
Por isso, livros nos fazem livres! 
Ninguém nasce sabendo ler. Como não se nasce sabendo escrever, 
cantar ou dançar. Também não se nasce sabendo pronunciarpalavras ou apreciar um bom filme, teatro ou quadro. 
N 
10 
 
O certo é que ler – como tantas coisas na vida – não é um ato 
natural. Natural, isto sim, é respirar, comer e andar, se proteger do 
frio e do calor. É sentir medo e reagir. Natural é esse desejo 
intrínseco de, em algum tempo, ser feliz. 
Mas ler, não. Ler pede atitude, esforço, aprendizado – habilidade 
mesmo. Demanda oportunidade e investimento pessoal. E requer 
que se pratique, até que se tome gosto pela coisa – tal como se 
aprende a gostar de música boa, de jogar xadrez ou de admirar 
dribles geniais numa pelada de rua. 
Ler é coisa do espírito, que também pede certo esforço do corpo, 
boa vontade e dedicação, até que, um dia, torna-se absolutamente 
algo essencial, um alimento mesmo da alma. 
Não por outra razão cabe a toda a gente instigar esse namoro – que 
vira noivado e, depois, casório – entre livros e leitores, tal qual um 
Santo Antônio Casamenteiro dos dias de hoje. Um missionário a 
espalhar a boa nova do conhecimento pra tudo quanto é canto. 
Mas que isso seja feito com jeito, com delicadeza e com amor. Pois 
não há outro jeito de cultivar e cativar o bicho leitor. Esse que cresce 
e ganha corpo na medida da sustança das boas histórias, da 
sonoridade das palavras, do afeto que elas encerram. Da magia e da 
engenhosidade de quem cria e inventa o tempo todo. 
Tratemo-lo, pois, o bicho leitor, com carinho. Como a um filho que 
nasce, cresce e conquista a autonomia de voar. 
11 
 
Façamo-lo, pois, gostar dos livros como a criança gosta da flor, para 
que, seduzido e encantado, possa jamais ser curado dessa vontade 
irresistível de se deixar levar pela beleza das palavras e, assim, 
mergulhar fundo nesse oceano de ideias. Porque, para ele, o leitor, 
há um sentido especial em cada palavra impressa: aquilo a que se 
chama de a força mesma das coisas. 
Daí, a necessidade, danada, e jamais saciada, de se ter, sempre, à 
mão, uma página que seja pelo simples prazer de apalpar, de cheirar 
e sorver com os olhos tudo o que faz lembrar um livro. Ao aprender 
a decifrar os sinais, bebendo dessa fonte, descortinam-se os 
horizontes e descobre-se, enfim, o bom prazer de ler. 
Agora, um leitor de mundo, ele é capaz de aprender e apreender, de 
se reinventar o tempo todo. De compreender e interpretar cada 
coisa ao seu redor. E, ao ler pelos olhos do outro, de se tornar um 
sujeito melhor, tolerante e amoroso. Ao tomar para si o 
conhecimento universal e construir o seu próprio, o leitor, alarga a 
inteligência, supera o improvável e descobre a capacidade própria 
para o amor – fundamento elementar para se mudar o mundo, o de 
dentro e o de fora. 
Pois para quem, agora, já tem a sabedoria para ler o mundo, tudo é 
absolutamente possível! 
 
12 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os livros não mudam o mundo 
 
“Os livros não mudam o mundo. 
Os livros mudam as pessoas. 
E as pessoas mudam o mundo.” 
 
a primeira vez em que ouvi alguém pronunciar o 
conjunto de frases acima, que me parecem traduzir, com 
precisão e uma clareza incrível, o papel que os livros 
exercem na vida de homens e mulheres na sociedade, sorri, 
discretamente. Afinal, aquela dúzia e meia de palavras sintetizavam, 
em boa medida, com objetividade extraordinária, centenas de 
páginas de consistentes reflexões a respeito do tema sobre as quais 
eu já me debruçara antes. 
N 
13 
 
Esse contentamento também era movido por ver a quem sua autoria 
era, naquele momento, atribuída: José Bento Monteiro Lobato – ele 
mesmo, autor que, mais de setenta anos após sua morte, continua a 
ser referência, e preferência, nacional. Nada de se estranhar, 
portanto, que o pai da boneca Emília, Narizinho, Pedrinho, Tia 
Nastácia, Visconde de Sabugosa e Dona Benta, e de uma porção de 
invencionices do Brasil da primeira metade do século XX, pudesse 
ter trazido à luz uma síntese de pensamento tão definitiva sobre a 
função social dos livros para a humanidade. 
Já fora ele, Monteiro Lobato, o grande precursor da literatura 
infantil brasileira. Antes dele, só se via, por aqui, livros infantis com 
textos estrangeiros e, em geral, muito distantes da nossa cultura. 
Lobato foi responsável direto pelo surgimento, durante as décadas 
seguintes, de brilhantes gerações de escritores do gênero. 
Embora haja quem discorde, a ele também se deve o crédito pela 
invenção do mercado editorial tal qual se conhece hoje em dia. Isso 
graças às suas geniais sacadas como editor para aumentar as tiragens 
de suas publicações e para fazer com que os livros chegassem onde 
o povo letrado estava. Das prosaicas pharmácias às vendas, os 
armazéns de antigamente, predecessores dos megas e 
hipermercados da atualidade: qualquer canto deveria, segundo dizia, 
abrigar um ponto de venda de livros. 
Nada de espantoso, portanto, creditar a Lobato, venerado por seu 
papel incansável na defesa dos livros e da literatura do Brasil, 
14 
 
tamanho acerto e capacidade de concisão, e justo por algo pelo qual 
sempre batalhou. Não fora ele, afinal, que apregoara que “uma 
nação só se faz com homens e livros”? 
 
Mas qual não foi a minha surpresa ao, muito tempo depois, tomar 
conhecimento de que aquilo era, simplesmente, um erro terrível: 
— Isso não é Lobato nem aqui, nem na China... – tratou, de me 
explicar (gentilmente, a bem da verdade) um amigo pesquisador, 
anos mais da tarde. 
Nos anos seguintes, ouviria e leria, em muitas ocasiões, gentes de 
universidades, academias, editoras, livrarias e do governo darem, 
enfim, o devido crédito a alguém que, sem sombra de dúvida, faz 
por merecer todo e qualquer tipo de gratidão do povo brasileiro e 
dos amantes, em geral, da boa literatura: Mário Quintana, o genial 
poeta gaúcho. 
Ao que parecia, seria, mesmo, Quintana quem teria dito – com a 
simplicidade, sensibilidade e sabedoria de poeta – esta e uma porção 
de outros ditos e frases que, na era internet, têm sido propagados 
com espantosa rapidez. Graças às ferramentas modernas que 
permitem buscas incríveis em frações de segundo, podemos 
recorrer e utilizar, a todo instante, frases belas que costumam causar 
efeito imediato. 
 
15 
 
Quando, contudo, obediente e disciplinado, e desta vez também 
resignado, já me habituara com o novo – e, ao que tudo indicava, 
definitivo esclarecimento do senso comum em torno de tão 
importante questão – eis que seria, novamente, surpreendido por 
uma nova e, a essa altura, arrasadora errata: 
— Estão todos redondamente enganados – foi o que ouvi, aturdido. 
A nova e, sim, definitiva corrigenda viria, desta vez, amparada por 
alguma base científica. Pesquisadores, leitores e admiradores do 
poeta gaúcho chegaram a criar blogs e comunidades virtuais, na 
internet, para alertar contra a enxurrada de frases e pensamentos 
indevidamente atribuídos a Quintana. 
Nada contra ele, faziam questão de explicar. Aliás, muito pelo 
contrário: 
— O grande problema é que corremos o risco de levar os jovens e 
as novas gerações a conhecer, e até a aprender a admirar, um 
Quintana que, simplesmente, não existe – argumenta um deles, com 
boa dose de razão. 
Uma comunidade criada no finado site de relacionamentos Orkut, 
precursor do atual Facebook, explicava, já no próprio título, ao que 
viera: “O verdadeiro Mário Quintana”. A página se propunha, com 
relativo sucesso para a época, “a pesquisar e a desmistificar, com a 
ajuda de colaboradores voluntários, o que não consta da obra 
conhecida do poeta”, dando “nomes aos verdadeiros bois, no caso, 
http://emiliopacheco.blogspot.com.br/2005/05/o-verdadeiro-mario-quintana.html
16 
 
os autores de versos e pensamentos creditados indevidamente ao 
gaúcho”. 
Quem se debruçou sobre toda a obra de Quintana (que pode ser 
encontrada em Poesia Completa, da Nova Aguilar) ou leu as suas 
entrevistas ou mesmo o livro Ora Bolas, que Juarez Fonseca escreveu 
sobre ele, jamais encontrou a dita cuja. 
Uma pesquisadora dá overedito sobre a citação: 
— Até hoje não foi possível identificar a autoria por absoluta 
ausência de fonte. Mas uma coisa é certa: do Quintana é que não é... 
Há especialistas que atribuem a autoria da frase ao senador romano 
Caio Graco, que viveu entre 157 e 121 antes de Cristo. Eles 
sustentam que a frase teria sido traduzida inúmeras vezes até ganhar 
o seu formato atual, agora com uma referência explícita aos livros. 
 
Desde então, tenho preferido imaginar que qualquer um dos três – 
ou, quem sabe, todos eles, cada qual a seu tempo – pode, muito 
bem, ter dito isso ou algo parecido, tamanha a força e a capacidade 
que essas três pequenas frases têm para expressar tão poderosa ideia 
sobre esse objeto conhecido como livro e a sua vocação 
transformadora, e, assim, perigosa. Sobretudo se, depois de se 
apropriar do seu conteúdo, dá-se dentro desse leitor um rebuliço 
interno de inquietações e de novas percepções, formulações e 
atitudes. 
 
