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Francis Cornford - Antes e depois de Sócrates

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ANTES ,E DEPOIS
DE SÓCRATES
FRANCIS MACDONALD
CORNFORD.
Trudução
VALTER LELLIS SIQUEIRA
Martins Fontes
(En Pm 'Ín 700 ';
PREFÁCIO
O estudioso de qualquer ramo dO conhecimento, ao
ser convidado a expor a uma audiência popular, no es-
paço de quatro horas, o sentido geral e 0 despontar de
seus estudos', deverá submeter-se à disciplina implícita &
essas condições. Ele sabe que o especialista desaprovzlrá
algumas de suas afirmativas, qualificando—as de questio-
náveis quanto ao conteúdo e de dogmáticas quanto ao
tom, observando a omissão de muitas coisas para as quais
não se conseguiu encontrar espaço. Mas ele fará bem em
se acomodar em sua cadeira e se concentrar no panora-
ma geral, tantas vezes obscurecido pelo detalhe. Pare-
ceu—me claro que Sócrates deveria ser a figura central do
período a mim confiado, e qUe minha tarefa seria apre-
sentar 0 significado de sua conversão da filosofia do es-
tudo da Natureza ao estudo da vida humana. Assim, ten-
.....................
1. As quatro palestras contidas neste livro foram proferidas como parte
de um curso de. filos.(')fia grega nos Encontros de Verão organizados pelo
Board of Extm-Mural Studies dc (];unbridgc, em agosto de 1952. O assunto
escolhido para os Encontros foi & cc,)ntribuiçào da Grécia Amiga pura a vida
moderna .
2 ANTES |«:m—zvms DE SÓCRATES
tei descrever & primitivu ciência jônica para mostrar por
que ela não conseguiu satisfazer Sócrates, e tratei os sis-
temas de Plank) o Arismlvlcs como tentativas de transpor
para & intcrpretuçáu do mundo as conseqúências da des-
coberta (Ic “matos. ()htivc maior compreensão dessa
descoberta no livro de M. Henri Bergson, Les deuxsozuª-
ces de la mom/e cº! (10 la religion IAS duas fontes da moral
e da religião], que me chegou às mãos quando eu esta-
va meditando sobre estas palestras.
Um pouco antes de apresentar a última da série., sou-
be da morte de Goldsworthy Lowes Dickinson, () huma-
nista sábio e cortês que foi meritorizunente escolhido para
abrir nosso estudo sobre a contribuição da Grécia para zl
v ida moderna. Nenhum outro estudioso inglês demons-
trou, mais pelo que ele foi do que pelos seus escritos,
como, num mundo que por vezes parece ter esquecido
mais do que aprendido desde a queda de Atenas, () espí-
rito de Sócrates pode. voltar a se mostrar VÍVO.
FMC.
Agosto, 7932
Capítulo I
A CIÉNCIA JÓNICA ANTES
DE SÓCRATES
Nesta série de palestras, tocou-me falar sobre todo o
período criativo da filosofia grega — da ciência iônica da
natureza antes de Sócrates, do próprio Sócrates e de seus
principais seguidores, Platão e seu discípulo Aristóteles.
Nem sequer posso tentar um simples resumo da história
do pensamento ao longo de um período que cobre qua-
se três séculos — o sexto, () quinto e o quarto — antes de
nossa era. Vou limitar—me à tentativa de explicar por que
a vida e a Obra de Sócrates marcam a crise central ou mo-
mento de transformação dessa história. Vou falar dos pré-
socráticos, de Sócrates e, por fim, da filosofia socrática
elaborada por Platão e Aristóteles. Por que o nome de
Sócrates deve ser usado para descrever a filosofia ante-
rior a ele e também a que veio depois dele?
Em um de seus diálogos, Platão fez o próprio Sócra-
tes descrever a revolução do pensamento por ele efetua-
da — como ele converteu & filosofia do estudo da nature-
za externa ao estudo do homem e dos objetivos da ação
humana na sociedade. No Fédon, & conversa entre Só-
crates e seus amigos no dia de sua morte aborda & ques-
tão de a alma ser um tipo de coisa que pode começar a
4 AN'l'l-IS r: DEPOIS DE SÓCRATES
e cessar de existir. Hsm questão exige uma revisão das ex-
plicações dudas quamto ao surgimento e desaparecimen-
to das coisas trunsiu'n'izls. Assim, vou relembrar & essên-
cia dessa famosa! passagem.
Sócrates começa zll"i1'111;1ncl.() que, em sua juventude,
ele se mostrava ansioso por aprender como os filósofos
tinham explicado u origem do mundo e dos seres Vivos.
Ele em breve abandonou esta ciência da natureza, pois
não conseguia se satisfazer com as explicações ou moti-
vos por ela oferecidos. Alguns filósofos, por exemplo,
identificaram 21 origem da vida em um processo de fer-
mentação provocado pela ação do calor e do frio. Sócra-
tes achava que essas explicações não () tomavam mais
esclarecido, concluindo que não possuía talento natural
para inquirições desse tipo.
Desse incidente, podemos inferir por que ele se mos-
trou insatisfeito. Nessa primitiva ciência, supunha-se que
um evento físico podia ser “explicado" quando era (por
assim dizer,) decomposto em pedaços e descrito em ter-
mos de outros eventos físicos que O precediam ou o com-
punham. Essa explicação oferece um quadro mais deta-
lhado de como esse evento ocorria; Sócrates achava que
ela não dizia por que ele ocorrera. O tipo de explicação
que Sócrates desejava era a da razão pelo qual algo
ocorria.
Sócrates, certa feita, ouviu alguém lendo em voz alta
um livro de Anaxágoras, () filósofo amigo de Péricles, que
dizia que o mundo havia sido ordenado por uma Inte-
ligência. Isto fez sua expectativa aumentar. Uma Inteli-
gência que ordenasse todás as coisas, pensou ele, com
A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE SÓCRATES %
certeza as disóoria “para o melhor”. Ele esperava consta-
tar que Anaxágoras explicasse & ordem do mundo como
obra de um planejamento, e não como resultado da cega
necessidade mecânica. Assim, a razão dessa ordem não
deveria ser localizada em um estado de coisas prévio do
qual ela emergira, mas em algum fim ou propósito para
o qual se pudesse demonstrar que ela servisse. Para Só-
crates, razões desse tipo pareciam inteligíveis e satisfató-
rias. Por que, nesse momento, ele estava sentado em sua
prisão esperando pela morte? Não porque os músculos
de seu corpo tivessem se contraído de uma certa manei-
ra para leVá—lo até ali e o colocado sentado, mas porque
sua mente havia achado melhor acatar a ordem do tribu-
nal ateniense. Contudo, ao ler Anaxágoras, Sócrates des-
cobriu que a ação dessa Inteligência limitara—se a dar iní-
cio ao movimento no espaço; quanto ao restante, Ana-
xágoras retornava às causas mecânicas do tipo habitual.
Neste sistema, o mundo, afinal, não fora projetado para
nenhum bom propósito. Sócrates não conseguiu fazer o
que Anaxágoras havia deixado incompleto. Ele abriu mão
de toda esperança num sistema inteligível da Natureza,
afastando-se do estudo das coisas externas.
Assim, encontramos o Sócrates pintado por Platão
em conversa com Xenofonte, não sobre a Natureza, mas
sobre a vida humana em sociedade, o significado do
certo e do errado, os objetivos pelos quais deveríamos
viver.
Aqui, Platão descreveu algo com um significado mui-
to mais profundo que um momento crítico da biografia
de Sócrates. Não fora apenas o homem Sócrates, mas a
ó ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
própria filosofia, que se voltam, na pessoa dele, do mun-
do exterior para o interior. Até aquele momento, os olhos
da filosofia tinham-se voltudD para o exterior, em busca
de uma explicação razoável do espetáculo mutante da
Natureza que nos rodeia. Agora, sua Visão dirigia-se para
outro campo — a ordem dos objetivos da vida humana -
e, no centro desse campo, para íl natureza da alma indi-
v idual. A filosofia pré-socráticzl começa (como vou ten-
tar mostrar) com a descoberta da Natureza; a. filosofia
socºática começa com a descoberta da alma humana.
A Vida de Sócrates encontrou seu devido lema na
inscrição délficu “Conhece—te a ti mesmo". Por que teria
() homem, exatamente nessa época e nesse lugar, desco-
berto em si mesmo um problemzl de uma importância
mais premente que ai compreensão da Natureza externa
21 ele? Podelfíumos esperar que a filosofia começasse em
casa, com a compreensão de que a própria alma huma-
na e () significado da vida humana representam mais
para o homem que a história natural das coisas inanima-
dus-. Por que () homem estudou a Natureza em primeiro
lugar, tendo—scesquecido da necessidade de conhecer a
si mesmo até Sócrates. proclamar que essa necessidade
em sua principal preocupação? Para descobrir uma res-
posta pam esta pergunta, devemos agora examinar os
inícios da ciência iônica da Natureza, seu caráter e como
ela surgiu.
Esta Ciência é chamada “iônica” porqueteve início
com Tales e seus sucessores em Mileto,'umz1 das colônias
jônicz s da costa da Asia Menor. Tales Viveu no começo do
A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES Dl-z sCuzMTus 7
século VI. O desenvolv imento da ciência jôniczl teve Seu
ápice dois séculos depois, com () atomismo de Demócrito,
um contemporâneo de Sócrates e Platão.
Todas as histórias da filosofia grega, da época de Aris-
tóteles até hoje, começam com Tales de Mileto. É geral-
mente aceito que, com ele, algo novo, aquilo que Cha-
mamos de ciência ocidental, apareceu no mundo — a
ciência como (: correntmente definida: a busca do conhe-
cimento pelo conhecimento, e não por qualquer uso
prático & que ele se preste. A0 viajar pelo Oriente, Tales
descobriu 'que os egípcios possuíam algumas regras tos-
cas para a medição da terra. Todos os anos a inundação
do Nilo apagam os marcos div isórios, (: as terras dos cum-
poneses tinham que ser demarcadas novamente. Os egíp-
cios possuíam um método para calcular áreas retangula-
res, podendo assim resolver seus problenms prátium. O
grego inquiridor não estava interessado na demarcação
dos campos. Ele percebeu que O método podia ser trans-
I'crido desse propósito particular (: generalizado em um
método para se czllculzlrem árªas de qualquer formato.
