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12/07/2020 1 CAMPO GERAL Guimarães Rosa AUTOR: João Guimarães Rosa ANO DE PUBLICAÇÃO: O texto “Campo Geral” teve a sua primeira aparição no livro Corpo de baile, em 1956. GÊNERO LITERÁRIO: Gênero narrativo (a novela “Campo geral” foi inicialmente publicada como uma das seis narrativas que compõem o livro Corpo de baile, de 1956. Em 1964, com a divisão de Corpo de baile em três volumes, a novela aparece no livro Manuelzão e Miguilim, juntamente com “Uma estória de amor” e, mais recentemente, em 2019, recebeu uma edição individual publicada pela Global Editora). OBRA: “Campo geral” FOCO NARRATIVO: Apesar de sua onisciência, o narrador em terceira pessoa de “Campo geral” não se coloca fora dos acontecimentos narrados, na medida em que a focalização interna, a partir da consciência de Miguilim, permite que os acontecimentos objetivos e subjetivos sejam contados a partir da perspectiva particular do menino. ESPAÇO: O nome do lugarejo onde vivem é Mutum. Trata-se de um palíndromo, palavra que pode ser igualmente lida no sentido inverso, remontando a um movimento circular e infindo, já que o fim da palavra pode ser o ponto de partida de nova enunciação. O próprio nome do lugar reforça esse significado existencial ou simbólico. Em latim, o termo “Mutum” significa “mudo”, “silencioso”, “inanimado”. Por conta das limitações da consciência infantil e da miopia de Miguilim, o Mutum ou o sertão é um mundo ainda por desvelar ou definir, na medida em que o menino, que também tem sua personalidade ainda por moldar, não tem, em princípio, uma visão própria sobre o espaço que o cerca. Mutum é ainda o nome de uma ave sertaneja, podendo, por isso, remeter à transcendência normalmente associada aos pássaros, como faz Barros (1988, p.18). MOVIMENTO LITERÁRIO: A novela está inserida no 3°Tempo Modernista, especificamente, na fase instrumentalista, visto a prosa com "extraordinária linguagem de poesia" (ARRIGUCCI, 1994, p.13), o escritor surge como o, na acepção antiga e aristotélica, de fazedor de objetos verbais" em busca de uma "liga poética" de intensidade e força expansiva de significação (idem, p.13). Rosa não pensa a língua como instrumento pronto ou neutro para representar conteúdos. Ela também deve ser ficcionalmente reinventada. A reinvenção passa ao lado da oposição conteudismo/formalismo corrente nos estudos literários brasileiros. O escritor dá a ver preciosas concepções de linguagem: “Como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente” (RL LI) e “Cada palavra é, segundo sua essência, um poema” (RL LVII). Na linguagem rosiana, portanto, não há espaço para a inércia da escrita convencional. Na linguagem rosiana, pois, as palavras abalam e os termos desautorizados incomodam de um modo deslumbrante e surpreendente e “é através delas que se questiona o óbvio e se reconhece o mundo na sua multiplicidade inexplicável” (ANDRADE 2010: 58). O TÍTULO NA NARRATIVA: Nas palavras de Guimarães Rosa, A primeira estória, tenho a impressão, contém, em germes, os motivos e temas de todas as outras, de algum modo. Por isso é que lhe dei o título de “Campo Geral” – explorando uma ambiguidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais se diz um campo geral (...); no singular, a expressão não existe. Só no plural: “os gerais”, “os campos gerais”. Usando, então, o singular, eu desviei o sentido para o simbólico: o de plano geral (do livro) (BIZZARRI, 1981, p.58, grifos do autor). O TÍTULO NA NARRATIVA: Na história de Miguilim, “campo geral” é, ao mesmo tempo, uma região geográfica e um lugar ou estágio existencial. Guimarães Rosa (2003), em correspondência a seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri, explica que sua escolha literária por manter o título da obra no singular tem a ver com o intento de que “Campo geral” passe a designar mais do que um lugar ou um cenário – acepção que exige sempre o plural (“campos gerais”, “os gerais”) –, estabelecendo para essa história a função de “plano geral” do livro. De acordo com Sarah Diva Ipiranga (2010), é possível, ainda, pensar o sentido desse título no singular como uma “maneira de particularizar a infância como plano geral para a vida, como um desenho de um mapa que vai se montando com coordenadas diversas, desencontradas, transversais” (IPIRANGA, 2010, p. 53). 