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Philippe Poutignat : Uma Proposta de Reflexão sobre as Teorias da Etnicidade Philippe Poutignat : a Proposal far reflection on Ethnicity Theories Vanderléia L.M. PAES RESUMO O presente trabalho tem por objetivo compreender uma das linhas da etnologia francesa, explorando, especialmente, a proposta feita por Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart de introduzir uma discussão sobre o conceito de etnicidade na sociedade francesa. Para tal proposição, os autores recorrem principalmente aos referenciais teóricos de Fredrik Barth, bem como de outros autores anglo-saxões, para analisar o contexto da conflitiva realidade francesa contemporânea: a emergência reivindicatória das minorias étnicas. A pertinência teórica e metodológica dessas análises sobre etnicidade permite que se possa estender essa reflexão para o âmbito das culturas distintas. Portanto, é também propósito deste trabalho situar o problema da inserção dos índios Terena de Mato Grosso do Sul no contexto urbano da cidade de Campo Grande, tendo como base para reflexão os conceitos apontados por Philippe Poutignat e Fredrik Barth; ou seja, pretende-se refletir em que medida o processo migratório para a cidade afeta a construção da identidade étnica desse grupo, considerando os confrontos interétnicos com a sociedade não indígena. Palavras-Chave: Teorias da etnicidade, Fredrik Barth, Terena. ABSTRACT The work in hand aims at understanding one of the French ethnology lines of research, giving special attention to the proposal proffered by Phillipe Poutignat and Jocelyne Streiff- Fenart, of introducing a discussion on the concept of ethnicity in French society. For this proposal, the authors go back mainly to the theoretical references of Fredrik Barth, as well as other Anglo-Saxon authors, to analyse the context of the reality of contemporary French conflict: the emergence of the demands of ethnic minorities. The theoretical and methodological pertinence of such analyses of ethnicity permit the extending of this reflection to the scope of distinct cultures. For this reason it is also the proposal of this study to situate the problem of the insertion of the Terena Indians of South Mato Grosso within the urban context of the city of Campo Grande, having as a basis for reflection the concepts pointed out by Phillipe Poutignat and Fredrik Barth; the intention thus being to reflect on, up to what point the migratory process to the city affects the construction of the ethnic identity of this group, considering the interethnic confrontations with the non-indigenous society. Key Words: Ethnicity Theories, Fredrik Barth, Terena 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A proposta feita por Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart de introduzir uma discussão sobre o conceito de etnicidade na sociedade francesa não é uma tarefa muito simples, devido não só às dificuldades conceituais que esse termo carrega, como também as 2 questões sociais, culturais e políticas da França, emergidas principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, com a intensificação do processo migratório. Essa comunicação, portanto, divide-se em duas partes: na primeira, serão apresentadas as dificuldades encontradas pelos autores em introduzir a discussão sobre etnicidade no contexto da realidade francesa; depois, será exposto o conceito de etnicidade, bem como as categorias teórico-metodológicas trabalhadas pelos autores para propor essa discussão. Já na segunda parte, e a partir do tratamento desse conceito, pretende-se repensar a problemática vivenciada pelos Terena no contexto urbano, em que, no senso comum, eles são tidos como aqueles que saíram da aldeia e deixaram de ser índios e se encontram no centro urbano, mas sem se tornarem brancos. O primeiro grande interesse da obra de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart é o de informar sobre as discussões teóricas entre os pesquisadores de língua inglesa no que diz respeito ao próprio conceito de etnicidade. Assim sendo, em se tratando da primeira parte, mais especificamente das dificuldades em introduzir esse conceito, podemos elencar dois grandes fatores: o primeiro parte da resistência, por parte dos franceses, em entender que no seio de sua sociedade existe a presença efetiva de outros “grupos étnicos”, como por exemplo, os “magrebinos ou beurs” (filhos de imigrantes árabes nascido na França), bretões, bascos, occitanos, corsos, etc, verdadeiras etnias no Estado-Nação, apesar das restrições constitucionais francesas. Ao lado