Assim, as regras de medida da terra foram transformadas
na ciência da geometria. O problema — algo a ser resolv i-
(|<)— cedeu lugar 210 teorema — algo a ser contemplado.
A razão teve um novo deslumbramento ao constatar que
ns ângulos da base de um triângulo isósceles são sem-
prc iguais* e por que eles devem ser iguais. O topógrafo
ainda faz uso desta verdade ao elaborar seus mapas; o
filc'mofo limita-se & comprazer-se com ela por se tratar de
um;! verdade.
Da mesma forma, os gregos transformaram & arte da
emirologiu na ciência“ da astronomia. Durante muitos sé-
8 ANTES E DEPOIS DE só (IRATI) s
culos, os sacerdotes da Babilônia haviam registrado os
movimentos dos planetas para prever os eventos huma-
-nos, que, segundo sua crença, emm ('()numdados pelos
corpos celestes Os gregos tomaram emprestado os re-
sultados dessas ()hserzv lgoes «: "] llCS previu um eclipse
oconido na Ásia Meno: em 585 :!.(J. MIS eles ignolaram
todo o contexto da supersliguo ustmlogicu que, até en-
tão, propiciam () motivo prático para a observação dos
Céus. Praticamente não existem traços de astrologia no
pensamento grego antes da fusão entre Ocidente e Orien-
te que se seguiu às conquistas de Alexandre.
Assim, o surgimento da ciência. significou que & inte-
ligência tornam—se desinteressada e agora se sentia livre
para viajar pelos mares do pensamento estranhos às men-
tes voltadas para os pa,)blemas imediatos da ação. A ra-
zão buscou e descobriu uma verdade que era universal,
mas que podia, ou não, ser útil para as exigências da Vi-
dzt. Voltando cerca de 2.500 anos no tempo, encontra-
mos as cosmogonias da Escola de Mileto COmo & aurora
ou infância da ciência. Aqui começam as histórias da fi-
losofia, depois de algumas observações sobre o período
anterior da mitologia e da superstição. Mas, para o nosso
Objetivo de apreciar a revolução socrática do pensamen-
to, será útil examinarmos este ponto de partida da filo-
sofia de. outro ângulo — () ângulo mais afastado. Se pu-
déssemos examinar todo o desenvolv imento da humani-
dade, estes últimos vinte e cinco séculos, de Tales aos
nossos dias, surgiriam numa proporção e numa perspec-
tiva diferentes. Veríamos, então, a filosofia como & últi-
ma das grandes realizações do homem. A especulação
A CIÉNCIA _IÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'RS 9
pré-socrática já não nos pareceria rudimentar e pueríl,
mas () coroamento de um desenvolv imento que cobre
muito mais épocas do que a história possa registrar.
Já me referi & esta época como a descoberta da Na-
tureza — uma expressão que exige uma explicação. Com
ela refiro-me à descoberta de que todo o mundo que
nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos for-
necem, & natural, e não em parte natural e em parte so-
brenatural. A ciência tem início quando se compreende
que o universo é um “todo natural, com comportamentos
imutáveis e próprios — comportamentos que podem ser
determinados pela razão humana, mas que estão além
do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de
Vista foi uma grande conquista. Se quisermos avaliar sua
magnitude, deveremos examinar certas características da
época pré-Científica. Ou seja: 1) o distanciamento do ser
com relação ao Objeto externo — a descoberta do objeto;
2) a preocupação da inteligência com as necessidades
práticas de ação ao lidar com o objeto; 5) a crença nos
poderes invisíveis, sobrenaturais, por trás do objeto com
que se tem que lidar, ou dentro dele.
1) Quanto ao primeiro ponto — o distanciamento do
ser com relação ao objeto externo — se for verdade que
o indiv íduo é uma recapitulação em miniatura da histó-
ria da raça humana, aqui estaremos preocupados com
algo que remonta ao início do desenvolv imento huma-
no. Só nas primeiras semanas de Vida o bebê humano é
um solipsista, aceitando sem questionar que seu meio
ambiente é parte integrante dele. Esta filosofia infantil é
logo perturbada pela dúvida. Algo está errado: a comida
10 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
não surge como resposta imediata à fome. O bebê Chora
de raiva e aflição. Ele tem que se esforçar para que o
meio ambiente se comporte segundo sua vontade. O 50-
nho solipsista é logo desfeito. Por volta de um mês, ele
terá consciência de que existem outras coisas, exteriores
& ele, a serem aduladus ou evitadas. O bebê (como di-
zem as babás) “começa a notar“, ou (como diz Virgílio)
& “reconhecer a mãe com um sorriso”. Começou a abrir-
se a brecha entre o ser e o mundo exterior.
Esta crença nascente na existência independente de
objetos externos está na base da filosofia do senso co-
mum, imposta à criança pelo colapso de seu solipsismo
ingênuo. No desenvolv imento da raça humana, & desco-
berta de que existem coisas exteriores ao ser deve, como
já afirmei, localizar—se em tempos remotos. Mas uma coi-
sa & fazer esta descoberta, e outra coisa bastante diferen-
te é Chegar à idéia de que esses objetos externos poS-
suem uma natureza própria, estranha à natureza do ho-
mem, e que não exibem nem simpatia nem lu,)stilidztde
pelas paixões e desejos do ser humano. Um tempo mui-
to longo deverá passar antes de a linha entre o ser e ()
objeto ser traçada onde a ciência & localiza, quando en-
tão () objeto será completamente separado do ser.
2") A razão é que a inteligência permanece, durante
todo este longo período, imersa nos interesses da ação,
não tendo qualquer interesse pela especulação desinte-
ressada. Essa é a segunda característica da época pré-
científica. No homem, bem como nos animais superio-
res, () primeiro uso da inteligência foi estabelecer meios
de alcançar os fins práticos que não podem ser alcança-
A CIENCIA _]ÓNICA ANTES DE g(lem'rus ll
dos de imediato. Se oferecermos uma banana & um mau-
caco, ele a pegará e começará & comê-la, sem necessi-
dade de reflexão. Mas, se pendurarmos & banana fora de
seu alcance, a ação se fará necessária. A inteligência de-
verá ser invocada em favor do desejo frustrado. Haverá
uma pausa antes de a ação ser retomada. Depois de ob-
sewarmm a 'ação que. se segue, preencheremos essa
pausa com uma linha rudimentar de raciocínio. Imagina-
rcmos que () macaco tenha refletido: “Como vou pegar
essa banana? Aqui estão algumas caixas. Se eu as empi-
lhar e as escalar, serei capaz de alcançar zl banana." Não
podemos saber () que realmente passou pela mente do
macau). Mus sabemos que () homem usou a inteligên-
cia parasuperar os obstáculos inunnuns 1 ação, e, por
meio da invenção de ferramentas e implementos de to-
dos os tipos, ampliou, e continua a ampliar, seus pode-
res naturais por meios naturais. Assim, a inteligência, em
todos os tempos, atendeu aos objetivos da ação; e con-
jeturamos que, a princípio, atendeu exclusivamente 21 esses
objetivos.
A limitação da inteligência a coisas que merecem
atenção porque podem ser voltadas para um certo obje-
tivo prático ainda é característica dos povos primitivos.
O dr. Malinowski' escreve sobre os melanésios:
O mundo exterior interesszl-os na medida em que
lhes oferece coisas úteis. Aqui, a utilidade, evidentemen-
te, deve ser entendida em seu sentido mais amplo, incluin-
1. C. K. Ogden e I. A. Richards. 7279.1'Iemzmg q/Á—líeaning(1930). Supple-
mcnl I. p. 35].
iz ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
do não apenas o que o homem pode consumir como ali— '
mento, usar como abrigo e implemento, mas também tudo
0 que estimula suas ativ idades lúdicas, ritualístas, guerrei-
ras ou artísticas.
Todas essas coisas significativas apresentam—se ao
homem primitivo como unidades isoladas e destacadas
com relação zl um fundo imliferencíudo. Quando eu me
deslocava com primitivos por qualquer ambiente natural
— navegando no mar, caminhando numa praia ou pela
selva, ou olhando para o Céu estrelado —, amiúde me im-
pressionava com sua tendência & isolar os poucos obje-
tos que lhes eram imp(')rtantes, e tratar o restante como
mero pano de fundo. Numa floresta, uma certa planta ou
árvore me impressionava, mas ao perguntar sobre elas,
eles me respondiam: “Oh, isso é só “mato'.” Um inseto
ou ave que não desempenhe nenhum papel na tradição
ou no cardápio local será chamado de “Mamza waldº -
“um simples animal voador”. Mas se, pelo contrário, o
objeto for útil de alguma forma, receberá um nome; refe-
rência detalhada aos seus usos e propriedades será men-
cionada, e a coisa será assim distintamente indiv idualiza-
da... Em toda parte há tendência a isolar o que se desta-
czl por ter uma ligação útil, tradicional ou ritual com o
homem, e 21 descartar todo o restante como um todo in-
discriminado.
3) Portanto, a princípio o alcance do pensamento er;
limitado pelas imperiosas necessidades da ação. As coi-
sas externas e “am selecionadas na medida em que entra-
vam para as ativ idades humanas. Não eram interessantes
pelo que são em si mesmas, mas como coisas com as
quais podemos fazer algo ou que podem agir sobre nós.
A CIENCIA _IÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'IES 15
Passemos, agora, & considerá-las segundo esta segunda
capacidade, ou seja, como agentes.
Voltemos ao nosso macaco, em seu desejo frustrado
de apanhar a banana. No intervalo da ação suspensa, po-
demos imaginá—lo achando que as coisas estão se opon-
do ao seu desejo com uma certa vontade contrária e pró-
pria — uma experiência bastante familiar nos seus contatos
com seus irmãos macacos. Existem resistências & serem
vencidas — poderes 21 serem evitados apelando para os
seus próprios poderes. E quando ele percebe que as caixas
() ajudarão a alcançar seu Objetivo, achará que o mundo
não está todo contra ele: também existem coisas com in-
tenções l,)enévolas que atendem a seus desejos. Estas inten-
ções úteis ou danosas, estas forças invisíveis que possi-
bilitam ou .fnlstram & ação, são elementos fragmentários da
personalidade. Elas constituem & mutéria-prima & partir
da qual o homem, quando começou a refletir, construiu
() mundo s<,>brenatural. Na religião romana encontramos
incontáveis mmn'noz — poderes cujo conteúdo total se ex-
pressa por meio de nomes abstratos, os 1"lOH"l'Í72d: _]ânua
não é um deus totalmente pessoal que presid ª as entradas
1105 lugares, mas apenas o espírito da “entrada”, conce-
bido como força presente em todas as portas, que pode
ajudar ou prejudicar quem passa por elas. Existe uma esca-
la desses mm'zma elementares, que vai de espíritos de vá-
rios tipos & um deus completamente antropomórfico, co-
mo os deuses de Homero.