17 
 
Tenho ido a diversas localidades conversar com gente atrás de boas 
histórias de leitores. A primeira impressão que dá é que as práticas 
sociais da leitura têm propiciado, de fato, microrrevoluções por toda 
parte. Tão íntimas que, por vezes, nem dá para percebê-las. 
Mas também outras que se materializam das mais diversas formas e 
promovem pequenas, porém vigorosas, modificações no cotidiano 
e no próprio entorno social desses leitores. E, cada vez que um só 
leitor, que seja, opera em si alguma mudança mínima – e esta se 
soma a tantas outras que se dão, simultaneamente, nos mais 
diferentes rincões do planeta –, ele move uma força poderosa, capaz 
de tornar o mundo um lugar melhor para se viver. 
Afinal, desde que Gutemberg inventou a prensa que deu origem ao 
livro, tal qual o conhecemos e admiramos hoje, – este que é 
considerado a maior invenção do último milênio – não são poucas 
as histórias de personalidades que, sendo leitores e tendo lido 
qualquer uma das dezenas de milhões de obras já publicadas pela 
humanidade, acabariam por protagonizar feitos importantes que 
causaram massivas transformações na sociedade. 
Se Quintana, Lobato ou Caio Graco disseram, ou não, tais palavras 
mágicas sobre o poder dos livros nem é o mais importante. Pode, 
muito bem, ter saído da boca de uma pessoa qualquer, às margens 
da história, e, mesmo assim, ter chegado ao nosso tempo, de forma 
tão imponente, a ponto de ter influenciado tantas gerações. 
Prefiro crer que todos possam, sim, ter dito! 
18 
 
E, mais do que isso, que outras tantas pessoas, em diferentes épocas 
da história humana, tenham se importado e levado adiante a 
poderosa força dessa ideia. Assim como eu e você, por exemplo, 
podemos estar, agora, fazendo, ou já fizemos, ou ainda haveremos 
de fazer no futuro. 
 
O que você vai ler neste livro é uma pequena coleção de pequenas 
histórias de pequenos leitores que são, na verdade, enormes. Após 
tantas buscas, pesquisas e conversas, a conclusão é que, de fato, os 
livros, por si só, não têm qualquer condição de mudar as coisas e o 
mundo. 
Talvez, ainda, os livros venham a ocupar espaço ligeiramente maior 
no tempo livre das pessoas, propiciando, assim, conhecimento, 
melhoramento pessoal, lazer e entretenimento cultural de qualidade. 
Mas, a julgar pelas histórias colhidas em diferentes locais ao longo 
dos últimos anos, vivenciadas por homens e mulheres, negros e 
pobres, crianças e velhos, os livros, com suas histórias e personagens 
formidáveis, têm sido capazes de provocar pequenas grandes 
mudanças em cada um de nós. 
E, então, como nos têm ensinado Quintana, ou Lobato, ou Graco 
(ou, então, nenhum deles!), serão essas pessoas – que podem atender 
por nomes como Evando, Otávio ou Esmeralda, personagens deste 
livro – que encontramos em nosso dia a dia, num açougue, numa 
19 
 
borracharia ou numa viagem de barco pelo interior da Amazônia, 
que seguirão mudando, em tempo real, o mundo em que vivemos. 
*** 
Nas páginas que se seguem, eu vou defender as habilidades de leitura 
e de escrita como ferramentas ímpares para o desenvolvimento 
individual das pessoas e a transformação da sociedade ao seu redor. 
Por vezes, pode ficar a impressão de que parece não existir vida 
inteligente e salvação para a humanidade fora do cultura letrada. 
Não é assim. 
O certo é que a leitura e a escrita são formas fundamentais, ou até 
mesmo superiores, para apoiar e estimular nosso crescimento 
íntimo, bem como as mudanças no nosso dia a dia do ponto de vista 
da vida social. E, ainda, as estruturas que lhe dão forma e ritmo. Isso 
tudo, claro, tendo como referência as formas de sociedade que 
conformam – mais como regra do que exceção – o mundo como 
conhecemos atualmente 
Quando se fala da leitura e da escrita, se fala de capacidades de 
desvendar códigos e de se manifestar a partir desses sistemas 
codificados, e, mais do que isso, de capacidades de análise, de 
reflexão e de sentimento, treinadas pelo contato mais profundo com 
a literatura. 
A dignidade que todo ser humano tem por ser humano – por 
respirar, por se mover, por se alimentar, por sentir, por pensar, por 
20 
 
se expressar, por trabalhar, por se emocionar, por sofrer, por sonhar 
– independe de se saber ler e escrever. 
Só que o analfabetismo e a incapacidade de uma leitura mais 
aprofundada criam legiões de excluídos, em locais espalhados ao 
redor do globo ou áreas específicas de um mesmo país, de uma 
mesma região, de uma mesma cidade. 
Assim, é inegável que o domínio sobre a palavra escrita é, sim, uma 
porta de entrada para um mundo de direitos. A mesma estrutura de 
poder que não garante uma educação de qualidade para todos, cria 
oportunidades ou dificuldades distintas àqueles que dominam ou 
não a palavra escrita e todo o conhecimento formal por ela 
delimitado. 
A marginalização dessas pessoas devido à falta de familiaridade com 
as letras costuma se combinar a outras, tais como classe, raça, 
gênero, e, mediante às diferentes combinações desses e outros 
traços, são punidos de formas diferentes. 
Mas, além da sua dignidade pessoal inerente à experiência humana, 
a sensibilidade, o conhecimento e a faculdade de expressão, que 
distinguem alguns como brilhantes, não dependem das habilidades 
de leitura e escrita. Aquela coisa mágica que torna certos indivíduos 
grandes – não exatamente aquelas grandes personalidades da 
história, mas os que conseguem brilhar na sua vida, não importa qual 
a sua ocupação – nasce em si e independe da leitura e da escrita. 
21 
 
O que há de mais mágico, e de mais humano, no ser humano sãos 
as suas capacidades de sentir, de pensar e de se comunicar. Não é a 
leitura, não é a escrita. 
Só que, além de impulsionarem oportunidades e evitarem punições 
em um mundo seletivo, injusto e cruel, essas habilidades e, 
especialmente, a leitura e escrita de literatura aproximam as pessoas, 
por meio da comunicação, de todo o pensar e o sentir que já foram 
registrados, preservados e que se encontram disponíveis aos 
potenciais leitores. Aproxima as pessoas de pessoas. 
A leitura e a escrita trazem em si uma enorme possibilidade de tornar 
alguém mais humano, na medida em que o colocam para partilhar 
da humanidade dos outros e, com os outros, compartilhar a sua 
humanidade. 
Somada a essa tarefa de mediação e aproximação exercida pela 
palavra escrita, o consumo de arte, de uma forma geral, e, em 
especial, da literatura tem a tarefa de promover um tipo de nivelação 
da sociedade. 
Enquanto, para alguns, o brilho da sensibilidade e do conhecimento 
se apresentam de forma natural, para outros, a literatura pode 
aproximá-los de toda reflexão que não conseguiriam alcançar sem a 
experiência da leitura. 
 
22 
 
Parte I 
 
Os livros mudam as pessoas. 
 
23 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A sacola da Dona Jamila 
 
ona Jamila já passou dos oitenta, mas conserva uma 
vitalidade, física e intelectual, impressionante.Uma ou 
duas vezes por mês, ela sai, cedo, de casa e se dirige ao 
centro da cidade. Lá chegando, entra direto no velho e imponente 
casarão que, no passado, serviu de moradia para alguns dos mais 
poderosos coronéis do café da Velha República. 
Ela repete, há anos, esse mesmo ritual. Vasculha, cuidadosamente, 
entre as prateleiras envelhecidas pelo tempo em busca de novidades. 
Ela só sai de lá quando a sacola estiver cheia. Então, sorrirá aliviada: 
seu mês está garantido! Ou, como costuma ela mesma dizer, sua vida 
está, por mais algum tempo, salva. 
D 
24 
 
O que será que a mulher idosa, de cabelos esbranquiçados e de 
aparência frágil, uma decorrência da idade, carrega na sacola com 
tamanho apego? 
— Livros! – ela responde. 
São quatro ou cinco deles que, invariavelmente, Dona Jamila toma 
emprestado a cada vez que vai à Biblioteca Altino Arantes, em frente 
à praça principal da cidade. 
Mais tarde, quando chegar em casa, vai abrir, calmamente, cada um 
deles e sorver, primeiro, o que vai impresso na capa e na contracapa. 
Depois, fará um breve passeio pelas orelhas da brochura e dará uma 
espiada no prefácio para, então, e, finalmente, mergulhar de cabeça 
numa nova viagem. 
Esse ritual é um verdadeiro roteiro de prazer para a mulher. 
A vista cansada nunca é desculpa. Professora aposentada, Dona 
Jamila lê quatro horas todos os dias. Em média, é um livro novo por 
semana. Ou quatro por mês. Ou, ainda, em torno de cinquenta a 
cada ano. 
Chova ou faça sol, é sempre assim. Dona Jamila adora os livros de 
ficção, e, especialmente, as novelas policiais. Nos dias em que vai à 
biblioteca, ela mais parece uma adolescente revirando as prateleiras 
atrás de novidades literárias. 
A mulher trabalhou, boa parte da sua vida, como assistente social, 
inicialmente em São Paulo, capital, e, mais tarde, no interior do 
25 
 
Estado. Embora nunca tenha viajado para fora do país, descreve 
com detalhes algumas das principais cidades do mundo. 
— Já estive em Paris, Roma, Londres... – ela anota mentalmente, 
enquanto relembra curiosidades sobre ruas e lugares das metrópoles 
mais charmosas do planeta que viu a partir das páginas da literatura. 
— Minha vida jamais seria a mesma sem os livros – ela assegura, 
com convicção. 
A história de Dona Jamila é uma história simples. De uma pessoa 
comum, “Sem nada demais”, conforme ela própria diz. Mas é a 
história de alguém que vive a buscar, todo santo dia, em cada nova 
aventura literária em que se mete, na sua sala de estar ou na calmaria 
do seu quarto, conhecimento, prazer e novos sentidos para a vida. 
Rumo aos noventa, a velha professora continua a ensinar uma lição 
diária sobre o amor pelos livros num país que ainda carece de gente 
que leia ou que leia mais. A experiência da senhora, é, de fato, algo 
alvissareiro, exemplo de um bom rumo para o Brasil trilhar. 
Diante da legião de leitoras de idade avançada como Dona Jamila, 
que se vê cada vez mais pelos quatro cantos do País, e da força – 
para os menos atentos – invisível que elas transmitem, não dá para 
permanecer indiferente. 
 