12/07/2020 2 • Prosa poética: Carga de musicalidade (aliteração, assonância, por exemplo) refinamento estético (rigor com a escrita) Polissemia (concisão: dizer muito com pouco) • Resgate da memória: Obra voltada para a interioridadede uma criança míope de 8 anos de idade • Discurso indireto livre AS POSSÍVEIS DIFICULDADES DO LIVRO: Na obra de Guimarães Rosa, a prosa poética está colocada a serviço de um regionalismo estético baseado na reinvenção da fala sertaneja, elevando-a ao estatuto de linguagem artística. Segundo o crítico literário Antonio Candido (2002), Guimarães Rosa transcende o regionalismo tradicional cultivado por seus antecessores (Bernardo Guimarães, Afonso Arinos, Monteiro Lobato, Hugo de Carvalho Ramos etc.), ao escapar à mera descrição objetiva dos traços que distinguem o sertão e ao preferir construir uma região muito mais artística do que geográfica. O REGIONALISMO UNIVERSALIZANTE: Nessa perspectiva, a recriação estética da linguagem regional que se efetiva na obra rosiana é responsável por tornar universal a experiência humana do sertanejo, a partir de um processo de condensação e intensificação artísticas que, conforme Candido (2002), acaba por dar alma a elementos que nos regionalistas tradicionais seriam meramente pitorescos e exóticos. Nesse sentido, pode-se afirmar que, em “Campo geral”, a prosa poética e a focalização narrativa interna, fixada no ângulo de visão do protagonista, são procedimentos artísticos que contribuem justamente para esse processo de universalizaçãoe humanização do regional. O REGIONALISMO UNIVERSALIZANTE: Tinha nascido ainda mais longe, também em buraco de mato, lugar chamado de Pau-Rôxo [...] De lá, separadamente, se recordava de sumidas coisas, lembranças que ainda hoje o assustavam. Estava numa beira de cerca, dum quintal [...]Mas a lembrança se misturava com outra, de uma vez em que ele estava nú, dentro da bacia, e seu pai, sua mãe, Vovó Izidra [...] Traziam o tatú, que guinchava, e com a faca matavam o tatú, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia (ROSA, João Guimarães. Campo Geral. São Paulo: 2019, p. 10) Da viagem, em que vieram para o Mutúm, muitos quadros cabiam certos na memória. A mãe, ele e os irmãozinhos, num carro-de-bois com toldo de couro e esteira de buriti. (ROSA, João Guimarães. Campo Geral. São Paulo: 2019, p. 11) Ele tinha fé. Ele mesmo sabia? Só que o movido do mais-e-mais desce tudo, e desluz e desdesenha, nas memórias; é feito lá em fundo de água dum poço de cisterna. Uma vez ele tinha puxado o paletó de Deus. (ROSA, João Guimarães. Campo Geral. São Paulo: 2019, p. 25) Mãitinha gostava dele, por certo, tinha gostado, muito, uma vez, fazia tempo, tempo. Minguilim agora tirava isso, da deslembra, como as memórias se desentendem (ROSA, João Guimarães. Campo Geral. São Paulo: 2019, p. 40) A MEMÓRIA EM TRANSE: Henri Bergson (1999), na obra Matéria e memória, destaca a natureza seletiva e intuitiva da memória, a qual só faz retornar do passado aqueles elementos que sirvam para compreender o presente. No caso de Miguilim, cuja memória estabelece uma duração interior ou subjetiva para os acontecimentos da narrativa, o próprio discurso da narrativa revela que as lembranças não estão sempre disponíveis e que não são sempre as mesmas, pois o processo de lembrar depende das sensações e percepções impostas pelo presente. A ARTICULAÇÃO DA MEMÓRIA: UM CERTO MIGUILIM MORAVA COM SUA MÃE, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. Quandocompletara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o Tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutúm, tinha dito: – “É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...” (ROSA, João Guimarães. Campo Geral. São Paulo: 2019, p. 07) PROSA POÉTICA: 12/07/2020 3 Berno Nhanina Drelina Miguilim Dito Chica Tomezinho Liovaldo Osmundo Avó Benvida Avó Izidra Os “agregados” da família Cessim: Mãitina Rosa Maria Pretinha Vaqueiro Jé Luisaltino Salúz O mundo animal: Pingo de Ouro Gigão Sossonho Rio Negro Papaco-o-Paco Julim Curandeiros: Deográcias Aristeu Patorí Tio Terêz Grivo Dr. José LourençoD iv e rs o s O percurso de Miguilim pode ser tomado como uma narrativa de formação, nos moldes do que o teórico Mikhail Bakhtin (2003) denomina como romance de educação (Bildungsroman). Nesse tipo de narrativa, os acontecimentos que constituem o enredo simbolizam, em um plano mais profundo, etapas do processo de crescimento e amadurecimento da personagem: O próprio herói e seu caráter se tornam uma grandeza variável na fórmula desse romance. A mudança do próprio herói ganha significado de enredo e em face disso reassimila-se na raiz e reconstrói-se todo o enredo do romance. O tempo se interioriza no homem, passa a integrar a sua própria imagem, modificando substancialmente o significado de todos os momentos do seu destino e da sua vida. (BAKHTIN, 2003, p. 220, grifos do autor.) NARRATIVA DE FORMAÇÃO: Nessa caminhada pontuada pelo lirismo infantil, a despeito das faltas (talvez as compensando?), os ritos de passagem ganham aspecto quase mágico. São muitos, e vão se desdobrando ao longo de toda a narração: a crisma, confirmadora da fé cristã; o banho de sangue de tatu na primeira infância, experiência que mescla de forma contundente morte e vida (pois somente o sacrifício do animal seria capaz de garantir a vida saudável da criança); a morte do irmão predileto, momento máximo da dor; o enterro figurado e a fala inesperada do papagaio, concretizando ausências e auxiliando o trabalho do luto; a destruição das gaiolas (em furiosa resposta ao pai), marcando o término da infância e apontando para o desejo de independência; a chegada dos óculos, possibilitando um olhar além, para fora do Mutum; e, por fim, a viagem com o doutor, em direção à cidade, onde teria acesso ao estudo. OS RITOS DE PASSAGENS (TRAVESSIA): O emprego predominante do discurso indireto livre, é possível ao narrador adentrar os pensamentos mais íntimos do protagonista. Esse recurso pode ser compreendido como “a apresentação das falas exatas das personagens inseridas dentro do discurso do narrador. É o mais difícil e o mais dinâmico dos tipos de discurso, porque permite que os acontecimentos e as falas das personagens sejam narrados em simultâneo” (fonte: www.normaculta.com.br). A seguir há um trecho ilustrativo sobre o discurso indireto livre retirado do “Campo geral”: Repensava aquele pensamento, de muitas maneiras amarguras. Era um pensamento enorme, aí Miguilim tinha de rodear de todos os lados, em beira dele. E isso era, era! Ele tinha de morrer? Para pensar, se carecia de agarrar coragem – debaixo da exata ideia, coraçãozinho dele anoitecia. (ROSA, 2001, p. 65) DISCURSO INDIRETO LIVRE: O sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica" (MORAES, 2003, p.2), em uma conclusão que muito se aproxima do olhar literário e da própria afirmação de Rosa, segundo o qual "o sertão está em toda parte" (ROSA, 2006). O SERTÃO: De certa forma, Vó Izidra e Mãitina são complementares na representação da fé na novela; enquanto a tia-avó católica remete à religião institucionalizada, Mãitina a apresenta em estado bruto. Miguilim transita entre os dois extremos, passando por ritos em ambos os registros – entre eles, a crisma católica, o supersticioso banho no sangue de tatu, e o enterro metafórico com elementos de religiões africanas, pontos aos quais retornaremos. SINCRETISMO RELIGIOSO: 12/07/2020 4 Vânia Resende (1987) comenta a importante posição ocupada pelo tio, em relação aos