Estes elementos fragmentários da personalidade a
princípio residem simplesmente nas coisas. Num certo
sentido, são projetados, a partir do ser humano, nos ob-
1 | ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
jetos, mas não devemos pensar neles como criações de
alguma teoria consciente. Respondendo a um recensea-
mento, () homem primitivo não diria que sua religião é
“animista” ou mesmo “pré-animista”. A suposição de que
coisas úteis ou danosas possuem a vontade de ajudar ou
prejudicar é feita de maneira tão irrefletida pela criançz
que chuta 21 porta que lhe prendeu o dedo quanto pelo
homem que xinga seu taco de golfe por não ter acerta-
do a bola. Se esse homem fosse lógico, rezaria para seus
tacos de golfe antes de começar uma partida, ou mur-
murarizl algum encantamento para lezê-los acertar sem-
pre. Pois esses elementos projetados da personalidade
são os próprios objetos da arte mágica. São “sobrenatu-
rais” no sentido de que seu comportamento não & regu-
lar ou calculável; não podemos ter certeza quanto 51 nm-
neira pela qual eles agirão, não da forma como temos
certeza de que queimaremos zt mão se tocarmos uma
chama. A mágica inclui toda uma série de práticas desti-
nadas & colocar essas forças sobrenaturais sob um certo
controle. E se elas devem ser controladas, será bom eo-
nhecermos () máximo possível sobre sua natureza e
hábitos. A mitologia atende a esta necessidade ao fabri-
car uma história do sobrenatural, com o efeito de fixar
OS poderes invisíveis sob uma forma mais definida e do-
tá-los de uma substância mais concreta. Eles se tornam
distanciados das coisas em que, a princípio, residiam,
sendo transformados em pessoas completas. Assim, a
magia e a mitologia ocupam a imensa região exterior do
desconhecido, englobando () pequeno campo do conhe-
cimento concreto comum. O sobrenatural está em todas
A CIÉNCIA ]ÓNICA ANTES DE SÓCRATES
1%
as partes, dentro ou além do natural; e
() conhecimenu)
('() sobrenatural que o homem aCredita
possuir não sen-
do extraído da experiência direta Comum,pa1ece
ser um
Conhecimento de uma 01 dem diferente e
superior. É uma
revelação acessível apenas ao homem
inspirado ou (co-
mo diziam % gregos) “div ino" — O mágico
e o sacerdote,
() poeta e () vidente.
O nascimento da Ciência na GréCia
é marcado pela
tácita negativa desta distinção entre duas
ordens de CO-
nhecimento, 21 experiência e a revelação,
e entre as duas
ordens correspondentes da existência, ()
natural e C) SO-
brenzltural. Os cosmogônicos jônicos
presumem (sem
mesmo sentir a necessidade de
Cleclztrá—lo) que todo ()
universo é natural e está potencialmente
dentro do ul-
canCe dO conhecimento Como algo tão
comum e racio-
nal quanto nosso conhecimento de que ()
fogo queima e
-Ctágua afoga. É isto o que quero dizer
com a descoberta
da Natureza O conceito de Natureza
e ampliado para
incorporar o que havia sido o domínio CIC)
sobrenatural
O sobrenatural concebido pela mitologia
simplesmente
desaparece; tudo o que realmente existe
é natural
Talvez já se tenha dito () suficiente
para justificar a
afirmativa de quea fidescoberta da Natureza
foi uma das
maiores realízaçoes da mente humana.
Como todas as
outras grandes realizaçoes foi Obra de uns
poucos indi-
v íduos com dotes excepcionais. Por que
esses indiv íduos
foram gregos jonicos do século VI?
Por essa época, as Cidades jônícas da Ásia
Menor es-
tavam no apogeu da Civ ilização ocidental.
Nelas existiam
homens que haviam'superado as práticas
mágicas que
16 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
nunca desaparecerizlm entre os camponeses. Também
haviam superado a religim) ()límpica de Homero. Graças
aos poetas, & tendência ;mtmpC)mórfica do mito havia se
suplantado. A imaginação grega era, talvez, única em sua
Claridade visual. supernmlu em muito :) romana neste
sentido. Os poderes solwcnuturuis haviam assumido for-
mas humanas lim concretas C bem definidas que um gre-
go conseguia reconhecer qualquer deus ao avistá—lo.
Quando ()alto e barbudo Barnabé e () irrequieto e elo-
quente Paulo Chegaram a Listra, os habitantes imediata-
mente os identificaram com Zeus e Hermes. Era inevitá-
vel que, depois de os deuses terem se transformado
completamente em pessoas humanas, as mentes Céticzls
se. recusassem & acreditar que uma tempestade na Ásia
Menor fosse realmente devida à Cólera de uma divindzí-
Cle sentada no cume CIC) Olimpo. NO século VI, Xenófa-
nes atacou () politeísmo antropomórfico com uma obje-
tiv idade devz-rstadora:
Se os cavalos e os bois tivessem mãos e conseguis-
sem desenhar ou fazer estátuas, os cavalos representa-
riam os deuses sol) a forma de cavalos, e os bois, sol) a
forma de bois.
A partir daí, 21 Ciência natural incorporou a seus Clo-
mínios tudo () que estava “suspenso” no céu ou “debai-
xo da terra”. O trovão e () raio, afirmava Anaximandro,
eram causados pela força do vento. Enclausurado em
uma nuvem espessa, () vento explode e, em seguida, o
romper Clanuvem produz () barulho do trovão, e :) bre-
A CIÉNCIA ]ÓNICA ANTES DE SÓCRATES 17
Chá dá a impressão do brilhar do raio contra & escuridan
da nuvem. Esta é uma típica “explicação” Científica. Não
existe mais () pano de fundo sobrenatural, povoado de
personalidades fragmentárias ou completas, acessíveis
por meio da prece e do sacrifício, ou receptíveis 1 com-
pulsão mágica. A inteligência é excluída da ação. O pen-
samento se vê confrontando & Natureza, um mundo de
coisas impessoais, indiferentes aos desejos do homem e
que existem por si mesmas. O desligamento entre () ser
e () objeto ago'a está completo.
Para os poucos inteleCtOS avançados que Chegaram
a este ponto de vista, provavelmente parecia que ha-
viam se descartado da mitologia, de uma vez por todas,
por ser algo simplesmente falso. É importante ter em
mente que eles não levaram consigo O restante do mun-
do grego. Durante mil anos, a fumaça do sacrifício ainda
se erguia dos altares de Zeus. Mentes não menos argutus
e possivelmente mais profundas achavam que O mito não
era uma fantasia sem fundamento da superstição, mas
podia ser como as Musas de Hesíodo, que sabiam não ape-
nas dizer mentiras sol) a forma de verdades, mas também,
quando queriam, dizer a própria verdade. A Afrodite e :)
Ártemis do Hzpólíto e () Dioníso das Bacantes eram, para
Eurípides, algo mais que projeções da psicologia humana
ou personificações fictícias das forças naturais. Assim, O
mito estava destinado a sobreviver ao desprezo do raciona-
lismo iônico e a aguardar uma reinterpretação.
Mas, no momento que estamos agora considerando,
a Ciência parece ter varrido a mitologia para longe. Os
sistemas do século VI assumem a forma de cosmogo-
18 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
nias. Duas questões principais são respondidas. Primei-
ro, corno () munck) quo vvmos foi criado tal como se
apresenta: no centro, zl term com as grandes massas de
água no leito Clos ()Cczlnns; em torno dela, a região eté-
rea CIC nehlína, nuvens :: Chuva; e, além desta última, os
fogos celestiais? Segundo, como a vida surgiu dentro
dessa ordem? A resposta é uma história do nascimento
de uma ordem mundial a partir de um estágio inicial das
coisas (um “início”, o arcbê).
Tomemos como ilustração & mais completa e ousa-
da dessas cosmogonias, 0 sistema de Anaximandro, o
sucessor de Tales que estabeleceu o modelo para & tra-
dição jônica. No princípio, havia uma massa informe e
desordenada de matéria indefinida, que continha os po-
deres antagônicos do calor e do frio. Esta massa tinha a,
propriedade viva do movimento eterno. Num determi-
nado momento, um núCleo, prenho desses poderes an-
tagônicos, tomou forma — um equivalente racionalizado
do ()vo-mundo Cla cosmogonia mítica. Talvez devido ao
fato de a hostilidade entre O calor e () frio tê-los separa-
do, o núcleo tornou-se diferenciado. O frio transformou-
se numa massa aquosa de terra envolv ida em nuvens; ()
calor, numa esfera de Chamas envolvendo o todo, como
a casca em torno de uma árvore. Então, a esfera de fogo
explodiu e se estilhaçou, formando anéis de fogo rodea-
dos e escondidos por escura neblina. O Sol, a Lua e as
estrelas, os pontos luminosos que vemos no Céu, são
jorros de luz que saem desses anéis opacos, da mesma
forma que o ar escapa de um fole. A terra era ressecada
devido ao calor dos fogos celestes, e () mares encolhiam-
A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES DE sóCuA'l'Es lª)
se em seus leitos. Por fim, a vida surgiu no lodo quente.
Os primeiros animais eram corno ouriços-do-mar, Cªncer-
rados em conchas espinhentas. Dessas criaturas marinhas,
os animais terrestres, inclusive 0 homem, evoluíram.