 
 
 
26 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Leitor de florestas e de mundo 
 
ilho e neto de ribeirinhos, Tenório passou a infância 
entre cipoais e banhos de rio na Costa do Cabaleana, 
lugarejo ermo escondido às margens do Rio Solimões, 
perto de São Tomé, onde nasceu. Um dos povoados que formam o 
município de Manacapuru, no interior da selva amazônica, aquela 
era uma localidade abandonada à própria sorte, onde escola era um 
luxo que jamais existira. 
Quem quisesse aprender o bê-á-bá para ser, como se dizia por lá, 
alguém na vida; que se virasse por conta própria. Com sorte, talvez 
encontrasse uma boa alma que se dispusesse a ensinar o pouco de 
escrita e leitura que sabia. Nesse caso, a sala de aula podia ser 
F 
27 
 
improvisada num canto qualquer, pois a falta de espaço não era, 
propriamente, um problema por ali. 
Não por outra razão, a mãe de Tenorinho levou um susto danado 
naquele fim de tarde, ao voltar do trabalho no campo de juta. Ela 
ficara, justificadamente, surpreendida diante da cena insólita: e não 
é que seu menino, que jamais botara os pés numa escola, estava 
lendo de verdade? 
Devota e temente a Deus que era, a mulher sequer teve tempo para 
tentar compreender o milagre, já que Tenorinho desembestara a 
falar e a exibir os seus novos prodígios diante da mãe, estupefata. 
Parecia ser mais um daqueles mistérios inexplicáveis da floresta, 
onde a sobrevivência, por si só, já é uma grande façanha, tamanhas 
as adversidades do cotidiano. 
O fato é que o moleque agora sabia ler. Aprendera, sabe-se lá como, 
a juntar letras e a formar palavras. Os poucos entendidos do lugar 
garantiam que aquela mistureba toda de rabiscos, feitos com um 
toco de lápis sobre um pedaço de papel puído, fazia, sim, algum 
sentido. 
— Bê... Ah... BÁ! – Tenorinho soletrou, com pompa e todo cheio 
de si. 
Era uma sílaba, alguém se apressou a explicar. Enfileiradas umas às 
outras, com certa parcimônia, poderiam constituir palavras ou frases 
inteiras. Um espanto! 
28 
 
Era assim, tratou-se de esclarecer, que as pessoas estudadas da 
cidade transpunham para o papel suas ideias, o conhecimento que 
recebiam de seus ancestrais e tudo aquilo que era dito com a boca 
ou sentido com o coração. 
Tenorinho enchia o peito: 
— BA – NA – NEI – RA! 
À medida que aquele som gutural saía de suas entranhas, parecia 
ganhar forma, diante de seus olhinhos, a imagem exuberante da 
planta tropical, com seus cachos amarelos dependurados. 
O menino Tenório, agora, conseguia ligar nomes e coisas e 
ampliava, mais e mais, o seu universo pessoal. Anotava, num 
caderninho, as novas palavras que aprendia e cantarolava, repetidas 
vezes, para si mesmo até conseguir guardá-las. Cada descoberta era 
um novo troféu para a sua coleção. 
A bem da verdade, Tenorinho havia tido, sim, um mestre. Fora um 
velho tio, que mal conseguia ler e escrever o próprio nome. Mas, 
como em terra de cego quem tem um olho é rei, dava bem para o 
gasto. No entanto, danado e ligeiro como só ele, Tenorinho havia, 
em pouco tempo, aprendido quase todas as palavras disponíveis. 
Como seguiria aprendendo? 
Foi quando alguém apareceu com uma bíblia, o livro mais lido do 
mundo e, por meio do qual, muita gente, como Tenorinho, 
aprendera a ler. Assim que se alfabetizou, o menino passou a ler, 
todos os dias, os versículos e salmos para a mãe, que era analfabeta. 
29 
 
Ele não sabia, mas naquele singelo gesto de amor começava a ser 
forjado um eloquente orador. 
O menino da selva crescia. Por dentro e por fora. 
Mas as dificuldades não tardaram a surgir. A primeira delas: não 
havia outros livros no vilarejo. Sem escola, biblioteca, livraria ou 
uma banca de jornal que fosse, como ele poderia continuar 
aprendendo? 
A mãe entendeu que a única maneira de propiciar ao filho a 
oportunidade que ela própria não tivera – arrumar um bom emprego 
na cidade grande – seria se mudar para a capital. Tomou o filho pela 
mão e subiu num barco rumo a Manaus. Era uma mulher de poucas, 
porém sábias palavras: 
— Pobre só tem chance de ser alguém na vida se sabe ler e escrever 
– ela sentenciou, resoluta, antes de partirem. 
A mudança para a capital do Amazonas, no entanto, não fora 
suficiente para deixar, de vez, os tempos difíceis para trás. As 
dificuldades só faziam crescer. O dinheiro mal dava para alimentar 
as bocas da casa, quanto mais para comprar livros. 
Mas Tenório não se fazia de rogado. Varava noites, em claro, até 
decorar trechos inteiros das cartilhas emprestadas dos amigos. Era 
esse o único jeito de ter acesso ao mundo dos livros e da cultura 
letrada. 
O tempo passou e o meninote cresceu. À custa de muita leitura sob 
a luz de lamparina, Tenório entrou para o curso de Direito da 
30 
 
Universidade Federal do Amazonas. Concluiu o curso e, como 
almejava trabalhar com algode que gostasse muito, acabou indo 
fazer também o curso de Letras. 
— Eu estava perdidamente apaixonado pelas palavras... – lembra o, 
hoje, poeta e professor universitário Tenório Telles, autor de críticas 
e ensaios, além de editor de livros. 
No coração da Amazônia, ativista cultural dos bons, ele guarda na 
ponta da língua trechos inteiros dos livros que decorava. Assim que 
sobrou o primeiro dinheiro, ele cuidou de comprar vários deles, para 
poder exibir em lugar de destaque da estante. 
— São eles a prova viva do poder dos livros de mudar a vida das 
pessoas. Porque são essas pessoas, depois, que vão mudar o mundo 
– apregoa doutor Tenório, com a autoridade que a vida e os livros 
lhe deram. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Morador das ruas e leitor 
 
ndereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e 
vive nas ruas. Só não admite que o tratem como mendigo. 
Mesmo porque, diz, ganha a vida com o suor de seu 
trabalho como vendedor de pipoca e biscoito nas esquinas da 
grande cidade. No fim da tarde, separa uma parte da féria do dia, 
algo em torno de cinco reais, para pagar pelo banho e comida. 
Sem um teto e um endereço fixo para morar, Márcio costuma dizer 
que é, de certo modo, uma dessas pessoas que passa todo o dia e 
dorme no próprio local de trabalho. Pode passar uma noite sob uma 
marquise ou um viaduto, ou, mesmo, em uma calçada ou praça, 
dependendo da conveniência do dia. A localidade muda, mas a 
moradia, em si, é sempre a mesma: o carrinho de mão que ele 
E 
32 
 
próprio construiu com pedaços de madeira e bugigangas 
encontradas nas ruas. 
Para quem o vê puxando seu carrinho-dormitório pelas ruas do Rio 
de Janeiro, é impossível notar qualquer diferença entre Márcio 
Pereira dos Santos, o Gaúcho, e os moradores de rua que são vistos 
perambulando pelas cidades brasileiras de Norte a Sul do País. 
Como qualquer um deles, o rapaz também enfrenta o frio, a chuva, 
a violência e o julgamento público, independentemente dos motivos 
que possam ter levado cada um deles a essa situação. 
Márcio trocou, há três anos, a vida na casa dos pais no Rio Grande 
do Sul pelas ruas do Rio. Diz que foi uma escolha. 
Para tentar manter um pouco de sanidade, recorre, diariamente, à 
leitura. Lê jornais e revistas usados e livros, de ficção aos ensaios 
sobre política e sociologia. Também é leitor assíduo da bíblia, na 
qual diz buscar a força necessária para levar sua vida adiante. 
Por um bom tempo, Márcio, um rapaz bem apessoado de seus 34 
anos, lia tão somente para se entreter e fazer o tempo passar, mas, 
desde que resgatou da lata de lixo a obra Biblioteca de Sociologia Geral, 
de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar mais pelos temas 
sociais. Ele gosta de ler e, então, analisar e refletir sobre o conteúdo 
do que leu, fazendo um cruzamento das leituras com situações pelas 
quais passou e suas escolhas pessoais. Ultimamente, tem pensado 
muito, por exemplo, sobre o funcionamento das políticas públicas 
destinadas aos moradores de rua. 
33 
 