disso, os franceses não levaram em conta que a partir da década de 40 (entre 1945 e 1965) era expressivo o número de imigrantes1 que buscavam trabalho na França, miscigenando mais ainda a suposta unidade étnica do país. O segundo fator de dificuldade para aceitação do termo etnicidade diz respeito aos pré-juízos decorrentes das sugestões político-reivindicatórias transportadas das ciências sociais anglo-saxônicas que há mais de vinte anos trabalham com esse conceito do ponto vista das demandas das comunidades étnicas. Na França, a atitude reticenciosa em relação ao conceito de etnicidade está ligada ao fato de haver resistência em importar, sem crítica prévia, conceitos forjados em um país onde, nem a realidade, nem as representações da nação e da imigração são as mesmas. Desta forma, a palavra está carregada de sentidos simbólicos ligados à imagem-repositória de um modelo “americano” que aceitaria não só a existência de grupos étnicos, como também a constituição de forças políticas concorrentes com a soberania nacional. Este conceito de etnicidade constituído dentro do contexto americano evoca um “comunitarismo étnico” totalmente oposto à tradição francesa que fundamenta a democracia 1 Pode-se concluir seguindo nesta perspectiva que as representações sociais e as tensões urbanas ligadas à imigração geram uma certa resistência da sociedade francesa em aceitar que existem grupos distintos sob a pretendida unidade étnico cultural, preferindo se sustentar nos princípios constitucionais de que na França não há diferenças entre os cidadãos quanto à raça, origem ou religião. Em outras palavras, a reafirmação constante do modelo francês de integração, que sempre se apoiou em um suposto laço indissolúvel entre os aspectos jurídicos e culturais da “naturalização” do estrangeiro, enfrenta dificuldades em se sustentar. 3 na ligação direta entre o cidadão e o Estado e não mediatizada por grupos, como costuma ocorrer nos países de língua inglesa. Poutignat admite que a noção de etnicidade tenha sido forjada em um contexto sociopolítico diverso do francês e, também reconhece que tal situação não ocorreu por conta da sociologia americana, mas de modo geral pela comunidade científica de língua inglesa, que consiste em não reconhecer a existência de grupos étnicos, mas em colocar como problemática a consubstancialidade de uma entidade social e de uma cultura pela qual define- se habitualmente o grupo étnico2. Logo, teorizar etnicidade não consiste em fundar o pluralismo étnico como um modelo de organização sociopolítica, mas de examinar as modalidades segundo as quais uma visão de mundo “étnica “ torna-se significativa para os atores. Em vista disso, conviria situar o conceito de etnicidade desenvolvido por Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart; bem como a influência de Barth sobre a construção desse conceito. De acordo com os autores, há uma vasta bibliografia sobre etnicidade, em que, na maioria dos casos, o termo é utilizado mais como uma categoria descritiva do que, propriamente, como um conceito sociológico que possibilita definir um objeto científico.3 Poutignat e Jocelyne retomam o conceito de etnicidade de autores diversos, principalmente da década de 70, período em que o termo ganhou substancialidade na sociedade americana, para mostrar o quanto esse termo evidenciavaimprecisão e heterogeneidade de conteúdo. Dos autores e conceitos apresentados, podemos destacar: Gordon (1964); Connor (1978); Cohen (1974) e outros, através dos quais Poutignat repassa a concepção de etnicidade vigente naqueles idos de 60 e 70 4 como um conjunto de traços, tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima da noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, ou que a torna próxima da noção de raça. Esse conceito, entretanto, é rejeitado por Poutignat que o considera mais como uma categoria descritiva, tratando de problemas de natureza diversa, como já foi acima observado: integração nacional, assimilação, racismo etc. O que interessa, segundo o autor, são conceitos que tomam a etnicidade como um dado identitário (símbolos do imaginário) do grupo social, para além dos vínculos primordiais5. 2 Poutignat,1998:17. 3 Id.ib.p.83 4 Id.ib.p.86. 5 Na crítica ao primordialismo, invocada por Poutignat, esse caráter primordial de etnicidade torna-se uma propriedade essencial transmitida no e pelo grupo, independentemente das relações com os “out-groups”. Indo mais à frente, Poutignat reforça as críticas dirigidas ao primordialismo afirmando que alguns autores recusam-se a reconhecer um caráter específico das “ligações” étnicas, pois ignoram o aspecto econômico. Já outros, consideram que as teorias primordialistas não possuem capacidade o suficiente para dar conta dessa especificidade. 