contos "As margens da alegria" e "Os Cimos" (ROSA, [1962]1977). O mesmo se dá em "Campo Geral", uma vez que a figura o tio representa um "guia ou protetor", como um "elemento mediador, entre ida e volta da criança e sua função é encaminhá-la, mostrando-lhe as faces ambíguas da vida: alegria e tristeza, sonho e realidade. É ponto de ligação entre Menino e mundo" (idem, p.43). Segundo Nogueira, as viagens que abrem e fecham a narrativa “servem de moldura simbólica à principal trajetória de aprendizagem do protagonista em busca de respostas para suas indagações” (2007, p.165). De fato, o fundamental no universo rosiano é a travessia empreendida – beirando a transcendência, motivo reincidente. AS VIAGENS: Vale lembrar que as narrativas tradicionais alimentavam Miguilim, mas, conforme indica Vânia Resende, "o seu potencial lúdico não se restringia a apenas nutrir estórias ouvidas; vivenciava as suas próprias, criando-as" (RESENDE, 1987, p.31). Embora não se desligue do ato de ouvir estórias, Miguilim conseguirá administrar duas questões internamente por meio da criação, retomando seu caráter de "coisa organizada", mencionado por Antonio Candido como um dos aspectos da literatura caro aos seres humanos, em "O Direito à Literatura" (2004, p.144). Nessa acepção, o fabular, para o garoto, assumiria uma dimensão de administrar a dor e a experiência. Vale lembrar que as narrativas tradicionais alimentavam. A FABULAÇÃO: Desesperado e sem rumo, Miguilim recorre a Mãitina, uma velha ex-escrava agregada da casa. Essa personagem marginal incorpora aspectos da religiosidade africana, execrada por vó Izidra, e demonstrará incrível sensibilidade ao auxiliar Miguilim em seu processo de luto. O garoto recorda um episódio no qual foi acolhido por ela, tendo ficado escondido em seus aposentos no “acrescente” e, lá, com medo do escuro, grita por ajuda, acabando nos braços de Mãitina. É essa sensação de conforto e segurança que Miguilim busca nas duas ocasiões ao se lembrar de pedir ajuda a Mãitina: a primeira, quando tem medo de morrer e se imagina doente e, a segunda, depois da conversa derradeira com Dito. Quando, mesmo consciente da iminente perda do irmão, Miguilim recorre a Mãitina, num último esforço, pedindo-lhe para realizar um de seus feitiços e rogando: “Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe...”. Entretanto, já não havia o que fazer; o choro das pessoas na casa vinha confirmar a morte de Dito. MÃITINA, O BRASIL PROFUNDO: Pai da família que trabalha sem descanso pelo sustento de seu rancho (“calado e triste, lidando sempre por duro trabalhar” [p.269]). Destemido e com “ursos ombros”, convergem ainda, ao que tudo indica, no malogro amoroso. Cujo epíteto, Bero, ressoa algo próximo à ferocidade (“fero”). Na etimologia desse nome há também índices de tal ferocidade; Bernardo proviria da junção entre “Bern”, urso, e “hart”, forte (BARROS, 1988, p.27). Certa vez, Avó Izidra o nomeou de sujeito que tem osso no coração. BERO: “Miguilim” é diminutivo afetivo de “Miguel”. Na mitologia bíblica do livro de Daniel, São Miguel Arcanjo é aquele que, em um tempo de tribulação, virá para defender o povo de Deus contra o mal: “E, naquele tempo, se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta pelos filhos do teu povo” (Daniel 12:1). Em outras passagens da Bíblia, ele é descrito como aquele que derrota Satanás e o expulsa do Céu. Além disso, arcanjo significa aquele que está acima dos demais anjos, que lidera as hostes celestes. Nesse sentido, Miguilim vem a ser, na narrativa de “Campo geral”, aquele que pretende intervir no estado coisas e combater o mal, no caso, o pecado que se abateu sobre a família em razão do possíveladultério da mãe e do tio. Todavia, tal intervenção não ocorrerá de maneira direta ou objetiva no plano do enredo da obra, mas principalmente a partir de uma luta interna, em que o mal (ou os efeitos que ele provoca no menino) será enfrentado a partir de um aprendizado