O significado desta cosmogonia não está tanto no
que ela contém, mas no que não contem. A cosmogonia
desligou-se Cla teogonia. Não há uma só palavra sobre
os deuses ou algum agente sobrenatural. Esta nova for-
ma de pensamento trazia para o campo da experiência
quotidiana () que antes ficava fora dele. Podemos ver a
diferença no contrastar esta história do mundo com 11 an-
tiga teogonizt poética de Hesíodo. Quando Hesíodo re-
trocedeu no tempo, distanCiztnClo-se de sua própria época
e da vida que ele conhecia e da qual se ocupava todos os
dias, para além das épocas primitivas — () Período HeróiCC),
a Idade da Prata — até () domínio de Cronos e dos deuses
mais velhos, e, ainda mais além, ate () nascimento dos pró-
prios deuses zt partir do misterioso casamento entre () Céu
e a T erra, deve ter—lhe parecido que () mundo se torna-
va cada vez menos semelhante ao mundo Corrente das
experiências familiares. Os eventos — O casamento e () nas-
cimento dos deuses, & guerra entre os Olímpicos e os Titãs,
a lenda de Prometeu — não eram eventos da mesma.
ordem que os que aconteciam na BeóCia do tempo de
Hesíodo. Podemos ter a mesma sensação ao ler () Livro
do Gênesis — todos os eventos desde a criação até () Cha-
mado de Abraão. Á medida que acompanhamos & histó-
ria, vamos gradativamente mergulhando em um mundo
que conhecemos, e as figuras sobre-humanas reduzem—se
& proporções humanas. Era assim que o passado olhava
20 ANTES E l)l".|*()[S DE SÓCRATES
para todos antes dO surgimento da Ciência jônica. Cons-
tituiu um extratordinz'n'iu feito do pensamento racional con-
seguir dissipar eh'sa bruma do mito das origens do mundo
e da vida. O sistema de Anaximandro remete-nos ao pró-
prio início da operação de forças comuns, tais como as
que vemos em ação na Natureza todos os dias. A forma-
ção do mundo torna-se um evento natural, e não mais
sobrenatural.
Taís eram as cosmogonias jônicas do século VI: elas
contavam como um mundo ordenado evoluíra a partir
de um indiferenciado estado inicial de coisas. No século
V, a Ciência adere a uma linha um tanto diferente, uma
linha que passou a seguir desde então. Conservando &
forma da cosmogonia, ela se tornou, mais particular-
mente, uma investigação da constituição da substância
material — a “natureza das coisas”, uniforme e perma-
nente. Para concluir, vamos considerar o surgimento
desta investigação: a teoria atômica de Demócrito, ou
atomismo.
O atomismo &: uma teoria sobre a natureza da subs-
tância física tangível. A noção de substância é tirada do
senso comum. A crença em coisas substanciais externas
a nós remonta à separação original entre o ser e o obje-
to. Uma substância é algo que existe independentemen-
te de eu poder Vê—la ou tOCá-la — algo que permanece
como a mesma coisa, esteja ou não eu lá para vê-la. O
problema para a Ciência é o seguinte: o que é essa subs-
tância que permanece a mesma quando deixa de impres-
sionar nossos sentidos? Sob meus olhos tenho o que Cha-
mo de folha de papel. O que efetivamente vejo é uma
A CIÉNCIA jÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'HS 21
área branca com marcas negras. Quando & toco, sinto a
resistência de uma superfície lisa, podendo traçar com
meu dedo sua forma retangular. Estas sensações são
minha única garantia de que ali está algo exterior a mim.
Se volto meus olhos para outra direção, &brancura e as
marCas negras desaparecem. Só conto, então, com as sen-
sações táteis da resistência da superfície lisa e retangu-
lar. Se erguer meu dedo, estas sensações também desa-
parecem. Contudo, tenho certeza absoluta de que algo
ainda está lá — uma substância que não depende de eu
ter sensações por ela provocadas. Quais destas proprie-
dades — preto e branco, resistência, lisura, forma — real-
mente pertencem de maneira independente à coisa exte-
rior & mim, e que continuam a existir quando não a es-
tou olhando e tocando?
Os atomistas afirmavam que as propriedades tácteis
são as únicas verdadeiras; as propriedades visuais não
são substanciais ou objetivas. Elas não estão presentes
quando não estou olhando. Nun) quarto escuro, a folha
de papel perderia sua cor; eu não veria nada. Mas ainda
poderia sentir a forma e a resistência da superfície. Se
não pudesse detectar essas propriedades, eu não sentiria
nada e teria certeza de que, quando acendesse & luz, as
propriedades Visuais voltariam & existir.
Por meio desta linha de pensamento, o senso co-
mum pode ser dirigido para as doutrinas fundamentais
dos atomistas. Os átomos de Demócrito são corpos rijos,
pequenos demais para serem vistos, e privados de todas
as propriedades, com exceção da forma e da resistência
— as propriedades tangíveis necessárias e suficientes para
JZ ANTES lí DEPOIS DE SÓCRATES
nos convencer de que algo real está à nossa frente. Um
corpo maior não se destrói quando é div idido em áto-
mos. Todos os pedaços ainda estão lá, podendo ser rea-
grupados. Eles também podem se mover no espaço sem
sofrer qualquer mudança de qualidade. O atomismo afir-
mava que o real — o núcleo permanente e imutável da
substância — não passa de átomos se movendo num es-
paço vazio. Estes átomos não são apenas reais, mas tam-
bém constituem o todo da realidade.
Não estou sugerindo que () atomismo de DemóCrito
tenha sido efetivamente elaborado por meio da linha de
pensamento que apresentei acima. Em termos históricos,
ele surgiu como teoria matemática de que a matéria con-
siste de unidades distintas. Mas () resultado e 0 mesmo.
Os átomos de( Demócrito são corpos minúsculos, mas
que não podem ser div ididos em partes menores. São ab-
solutamente sólidos, compactos e impenetráveis.
O atomismo Científico ia além do senso comum
quando afirmava que os átomos de um corpo são abso-
lutamente indestrutíveis e imutáveis. Isto exigia a interfe-
rência da. razão. O senso comum, não monitorado pela
Ciência, suporia que os corpos podem ser, e constante-
mente () são, destruídos. Uma coisa permanecerá & mes-
ma durante um certo tempo, embora algumas de suas
propriedades possam mudar; mas ela pode simplesmen-
te deixar de existir e uma outra coisa passará a existir.
Mas a antiga Ciência, apegando-se ao princípio de que
nada pode surgir do nada, exigia um “ser” permanente e
indestrutível por trás da cortina das aparências mutantes.
Este postulado ia 210 encontro da mesma necessidade
A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'I'IS 25
racional que permitiu à Ciência moderna a definição (ln
princípio de conservação sob várias formas: a lei Cln inér-
cia, a conservação da massa, a conservação da energia.
Já se observou que todas estas proposições foram, 21 prin-
cípio, anunciadas sem provas de nenhum tipo ou como
resultado de uma demonstração a priori, embora, poste-
riormente, tenham sido vistas como leis puramente em-
píricasª. A coisa — qualquer que seja ela — da qual a Ciên-
Cia moderna defende a conservação corresponde ao “ser”
permanente, ou à “natureza das coisas”, defendido pelos
untigos. Para os atomistas, eram impenetráveis partículas
de uma substância material.
A Ciência antiga, tendo deduzido () átomo indestrutí-
vel, achou que havia Chegado & verdadeira natureza das
coisas. As qualidades variáveis que as coisas parecem ter,
mas que os átomos não têm — as cores, os gostos e assim
por diante —, eram tidas como meras sensações que re-
Cuem sobre os nossos órgãos do sentido. Elas não são
"substanciais”, pois sua existência depende de nós. Só os
átomos são reais, com () vazio onde se movimentam e
Chocam-se uns com os outros.
A característica essencial deste atomismo é que se
trata de uma doutrina materialista. Com isto não quero
dizer simplesmente que se trata de uma explicação da na-
tureza da substância material ou do corpo. É materialista
no sentido de que declara que a substância material, o
mrpo tangível, não é apenas real, mas também () todo
2. Cf. E. Meyerson, De l'explicaríon dans les sciences (Paris, 1921), 11,
#37; Paul Tannely, Pom'l'bistoíre de la science hellêne (Paris, 1887). p. 264.
24 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
da realidade. Tudo o que existe ou acontece pode ser ex-
plicado em termos destes fatores físicos. O mundo e re-
solv ido por um invisível jogo de bilhar. A mesa e () espa-
ço vazio. As bolas são os átomos; eles colidem entre si,
transmitindo seus movimentos uns aos outros. E isso é
tudo: nada mais é real. Não existem jogadores neste jogo.
Se três bolas formarem uma Carambola, isto será um me-
ro golpe de sorte — necessário, mas não ensaiado. O
jogo consiste inteiramente do acaso; e não há qualquer
inteligência controladora por trás dele.
Considerado como teoria da natureza da substâncid
material, o atomisrno foi uma hipótese brilhante. Reviv i-
Clo pela Ciência moderna, levou às mais importantes des-
cobertas da química e da física. Mas, como já afirmei, ()
antigo atomismo foi mais longe que isso. Ele se declara-
va uma explicação do todo da realidade — não uma sim-
ples hipótese Científica, mas uma filosofia completa. CO-
mo ta], deveria incluir uma explicação do aspecto espiri-
tual do mundo, bem como do material. Mas quando
examinamos () sistema desse ponto de Vista, descobri-
mos que qualquer coisa que reconheçamos corno espiri-
tual simplesmente desapareceu. Quando o atomista é
solicitado a dar uma explicação para a alma, responde
que ela (como tudo 0 mais) consiste de átomos. Estes
átomos da. alma são da mesma substância impenetrável
que todos os outros, mas. têm forma esférica, podendo
assim mover—se com muita facilidade e deslizar por entre
os átomos angulares e menos fluidos do corpo. A sensa-
ção é devida ao Cheque dos átomos externos contra os
átomos da alma. A variedade das qualidades que perce-
bemos corresponde à variedade das formas atômicas. já
A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE sóczlm'l'us 2%
em 1675, um químico francesª, cujo tratado mzmtevc-sc
como um Clássico por meio século, escreveu:
A natureza oculta de uma coisa não pode ser mais
bem explicada que pela atribuição às suas partes de for-
mas correspondentes a todos os efeitos que ela produz.
Ninguém negará que a acidez de um líquido consiste de
partículas aguçadas. A experiência confirma isto. Basta ex-
perimentá—lo para sentir uma ulfinetada na língua, como
aquela que é provoCaCla por um material cortado em pon-
tas muito finas.
Esta afirmativa poderia ter sido escrita por LucréCío,
e (pelo que eu saiba) e uma explicação razoável Cla cau-
sa mecânica de uma determinada sensação. Mas, se eu
me deslocar da causa mecânica para a própria sensação,
e-depois para a alma que tem a sensação, bem como os
sentimentos, pensamentos e desejos, não fico tão facil-
mente convencido de que a alma consiste de átomos ar-
redondados e. de quenada realmente acontece além de
colisões. É muito mais difícil acreditar que um processo
de pensamento ou uma emoção raivosa seja totalmente
irreal ou que realmente consista. de um certo número de
partículas sólidas se ChOCando entre si. Se o homem ti-
vesse começado a estudar a si mesmo, e não a nature-
za externa, nunca teria Chegado a uma conclusão tão
fantástica. “
3. Lémery. Cours de ch).)mie. Citado por E. Mcyerson, De l'explicatímz
dans les sciencerParis, 1921). I, 285.