4 2 O CONCEITO DE ETNICIDADE COMO FORMA DE INTERAÇÃO SOCIAL Mas no quê essa concepção de Poutignat e Jocelyne- Fenart é tributária das teorias de etnicidade formuladas por Barth? Essa interrogação mais ainda se impõe se se considerar que a tarefa do pesquisador em antropologia, segundo esses autores, é a de descobrir o sentido das relações interétnicas, de preferência na relação com os processos de criação e de interpretação do imaginário social, diferentemente de Barth que busca esse sentido também no processo de organização social. Segundo este autor, a melhor maneira de utilizar o termo etnicidade é como um conceito de organização social, que permite descrever as fronteiras e as relações dos grupos sociais em termos de contrates altamente seletivos, que são utilizados de forma emblemática para organizar as identidades e as interações (Barth, 1984:80) . Ora, para além das eventuais diferenças de abordagem teórica e metodológica que os distinguem de Barth, Poutignat e Jocelyne buscam neste autor o caráter inovador6 de sua conceptualização dos grupos étnicos, baseada no princípio da alteridade (Nós/Eles); tal categoria representa um elemento central na compreensão barthiana dos fenômenos de etnicidade. Em um primeiro momento, porque reforça a idéia de que a pertença étnica não se configura senão em relação a uma linha de demarcação entre os membros e os não membros. Além disso, reitera a idéia de que a noção do grupo étnico só tem sentido à medida em que os atores consigam dar conta das fronteiras que demarcam o sistema social a que supõem pertencer e ao dos demais atores implicados em um outro sistema social. A noção barthiana de grupo étnico liga-se, portanto, à idéia de que são tais fronteiras e não os aspectos culturais internos que definem o grupo étnico e permitem que se dê conta de sua persistência. Assim, o que torna válida a permanência dos grupos e sua persistência no tempo é o fato de que essas fronteiras mantêm-se independentemente das mudanças que afetam os marcadores aos quais elas se fixam. Assim, na concepção barthiana, para que se possa manter as fronteiras étnicas é preciso que haja uma organização efetiva nas trocas entre os grupos e a ativação de uma série de proscrições e de prescrições regendo suas interações. Feitas essas considerações, conviria concluir com as convicções comungadas pelos autores, Poutignat e Jocelyne, em consonância com Barth, segundo os quais a etnicidade é uma forma de organização social, que se baseia na atribuição de categorias, classificando as pessoas em função de sua origem suposta, que se encontra validada na interação social pela ativação dos signos culturais socialmente diferenciadores.7 6 O texto de Barth é importante, segundo Molohom, porque ele representa um verdadeiro desafio para a maioria das teorias anteriores sobre esta questão, especilamente as da aculturação, da assimilação e da mudança cultural.(Apud, Poutignat:153). 7 Op.cit.141. 5 3 AS CATEGORIAS DESENVOLVIDAS PELOS AUTORES PARA TRATAR DAS DISCUSSÕES SOBRE ETNICIDADE: OS PROBLEMAS-CHAVE Com base nas teorias barthianas, os nossos autores observam que, qualquer que seja o tipo de abordagem utilizado, encontram-se de modo recorrente quatro questões-chave nas problemáticas da etnicidade: 1) o problema da atribuição categorial pelo qual os atores identificam-se e são identificados pelos outros; 2) o problema das fronteiras do grupo, por onde se dá a dicotomozação nós/eles; 3) o problema da origem comum, relativo aos símbolos identitários do grupo e 4) o problema do Realce; pelo qual os traços étnicos são destacados pela interação, recobrindo o conjunto dos processos sociais. Assim, nas palavras chave constituidoras do conceito de etnicidade, do ponto de vista dos autores – a atribuição categorial (poder de nomear), as fronteiras (dicotomização Nós/Eles), a origem comum ( símbolos identitários) e por último o realce ( processos em que os traços étnicos são realçados na interação social) – fica evidente o conceito básico dos autores de que os traços identitários emergem no processo das interações étnico-culturais estabelecidas entre os grupos . Por essa perspectiva, Berreman (1975), citado por Poutignat e Jocelyne, ao fazer uma análise das culturas distintas em um contexto urbano, afirma que a diversidade étnica e o caráter impessoal e instrumental das relações peculiares à vida urbana precisam de métodos específicos de definição, de expressão