que passará por algumas etapas substanciais ao mito do herói tradicional, mas que em Miguilim assumirão caráter, sobretudo, psicológico. MIGUILIM: O gato Sossõe é a própria imagem da infância como um poço infinito de alegria e luminosidade. É a ideia da infância como tempo feito todo de sonho (“só sonho”) e fantasia: “Sossonho” é o nome com que Dito o batizara, transformado em “Sossõe” por corruptela. Tanto Miguilim quanto Dito, apesar das diferenças de personalidade entre ambos, estão ligados a essa imagem infantil de sonho, luz e alegria. São as crianças que vivem de maneira lúdica essa fase da vida, com brincadeiras e inventando histórias. Em detrimento dessa aridez e brutalidade dos adultos, ele preferia a alegria iluminada do gato Sossõe, que andava pelo paiol e vinha se deitar ao lado de Miguilim com toda a delicadeza e gratuidade: O gato Sossõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro doutra, até não ter fim. (ROSA, 2001, p. 52) O GATO SOSSÕE: 12/07/2020 5 Aristeu, cujo nome grego tem a mesma raiz etimológica de “aristeia”, que significa, no contexto da epopeia clássica, os feitos excelentes do herói exemplar, é aquele que combate a tristeza com a palavra e com a alegria que ela pode disseminar, por meio da música e da contação de histórias. Seu nome liga-se também ao conceito grego de “aretê”, a excelência enquanto qualidade ou a virtude que deve ser buscada pelo homem em seu processo educativo e de formação para a vida. Portanto, em Aristeu encontram-se a excelência como ato e como qualidade, numa perspectiva ao mesmo tempo ética e pedagógica, de aprendizado para a vida. Por ser um praticante da arte da música, buscando com ela produzir alegria, Aristeu, reconhecido por sua bela aparência, se liga ao deus Apolo da mitologia grega, que é um deus solar, da luminosidade, e protetor dos músicos. Apolo representa o equilíbrio entre os desejos e a consciência racional. É o deus da claridade, da harmonia. Por ser um exímio contador de histórias, Aristeu enquadra-se na categoria do narrador oral antigo que, segundo Walter Benjamin (1994), detinha um saber que consistia na transmissão de experiências de pessoa para pessoa (de boca a boca), com histórias contadas por inúmeros outros narradores anônimos. Trata-se, portanto, de uma cultura do narrar que valoriza a experiência coletiva e o papel formativo ou educativo das histórias contadas. SEU ARISTEU: Ele examina Miguilim e diz para ele se levantar porque está saudável, explicando que a “morte” de Miguilim é uma “morte de ida-e-volta” (ROSA, 2001, p. 77). E, dessa maneira, com dizeres engraçados, histórias e uma cantiga, Aristeu realiza a anábase de Miguilim, a sua subida, sua volta daquele mergulho melancólico: Seo Aristeu sossegava para almoçar. Supria de aceitar cachaça. Oh homem! Ele tinha um ramozinho de ai-de-mim de flôr espetado na copa do chapéu, as calças ele não arregaçava. Só dizia aquelas coisas dansadas no ar, a casa se espaceava muito mais, de alegrias, até Vovó Izidra tinha de se rir por ter boca. Miguilim desejava tudo de sair com ele passear – perto dele a gente sentia vontade de escutar as lindas estórias. Na hora de ir embora afinal, Seo Aristeu abraçou Miguilim: – “Escuta, meu Miguilim, você sarou foi assim, sabe: … Eu vou e vou e vou e vou e volto! Porque se eu for Porque se eu for Porque se eu for hei de voltar…” (ROSA, 2001, p. 78-79) SEU ARISTEU: Além de Aristeu, Dito também é uma personagem voltada para o poder da palavra. “Dito”, abreviação de “Expedito”, significa o conhecimento que vem antes ou a sabedoria consagrada. Ao longo de toda a narrativa, Miguilim afirma reiteradamente a importância dos conselhos de Dito para a compreensão que ele, Miguilim, vem a desenvolver, sobretudo, acerca das relações humanas: O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De donde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do Dito, de saber e entender, sem as necessidades. (ROSA, 2001, p. 