— É importante confrontar suas opiniões com as do autor do livro, 
pois sempre se aprende com isso – ele conclui. 
Mas não é só nisso que os livros têm mexido com a vida de Márcio. 
Após uma dessas leituras, ele percebeu que também é um cidadão, 
com direitos e deveres, como qualquer outro. Ao ler uma notícia 
sobre o Bolsa Família, um direito de todo cidadão que vive abaixo 
da linha da pobreza, ele foi atrás e obteve o auxílio. Aonde vai, 
carrega sempre junto o título de eleitor e sua cédula de identidade. 
Também possui conta bancária, cartão de crédito e conta de e-mail, 
que acessa de alguma lan house. 
Márcio, um admirador confesso de Monteiro Lobato, diz que 
também encontra nos livros uma forma de serenidade: 
— Ler me faz relaxar a mente. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
34 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os olhos de Dona Lydia 
 
ona Lydia sempre teve uma queda pelas palavras. 
Como não sabia ler, passava horas ouvindo e tentando 
distinguir, pela sonoridade, o sentido e o significado 
delas. 
Analfabeta até a idade madura, Dona Lydia viveu a maior parte de 
sua vida apartada da forma grafada e impressa das palavras. Estas 
que se materializam e vêm à luz quando se juntam letras, esses sinais 
que, se bem empregados, dão vitalidade e perenidade a frases, ideias 
e pensamentos. 
Embora nunca tenha se dado conta disso, Dona Lydia sempre foi 
uma poetisa de mão cheia. Morando a vida toda num povoado 
caiçara no litoral de São Paulo, ela buscava no mar a inspiração para 
D 
35 
 
expressar, do seu jeito, como enxergava e sentia o mundo e as coisas 
ao seu redor. Podia ser de um acontecimento simples do seu 
cotidiano a algo subjetivo que a deixava emocionada, como a beleza 
diária daquele cenário composto de montanhas, céu e mar. 
Para não deixar se perder a magia daqueles instantes, a mulher criava 
e armazenava os versos na cabeça. 
Como Deus costuma escrever certo por linhas tortas, o destino fez 
com que ela sentisse na pele, amargamente, o quanto a falta de 
intimidade com a palavra escrita pode afetar, negativamente, a vida 
das pessoas. Mas, por outro lado, Dona Lydia foi sacudida para a 
percepção do quanto a leitura e a escrita ainda poderiam modificar 
a vida dela e de outras pessoas. 
Já na entrada da velhice, Dona Lydia se viu na obrigação de 
regularizar as terras herdadas do avô, entre Peruíbe e Itanhaém. 
Eram o único bem material dela e da sua família nesta vida. Foi onde 
toda a parentela nasceu, cresceu e de onde, durante décadas a fio, 
tirou o sustento. 
Mas o advogado que foi contratado para solucionar o imbróglio se 
aproveitou do fato de ela não saber ler para ficar com metade da 
propriedade – único ganha-pão da família, que sobrevivia do cultivo 
de milho, batata e melancia. 
Depois disso, a mulher, resoluta, tomou uma decisão. Iria para a 
escola e nunca mais seria enganada por não saber ler. Mas Dona 
Lydia, além de aprender a ler e a escrever, encantou-se com os livros 
36 
 
e com os estudos. Apaixonou-se pelos versos de Carlos Drummond 
de Andrade e Castro Alves e, aos 75 anos, resolveu fazer faculdade. 
Dez anos depois, Dona Lydia S. Gonçalves – como passou a grafar 
o próprio nome – tornou-se escritora, tendo publicado vários livros 
com os seus poemas e os aforismos que colecionou por toda a vida. 
Com os vários diplomas numa parede e uma farta coleção de livros 
nas outras, é ela agora que ensina, do alto da autoridade do seu 
próprio exemplo de vida: 
— Aprender é como abrir os olhos. E nunca é tarde para isso! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
37 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O menino do Desemboque 
 
ascido menino pobre no Desemboque, interior de 
Minas Gerais, Ariclenes sonhava, desde pequeno, com 
a cidade grande. Queria ser famoso e, um dia, conhecer 
as cantoras do rádio, ícones daquele Brasil rural da primeira metade 
do século XX. Vivia suspirando pelos cantos só de pensar em 
namorar alguma delas. 
Acontece que Ariclenes, ou Ari, vivia num lugarejo longínquo, em 
meio a um punhado de vivas almas, no coração perdido do Brasil. 
Por mais que tentasse pensar numa saída, não lhe ocorria nada tão 
genial que pudesse, enfim, fazê-lo, um dia, chegar lá. 
N 
38 
 
Enquanto sua sorte grande não chegava, Ari ajudava o pai, 
boiadeiro, na lida com o gado. Para faturar uns trocos, ele vendia 
fotos da mãe, que era artista de circo. 
Assim seguia o menino tocando sua vidinha, que dizia, ser sem eira 
nem beira. 
Mas, um dia, Ari tomou coragem, subiu na carroceria de um 
caminhão e seguiu no rumo de São Paulo. Estava firmemente 
decidido a cair na estrada em busca do seu Eldorado. 
No meio do caminho, contudo, o menino apeou da condução. 
Nunca tinha ouvido falar daquele lugar onde estava. Se ainda não 
era aquela a metrópole com a qual tanto sonhara, ele, ao menos, 
poderia, ali, ir se acostumando, aos poucos, com a vida de cidade 
grande. 
RibeirãoPreto ficava bem no meio do seu caminho para a capital. 
Com os seus cabarés, teatros, radionovelas e uma vida noturna 
movimentada até demais para o garoto caipira recém-chegado do 
Desemboque, no Triângulo Mineiro, bem que podia servir como 
experiência e, ainda, um trampolim para um salto na vida. 
Resolveu ficar uns tempos por lá. 
Na esteira da derrocada dos barões do café, a cidade vivia novo 
surto de prosperidade. A industrialização nascente e os novos ricos, 
daqueles tempos de mudança do Brasil rural para o Brasil urbano, 
dominavam o cenário político e econômico da cidade. 
39 
 
Ari, um frangote de não mais do que dezesseis anos, foi morar numa 
pensão e, logo, arrumou ocupação. Empregou-se como carregador 
numa loja de materiais de construção. Lá, no embalo do progresso 
daqueles anos 30, os canteiros de obras pipocavam por toda parte e, 
com isso, punham mais mercadoria na cacunda do rapaz. 
Por isso, foi uma benção aquele santo dia em que os livros entraram 
na vida dele. Foi tudo por acaso. Ari só queria mesmo dar uma 
escapadela do sol fatigante que fazia a carga sobre seus ombros 
magricelas parecer pesar toneladas. 
Ao passar diante daquele casarão majestoso, de frente para a praça 
central da cidade, o rapaz empacou. Pessoas que entravam e saíam 
chamaram a sua atenção para aquele lugar que parecia ser um espaço 
público. Sem muito pudor, ele ajeitou no chão, calmamente, o vaso 
sanitário que trazia sobre as costas. Só deu uma olhadela para os 
lados para se certificar de que ninguém o espiava para dedurá-lo ao 
patrão e entrou. 
Quase diante do Theatro Pedro II, majestosa casa de ópera daquela 
terra de coronéis, o velho Solar dos Junqueira já não era o mesmo. 
Em vez das romarias de líderes políticos e de apadrinhados atrás dos 
favores dos barões do café, no casarão, agora, funcionava uma... 
biblioteca. 
Ele levou um baita susto. Mas, já que estava lá dentro mesmo, Ari 
resolveu permanecer. Afinal, pior do que a carga pesada e do sol 
escaldante que o aguardavam do lado de fora é que não podia ser. 
40 
 
Aquela seria, anos mais tarde ele diria, a mais sábia decisão de sua 
vida. 
No início, precisou controlar o pavor que passou a tomar conta de 
si. Tentava adivinhar quem seriam aquelas criaturas bem vestidas, 
totalmente estranhas a sua vida roceira. Circulavam, com 
desenvoltura, entre as estantes, poltronas e as largas mesas em estilo 
colonial. Talvez fossem, ele deduziu, poetas, professores ou alunos 
do Ginásio do Estado – que era uma espécie de chave do céu para 
os rapazes e moças que, na transição de uma monocultura cafeeira 
para uma economia mais industrializada, aspiravam por ascensão 
social. 
Se quisesse, portanto, permanecer mais tempo no local, misturado 
aos leitores intelectuais, teria ao menos que disfarçar. Pegou o 
primeiro livro à sua frente e folheou algumas páginas, mas, logo, 
fechou e o colocou sobre a mesa escura. Voltou o olhar para a capa 
do livro e o título impresso em letras garrafais chamou a sua atenção: 
Grandes Esperanças. O autor era um certo Charles Dickens, um 
famoso desconhecido para o garoto do Desemboque. 
Decidido que estava a parecer, ao menos aos olhos dos que ali 
estavam, um leitor de verdade, tinha que se esforçar mais. Num 
gesto largo e pausado, sentiu-se no meio de um palco no circo, 
vivendo a vida de outro personagem, como tantas vezes sua mãe 
fizera. Olhou, atentamente, as letras miúdas, franziu a testa e fingiu 
concentração. Só conseguiu relaxar minutos mais tarde, quando, ao 
41 
 