e de reconhecimento das identidades implicadas na interação. Na aldeia, o mesmo deve ocorrer; ou seja, há que se proceder com o mesmo rigor metodológico específico, muito embora os indivíduos interagem em razão do conhecimento que possuem de suas identidades mútuas.8 Ora, se esse processo exige uma atenção cautelosa com relação às específicas abordagens teóricas e metodológicas – cidade e aldeia –, então, o que dizer da complexa situação de grupos distintos, no caso os índios Terena9 em Campo Grande-MS, “aldeados na cidade” e “negociando” seus símbolos identitários nos limites fronteiriços da exclusão imposta pelos outgroups do espaço urbano, sem perderem a sua identidade étnica? 8 Apud, Poutignat e Jocelyne:114/115 9 Os Terena, que pertencem ao tronco Guaná-Chané e a família lingüística Aruak, vieram do Chaco paraguaio e boliviano. Traçando a rota de expansão desses grupos, constatamos que havia muitos aspectos referentes à família lingüística Aruak,, que ainda não tinham sido devidamente conhecidos, tanto no que se referia às suas prováveis origens, quanto a seus locais de dispersão. Embora não se pudesse afirmar com precisão o local exato da origem desta família, era possível afirmar que o proto-habitat Aruak estava localizado na região do Rio Orinoco, Llanos da Venezuela e Guianas. (Susnik, 1994:56-7). 6 4 OS TERENA EM CAMPO GRANDE: NOS LIMITES FRONTEIRIÇOS DA EXCLUSÃO URBANA Ao longo da história, as populações indígenas, em geral, têm sido vistas, por muitos estudiosos, como um campo fértil de estudos, pois tais sociedades traçaram caminhos próprios e distintos que, muitas vezes, não são compreendidos pela sociedade ocidental. Diante dessa realidade, configuram-se duas situações distintas, mas paralelas, que despertam interesses da comunidade científica. A primeira está estreitamenteligada à compreensão das relações de contato entre os povos indígenas e a sociedade nacional e/ou internacional. Já a segunda aponta para o que emerge em decorrência deste contato sistemático. Nesse contexto, o problema maior desdobra-se em dois pólos complexos: um que se refere à questão da identidade étnica, e outro que trata da territorialidade10. De momento, esta comunicação tratará apenas a questão da identidade étnica. Na tentativa de estes povos reagirem às relações de contato, que são ao mesmo tempo opostas e contraditórias, muitos grupos têm buscado formas, mesmo em condições adversas às suas, de garantirem não só a sua subsistência física mas também a cultural. Exemplo disto, é o caso dos índios Terena que, para sobreviverem, começaram a sair de suas áreas de origem, as aldeias, em direção às periferias das cidades. Aqui mais especificamente na aldeia urbana Marçal de Souza11, localizada nos arredores da cidade. Seguindo nesta temática, a presente exposição se propõe a situar o problema da inserção dos índios Terena no o contexto urbano tendo como base para reflexão os conceitos apontados por Philippe Poutignat e Fredrik Barth, que saíram de suas áreas e passaram a residir no centro urbano de Campo Grande. Segundo informações fornecidas por Cardoso de Oliveira (1968), desde 1960 vem ocorrendo um fluxo migratório desse grupo étnico. Essas famílias12 começaram a sair das reservas rumo às periferias das cidades em busca do que elas supõem ser uma vida melhor, que esteja vinculada a alguns propósitos fundamentais. O primeiro refere-se à busca de trabalho. Na aldeia, além de as opções de trabalho serem escassas, principalmente para mulheres, também faltam recursos para “tocar” a 10 Sobre esta questão, apoiamo-nos nas teses de Seeger, A e Castro,E.V, sobre a diferença existente entre o conceito de terra e território tribal. No primeiro, “a terra é vista como um meio de produção, lugar de trabalho agrícola ou solo onde se distribuem recursos animais e de coleta”. Já no outro, o território tribal é tido como uma dimensão que abrange amplamente os aspectos “sócio-politico-cosmológicos. Neste sentido, tanto a utilização dos recursos, em nível de percepção social do espaço e das concepções jurídico-políticas do território, como o próprio uso que se faz dos mesmos (terra e território), variam de grupo indígena para grupo, pois da mesma forma que variavam as formas econômicas de uso da terra, variavam também as formas de percepção do território tribal. (Seeger, A e Castro,E.V, 1979:104-105). 