26 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
Talvez o que afirmei antes a respeito da peculiar Clare-
za visual da mitologia grega possa explicarde que forma
a Ciência passou finalmente a ignorar ou negar () espiri-
tual como algo distinto do material. Se 0 mundo possui
um aspecto espiritual, () homem só pode expliCá-lo em
termos de seu próprio espírito ou de sua mente. A prin-
cípio, ele projetou elementos de sua personalidade nas
coisas exteriores & ele. Então, a imaginação grega desen-
volveu esses elementos, transformando—os nas persona-
lidades humanas completas de deuses antropomórficos.
Mais cedo ou mais tarde, a inteligência grega estava fa-
dada a descobrir que esses deuses não existiam. Assim,
a mitologia superou—se e desacreditou & própria existên-
cia de um mundo espiritual. A Ciência não Chegou à con-
clusão de que o mundo espiritual fora erroneamente
concebido, mas à de que tal mundo não existia: nada
era real além do corpo tangível composto por átomos. O
resultado foi uma doutrina que os filósofos Chamam de
materialismo, e os religiosos, de ateísmo.
A filosofia socrática é uma reação contra essa incli-
nação materialista da Ciência física. Para redescobrir C)
mundo espiritual, a filosofia teve que desistir, por um
momento, da busca da substância material na Natureza
externa, e voltar os olhos para a natureza da alma huma-
na. Foi esta a revolução realizada por Sócrates, com sua
injunção délfica “Conhece—te a ti mesmo”.
Capítulo II
SÓCRATES
Como vimos, a Ciência iônica da Natureza — () germe
a partir do qual toda a Ciência européia se desenvolveu
— marcou uma atitude mental em que o objeto foi com-
pletamente separado do sujeito, podendo ser contem-
plado pelo pensamento como algo livre dos interesses
da ação. Os frutos desta atitude foram os primeiros siste-
mas do mundo que se declaravam construções racionais
da realidade. Chegamos, então, à seguinte pergunta: por
que eles não foram capazes de satisfazer as expectativas
de Sócrates? Se 0 pensamento desses jôniCos era genui-
namente filosófico, se eles tinham por objetivo um qua-
dro inteiramente racional da realidade, por que desapon-
turam um homem a quem o mundo reconheceu como
grande filósofo e que exaltou :) razão acima de todas as
outras faculdades humanas?
Todas as nossas autoridades confiáveis — Platão, Xe-
nofonte, Aristóteles — concordam que Sócrates, depois de
seu desencanto juvenil com relação aos métodohs e resul-
tados da investigação física, nunca discutiu questões re-
ferentes à origem do mundo. Xenofontel apresenta-nos
.....................
]. Memorabilia, ], i, 11—16.
28 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
algumas razões para isso. Será que os homens de Ciência
imaginavam entender as preocupações humanas tão bem
que podiam se dar ao luxo de negligenCiá—las em favor
do estudo de coisas externas à esfera humana e além da
capacidade humana de descobrir a verdade? Eles nem
sequer concordam entre si, contradizendo—se em pontos
fundamentais. Será que, ao estudar o Céu, esperavam
controlar () tempo; ou será que se contentavam em saber
como () vento sopra e a Chuva cai? Sócrates, segundo
Xenofonte, só discutia as inquietações humanas — o que
torna os homens bons como indiv íduos ou Cidadãos. ()
conhecimento neste campo era a condição para um ea-
ráter livre e. nobre; & ignorância fazia do homem apenas
um escravo.
Se podemos confiar em Xenofonte, Sócrates rejeita-
va a especulação sobre a natureza por dois motivos: ela
era dogmática e inútil.
A primeira é 21 objeção de alguém a quem se 'pede
que aceite O que lhe dizem Cºnfiantemente homens que
não podem saber se () que estão dizendo &: verdade. Es-
tes jônicos tinham descrito a origem dO mundo com. tal
segurança que pareciam tê—la testemunhado. Um deles
estava certo de que as coisas eram compostas por quatro
elementos que possuíam as quatro qualidades primárias;
outro estava igualmente certo de que eram Compostas
por inúmeros átomos sem diferenças de qualidade. Estas
explicações para a natureza das coisas eram especula-
ções a priqri, não sujeitas a nenhum controle experi-
mental e sem nenhuma prova. Hipócrates, O pai da me-
dicina, protestava, com razão, cont'a () fato de elas cons-
SÓCRATES 29
tituírem a base do tratamento médico e da experiômºiu
Clínica. O produto da razão pode ser tão perigosamente
falso quanto 0 produto da imaginação produtora de mi-
tos. Na verdade, () caminho da Ciência foi pavimentado
com os destroços de conceitos descartados, cujos propo-
nentes agarravam-se a eles com uma obstinação tão cega
quanto a de qualquer teólogo. “Com relação aos deuses”,
afirmava Protágoras, “não sei se eles existem ou não,
nem qual é a sua forma. Muitas coisas atravancam a Cer-
teza ——a obscuridade da matéria e & brevidade da vida
humana.” Sócrates tinha toda razão ao afirmar () mesmo
com relação aos átomos. Uma característica essencial de
Sócrates é seu Claro senso (10 que podemos e do que
não podemos conhecer, bem como do perigo de aspirar
a um conhecimento Cujzts bases nunca foram examina-
das. A filosofia reserva—se o direito de perguntar ao Cien-
tista como ele Chegou a seus conceitos e se estes são
Válidos.
A outra objeção e que essas teorias são inúteis. Xe-
nofonte confessa que não entendia o que Sócrates que-
ria dizer com “inúteis”. Nos jônicos, era um mérito, e não
um erro, O fato de poderem estudar () Céu sem ter :) pre-
tensão de controlar o tempo ou ler & queda de impérios
e os resultados das batalhas no aspectC) das estrelas. Com
“inútil”, Sócrates queria se referir à inutilidade daquilo
que não fosse a principal e verdadeira preocupação hu-
mana: O conhecimento de si mesmo e a maneira correta
de viver. Se não consigo conhecer os inícios da vida no
passado não registrado, eu posso, achava Sócrates, conhe-
cer os fins da vida aqui e agora.
30 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
Esta mudança da busca dos inícios para a busca dos
fins naturalmente coinCiCle com a mudança de interesse
que a Natureza external tinha para o homem. A Ciência
física da qual Sócrates se afastou não era, como & Ciên-
Cia moderna, uma tentativa de formular leis da Natureza,
sempre com um olho na previsão de eventos futuros e
con) () ganho incidental de um maior controle das forças
naturais. Ela assumiu a forma de cosmogonia, ou seja,
uma investigação de como 0 mundo veio a ser o que é;
em segundo lugar, ela perguntava qual é a verdadeirª;
natureza dessa substância material de que as coisas, ago-
ra e sempre, consistem. A resposta 21 estas perguntas pa-
recia estar num passado que se estendia até o presente.
A Ciência tentava voltar ao início das coisas ou aos prin-
cípios materiais a partir dos quais as coisas passaram a
existir. O futuro não ofereceria nenhuma promessa de
algo diferente. Mas, assim que passamos & Considerar
nossas vidas, nossos pensamentos estão quase sempre
voltados para () futuro. O passado nao pode ser muda-
do, e os nossos mais fortes instintos impelem—nos & vol-
tar as costas para ele e olhar para () porvir. No futuro fi-
cam os fins que desejamos e esperamos encampar por
meio do exercício da vontade e da escolha. O futuro
mostra -se como () reino da contingência e da liberdade,
e não, como o passado, um registro fechado Cla necessi-
dade imutável.
Sócrates, ao comentar suas experiências na passagem
do Fédon que já citei, conta como se apegou à sugestão
de que () mundo er :) obra da inteligência, esperando des-
cobrir que Anaxágoras pudesse explicar como a ordem
SÓCRATES 51
(Ins coisas havia) sido planejada para o melhor. A especu-
lação física, pensava ele, podia ser transformada em uma
explicação significativa e inteligível se os homens de
Ciência conseguissem olhar para outra direção e não con-
siderar O mundo como o reino da necessidade mecâni-
(':l, mas como um processo em direção a um fim — um
Hm que era bom e, portanto, objeto do planejamento
mCional. Esta passagem contém uma antecipação do sis-
tema do mundo proposto por Platão, mas Sócrates não
se considerava à altura da tarefa de transformar a Ciência
(lu Natureza. Ele só preparou o caminho concentrando&
atenção na vida humana, um campo em que a questão
dos fins em função dos quais devemos viver é suprema.
Esta questão — qual é a finalidade da vida? — era,
nessa época e agora, raramente formulada. Quando um
homem se torna médico, ele estabelece que sua função
e curar os doentes. A partir daí, v ive principalmente nu-
ma rotina. Quando tem que parar e pensar no que fazer
em seguida, pensa nos meios, e não no valor dos fins.
líle não se pergunta: “Este paciente deveria ser curado
ou seria melhor que morresse? Qual é o valor da saúde,
ou da própria vida, em comparação com outras coisas
valiosas?” O negociante tampouco se detém para per-
guntar: “Será que devo ganhar mais dinheiro? Qual é o
valor da riqueza?” Assim vamos vivendo dia após dia,
urquitetando meios para atingir fins estabelecidos, sem
nos perguntarmos se vale a pena viver para atingir esses
fins. Essa é, exatamente, a questão que Sócrates levan-
tóu, forçando seus contemporâneos & considerá—la e as-
sim provocando muito desconforto. Considerando a vida
52 ANTES 1-1DEPOIS DE SÓCRATES
como um todo, ele perguntava quais dos fins que busca-
mos são real e intrinsecamente valiosos, e não apenas
meios de obter algo que acreditamos valioso. Existirá em
nossa vida um objetiva que seja único em termos do
valor de nosso desejo?