98) DITO: Os ciclos da narrativa e da infância de Miguilim se fecham com uma viagem indicando a abertura do mundo aos olhos infantis. Superado o luto, os óculos do doutor da cidade surgem como metáfora para uma nova forma de ver o mundo, ajustada às suas necessidades. Com as lentes corretoras, Miguilim será capaz de vislumbrar o horizonte que o espera e, ainda, de reconhecer por si próprio a beleza do Mutum: “O Mutum era bonito! Agora ele sabia.” (p.142). Faz-se necessária, nesse trecho final da narrativa, uma parada, pois dizer que agora Miguilim “sabia” é extremamente significativo. Sugere-se, aí, com a metáfora do ajuste das lentes pelas quais vê o mundo, representado pelos óculos, que o garoto teria sido capaz de superar as dúvidas e as oposições recorrentes ao longo da novela. O desajuste de Miguilim é ponto central da trama e mereceu atenção de toda a crítica; se voltamos a ele, é para assinalar a relevância da afirmação segundo a qual o garoto agora – depois de todas as experiências afetivas e da visão metaforicamente ajustada – “sabia”, em busca da superação dos lutos alcançada. A partida para a cidade grande evidencia justamente a maturidade atingida, aprendida a pequenos “goles” (p.77) de velhice e elaboração das perdas. Na última olhada para o Mutum antes de partir, Miguilim torna-se capaz, pela primeira vez, de tirar suas próprias conclusões sobre a beleza do lugar e das pessoas. O "saber", nesse caso, toma o lugar da fabulação na compensação; metaforicamente, os óculos não trazem apenas a visão a Miguilim, mas certo conhecimento. ÓCULOS: Além desses objetos citados no slide anterior, Mãitina acrescenta outros de sua devoção e introduz elementos característicos da umbanda, religião trazida pelos escravos ao Brasil. São enterrados, com os pertences do garoto, bonecos de madeira, penas brancas e pretas e guias (“pedrinhas amarradas com embira fina” [p.114]). A cova foi coberta com terra e sinalizada com pedrinhas lavadas do riacho, formando um círculo, outra marca do sincretismo religioso. Nos enterros umbandistas, acendem-se quatro velas e se risca com giz (pemba) um círculo em volta do túmulo, o círculo representaria a proteção do corpo e do espírito para que não fosse profanado por espíritos malignos. O LUTO: “E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do Senhor um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra” (Gn 4,1:2). De acordo com as escrituras, naquele tempo, eles praticavam atos de adoração ao Senhor sacrificando parte de suas produções. E toda vez que faziam a oferta ao Senhor, Este agradava das que Abel oferecia e não se agradava das ofertas de Caim. Isso se justifica pelo fato de que Abel oferecia as primícias, ou seja os primeiros e melhores frutos para serem dedicados a Deus, indicando o coração voltado a Ele, colocando o seu Senhor em primeiro lugar. Em seu caso, a melhor ovelha. Enquanto Caim oferecia o que restava da colheita, o que tornou seu ato de ofertar ao Senhor como um ato de formalidade, um ato semimportância. O resultado disso foi que o Senhor agradou da oferta de Abel e não se agradou da oferta de Caim (fonte: https://www.infoescola.com) CAIM E ABEL: 12/07/2020 6 Os óculos: para o Minguilim esses óculos são a sua travessia, ponte entre o mundo primitivo e rural ao outro mundo. Deixar o Mutum é perder uma noção / visão ingênua de mundo. Colocar os óculos é enxergar as coisas como elas propriamente eram. Óculos é o rompimento da infância e integração ao mundo da cultura. Óculos relaciona-se ao mundo letrado. O mundo dos óculos é o mundo da cidade. CONCLUSÃO: Aos 7 anos, Miguilim saiu do Mutum com o Tio Terêz para ser crismado no Sucurijú, local onde o Bispo apenas passava. O protagonista gostava muito do seu tio Terêz, irmão de seu pai. Um homem tinha dito ao Miguilim que o Mutum era um lugar muito bonito. A criança, ao voltar da viagem, mergulha em pensamentos sobre a afirmação do sujeito. Miguilim estava febril