11 Essa comunidade foi doada para a FUNAI, pela prefeitura municipal, com o intuito de construir a casa do índio. A casa não foi construída e o terreno estava sendo ameaçado de ocupação por outras famílias não indígenas. Sabendo disso, os Terena, em 1990, se reuniram e resolveram invadir o terreno. Em 1998 o prefeito da cidade regularizou a situação, registrando e construindo 180 casas em um lote de 5 hectares. No dia 12 de fevereiro de 1999 o loteamento foi devidamente inaugurado. 12 O conceito de “família” para os índios compreende as relações de parentesco que o podem ser por consangüinidade (enquanto relação social reconhecida) e afinidade (aliança matrimonial). 7 lavoura, de modo que algumas famílias acabam sobrevivendo apenas com a aposentadoria. Já o segundo aspecto está ligado à falta de escolas para os filhos, pois algumas aldeias não oferecem todos os graus de formação necessários para atender às exigências do aluno e, nesse sentido, em muitos casos, os índios têm de se deslocar para a cidade mais próxima a fim de poderem concluir os ensinos fundamental e médio. Seguindo esta linha de investigação, deparamo-nos, com alguns problemas teóricos e conceituais, relativos aos Terena, que exigem maior rigor de análise. O ponto central da análise situa-se, especificamente, em alguns equívocos cometidos em relação a esses grupos, cujas conseqüências maiores, além de recaírem sobre a própria comunidade Terena, também se constituíram em um duplo prejuízo. O primeiro, por exemplo, diz respeito ao senso comum disseminado por todo o Estado do Mato Grosso do Sul, onde os Terena são tidos como “os índios que deixaram de ser índios e não conseguiram se tornar brancos”; configura-se aí uma das questões chave de Poutignat&Jocelyne a cerca da etnicidade, ou seja, o problema da atribuição categorial: A definição exógena recobre todos os processos de etiquetagem e de rotulação pelos quais um grupo se vê atribuir, do exterior,uma identidade étnica13 O outro prejuízo refere-se a questões políticas internas decorrentes dessas generalizações. Desse modo, quando uma família Terena desloca-se para as cidades em busca de trabalho, geralmente ela acaba fixando residência na própria cidade pela inviabilidade de locomoção, causando, na maioria das vezes, uma certa indisposição com os demais membros que ficaram na aldeia. Para esses patrícios, os Terena que vão para a cidade perdem o direito de participarem ativamente das decisões internas da aldeia, resultando, assim, na exclusão daqueles que já saíram. São praticamente impedidos de prestarem serviço para as comunidades; somente alguns são permitidos como, por exemplo, os agentes de saúde e professores de ensino fundamental e médio. Nesse contexto, os Terena, infelizmente, são os mais atingidos, pois, além de sofrerem discriminação na cidade, também se deparam com questões políticas e discriminatórias nas aldeias. Não estariam aí presentes alguns aspectos apontados por Poutignat&Jocelyne com relação à terceira questão chave da etnicidade, a origem comum? Para os autores, permanece que os indivíduos ou os grupos assimilados são sempre susceptíveis de ver contestada a sua pertença, quando o trabalho coletivo do esquecimento não jogou a seu favor como jogou para aqueles que continuam a vê-los como “assimilados”14 13 Poutignat&Jocelyne. Op.cit:142. 14 Id.ib:161. 8 Fazendo um estudo da etnografia produzida sobre os Terena e acompanhando a sua trajetória histórica, percebemos alguns pontos contraditórios, dentre os quais apontamos dois: o de haver uma certa discordância entre a teoria e prática no entendimento da cultura terena, e, o outro, que aponta para uma certa generalização na forma de alguns pesquisadores tratarem do assunto. No segundo caso, os autores Yara Penteado e Carlos Rodrigues Brandão15 partem de estudos de casos empíricos, cujos resultados são generalizados, isto é, são estendidos a todos os grupos Terena, independentemente das condições específicas de vida e do lugar onde estão inseridos, sendo na aldeia e/ou na cidade. Procedendo-se à análise da temática desenvolvida pela autora, observa-se que a inserção do índio na vida citadina como processo migratório, desencadeia mudanças substantivas na ordem cultural do grupo. Neste estudo, ficou ainda constatado que a mudança causada pela vinda do índio para a cidade, “por ser substantiva, também é aceleradora de uma crise gradativa na consciência étnica, tendendo, inclusive a comprometer a própria identidade étnica” (Penteado, 1980:111). Assim sendo, uma das conseqüências disso “reside na perspectiva de um gradativo abandono dos elos tribais em favor de uma postura mais compatível com a adoção feita pela cidade” (Penteado, 1980:111). Em conformidade com essa linha de argumentação, Carlos Brandão ao fazer uma análise de posicionamentos comuns aos antropólogos que