Não seria difícil convencer um negociante de que ()
dinheiro não C" um fim em si mesmo. Ele concordaria que
deseja () dinheiro em função de uma outra coisa. que po-
deria chamar de prazer ou felicidade. E um médico admi-
tiria que a saúde só & valiosa como condição para a feli-
cidade. Dessa forma, a felicidade humana surgiria como
um fim comum, ao qual outros fins estariam subordina-
dos. Mas o que é a felicidade? Da época de Sócrates em
diante, esta foi a principal questão debatida pelas esco-
las. Os filósofos viam que a humanidade podia ser, gros-
so modo, Classificada em três tipos, na medida em que
estes identificavam & felicidade com () prazer, com () su-
cesso social, a honra e a fama, ou com o conhecimento e
a sabedoria. O debate voltou-se para as alegações relati-
vas & estes três tipos principais de objetivos de Vida. A]-
gum deles poderia, por si mesmo, constituir a felicidade
e, se assim fosse, qual deles seria? Ou eram todos consti-
tuintes de uma vida perfeita; e, assim sendo, como se re-
lacionariam entre si? Vamos agora nos ocupar da solução
que Sócrates propôs para este problema.
Sócrates afirmava que a felicidade devia ser encon-
trada no que ele chamava de perfeição da alma — “tornar
a alma tão boa quanto possível” —, e que todos os outros
objetivos desejados pelos homens não possuíam, estrita-
mente falando, nenhum valor em si mesmos. Se fossem
SÓCRATES 55
dignos de busca, só o seriam como meios para atingir a
perfeição da alma. Na Apologia de Platão, que, sem CIÚ-
vida, é fiel em espírito e substância ao discurso efetiva-
mente pronunciado por Sócrates em sua defesa, () filóso-
[k) recusa—se a aceitar () perdão ao custo de negar a bus-
ca da sabedoria e a missão que ele assim descreve:
Se me oferecesseis o perdão nestes termos, minha
resposta seria: “Atenienses, tenho-vos em alta afeição e
estima, mas prefiro obedecer aos Céus e não a vós; por-
tanto, enquanto eu tiver ânimo C forçz em mim, não dei-
xarei de buscar a sabedoria ou de exortzlr—vos & buscar a
verdade, apontando—a & qualquer de vós que eu casual-
mente encontre, com minhas costumeiras palavras: Meu
bom amigo, tu és Cidadão de Atenas, uma grande Cidade,
famosa por sua sabedoria e poderio; não te envergonhas
de te ()Cupares tão arduamente da acumulação de rique-
zas, honrarias e reputação, sem nada dedicares à sabedo-
ria, à verdade e à perfeição de tua alma? E se ele protes-
tar que não se importa com essas coisas, não O liberarei
de imediato, seguindo o meu caminho; vou questioná—lo,
examiná—lo e testá—lo, e se me parecer que ele não possui
a virtude que pretende ter, vou censurá—lo por ver como
inúteis as coiszs mais preciosas, e como valiosas as mais
inClignas. Isto farei a qualquer um que encontre, jovem
ou velho, Cidadão Du estrangeiro, mas especialmente a
vós, meus concidadãos, já que sois meu próprio povo.
Pois tende a certeza de que tal é o desígnio (lbs Céus; e
acredito que a maior dádiva com que a fortuna já con-
templou Atenas foi meu engajamento ao serviço dos Céus.
Pois minha única tarefa é persuadir todos vós, jovens
ou velhos, a vos dedicar menos aos vossos corpos e à
54 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
vossa riqueza, e mais à perfeição de vossas almas, fazen-
do disto vossa primeira preocupação e vos dizendo que a
bondade não provém da riqueza, mas é a bondade que
transforma a riqueza ou qualquer outra coisa, em público
ou na vida privada, em algo valioso para o homem. Se,
ao afirmar isto, estou corrompendo a juventude, tanto
pior; mas, se. afirmardes que eu nada mais tenho a dizer,
estareis faltando corn a verdade. Portanto, atenienses”,
digo eu concluindo, “podeis ou não dar ouvidos & Anito;
podeis ou não condenar—me; mas não mudarei meu com-
portamento, mesmo que eu tenha que morrer mil vezes.”
Acredito que, com “perfeição da alma”, Sócrates
queria se referir ao que poderíamos Chamar de perfeição
espiritual. É nisto que ele localizava a verdadeira preo-
cupação humana; e, ao deixar de lado as especulações
sobre a origem e a constituição do mundo, consideran-
do-as “inúteis”, ele se referia ao fato de que o conheci-
mento dessas coisas, mesmo que pudesse ser obtido,
não lançaria luz sobre a natureza da perfeição espiritual
ou sobre os meios de atingi—la. Para tal propósito, fazia-
se necessário um tipo diferente de conhecimento — ou
seja, uma revelação direta (de que todo homem era ca-
paz) do valor das Várias coisas que desejamos. Este é o
conhecimento que Socrátes identificava com a bondade
no famoso paradoxo normalmente traduzido como “A
virtude e o conhecimento”. De outro ponto de Vista, este
conhecimento pode ser Chamado de “autoconhecimen-
to” — o reconhecimento daquele ser — a alma em cada
um de nós — cuja perfeição e O verdadeiro objetivo da
vida. A razão de Sócrates colocar-se entre os maiores
SÓCRATES 35
filósofos está em sua descoberta dessa alma e de uma
moralidade de aspiração espiritual, que deveria ocupar 0
lugar da moralidade corrente, baseada na submissão
social.
Para apreciarmos o significado dessa descoberta,
agora deveremos examinar o movimento do pensamen-
to associado aos rivais contemporâneos de Sócrates, os
sofistas. Os sofistas não constituíram uma escola; eram
professores indiv iduais dos mais variados tipos. Mas te-
mos afirmativas esparsas de um ou outro sefistzt que se
encaixam como elementos de uma filosofia de vida ca-
racterística deste período do pensamento grego, particu-
larmente em Atenas. Sugiro que () Chamemos de filoso-
fia da adolescência. Voltemos à analogia de que já me
utilizei, entre 0 desenvolv imento da especulação filosófi-
ca primitiva e o desenvolv imento da mente indiv idual na
infância e na juventude. Referimo-nos à primitiva Ciência
da Natureza como O ápice de um processo secular. O
nascimento da Ciência marcou () momento em que o ho-
mem conseguiu apartar sua própria natureza do mundo
exterior a ele. Renunciando 210 patético sonho de con-
trolar um meio ambiente animado por poderes e pai-
xões semelhantes às dele, () homem descobriu que sabia
muito menos a respeito do mundo do que tinha imagi-
nado, e os intelectos mais argutos foram inspirados por
uma nova curiosidade por penetrar na realidade oculta
nas coisas. Imerso no interesse pelo objeto, o homem es-
queceu—se de pensar em si mesmo. Existe alguma coisa
nesta curiosidade dirigida para o exterior que lembra o
div ino assombro nos olhos de uma criança quando lhe
56 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
apresentamos o máximo de informação sobre os astros
variáveis, os electrons ou a Circulação sanguínea. Deste
ponto de Vista, podemos considerar a Ciência pré-socrá-
tica comoa infância da nova forma de pensamento. Os
jônicos do século VI haviam alcançado um estágio aná-
logo à atitude mental de uma criança dos, digamos, seis
anos de idade até o início da adolescência. Nesse perío-
do de nossas Vidas, já abandonamos o solipsismo do re-
Cérn-nascido e deixamos de acreditar que os contos de
fada são literalmente verdadeiros. A criança normal en-
tão se interessa pelas coisas não apenas em função ,de
seus propósitos práticos, mas se mostra genuinamente
curiosa e capaz de investigar as coisas. Ela tem o poder
de sentir prazer no conhecimento puro, até esse prazer
ser morto pelo que conhecemos como educação. Tam-
bém na criança, tal curiosidade e orientada para () exte-
rior e desinteressada. A conduta não oferece qualquer
campo para a especulação independente. A vida é co-
mandada pela autoridade das babás e dos pais; e por
mais obstinada que seja a criança, uma cena autoridade
é normalmente aceita como infalível.
A infância termina com a crise mais revolucionária
da vida humana — a adolescência. Assim, minha suges-
tão é que a adolescência corresponde à segunda fase da
filosofia grega — a época dos sofistas.
Durante a adolescência, digamos dos quatorze aos
Vinte anos, o jovem está empenhado em um segundo
esforço de desligamento, mais consciente e mais doloro-
so que o da criança quando esta procura se desligar do
mundo exterior. Sua autoconsciência agora é de um ou-
SÓCRATES 57
tro tipo. Agora, sua principal preocupação e desligar seu
ser indiv idual de seus pais e do grupo familiar, bem como
de qualquer outro grupo social que pretenda dominar
sua vontade e moldar-lhe & personalidade. O indiv íduo
precisa se descobrir como ser moral que deve aprender
a manter-se sobre seus próprios pés como um homem. É
de vital importância que ele tenha êxito nesse esforço
para desligar—se; e parece que o principal objetivo da edu-
cação deve ser ajudá-lo nessa tarefa, com um mínimo de
danos para o indiv íduo e para a sociedade da qual ele
deve permanecer membro. A educação que na verdade
oferecemos parece, pelo contrário, impedir esse objeti-
vo. O adolescente é levado a aprender muitas coisas que
poderiam satisfazer a curiosidade desinteressada se esta
não tivesse cedido lugar a uma necessidade mais urgen-
te; e ele se Vê cercado pela pressão quase sufocante de
um grupo de contemporâneos que exigem absoluta con-
formidade com um padrão que deveria superar. O resul-
tado é uma reação contra toda autoridade que seja des-
necessariamente violenta.
Na sociedade grega, depois das Guerras Pérsicas do
primeiro quartel do século V, podemos observar, com
admirável Clareza, um esforço análogo do indiv íduo para
se desligar do grupo social — a Cidade e seus costumes
tradicionais. Até essa época, a pretensão da autoridade
de regulamentar a conduta do Cidadão ainda não havia
sido explicitamente desafiada. Por maior ou menor que
fosse o grau de conduta com relação aos costumes e leis
da sociedade, havia sido tacitamente acordado que esses
costumes e leis incorporavam uma obrigação absoluta,
58 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
acima de qualquer contestação. Mas na época de Sócra-
tes alguns sofistas começaram a levantar dúvidas quanto
a este pressuposto básico, com uma ousadia que, para
as mentes conservadoras, parecia ameaçar toda & estru-
tura da sociedade.
Tomemos, por exemplo, um fragmento recentemen-
te descoberto do sofista Antífon, que estabelece um con-
traste significativo entre as leis do Estado e a lei da Na-
tureza. A lei da Natureza é tida como o princípio da au-
topreservação — cada indiv íduo deveria procurar o que é
vantajoso para a Vida e, consequentemente, agradável.
As leis do Estado, por outro lado, prescrevem um com-
portamento que & desagradável e, portanto, antinatural.