para narrar à mãe o fato acerca da beleza do Mutúm, para a criança isso seria uma espécie de “salvação”. Porém, a mãe contestou o filho dizendo que o lugar não era bonito. O pai, Bero/Berno, ficou furioso com Miguilim pelo fato do filho ter permanecido fora durante certo tempo e, ao voltar, não deu a devida atenção a ele. No domingo, o pai levou todos os filhos para pescar, exceto Miguilim. Berno deu a cadela Pingo de Ouro para uns tropeiros. Em seguida, brigou com a esposa. Miguilim sofria por isso, pensava que o tio Terêz não poderia voltar mais à casa deles. ENREDO: Munguilim, ao ver a mãe chorando (briga conjugal), abraçou-a. Em seguida, apanhou do pai que o colocou de castigo por isso. As crianças compreendem que a briga dos pais possuía uma relação com o tio Terêz. Tio Terêz apareceu com um coelho morto ensanguentado anunciando chuva brava (ver simbologia do animal sacrificado). O vaqueiro Jé também anuncia, preocupado, o fenômeno natural (observar a simbologia desse elemento natural). Miguilim ainda estava de castigo. Miguilim ouviu a avó Izidra conversando com o Tio Terêz. Ela pedia para ele ir embora da casa. A senhora ofende o tio dizendo que ele era o Caim que matou Abel. Drelina encontra Miguilim ouvindo a conversa atrás da porta. A chuva deixou todos da casa temerosos. ENREDO: Episódio da asa de galinha (p. 25) Seu Deográcias apareceu à casa de Miguilim para pedir dinheiro emprestado, café, sal e carne de vento. O feiticeiro levou o filho Patorí (Majela). Patori convidou Miguilim para jogar pedras nos sapos. Coisas erradas que Patori fez contra Miguilim: Bala de pedra Xinga as crianças mais novas Passar bala no banco (cadeira) para fazer sexo com as meninas Nhanina, mãe de Miguilim, tinha as pernas bonitas Casar com Drelina Jogar lama em Miguilim ENREDO: Dito, muito espero, espanta Patorí dizendo que Salúz estava procurando o filho de Deográcias por ter roubado a argola de laço. Tio Terêz mudou para Tabuleiro Branco, lugar distante do Mutúm. Miguilim passava mal de saúde, por isso, resolveu fazer promessa a Deus, se não morresse em 3 dias não morreria mais. Porém, faz um novo trato com Deus dizendo ser 10 dias. Tudo isso, para amenizar as angústias da vida, condição que lhe causava dores no corpo. A ideia da morte leva Miguilim a pensar no caso do boi Rio Negro e Gigão (p. 45). Caso do pé de flor. Deográcias disse para cortar a árvore, pois era sinal de morte de alguém da casa, mas o pai não queria. Dito pediu para Salúz cortar a árvore. O pai ao chegar da lavoura, ficou furioso e Dito disse ter sonhado com doença do pai que não agrediu o filho (p. 49). ENREDO: Passaram 10 dias da promessa, Miguilim não queria levantar da cama (ver a angústia sentida na página 55). Dito procurou seu Aristeu para cuidar do irmão. Aristeu dançou, contou histórias e cantou para Miguilim que levantou da cama melhorando o estado de saúde (ver simbologia de seu Aristeu). Berno disse a Miguilim que, no outro dia, seria para o filho levar o almoço para o pai na lavoura. Miguilim ficou muito feliz (p.60). No outro dia, Miguilim ao voltar para a casa, após entregar o almoço ao pai, é, subitamente, interpolado pelo tio Terêz que lhe entrega um bilhete endereçado à Nhanina. Miguilim passa por profundos dilemas morais acerca do bilhete. Ele dormiu com a calça onde estava o bilhete do tio Terêz (“O bilhete estava ali na algibeira, até medo de botar a mão, até não queria saber” p. 71). ENREDO: 12/07/2020 7 Miguilim a caminho da roça onde o pai estava trabalhando pensava nas possíveis desculpas a dar ao tio sobre bilhete: entregou o papel à mãe, rasgou o bilhete com medo da avó Izidra tomá-lo, perdeu o bilhete. A caminho da roça, Tio Terêz saiu do mato e Miguilim começou a chorar e a rezar. A criança contou a verdade sobre o bilhete. O tio compreendeu e respeitou o sobrinho. Miguilim é atacado por macacos e deixa a bandeja com o almoço do pai no chão. À noite, o pai contou à família a história dos