tatear uma vez mais a brochura e, finalmente, abri-la, deixou-se levar 
pela narrativa vibrante. 
Ao contrário do que esperava, sorvera com certo gosto as páginas 
iniciais. Aventurou-se por mais algumas e, sem que se desse conta, 
fora, repentinamente, abduzido por aquela história, e totalmente 
absorto pela leitura. 
Já não conseguia mais desgrudar os olhos do livro. E tampouco se 
preocupava em disfarçar; agora, já devorava uma página após a 
outra, e tudo, num fôlego só, vivenciando um terrível conflito 
íntimo. Ao mesmo tempo em que desejava, ardentemente, chegar à 
última página do livro, já sofria com a possibilidade de fim daquela 
história. 
Ari, definitivamente, fora fisgado pelos livros. 
Daquele dia em diante, a literatura nunca mais sairia de sua vida. O 
moço estava sempre com um livro nas mãos – eles seriam, por sinal, 
uma companhia constante na vida do caipira recém-chegado à 
cidade. Sua sensação era que, finalmente, encontrara a chave para 
uma vida melhor que tanto procurara em sua vida. 
Em seu primeiro teste para locutor, já em São Paulo, Ariclenes 
tropeçou no sotaque caipira. Mas não desistiu, arrumou um 
emprego de contínuo na Rádio Difusora e seguiu adiante. Logo 
depois, foi promovido a sonoplasta. Na primeira oportunidade, 
conseguiu um papel para uma ponta numa radionovela. Nunca mais 
parou. 
42 
 
Meio século depois, e agora famoso, sob o pseudônimo de Lima 
Duarte, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira de todos 
os tempos (afinal, como ele dizia, Ariclenes Venâncio não era nome 
de artista que se prezasse), o menino do Desemboque está mais 
convencido do que nunca que foram os livros a sua tábua da 
salvação. 
— Antes dos livros entrarem na minha vida – ele se diverte, com o 
sotaque ainda inconfundível – eu não passava era de um anarfa... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Amyr e o mar 
 
mbora vivesse não muito longe do Atlântico, Amyr 
morria de medo do mar. Era um trauma de infância. 
Ainda pequeno, estava com o pai e os irmãos na praia 
quando foi derrubado por uma onda forte, algo que acontece com, 
basicamente, todo mundo que vai à praia quando criança. Porém, o 
que em alguns resvalam, em outros fere fundo. 
O caso é que, mesmo adulto, ele teve muitas dificuldades para 
superar aquilo. Por isso, arriscar-se além da beira-mar não era, 
exatamente, sua diversão predileta. 
Quando terminou a faculdade de economia, Amyr optou por fincar 
mais os pés em terra firme, tomando a decisão de administrar a 
E 
44 
 
fazenda da família e lidar com gado e leite. Tudo que desejava era 
ter um chão seguro e palpável. 
Mas os livros fariam esse Amyr, já adulto e recém-saído da 
faculdade, a reaprender a gostar do mar, rendendo-se à possibilidade 
infindável de aventuras oferecida tanto pela imensidão da literatura 
quanto a dos oceanos. As histórias fascinantes sobre marujos, 
navios e ilhas perdidas ajudaram a trazer de volta aquele menino que 
se assustara com as ondas. 
Uma dessas histórias que o encantaram foi A Expedição Kon-Tiki, do 
antropólogo norueguês Thor Heyerdahl, que navegou do Peru à 
Polinésia, numa jangada construída por nativos, para provar que 
civilizações sul-americanas podiam muito bem ter cruzado mares 
para povoar as ilhas do Pacífico. Também ficou fascinado pelas 
aventuras de O Último Lugar da Terra, de Roland Huntford, sobre a 
disputa, no século passado, entre exploradores ingleses e 
noruegueses pelo Polo Sul. E se maravilhou com os poemas do 
poeta Fernando Pessoa, um de seus prediletos, que vivia a soprar 
em seu ouvido que, sim, navegar era preciso. 
Mas o que o faria voltar de corpo e alma para o mar, que não 
desistira dele, foi O Grande Inverno, escrito por um casal de 
aventureiros que ele conhecera em uma de suas férias em Parati. 
Sally e Jérôme Poncet viviam uma vida modesta e sem grandes 
solavancos num barco velho e enferrujado, no qual haviam 
45 
 
compartido uma inédita viagem ao território desconhecido e gelado 
da Antártica. 
A história nem era tão espetacular assim e, de certo modo, até 
desmistificava um pouco a ideia de grandes epopeias vivenciadas 
por aventureiros em alto-mar. Era tão somente um singelo, porém 
apaixonado e poético relato sobre a experiência do casal francês. 
Durante a viagem, Sally engravidou em pleno inverno polar e 
decidiu ter o filho lá mesmo, naentão desabitada e inóspita Geórgia 
do Sul. 
Ao chegar à última página, Amyr sabia exatamente o que faria da 
vida dali em diante: seria um navegador. Ele começou a se preparar 
lendo mais relatos de navegação e manuais, e passou a se dedicar 
mais aos treinos da sua equipe de remo do Espéria, clube da elite 
paulistana. O passo seguinte foi comprar uma canoa e, em seguida, 
um barco a remo. Com o tempo, passou a construir os próprios 
barcos. 
Não tardou para Amyr Khan Klink, filho de um imigrante libanês e 
uma artista plástica sueca, tornar-se um dos grandes heróis nacionais 
dos nossos tempos. Sua primeira grande proeza foi atravessar o 
litoral brasileiro numa pequena canoa. Em seguida, cruzou, solitário, 
desde a África, o Oceano Atlântico a remo. Depois disso, 
circunavegou o globo, perfazendo mais de 400 mil quilômetros nos 
mares. 
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Bom leitor e excelente contador de histórias, Amyr aproveita, entre 
uma e outra aventura, para escrever os próprios livros. Assim nasceu 
Cem Dias entre o Céu e o Mar, um deles, que já vendeu meio milhão de 
cópias. 
Cada vez que ele vai se lançar numa nova aventura, Amyr Klink se 
planeja bem e, antes de zarpar, toma todas as providências e 
precauções. Como é indicado nesses casos, leva só o essencial para 
suas temporadas sozinho em alto mar – sendo que algumas podem 
durar mais de ano. Algo que não pode faltar na sua listinha de 
prioridades: os livros. Numa das viagens, Amyr carregou nada 
menos do que meia tonelada deles. 
Afinal, diz Amyr, fazendo troça do trauma que o afastou dos mares, 
não fossem os livros ele estaria hoje com cracas nas canelas de tanto 
andar à beira-mar. Foram os livros, ele assegura, que deram um 
sentido novo para a sua vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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O livro dos livros 
 
ma é Maria das Graças. Outra é Maria Augusta. A 
terceira delas atende pelo nome de Joanice. Todas elas 
estão com os filhos criados e frequentam a mesma igreja 
na periferia de Belo Horizonte, a capital mineira. Tal como as outras 
mulheres da mesma faixa etária com quem elas convivem no dia a 
dia, as três levam, mesmo em uma grande cidade, uma vida pacata. 
Também em comum entre as três há o fato de que, só agora, já na 
idade madura, é que estão tendo, pela primeira vez na vida, contato 
com as letras e com os livros. 
As duas Marias mais Joanice se conheceram lá mesmo, na igreja do 
bairro. Apesar de trajetórias de vida distintas, as três mulheres 
partilham, atualmente, de um mesmo sonho: elas estão ansiosas para 
U 
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conseguir ler o seu primeiro livro, o primeiro desde que se 
conhecem por gente. 
Mas, para elas, não vale um livro qualquer. As três foram fisgadas, a 
essa altura da vida, para frequentar a escola de jovens e adultos por 
causa do sonho por elas compartilhado de conseguirem, sozinhas, 
ler a bíblia. 
Até então, só tomavam conhecimento das belas passagens do 
Evangelho, que tanto faziam bem para seu estado de espírito, 
durante as preleções. A intenção delas, desde o início, era aprender 
a ler para, assim, tentar abrir um canal direto com Deus e, com isso, 
receber a palavra diretamente, a qualquer hora do dia ou da noite e, 
sobretudo, em horas de necessidade. 
Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, já se dá por contente se, 
um dia, conseguir ler, sozinha, um salmo inteiro. Antes de começar 
a ir à escola, ela chegava a decorar trechos inteiros da bíblia, para 
poder recorrer nas horas de precisão. Dona Joanice já foi cozinheira, 
faxineira, lavadeira e servente, entre outras coisas. Ela criou cinco 
filhos, dois dos quais foram adotados, todos os cinco alfabetizados, 
e garante que, agora, não desperdiçará a oportunidade de se 
alfabetizar e ler, ela própria, os livros que desejar. 
A história dela não é muito diferente das histórias de outras 
mulheres do Alto Vera Cruz, bairro da periferia de BH. Dona Maria 
das Graças da Silva, dois anos mais velha e mãe de dezenove filhos, 
dez dos quais, ainda vivos, tem uma história prosaica. Ela não se 
49 
 