descreveram o contato interétnico dos grupos indígenas: Terena, Krahó, Assuriri, Gaviões e Tukuna com frentes extrativistas, pastoris ou agrícolas, constatou que as mudanças no interior desses grupos foram inevitáveis (Brandão, 1986:114). Para esse autor, as transformações provocadas no interior deste sistema interétnico sobre as condições de pré-contato, de sobrevivência física,de modo de vida primitivo e de organização tribal, não destruíram por completo uma espécie de sentimento coletivo do grupo, um ‘nós tribal’. Assim, Carlos Brandão, apoiando-se em Cardoso de Oliveira, chegou à constatação de que a saída do índio Terena da aldeia, ou seja, que a vinda da família Terena para a cidade era sem dúvida a experiência mais radical de destribalização e de desaldeação, em que os mesmos deixam a aldeia, a reserva e o trabalho interno, sendo pressionados a viverem na cidade como ‘brancos (Brandão, 1986:114). Neste sentido, o antropólogo João Pacheco, chama a atenção para certas associações feitas por alguns estudiosos, que consideram o aspecto migratório como sinônimo de perda de valores culturais16. O antropólogo faz uma crítica a este posicionamento afirmando que, além 15 Apesar de Carlos Brandão não ter feito pesquisas de campo entre os Terena; reportamo-nos a ele para discutir essa problemática teórica, que mostra certos equívocos cometidos com essa sociedade. 16 Segundo ele, embora a questão da migração fosse tangida por dificuldades econômicas, os migrantes fazem parte de certas estruturas: familiar, cerimonial, política, cuja ausência implica, muitas vezes, o não 9 de tal visão ser equivocada, não propicia um enquadramento mais adequado para o tratamento do problema, necessitando, porém, de um aprofundamento. Recorrendo a Poutignat&Jocelyne podemos observar que: um grupo étnico pode manter sua unidade apesar das divergências nos modos de vida e nas formas institucionais, isto é, apesar do que se define habitualmente como uma “cultura”17 Assim sendo, podemos constatar que, se fosse feito um trabalho mais específico e menos homogeneizador com as sociedades indígenas, poder-se-iam cometer menos equívocos em torno delas. Portanto, a fim de evitar novas associações dessa ordem, preferimos substituir, com o grupo Terena, o termo “migração18” por deslocamentos. Foi pensando nesses e nos inúmeros prejuízos já causados a todas as sociedades indígenas, de modo geral, que propusemos com o grupo Terena, uma outra abordagem teórica capaz de fornecer respostas mais específicas e menos homogeneizadoras. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para transmitir a cultura, os Terena não utilizam os mesmos processos nem as mesmas formalidades existentes na cultura ocidental. Para eles, essa transmissão pode ocorrer tanto por via oral, como por meio da imitação de costumes. Sendo assim, é muito pouco provável que todos esses grupos vão se utilizar de uma única e mesma forma para absorver os diversos elementos dos esquemas culturais existentes. No entanto, apesar de haver uma diversidade de esquemas de significações dentro da cultura, há também uma unidade básica de representações sociais, a que Poutignat&Jocelyne chamam de símbolos identitários, pois do contrário, não seriam Terena. Portanto, essa unidade pode ser entendida como o próprio sentimento de pertença ao grupo, que os indivíduos detêm19. Em se tratando desses grupos indígenas, é possível perceber, que por serem dinâmicos20, absorvendo e ressignificando elementos de outras culturas, eles passaram a adquirir esquemas culturais de ordem própria, sendo os significados reavaliados quando realizados na prática. preenchimento de papéis e funções sociais básicas, bem como a frustração de sentimentos e valores morais. Assim sendo, tanto para a sociedade indígena como para os migrantes efetivos o resultado deste processo parece ser a mudança cultural, a assimilação e a destribalização. (1996:03), 17 Poutignat&Jocelyne:133. 18 Entendemos que “migração” são componentes de um fenômeno universal, que é a movimentação de povos que migram por razões objetivas, obtendo como resultado a própria expansão. Nesse processo, os povos se integram e sofrem transformações que, muitas vezes, não significam necessariamente sinal de ruptura. Se nos apoiarmos em Susnik (1994), veremos que, quando a família de origem dos Terena precisava buscar novas terras para assentamento, havia sempre uma preferência por “zonas com periferia etnocultural diferente e que permitiam uma comunicação livre, fluvial e terrestre” (Susnik, 1994:57). Desse modo, o termo empregado não engloba idéias de aumento demográfico e de poder político, embora isso não signifique, necessariamente, que esses fatores não possam vir a ocorrer ( Paes, Vanderléia, 2000:44). 