macacos ladrões: “todos riam muito, mas ele Miguilim não se importava, até era bom que rissem e falassem, sem ralhar” p. 76 Patorí atirou em um rapaz, ao certo por acidente, que morreu. Berno passou a trabalhar com Luisaltino que trouxe o papagaio Papaco-o-Paco (“Olerê lerê lerá, morena dos olhos tristes, muda esse mode de olhar” p. 81). ENREDO: Encontram o Patorí morto, morreu de fome nas chapadas do Mutúm. Berno partiu para dar um apoio moral ao Deográcias. Enquanto Berno estava fora de casa, a família partiu para um passeio. Luisaltino conversava sozinho com Nhanina. Morte do cachorro Julim, o marimbondo que ferroa Tomezinho e o incidente com o boi Rio-Negro (símbolos de morte aproximada). O vaqueiro Jé (branco) partiu, às escondidas, com a Maria Pretinha (negra). A família tentava capturar o mico-estrela, quando Dito pisou num “caco de pote” cortando o pé. A criança contraiu tétano. Dito falece no dia do natal, antes, deu um recado a Miguilim: “A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!” p. 98 (alívio cômico) Miguilim segue atrás de Mãitinha a fim de pedir ajuda acerca do caso de Dito (ver página 98-99). ENREDO: Migulim entristece e alegra-se com o funeral de Dito. Ocorre um funeral simbólico organizado por Mãitinha e Dito (p. 103) O Papaco-o-Paco, finalmente, pronuncia o nome do Dito. Berno obriga Miguilim trabalhar todos os dias (ver momento da ofensa do pai página 106 e 108). Osmundo Cessim e Liovaldo vão para a casa de Miguilim, passariam 15 dias na localidade. Miguilim era obrigado a lavar latas de leite e levar leite até o Bugre. Violência contra Grivo, menino pobre, agredido por Liovaldo. Miguilim agrediu o irmão. O pai agrediu Miguilim que pensou em matar o pai. No momento da violência, o protagonista começou o rir, o pai pensou que tivesse batido na cabeça do filho. ENREDO: Salúz levou Miguilim para a casa, a criança passaria três dias na localidade. Ao retornar à sua casa, Miguilim não “tomou benção” do pai (quebra da reverência paterna) que, furioso, soltou os pássaros e quebrou as gaiolas do filho (p. 118). Após a surra, Miguilim quebrou os brinquedos dele. Miguilim, na plantação, trabalhando para o pai, passou mal (sangue pelo nariz e vomitar). Bero demonstrou muita preocupação para com a saúde do filho. Bero matou Luisaltino e escondeu no mato. Miguilim estava acamando quando recebeu a notícia do suicídio do pai. Seu Aristeu tentou restabelecer a saúde de Miguilim (p. 125). Tio Terêz voltou para a casa de Miguilim e avó Izidra partiu, pois o tio e a mãe ficaram juntos. ENREDO: Apareceu o médico José Lourenço que avaliou Miguilim e constatou que a criança tinha a “vista curta”, dando-lhe óculos. Miguilim parte para a cidade com o médico, mas, antes, vê os familiares e diz: “O Mutúm era bonito!” ENREDO: 1 - (UNICAMP-ADAPTADA) Em “Campo Geral”, de João Guimarães Rosa, um “certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos,longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do- fogo-d’Água e de outras veredas ser nome ou pouco conhecidas, um ponto remoto, no Mutúm”. No final da narrativa, depois de tudo o que ocorre com a personagem Miguilim prepara-se para uma viagem decisiva na sua vida. Leia com atenção o trecho transcrito acima, que indica características importantes do espaço em que a personagem vivia, e aponte diferenças entre este espaço e o espaço para onde Miguilim se dirige com o doutor José Lourenço. RESOLUÇÃO: O espaço de Mutum (o sertão, a zona rural) é isolado, apartado do mundo. Metaforicamente pode ser entendido como o mundo interno da infância, que se perde com o crescimento. Miguilim vai para a cidade (espaço urbano), que por sua vez pode significar a maturidade. Enquanto o espaço do Mutum é primitivo, mágico, cheio de lendas e neste conto associado à infância, no espaço urbano, para onde vai Miguilim, há a possibilidade de crescer intelectualmente, de amadurecer.
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