alfabetizou porque era proibida pelo pai de ir à escola em Jequeri, 
na Zona da Mata mineira, para que não ficasse uma moça 
“assanhada” e “namoradeira”. 
— Nunca tive tempo pros cadernos... – ela diz, lembrando que, ao 
constituir a própria família, a prioridade, então, passou a ser botar 
comida na boca da filharada. 
Só bem mais tarde, Dona Maria das Graças desconfiou que, se não 
soubesse ler e escrever, jamais conseguiria ir muito longe. 
— Não há nada pior do que não saber ler – ela atesta. — Eu, mesma, 
nunca pude ir sozinha aos lugares por não saber o preço das coisas 
e nem conseguir tomar um ônibus. 
O mundo, ela desconfia, funciona com códigos: 
— E eu não conseguia decifrar nada daquilo... 
A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, dá o tom: 
— Até que analfabeto acha emprego. Mas pode ver que é faxineira, 
lavadeira, servente de pedreiro. Passa muita humilhação e ganha 
muito pouco. Para quem não sabe ler, está tudo fechado. 
Depois da bíblia, as futuras leitoras prometem não parar por aí e já 
ficam imaginando o que vão encontrar em outros livros. 
Em países de tradição cristã, a leitura da bíblia costuma ser uma 
porta de entrada para muitos não leitores ao mundo da palavra 
escrita. Ela é o livro mais lido e o mais relido do Brasil, além de ser, 
segundo os leitores, o que mais mexeu com as suas vidas. Até entre 
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quem nunca leu um livro inteiro, muita gente tem o costume de ao 
menos dar uma espiada nos versículos de vez em quando. 
É provável que boa parte dos neoleitores da bíblia nunca irá além 
de uns pequenos trechos do livro sagrado na hora de dormir ou ao 
acordar. E isso bastará a eles. O que não deixa de ser, uma 
experiência concreta com as práticas leitoras. Haverá, entretanto, 
outro grupo de leitores que, após algum tempo, já não se contentará 
só com esse tipo de leitura e partirá para outros, o segmento mais 
ampliado de livros religiosos, e, na sequência, é possível, outros 
gêneros. Alguns entre eles talvez se convertam em textos literários. 
Uma só ovelha trazida para o seio do rebanho universal dos leitores 
já vale muito a pena. Muito porque serão essas mesmas ovelhas – 
que podem atender por nomes como Maria das Graças, Maria 
Augusta ou Joanice – que vão ajudar, mais tarde, a semear para 
outros rebanhos a boa nova dos livros. E, com eles, a vitória da luz, 
do conhecimento e da razão sobre o obscurantismo e a ignorância 
das trevas. 
 
 
 
 
 
 
 
51 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O livreiro que não sabia ler 
 
m um ano comum, Seu Leonídio costuma ler, por 
baixo, quarenta livros. Ele lê diferentes gêneros literários, 
e, praticamente, ao mesmo tempo. Leitor compulsivo 
confesso, admite que não sabe direito o que fazer se não há um livro 
por perto e ao alcance da sua mão, seja no carro, ao lado da cama 
ou no banheiro da casa. 
Mas nem sempre foi assim. 
A aventura literária de Seu Leonídio só começou em seus 20 anos 
de idade. Antes disso, ele era analfabeto de pai e mãe, mas nem por 
isso vivia longe dos livros. Muito tempo antes de conseguir decifrar 
uma só letra do alfabeto, Seu Leonídio já era, creia, um livreiro. 
Como vendedor de livros que batia de porta em porta, atrás dos 
E 
52 
 
compradores, ele tinha uma freguesia fixa e era o livreiro de 
confiança de muita gente. 
Portanto, primeiro, ele estabeleceu, ainda que não soubesse ler e 
escrever, uma intimidade improvável com os livros e seus autores. 
Só muito depois é que conseguiu a habilidade necessária para poder 
decifrá-los e compreendê-los. 
No Brasil de meados do século XX, quando o analfabetismo ainda 
era muito alto no País, se comparado a bons indicadores 
internacionais, este homem saía à caça de freguês a freguês, 
estivessem onde estivessem. Vendia nas ruas, nas casas, permanecia 
plantado nas portas de fábricas e escritórios, e nos mais inesperados 
lugares, desde que,ali, pudesse existir algum comprador de livro em 
potencial. De livro em livro, ele vendeu, ao longo da vida, milhões 
deles. 
Mais tarde, já alfabetizado, chefiou pequenas legiões de vendedores 
porta a porta e, como editor, publicou perto de dois mil títulos. 
Não é pouco, principalmente para esse alagoano de Arapiraca, que, 
decidido a mudar de vida, correu atrás de um futuro igualmente 
incerto na cidade grande. Ele começou fazendo pequenos bicos em 
São Paulo, onde seu primeiro emprego foi de faxineiro. Nos 
corredores da pensão onde foi viver, nos arredores da Praça João 
Mendes, no centro de São Paulo, o rapaz moreno de porte atlético 
conheceu alguns vendedores de livro. 
53 
 
O moço, logo, encantou-se com os relatos apaixonados e, em 
especial, com os causos hilários que aconteciam no dia a dia dos 
vendedores de livros, as suas divertidas e inesperadas situações no 
trabalho. Aqueles homens saíam cedo da pensão e batiam de casa 
em casa para oferecer livros a quem não tinha tempo, gosto, 
dinheiro ou mesmo que não sentia a menor necessidade de ir a uma 
livraria. 
Embora não conseguisse decifrar uma só palavra estampada nos 
livros que deveria vender, o novo e promissor vendedor se animou 
com o desafio e, em pouco tempo, sentia-se como um veterano do 
ramo. Para que não percebessem que o homem que vendia livros 
não tinha a menor ideia do conteúdo do produto que tentava 
empurrar aos outros, Leonídio tinha suas próprias artimanhas. 
Ele decorava o título, o autor e o resumo da capa e da contracapa, 
que algum colega lia para ele, e surpreendia a clientela declamando, 
em alto e bom som, as informações principais. Com graça e estilo, 
estabelecia de cara uma empatia com o freguês, aproveitando para 
fugir de eventuais saias justas. Não tinha erro: tirava um pedido atrás 
do outro – que ele pedia para o próprio cliente preencher, como 
uma cortesia do seu vendedor. 
Os truques de venda e o talento nato para o ofício ele aprendera nos 
idos tempos em que vendia galinhas vivas, que carregava 
dependuradas em pedaços de pau sobre os ombros. Lidar com 
livros, ele racionou com a astúcia de vendedor, certamente, seria 
54 
 
muito mais fácil, já que eles sequer faziam barulho e tampouco se 
alvoroçavam. 
Um dia, contudo, um dos clientes percebeu que o vendedor 
inventava sempre uma desculpa diferente na hora de preencher os 
pedidos. Ele não deveria saber ler, desconfiou o homem, um 
advogado, que acabaria por convencer Leonídio que nunca é tarde 
para ir à escola. 
Turrão como ele só, Leonídio, que sempre havia sido autodidata, 
decidiu que faria do seu jeito. Acabou se alfabetizando sozinho, 
enquanto lia placas de rua, reclames na TV e as capas dos livros que 
vendia. Quando já casado e pai de seis filhos, fez questão de que 
todos eles tirassem o diploma da faculdade. Depois que descobriu a 
escrita e a leitura, jamais deixaria de transmitir, à filharada o valor da 
escola. 
Com o dinheiro que juntou vendendo livros, Leonídio comprou um 
prédio de apartamentos inteiro na Aclimação, bairro paulistano de 
classe média, e trouxe todos os parentes de Alagoas para morar 
perto dele. Foi lá que ele montou sua primeira editora. 
Se o assunto é livro, Leonídio Balbino, o livreiro que não sabia ler, 
transforma-se. Ele pode falar por horas a fio, sem se cansar, até 
convencer seu interlocutor por que ler livros é mesmo tão 
imprescindível e pode, realmente, melhorar a vida das pessoas. 
Se lhe dão trela, ele repete, à exaustão, sempre com gestos largos, 
sua ladainha predileta: 
55 
 
— Tem que ler, tem que ler, tem que ler... 
No livro autobiográfico que escreveu para narrar sua história, O 
Operário do Livro, Seu Leonídio, que se tornou cidadão honorário do 
Rio e de São Paulo, não deixa de relatar os momentos dramáticos 
que passou pela vida. Porém, otimista de plantão que é, Leonídio 
Balbino gosta de contar que chegou aonde chegou graças a uma feliz 
combinação de três coisas: uma vontade incrível de viver, a 
confiança em si próprio e, naturalmente, os livros. 
 
56 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Livro de “um reais” 
 
unca soube o nome dela. E as chances de voltar a 
encontrá-la, algum dia, são bem remotas. De seu rosto 
magro, contudo, não há como esquecer. E menos ainda 
de seus olhos negros e redondos que não pediam, mas, com 
determinação, praticamente exigiam. Não era para ela, fizera questão 
de explicar. Era para o filho, que ainda não estava na escola. 
Não queria esmola. Só desejava comprar um livro, com o mísero 
dinheiro que dispunha no momento. 
Apesar de não tê-la encontrado novamente; durante anos, a imagem 
dessa mulher reapareceria para mim outras vezes. Como nas 
ocasiões em que eu precisava falar em público, para membros do 
governo ou representantes do mercado editorial, como os livros e a 
N 
57 
 
leitura podem mexer com a vida das pessoas e, portanto, sobre a 
necessidade de se garantir o acesso a eles, seja gratuitamente ou 
pagando por preços acessíveis. 
A mulher desconhecida – que seguirá anônima, para mim, e, talvez, 
sempre invisível, aos olhos do Estado e da própria sociedade –
certamente teria muito a dizer sobre isso. 
Era uma manhã fria de agosto, primeiro dia da Feira Nacional do 
Livro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso se deu lá, mas 
poderia ter sido em qualquer outro lugar. Importantes editores, 
livreiros e escritores estavam na cidade. Muitos deles haviam 
cruzado o país só para isso. Nos dias seguintes, aproveitariam os 
holofotes para falar da função social da leitura e o quão importante 
é tornar o Brasil um lugar de leitores. 
A mulher surgiu do nada, quando ainda restavam boas horas para a 
cerimônia de abertura e início da programação farta – com 
escritores, venda de livros, cinema, teatro, exposições e outras artes, 
com a literatura como um fio a conectá-los. Ela, calmamente, 
estacionou o carrinho de mão no meio fio e, mesmo maltrapilha, 
não se intimidou diante dos homens de terno e gravata, que 
discutiam com entusiasmo sobre livros. 
Sem cerimônia, a catadora de papelão enfiou uma das mãos por 
dentro o vestido, na altura dos seios, e exibiu a cédula de R$ 1,00, 
que parecia ser tudo o que tinha naquela hora do dia. Talvez fosse 
mais sensato trocar por pães amanhecidos na padaria da esquina ou 
58 
 