19 Essa idéia foi formulada de acordo com o conceito de identidade elaborado por Fredrik Barth. Nesse aspecto, quero abrir um parênteses, no sentido de alertar o leitor para o fato de que entre Barth e Sahlins há algumas divergências teóricas. Portanto, os conceitos aqui utilizados são bem pontuais e definidos, não entrando nessa linha de divergência. 20 Para Jean Jackson a culture as something dynamic, something that people use to adapt to changing social conditions – and as something that is adapted in turn – we have a more serviceable sense of how culture operates over time, particularly in situations 10 Assim, isso só será possível se houver uma interação entre as pessoas e as compressões pré- existentes de sua ordem cultural. Logo, a cultura passa a ser historicamente reproduzida na ação e interação. Embora haja uma conformidade entre as teses aqui discutidas, em torno da reafirmação da identidade étnica dos Terena urbanos, o mesmo não acontece por parte de alguns pesquisadores que não vêem essa etnia como um grupo que historicamente se reproduz na ação. Assim, diversos trabalhos sobre os Terena foram elaborados de acordo com uma metodologia, em que os autores, a partir de estudos de casos empíricos, conforme já foi mencionado, generalizavam resultados; além de não condizerem com alguns aspectos relacionados à diversidade da etnia, tais estudos acabavam cometendo equívocos. A propósito, contrariamente à afirmação da antropóloga Yara Penteado, de que os índios Terena abandonam os elos tribais, esses índios continuam mantendo uma certa ligação com os patrícios da aldeia e os vínculos são mantidos pelas famílias que viviam nos bairros periféricos da cidade. Neste sentido, Barth afirma que a necessidade de interação com o outro serve para reafirmar, ou mesmo descobrir, a própria identidade. Isso significa que a fronteira étnica – em sua acepção mais extensa – é livre dos constrangimentos territoriais, é algo “portátil”. Segundo o autor, é só encontrar uma pessoa de outra cultura, mesmo sendo do próprio país, para que a fronteira étnica seja suscitada. Deste modo, deve-se estudar as interações e seus resultados no confronto dinâmico de suas fronteiras étnicas, A proposição de Barth enfatiza, portanto, em sua definição, os limites de um grupo étnico, os valores internos e sua interação com os outros grupos, como forma de afirmar as diferenças, e não insistir nos elementos culturais visíveis e materiais, quer dizer: objetiváveis. Para Barth, os grupos étnicos são vistos como um tipo organizacional21. No contexto dos Terena urbanos os atores, tendo como finalidade a interação social, usam identidades étnicas para se categorizarem e categorizarem os outros, passando a se constituir como grupos étnicos. Aqui, é importante ressaltar que, apesar de as categorias étnicas levarem em conta as diferenças culturais, tanto dos índios aldeados quanto da sociedade não indígena, não se pode pressupor qualquer relação de correspondência entre as unidades étnicas e as semelhanças e diferenças culturais. As características a serem efetivamente levadas em conta não correspondem ao somatório das diferenças “objetivas”; são apenas aquelas que os próprios Terena consideram significativas. (Barth,2000:32) .demanding rapid charge. Culture, genuine and spurious:the politics of indianness in the Vaupés, Colombia. In: American Ethnologist.The Journal of the American Ethnological Society. Op. cit. P.18. 21 Barth considera que a característica organizacional, que deve ser geral em todas as relações interétnicas, é um conjunto sistemático de regras que governam os encontros sociais interétnicos. 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTH, Frederik. Los Grupos Étnicos e Sus Fronteras. La Organizacion Social de Las Diferencias Culturales. Traduccion de Sérgio Lugo Redón. México: fondo de Cultura Econômica, 1976. ______________ O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia -Construção da Pessoa e Resistência Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986. GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. JACKSON, E.Jean. Culture, genuine and spurious:the politics of indianness in the Vaupés, Colombia. In: American Ethnologist.The Journal of the American Ethnological Society. V. 22, number 1(feb.1995.)p.18. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Urbanização e Tribalismo: A Integração dos índios Terena numa Sociedade de Classes. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. OLIVEIRA, João Pacheco de. Viagens de Ida, de Volta e Outras Viagens: Os Movimentos migratórios e às Sociedades Indígenas. In. Revista do Migrante, vol. IX n 24, 1996. PAES, Leite Mussi Vanderléia. Dinâmica de Organização Social dos Terena, da Aldeia ao Espaço Urbano de Campo Grande - Ms. São Leopoldo :Dissertação (Mestrado em História) Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 2000. PENTEADO, Yara. A condição urbana: estudo de dois casos de inserção do índio na vida citadina. Brasília: Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Universidade de Brasília, 1980. POUTIGNAT, Philippe, Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Editora da UNESP, 1998. SAHLINS, Marshal. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. SEEGER, A. e B. VIVEIROS DE CASTRO. 1979. Terras e Territórios Indígenas no Brasil. Encontros com a Civilização Brasileira. 12ª Ed. Rio de Janeiro, 1979. SUSNIK, B. Interpretación Etnocultural de la Complejidade Sudamericana Antiga. Asunción, Museo Etnografico “Andrés Barbero”, 1994. Dados da Autora: VANDERLÉIA PAES LEITE MUSSI Rua Quinheira nº 227 – Copatrabalho - Campo Grande – MS - CEP: 79115-140 Telefones: (67) 3621774(Res.), (67) 99517324 (Cel.), (67) 3123581 (UCDB) E-Mails: vmussi@ucdb.br mailto:vmussi@ucdb.br 12 I DESCRIÇÃO PROFISSIONAL: 1) Bolsista cnpq/ unesp (Programa de doutorado em história) Pesquisa: Os Mecanismos Dinâmicos de Inserção, adpatação, reelaboração e/ou ressignificação utilizados pela família terna no espaço urbano. 2) Professora pesquisadora da universidade católica dom bosco 3) Membro da Comissão editorial da revista “pós-história” do Programa de pós-graduação em história da unesp/assis. II PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA E INTELECTUAL: 1) História Oral: uma proposta metodológica em parceria com os índios Terena em Campo Grande – MS. Autor: Paes, Vanderléia.L.M. - Natureza: Artigo (no prelo) Título do Periódico: Revista da Universidade Estadual do Ceará - Instituição Promotora: Universidade Estadual do Ceará - Cidade: Fortaleza – CE. 2) A Dinâmica de Organização Social dos Terena, da aldeia ao espaço urbano de Campo Grande – MS. Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - Natureza: Dissertação de Mestrado. Instituição Promotora: Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS. Programa de Pós- Graduação de História - Cidade: São Leopoldo – RS. 3) Educação indígena: a história oral com proposta metodológica no processo de reafirmação de identidade étnica dos índios terena. Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - Evento: Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão: o desafio da interculturalidade e da eqüidade. - Natureza: Comunicação livre Instituição Promotora do Evento: UCDB, UNISINOS, UFF, UERJ. - Cidade: Campo Grande – MS 4) A Dinãmica de Organização Social dos índios Terena no Espaço Urbano: processo de reafirmação de sua identidade étnica Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - evento: XVI Encontro Regional de História: Poderes e Representações- ANPUH/SP - Natureza: Comunicação livre -Instituição Promotora do Evento: UNESP – Franca. Cidade: Franca- SP 5) Um estudo da dinâmica vivenciada pela família terena, da aldeia ao espaço urbano. Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - evento: 23ª Reunião Brasileira de Antropologia (ABA) - Participação: Publicação em Anais - Instituição Promotora do Evento: Associação Brasileira de Antropologia -ABA. Cidade: Gramado – RS. 6) A Dinâmica da Organização Social dos Terena, da Aldeia ao Espaço urbano Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - Evento: Curso de capacitação em história e língua Terena para professores indígenas Terena - Participação: Palestrante 13 Instituição Promotora do Evento: Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul. - Cidade: Aquidauana – MS. 7) Dinâmica da Organização Social Terena no espaço Urbano. Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - Evento: XX Simpósio Nacional de História - Participação: Comunicação Coordenada - Instituição Promotora do Evento: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - Cidade: Florianópolis- SC 8) Um estudo da família terena no espaço urbano de campo grande-ms. Autor: Paes, Vanderléia,L.M. - Evento: III Conferência Ibero-Americana sobre a Família - Participação:Comunicação livre - Instituição Promotora do Evento: UNISINOS - Cidade: – São Leopoldo – RS. 14 Vanderléia L.M. PAES RESUMO ABSTRACT 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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