Essas leis são contrárias à Natureza, que é o verdadeiro
modelo do que é certo. Em que jaz sua professa autori-
dade? Em nada mais que na convenção. As leis foram
originalmente criadas por concordância entre os homens,
não sendo naturalmente aceitas pela posteridade que já
não fazia parte dessa aliança. A conclusão prática é que,
enquanto as leis da Natureza não podem ser evitadas, as
leis da sociedade só deveriam ser obedecidas quando
existisse o risco de sermos descobertos e punidos. A Na-
tureza sempre nos descobrirá, mas, com a sorte ou &
esperteza de nosso lado, a sociedade pode não nos des-
cobrir.
O contraste entre a lei da Natureza e a lei humana
aparece aqui pela primeira vez. É só agora que a mente
grega percebe com Clareza que as leis sociais não são
instituições div inas operando com inevitáveis sanções
corno penalidades da transgressão contra a lei natural. 35"
SÓCRATES j 59
J
teoria docontrato social é anunciada. Alega-se que os
indiv íduos eram originalmente livres para buscarem, to-
dos eles, a autopreservação, o prazer e o interesse pró-
prio. Por algum motivo, talvez pela vantagem da prote-
ção mútua contra grupos hostis, um certo número de in-
div íduos concorda em abrir mão de sua liberdade. Mas
as leis que eles fazem não têm qualquer outra fonte de
obrigação. O homem naturalmente forte e como um leão
preso numa rede de proibições e restrições. Ele tem o
direito natural de libertar-se, se puder, como Gulliver ao
atirar para longe as cadeias liliputianas, e, valendo-se de
sua força, reclamar a parte do leãoª.
Nesta filosofia da afirmação de si mesmo, os pais
Vão reconhecer algo análogo ao espírito da reação ado-
lescente Contra a autoridade do lar. Não lhes surpreen-
derá o fato de os sofistas encontrarem ouvintes atentos
entre os jovens que assistiam & suas palestras e seus de-
bates. Na Cidade grega não havia escolas secundárias.
Depois da adolescência, o próprio Estado era visto como
a instituição educacional que moldava o jovem Cidadão.
O que ele lhe ensinava era a lei estabelecida, um precio-
so legado da sabedoria ancestral ou mesmo divina. Nes-
ta escola pública, os únicos professores eram os Cida-
dãos mais velhos. E uma afirmação como a de Antífon
não soava menos ofensiva aos “seus ouvidos que aos ou-
vidos dos professores de uma escola pública de hoje. Pa-
ra os rapazes, por outro lado, soava como expressão
2. lista visão do direito natural do mais forte e reufirmada com grande
ênfase por Cálicles, o rapaz do mundo nas Górgías de Platão, pp. 482 ss.
40 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
igualmente bem-vinda da rebelião contra aquelas regras
estúpidas.
Qual foi a atitude de Sócrates para com esta filosofia
da adolescência? Nu mentalidade popular, ela foi sim-
plesmente confundida com a dos sofistas. Aristófanes e
os outros comediógrafos propiciaram o equívoco. Aos
setenta anos de idade, ele foi julgado e condenado por
“corromper & juventude”. Esta acusação era inteiramente
falsa, ou representava uma certa verdade muito mais pro-
funda que o sentido superficial que ostentava na boca
de seus acusadores?
Sócrates estava sempre disposto a conversar com
qualquer pessoa, mas, acima de tudo, ele prezava & com-
panhia dos adolescentes. Estes descobriam nele exata-
mente aquilo de que a juventude precisa nesta fase de
reação — um homem cuja coragem comprovada eles pu-
dessem respeitar e admirar, e cujo intelecto sutil estava
sempre a serviço da paixão dos jovens pela argumenta-
ção. Ele nunca silenciava seu questionamento imaturo
com o tom superior da experiência adulta; era seu dese-
jo saber tudo o que se passava em suas mentes e incen-
tivá-los positivamente a pensar por si mesmos em todos
os assuntos, particularmente quanto ao certo e ao erra-
do. Sócrates sempre afirmava, com manifesta candura,
que ele próprio era questionador, que nada sabia e nada
tinha a ensinar, mas Via toda questão como uma questão
em aberto. E, por trás da inteligência Cheia de humor,
eles sentiam & presença de uma personalidade extraordi-
nária, calma, segura e de posse de uma misteriosa sabe-
doria. Diante deles estava um homem que descobrira o
SÓCRATES 41
segredo davida e conseguira um equilíbrio e uma hur-
monia de caráter que nada conseguia perturbar. Seu tem-
po estava sempre à disposição de qualquer um que de-
sejasse descobrir esse segredo — acima de tudo, o jovem
cuja necessidade obscura e premente era alcançar a li-
berdade da idade adulta emancipada.
Os leitores superficiais dos primeiros diálogos por
vezes têm a impressão de que Sócrates montava arma-
dilhas para seus oponentes e procurava sair v itorioso.
Como o próprio Platão condena esta prática da “erística”
— contenção verbal sem consideração pela verdade —, sua
intenção não pode ser apresentá-la como característica
de Sócrates. O leitor cuidadoso vai notar que Sócrates só
monta armadilhas desse tipo quando está expondo as
pretensões de retóricos e debatedores profissionais ou
de outros que se atribuíam uma sabedoria superior. Esses
homens não podem contribuir para a busca da verdade;
eles aCham que já possuem a verdade ou algo que fun-
cione como ela. O sábio só pode enfrentá-los com suas
próprias armas, assim convencendo seus jovens admira-
dores de que a habilidade verbal não significa sabedo-
ria. Ao conversar com os jovens, seu método é diferente.
Ele Começa por intrígá- -los de modo que possam ver
como sabem pouco e se preparar para busCar & verdade
em sua companhia. Depois de iniciada ;) buscagenuína,
ele sempre trata o outro participante da conversa como
companheiro e aliado, mas nunca como oponente.
Sócrates dizia que nada sabia que pudesse ser ensi-
nado :) outra pessoa. Ao mesmo tempo, declarava que a
42 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
perfeição humana está no conhecimento do bem e do
mal. Por que este conhecimento não pode ser ensinado
como os conhecimentos de outros tipos? Porque tudo o
que outra pessoa pode me ensinar e que tais e tais coi-
sas são tidas como boas, que tais e tais ações são tidas
como certas, por uma autoridade exterior ou pela pró-
pria sociedade. Informações deste tipo podem ser passa-
das por meio da instrução; na verdade, elas formam a
substância total da educação moral tal como é comu-
mente praticada. Não saberei se isto ou aquilo é bom ou
certo até que possa vê-lo diretamente por mim mesmo;
e, assim que eu puder ver por mim mesmo, esse conhe-
cimento pode descartar aquilo em que, segundo me di-
zem, as pessoas acreditam ou pensam acreditar. O co-
nhecimento dos valores, na verdade, é uma questão de
revelação direta, como ver que o Céu é azul e a grama,
verde. Ele não consiste de pedaços de informação que
podem ser passados de uma mente para outra. Em últi-
ma instância, todo indiv íduo deve ver e julgar por si
mesmo o que é bom para ele fazer. O indiv íduo, se deve
ser um homem completo, deve tornar—se moralmente
autônomo e controlar sua própria vida.
Esta é uma responsabilidade da qual nenhum indiv í-
duo pode escapar. Ele pode, de uma vez por todas, aceitar
uma certa autoridade externa, tratando-a como respon-
sável pelo que lhe diz para fazer. Mas continua responsá-
vel por sua escolha original de uma autoridade a ser obe-
decida. Sócrates afirmava que o juiz que está dentro de
cada um de nós não pode delegar suas funções a outrem.
Um homem perfeito em autoconhecimento pode dizer
SÓCRATES 473
quando e Clara sua própria Visão do que é bom; ele não
consegue olhar na mente dos outros e dizer se a visão de-
les é Clara ou não.
Esta opinião pressupõe que toda alma humana pos-
sui o poder necessário de revelação imediata ou percep-
ção do bem e do mal. Como ocorre com o olho físico, a
visão da alma pode ser obscurecida e diminuída, poden-
do ser enganada pelas falsas aparências. O prazer, por
exemplo, é constantemente tomado por bom quando efe-
tivamente não o é. Mas quando o olho da alma vê de ma-
neira direta e Clara, não se pode apelar contra sua decisão.
No campo da conduta, a educação (depois da necessária
tutelagem da infância) não significa ensinar; ela é () abrir
dos olhos da alma, clareando sua visão pelo afastamento
das névoas deturpadoras do preconceito, bem como do
orgulho do conhecimento que, na verdade, não passa de
uma opinião de segunda mão.
Não é de surpreender que os Cidadãos mais velhos
de Atenas, quando souberam (talvez por meio de desa-
gradáveis conversas com seus próprios filhos adolescen-
tes) que Sócrates incentivava os jovens a questionar to-
do preceito moral, não viram nenhuma diferença entre sua
doutrina e a de Antífon, concluindo que ele estava corrom-
pendo os jovens. Se tomarmos nossa palavra “corromper”
em seu sentido literal, a acusação era verdadeira. Dizer aos
jovens que, para obter a total liberdade da idade adulta,
eles devem questionar toda máxima de conduta que rece-
beram e julgar toda questão moral por si mesmos signi-
fica corrompê-los no sentido de destruir toda a muralha
com que os pais e a sociedade, de maneira tão laborio-
44 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
sa, cercaram-lhes & infância. Na verdade, Sócrates estava
minando & moralidade da submissão social ——aquela mo-
ralidade da obediência à autoridade e da concordância
com o costume, que tem mantido coesos os grupos huma-
nos de todos os tamanhos, da. família à nação, ao longo
de toda a história da humanidade. Ou melhor, ele estava
indo além desta moralidade de submissão e proibição
para uma moralidade de tipo diferente, da mesma forma
que o Sermão da Montanha vai além da lei oferecida no
Sinai. O surgimento desta nova moralidade está dentro
da própria alma. Pode ser Chamada de moralidade da
aspiração à perfeição espiritual. Se a perfeição espiritual
for Vista como o objeto da vida e o segredo da felicidade,
então a ação não pode ser governada por nenhum Códi-
go de regras imposto do exterior. Se essas regras são váli-
das em algum caso real, é uma questão que só pode ser
decidida pelo veredicto sincero e desinteressado da alma
indiv idual.