inteirar para levar um litro de leite para casa no final da jornada. Mas, 
não. A mulher caminhou resoluta, na direção dos negociantes de 
livros, sabendo o que seria. Sem dirigir a palavra a nenhum deles em 
especial, lascou: 
— Tem aí livro de “um reais”?! – ela esclareceu, – É pro meu filho, 
que tá na idade de ir pra escola. Quero dar um livro a ele para que 
seja alguém na vida. 
A fala pungente calou fundo naqueles homens dos livros. Embora 
o Brasil esteja entre os dez maiores produtores de livros do mundo, 
o acesso a eles no País consegue ser ainda pior do que a desigualdade 
social. Só uma em cada oito pessoas compra livros. 
Mais e mais pessoas, nos dias atuais, reconhecem a função social e 
transformadora da leitura na sociedade. E a julgar pela fala simples, 
mas poderosa, dessa catadora de papel, é possível supor que a 
relevância da leitura também cresce, e, aos poucos, se consolida, no 
imaginário popular. 
Nesse caso, embora analfabeta, o que ela mesma afirmaria, a mulher 
intuiu que poderia estar ali, em meio aos livros, a chave do futuro 
para seu menino. Do contrário, a continuar apartado do acesso à 
educação e ao conhecimento – materializado diante dela na forma 
de livros –, deveria engrossar a lista de candidatos a engordar as 
estatísticas oficiais sobre miséria, desemprego, fome e violência. 
Mas para a catadora de papelão atrás de um livro com preço 
compatível ao seu bolso, um livro tem um significado que vai além 
59 
 
do objeto que seus olhos veem. Porque não se resume ao maço de 
papéis costurados e manchado com tinta, que, a rigor, ele é. O quea mãe catadora vê é um sonho, um futuro e oportunidades que ela 
e o pai da criança, provavelmente, nunca tiveram. Talvez um 
emprego com carteira assinada, duas ou três refeições no dia e 
alguma dignidade na vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
60 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A bola e o livro 
 
dward estava, porque estava, convencido de que, 
no futuro, ainda ganharia a vida correndo atrás de uma 
bola: queria ser jogador de futebol profissional. Após uma 
meteórica estreia no seu glorioso Mirassol Futebol Clube, orgulho 
da cidade, ele, em seus sonhos infantis, jogaria, em seguida, em um 
dos times grandes do Rio ou de São Paulo para, então, partir direto 
para a seleção, como um ídolo festejado do escrete nacional. 
Naqueles tempos, meados do século passado, jogar no exterior era 
algo absolutamente fora de questão. 
Era este o sonho de Edward e de milhões de outros garotos, fossem 
pobres ou fossem ricos, no futuro País do Futebol. Era difícil 
E 
61 
 
encontrar algum que não almejasse ganhar fama e glória nos 
estádios. 
No caso de Edward não seria exatamente por falta de treino ou 
dedicação diária que esse sonho deixaria de se realizar. Afinal, todo 
santo dia, ele e um punhado de amigos praticavam, em renhidas 
peladas de rua nos campinhos de terra de Mirassol, interior de São 
Paulo, o esporte bretão que, supunham, deveria alçá-los ao estrelato. 
Edward não estava de todo enganado. 
Uma bola de futebol estava, de fato, entre ele e seu destino. Não era, 
contudo, exatamente como sonhara. 
Certo dia, Edward participava de um concorridíssimo racha no pátio 
da escola. De repente, um colega de time deu um tremendo chutão 
que fez com que a bola fosse parar lá longe. O craque, naquele 
instante envergando a gloriosa farda do Grupo Escolar de Mirassol, 
na plenitude de seus não mais do que oito anos de idade, foi, 
prontamente, escalado para resgatar a pelota, que, desgraçadamente, 
enfiara-se por uma maldita janela aberta. 
O mundo era mesmo injusto. Era sempre a mesma coisa: os grandes 
mandavam e aos menores não cabia outra coisa senão obedecer. 
Convertido, momentaneamente, em gandula oficial da peleja, lá foi 
o candidato a futuro atleta atrás de localizar o paradeiro da preciosa. 
Mas alguma coisa do outro lado da parede chamou a atenção do 
menino. Edward se intrigou diante do cenário inesperado: jamais 
vira tantos livros juntos! 
62 
 
Do outro lado da janela, funcionava a biblioteca da escola que, justo 
naquela manhã, recebera um acervo novo de livros. Eram livros de 
literatura para crianças. 
O pequeno Edward pegou um deles nas mãos – A Banana que Comeu 
o Macaco, ele jamais se esqueceria – e se deixou levar pela história, 
que leu até o fim. Ele nunca voltou para retomar aquele jogo de 
futebol. 
Nos trezentos e sessenta e cinco dias seguintes, Edward 
contabilizaria nada menos do que duzentos e cinquenta livros lidos 
– para se ter uma ideia, basta dizer que só em 2017 a média anual de 
livros lidos por brasileiro chegaria a cinco livros por habitante/ano. 
O menino parecia mais uma máquina leitora! 
Como o Edward manuseava com rara habilidade a arte das palavras, 
um professor inscreveu, sem que ele soubesse, sua redação escolar 
em um concurso estadual. A notícia fez o menino pular de alegria: 
ele fora classificado em primeiro lugar! 
Enquanto abiscoitava um prêmio aqui e outro acolá, o agora 
rapazote passou a faturar uns trocados com a habilidade 
recentemente conquistada. 
Sua intimidade com os livros ficaria patente ao prestar concurso 
público para o Banco do Brasil, posto cobiçadíssimo por legiões de 
jovens atrás de carreira estável e do status conferido pelo cargo. A 
primeira notícia não fora nada boa: havia tirado um baita zero em 
Contabilidade. Só que, ao ver as outras notas, a surpresa: dez nas 
63 
 
demais disciplinas. Na hora H, o costume de ler bons livros o 
ajudara a conquistar o emprego. 
Noutra ocasião, o jovem corrigiu, durante uma aula, e sem grandes 
pretensões, a professora do cursinho preparatório. Sua 
argumentação fora tão consistente que a escola resolveu contratá-lo 
no lugar dela. Mais uma vez, os livros dariam um empurrão em sua 
vida. 
Mais tarde, já na faculdade, preocupado que estava com as 
dificuldades para acompanhar as aulas de latim, Edward foi a um 
sebo atrás de livros usados para aprimorar seus conhecimentos no 
idioma. Fez resumos primorosos para cada livro que lia. Ele sequer 
desconfiava, mas acabara de escrever o manuscrito do seu primeiro 
livro, um dos muitos que publicaria pela vida afora. 
Com o tempo, Edward Lopes se tornou um dos mais brilhantes 
linguistas do País e, hoje em dia, não há estudante de Letras que não 
tenha recorrido a uma de suas obras sobre semiótica e linguística. 
Quem sabe o escrete canarinho não perdeu um grande talento com 
a bola nos pés. Não sei. Mas, com certeza, o Brasil ganhou um 
tremendo talento das letras. Que, longe das quatro linhas do 
gramado, tem ajudado a formar várias gerações de mestres que, eles 
próprios, igualmente craques das palavras, têm, por sua vez, 
despertado o gosto de ler, a cada ano letivo, em milhões de novos 
leitores verde-amarelos. 
O País da bola carece e agradece. 
64 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lições de Dona Maria 
 
or que, afinal de contas, as pessoas leem e escrevem? 
E por que é absolutamente essencial a leitura para se viver 
na sociedade moderna? 
As respostas a estas perguntas costumam variar de acordo com o 
interlocutor e suas áreas do saber. Todas, entretanto, remetem a uma 
questão central: a necessidade imperiosa que temos de nos 
comunicar uns com os outros, de compreender coisas e de nos fazer 
entendidos. 
Também nos ensinam que saber decifrar os códigos – o que 
chamamos de letras e palavras, matéria prima das frases – vai nos 
ajudar de várias maneiras pela vida afora. Ainda nos lembram o 
quanto a invenção dos alfabetos foi fundamental para a estruturação 
P 
65 
 
da humanidade tal qual a conhecemos hoje. E, por fim, que assim 
podemos nos apropriar do conhecimento universal, que é o grande 
legado acumulado através dos tempos pelos homens e mulheres. 
A saudável troca de experiências entre leitores, autores e seus 
personagens, cada qual com sua visão distinta de mundo, que se dá 
no ato de ler, tem o poder de operar em nosso interior reflexões 
surpreendentes. Essa é uma forma de gerar, continuamente, novos 
modos de ver, sentir e compreender as coisas. O que abre, sem 
dúvidas, caminho para atitudes e posicionamentos igualmente 
novos. Sem contar que o exercício de enxergar com os olhos do 
outro é uma forma extraordinária para se gerar mais tolerância, algo, 
evidentemente, indispensável nos processos de paz, mas, na 
verdade, necessário para a vida em sociedade de um modo geral 
Há, enfim, todo tipo de respostas e, provavelmente, todas com boa 
dose de razão. 
Vejamos, agora, o que tem a dizer sobre isso uma mulher 
camponesa de seus 70 anos, mãos calejadas, que duas ou três vezes 
por mês comparece, religiosamente, a uma sala de aula de alvenaria 
improvisada no acanhado salão de reuniões do Horto Guarani, 
perto de Guariba – no interior de São Paulo, epicentro da revolta 
dos boias-frias ocorrida em maio de 1984. Ali, foi instalado o 
primeiro assentamento da reforma agrária no coração da mais 
importante e poderosa região do agronegócio no Brasil. 
66 
 