Descobrir um novo princípio de moralidade e pro-
Clamá-lo sem medo ou compromisso significa provocar
o ressentimento da sociedade que vive segundo uma mo-
ralidade cujas limitações devem ser rompidas. Também
significa correr o risco de ser mal interpretado pelos ou-
vintes que já se deram conta dessas limitações, mas que
podem não ser capazes de apreender o novo princípio
em suas implicações positivas. Com certeza, é perigoso
afirmarmos: “Faça o que parecer certo aos seus olhos”,
pois alguns de nossos ouvintes sairão achando que o
que dissemos foi: “Faça o que bem entender”; e não te-
rão apreendido esta importantíssima condição: “Mas an-
f: ? ' ' SÓCRATES 45
tes certifique—se de que seus olhos Vêem com perfeita
Clareza o que é realmente bom.” Se esta condição for
satisfeita, se você enxergar a verdade e agir sobre ela -
como é preciso que o faça quando ela é realmente ViS-
ta —, você encontrará a felicidade na posse de sua pró-
pria alma; mas você pode achar que fazer o que sabe ser
certo pode não ser agradável, podendo custar-lhe & po-
breza e o sofrimento, bem como, se você não conseguir
evitar o conflito com a sociedade, a prisão e a morte. Se
a condição não for satisfeita, você poderá se transformar
em um sensualista egoísta e, se seu egoísmo estiver as-
sociado ao poder, em um inimigo da humanidade, um
lobo que a sociedade tem todo o direito de destruir. En-
tão, você terá perdido sua alma e não terá encontrado a
felicidade, embora possa ter atingido os píncaros do po-
der que o mundo considera totalmente invejáveis.
Agora posso definir com mais Clareza o que quis di-
zer ao afirmar que o feito de Sócrates foi a descoberta da
alma. Quando disse aos atenienses que a única coisa im-
portante da vida não era a riqueza ou a posição social,
mas a alma, ele estava usando uma linguagem que soa-
va muito estranha aos ouvidos de seus conCiCladãos—ª. O
ateniense comum achava que sua alma — sua psique -
era um espectro etéreo e insubstancial, ou um duplo de
seu corpo, uma sombra que, no momento da morte, po-
dia esvoaçar para um sombrio Hades nos confins da não-
existência, ou talvezescapar como um alento e se dissi-
5. Cf. ]. Burner, 77.79Socrafic Doctrine oftbe Soul, Essays and Addresses
(1929), p. 126.
-1() ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
par como a fumaça no ar. Ao falar de seu “ser”, ele esta-
ria se referindo a seu corpo, a sede quente e viva da
consciência — uma consciência que estava condenada a se
enfraquecer à medida que suas faculdades fossem se en-
fraquecendo com a idade, bem como a perecer com o
corpo na hora da morte. Dízer—lhes que sua principal
preocupação deveria ser o cuidado com a “alma” e sua
perfeição era como lhes dizer que esquecessem sua subs-
tância e acalentassem sua sombra.
A descoberta de Sócrates foi que o verdadeiro ser
não está no corpo, mas na alma. E, para ele, a alma sig-
nificava & sede daquela capacidade de descoberta que
consegue distinguir o bem do mal, infalivelmente esco-
lhendo o bem. O autoconhecimento implica o reconhe-
cimento deste ser verdadeiro. O auto—exame é uma dis-
ciplina constantemente exigida para distinguir seu julga-
mento das sugestões de outros elementos de nossa natu-
reza, intimamente ligados ao Corpo e seus interesses
perturbadores. O autocontrole é o domínio do verdadei-
ro ser sobre os outros elementos — uma absoluta auto-
cracia da alma. Pois este juiz interior do bem e do mal
também é um governante. O verdadeiro ser é uma facul-
dade, não apenas da descoberta intuitiva, mas também
da vontade — uma vontade que pode anular todos os ou-
tros desejos de prazer e aparente felicidade. A alma que
vê o que é realmente bom infalivelmente deseja o bem
por ela discernido. Sócrates afirmava que este desejo da
alma esclarecida é tão forte que sempre suplanta todos
os outros desejos cujos objetos o verdadeiro ser vê como
ilusórios.
SÓCRATES 47
Este é o significado dos paradoxos socráticos: “A vir-
tude é o conhecimento”, “Ninguém erra deliberadamen-
te.” As pessoas normalmente dizem: “Eu sabia que era
errado, mas não pude evitá—lo.” Sócrates responde: “Isso
nunca é realmente a verdade. Tu podes ter sabido que
outras pessoas acham que o que fizeste era ruim, ou que
te haviam dito que era ruim; mas se tivesses sabido por
ti mesmo que era ruim, não o terias feito. Teu erro foi a
falta de esclarecimento. Não viste o bem; foste engana-
do por algum prazer que parecia bom naquele momen-
to. Se tivesses visto o bem, também () terias desejado e
agido para obtê—lo. Ninguem age mal por sua verdadeira
vontade, pelo menos quando essa vontade foi direciona-
da para. seu objeto, o bem, por uma visão genuína e es-
ClareCida.”
O nome especial dado ao verdadeiro ser nos escri-
tos posteriores de Platão e em Aristóteles e nous, uma
palavra comumente traduzida como “razão”. Para os ou-
vidos modernos, “espírito” é um termo menos impreci-
so, pois “razão” sugere uma faculdade que pensa mas
que não deseja. Platão e Aristóteles viam este espírito
como algo distinto da psique, que está inseparavelmente
associada ao corpo, perecendo com a morte deste. Para
a perfeição do espírito, os gregos usavam a palavra co-
mum para “bondade”, areté, que não deve ser traduzida
como “Virtude”. “Virtude”, em todas as situações, signifi-
ca conformidade com os ideais de conduta em vigor. O
homem Virtuoso é aquele que faz o que é aprovado pelo
resto da sociedade. A filosofia socrática rejeita esta con-
formidade, Chamando-a de “virtude popular”. Platão CO-
48 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
loca & virtude dos “Cidadãos respeitáveis” no mesmo ní-
vel que & incessante busca do dever característica das
abelhas, formigas e outros insetos gregários. Não é isto
que Sócrates quer dizer com “bondade”. Tudo o que ele
objetivava era a substituição da moralidade infantil da *
conformidade irrepreensível por um ideal de idade adul-
ta espiritual que se elevasse acima dos limites comumen-
te reconhecidos da capacidade humana. Esse ideal deve-
ria substituir uma moralidade da virtude atingível, que o
mundo respeita e recompensa, uma moralidade aspiran-
do a uma perfeição só atingível por uns poucos homens
que o mundo rejeita enquanto Vivos, e que só muito mais
tarde aprende a venerar como heróicos ou div inos. Só-
crates foi um deles.
Capítulo III
PLATÃO
Sócrates pertenceu àquele pequeno número de des-
bravadores que, ocasionalmente, foram ampliando o ho-
rizonte do espírito humano. Eles adiv inharam em nossa
natureza poderes insuspeitos que só eles conseguiram,
em suas próprias pessoas, transformar em realidade. Vi-
venciando & verdade que descobriram, ofereceram ao
mundo a única garantia possível de que ela não é uma
ilusão. Por definição, é uma verdade além da compreen-
são de seus contemporâneos e conCidadãos. A convicção
é passada lentamente para a posteridade pelo exemplo
de suas vidas, e não por algum registro que eles tenham
nos legado em seus escritos. Pois, com poucas exceções,
não escreveram livros. Foram sábios, sabendo que & escri-
ta está destinada a matar boa parte da vida (mas não toda
ela) que o espírito propiciou. A única linguagem que po-
diam usar estava inevitavelmente aberta à interpretação
errônea. Uma nova expansão da verdade mal podia ser
revelada em palavras que ostentavam :) impressão des-
gastada do uso familiar. Aqueles que, graças ao contato ín-
timo, sentiram a força de sua personalidade acreditaram
mais neles que em qualquer coisa que tenham dito.
50 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES
Só por um grande golpe de sorte um ou outro desses
pioneiros do pensamento encontraram um discípulo que
conseguiu apreender o sentido de suas palavras suficien-
temente bem para executar a tarefa de retransmiti—lo. Mes-
mo assim, surge um curioso dilema., que mal podemos
evitar. A menos que esse discípulo também seja um ho-
mem genial, e pouco provável que consiga atingir o nível
de argumentação do mestre. Se for genial, não se limita-
rá à simples reprodução do que entendeu de seu mestre.
Ele avançará esse pensamento, seguindo suas implica-
ções em campos para além de seu escopo original; e, ao
proceder assim, pode transformar a verdade de uma for-
ma que o mestre mal conseguiria reconhecer.
Alguma coisa deste tipo aconteceu no caso de Sócra-
tes e Platão. A única dádiva da fortuna para Sócrates foi
ter, entre seus jovens discípulos, alguém que não só se
tornaria um escritor de incomparável habilidade, mas que
também foi, graças a seus dotes naturais, um poeta e pen-
sador não menos sutil que o próprio Sócrates. Platão ti-
nha cerca de Vinte e oito anos de idade quando Sócrates
morreu, tendo continuado a escrever até os oitenta anos,
quando faleceu. Um filósofo de seu calibre não poderia
se limitar a reproduzir o pensamento de um mestre, por
maior que este fosse. Sem dúvida, o germe central do pla-
tonismo, do começo ao fim, é a nova moralidade socráti-
ca da aspiração espiritual, mas nas mãos de Platão este
germe transformou—se numa árvore cujos galhos cobrem
os Céus. O platonismo é, coisa que a doutrina de Sócrates
nunca foi, um sistema do mundo, abraçando todo aque-
le domínio da Natureza exterior do qual Sócrates se afas-
tara para estudar a natureza e a finalidade do homem.
PLATÃO tªl
A relação do platonismo com a filosofia de Sócrates
— a questão de (por assim dizer) onde Sócrates termina e
Platão começa — ainda é motivo de debate entre os estu-
diosos. Não quero aqui entrar em controvérsia. Só posso
descrever a relação como a vejo, e, em boa parte, como
ela tem sido vista há muitos anos pela maior parte de ava-
liadores competentes.
Não devemos imaginar o jovem Platão como um re-
cluso estudante de filosofia. Não devemos esquecer que,
ao longo de toda sua infância e juventude, a sociedade
grega esteve div idida em dois campos, que estenderam
por trinta anos uma cruenta guerra do tipo que exaure
e desmoraliza ambos os lados. Nós que participamos de
um conflito similar sabemos, à nossa própria custa, como
o recrudescimento da Violência física libera as paixões
mais vis e cruéis, transfigurando em virtude patriótica

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