Dona Maria Terezinha – é este o nome dela – tem uma percepção e 
uma teoria toda própria sobre o tema, que, por mais que se esforce, 
tem certa dificuldade para expressar: a função social da leitura e da 
escrita na vida de gente como ela, que trabalha duro na roça durante 
o dia e, à noite, espreme-se sobre bancos toscos de madeira, 
enquanto o sono permite, para aprender a ler e escrever. 
Sem dominar a capacidade de leitura e escrita, Dona Maria se 
acostumou a recorrer aos rabiscos rudimentares – como nos 
primórdios faziao homem das cavernas – para registrar os relatos 
sobre seu cotidiano e o que vai dentro de sua alma. Em um desses 
desenhos, ela aparece jogando milho para as galinhas no quintal do 
sítio em um dia ensolarado. Em outro, ela está rodeada pela 
parentela, com a natureza exuberante às suas costas em uma ocasião 
que parece ter sido muito especial para ela e sua família. 
Dona Maria também registrou com entusiasmo o dia em que 
participou do mutirão que ergueu a sua primeira casa própria 
naquelas terras devolutas, antes tomadas por eucaliptos, no horto 
localizado no município de Pradópolis. 
Há algumas semanas frequentando a escola noturna do 
assentamento, por ora, Dona Maria mal consegue desenhar o nome. 
Para ela, entretanto, isso já é muito, e ela comemora com um sorriso 
de criança cada nova letra que consegue transpor, na forma de 
garranchos quase ilegíveis, do quadro negro da parede para o 
67 
 
caderno. E ela o faz com a mesma devoção com que faz a oração 
do dia antes de se deitar. 
Para esta mulher camponesa, desenhar o próprio nome já foi uma 
grande vitória. No dia em que ela foi à agência bancária receber a 
aposentadoria, o gerente a convidou para ir até sua mesa. Nessa 
hora, ela se emocionou: seria a primeira vez em sua vida que não 
teria que passar pelo constrangimento de carimbar as digitais e sair 
da agência com os dedos sujos de tinta. 
A felicidade que a mulher septuagenária sentiu naquele momento 
não tem preço! Dona Maria saiu do banco tão leve e confiante que 
encomendou, na mesma hora, uma nova carteira de identidade, na 
qual já não apareceria a expressão que calava tão fundo em seu peito: 
“analfabeta”. 
Mas Dona Maria sabe que é só o começo e que há um longo 
caminho pela frente para que possa adentrar, para valer, no 
complexo universo das letras. Também está consciente de que, 
apesar da idade avançada e da fadiga diária que deixa as vistas mais 
cansadas do que antes, terá que dar duro nas aulas. Mas dar duro no 
batente é algo que, afinal, ela já faz a vida inteira na roça. 
Empurrada por uma força que não sabe dizer de onde vem, essa 
mulher faz questão de registrar no caderno cada nova palavra que 
vê nos livros. Nessas horas, é tomada por uma alegria incomum. 
Ainda assustada diante de tantas sensações desconhecidas, Dona 
Maria Terezinha – mais uma candidata a integrar a legião de 
68 
 
neoleitores que se forma nos assentamentos da reforma agrária nos 
grotões do Brasil – tem um palpite: 
— Acho que é isso que as pessoas da cidade chamam de cidadania 
– ela arrisca, com simplicidade e com o jeito de quem não quer mais 
tirar o pé dessa estrada. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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O homem que não vendia livros 
 
onde vai, afinal, aquele homem carregando tantos 
livros debaixo do braço? Ele mal dobrou a esquina e 
aparece, ainda pequenino, lá longe, mas nota-se que ele 
leva uns belos duns livrões sob os braços arqueados. Aos poucos, 
enquanto caminha celeremente, gesticula e parece conversar 
sozinho, sua figura franzina vai tomando corpo na calçada. 
Talvez nem sejam tantos livros assim. Agora que ele está mais perto, 
dá para ver que são enciclopédias, esses livrões danados de pesados, 
que condensam nos volumes, de quem se mete a colecioná-los, toda 
sorte de conhecimento, curiosidades e informações, úteis ou não. 
Parece fazer valer o dito, segundo o qual o conhecimento vale 
quanto pesa. 
A 
70 
 
O homem segue, agitado e solitário, em seu caminho sem rumo. Vai 
de casa em casa, bate de porta em porta. Em algumas, toca a 
campainha estridente. Em parte delas, vai dar com o nariz na porta, 
ele sabe disso. Certas residências estarão mesmo vazias, enquanto, 
noutras, os moradores vão fingir que não há ninguém na casa, sua 
estratégia eficaz e mal educada para barrar os inconvenientes. 
Mesmo entre aqueles que vão abrir a porta, suas estatísticas dizem 
que só uma pequena parcela será capaz de fazer ao menos ideia do 
quão importante é o conteúdo contido naqueles livrões. Com sorte, 
no final da jornada, uma parte ínfima dos seus interlocutores terá 
ouvido sua preleção até o fim e, encerrada a ladainha, assinado o 
pedido e preenchido os cheques parcelados. 
Diariamente, o homem repete, à exaustão, seu discurso sobre 
verbetes, personagens, excentricidades e a roda viva da história. 
Quer incutir na cabeça das pessoas por que aquilo tudo tem a ver 
com a sua vida e, sobretudo, com o seu futuro. 
Não é uma tarefa fácil. 
Só que Seu Luciano não leva jeito para vender livros. Pode falar por 
horas a fio com quem quer que seja e der o azar (ou seria sorte?) de 
abrir-lhe a porta. Circunspecto e gestos largos, é de sua natureza 
parlar. Mas nunca teve tino comercial para nada. Contudo, é um 
brilhante vendedor de ideias, como se verá. 
Foi de uma hora para outra que vender livro de porta em porta se 
tornou, pelas circunstâncias, seu ganha-pão. Seu Luciano era um 
71 
 
homem importante, desses que saem muitas vezes nas páginas dos 
jornais, ora escrevendo, ora sendo ele mesmo a própria notícia. 
Jornalista dos bons, foi eleito vereador e deputado, e apareceu já na 
primeira leva dos cassados às vésperas do golpe militar de 1964. 
Tornou-se uma lenda nos movimentos de trabalhadores paulistas 
pelo apoio firme em milhares de greves no estado São Paulo. 
Suas campanhas eram feitas pelos próprios eleitores, que se 
incumbiam até de imprimir seus panfletos e pedir votos por ele, que 
também não levava lá muito jeito para a coisa. Até os adversários se 
deixavam enfeitiçar pela sua pureza e coerência na defesa das ideias, 
com sua invejável eloquência e teimosia calabresas. 
Era justamente nos livros, bem como nos jornais e no próprio 
cotidiano das pessoas mais pobres, que Seu Luciano aprendera tudo 
o que sabia na vida. Filho de calabreses, lia sobre política, lutas do 
proletariado e o que aparecesse pela frente. 
Lia, confabulava com os próprios botões e devolvia tudo, 
devidamente deglutido e processado, em forma de artigos ou 
discursos eloquentes sobre caixotes de madeira. Era assim que o 
homem dos livros cativava amigos e simpatizantes num tempo em 
que não existia cabo eleitoral pago ou campanhas milionárias. 
Proibido de escrever e legislar nos anos de chumbo, Seu Luciano 
chegou a recusar, por questão de princípios, o emprego fajuto que 
lhe arrumaram. Preferia vender livros, que ele considerava um 
trabalho mais digno. Mas não durou muito naquele emprego, já que, 
72 
 
em vez de vender, dava os livros de presente para quem não podia 
pagar. 
Só anos mais tarde, com a redemocratização do País, Seu Luciano 
Lepera voltaria às redações. Comunista das antigas e tão generoso 
quanto teimoso, ele se tornou um mestre, pelo caráter irretocável, 
para várias gerações de jornalistas. Era capaz de tirar a comida da 
boca para dar a alguém que necessitasse mais do que ele. Antes de 
morrer, doou a própria casa, seu único bem material. 
Quem quer que cruzasse seu caminho nunca mais era o mesmo. O 
vendedor que não vendia os livros tinha o poder inexplicável de 
tocar e comover pessoas. Embora ateu, os amigos carolas garantiam 
que o homem dos livros era mais cristão do que qualquer um deles. 
— Ele nem precisa acreditar em Deus, pois Deus acredita nele. 
 
73 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Do outro lado do muro 
 
aíssa é uma guria que acaba de completar três anos. Ela 
nunca saiu dali. Mesmo que quisesse, não teria como. No 
lugar das janelas, há pesadas grades de ferro chumbadas 
na parede, e a porta, que dá acesso ao térreo, permanece o tempo 
todo trancada à chave. 
Há outras gurias na mesma situação. No meio da noite, uma delas 
sempre chora. Se de fome, frio ou medo, não se sabe. 
Na cabecinha daquelas crianças inocentes, privadas da sua liberdade 
desde que vieram ao mundo, lá fora é, de certo modo, um lugar que 
não existe. Parece algo tão incerto quanto pueril, mesmo porque

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