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ANTES ,E DEPOIS DE SÓCRATES FRANCIS MACDONALD CORNFORD. Trudução VALTER LELLIS SIQUEIRA Martins Fontes (En Pm 'Ín 700 '; PREFÁCIO O estudioso de qualquer ramo dO conhecimento, ao ser convidado a expor a uma audiência popular, no es- paço de quatro horas, o sentido geral e 0 despontar de seus estudos', deverá submeter-se à disciplina implícita & essas condições. Ele sabe que o especialista desaprovzlrá algumas de suas afirmativas, qualificando—as de questio- náveis quanto ao conteúdo e de dogmáticas quanto ao tom, observando a omissão de muitas coisas para as quais não se conseguiu encontrar espaço. Mas ele fará bem em se acomodar em sua cadeira e se concentrar no panora- ma geral, tantas vezes obscurecido pelo detalhe. Pare- ceu—me claro que Sócrates deveria ser a figura central do período a mim confiado, e qUe minha tarefa seria apre- sentar 0 significado de sua conversão da filosofia do es- tudo da Natureza ao estudo da vida humana. Assim, ten- ..................... 1. As quatro palestras contidas neste livro foram proferidas como parte de um curso de. filos.(')fia grega nos Encontros de Verão organizados pelo Board of Extm-Mural Studies dc (];unbridgc, em agosto de 1952. O assunto escolhido para os Encontros foi & cc,)ntribuiçào da Grécia Amiga pura a vida moderna . 2 ANTES |«:m—zvms DE SÓCRATES tei descrever & primitivu ciência jônica para mostrar por que ela não conseguiu satisfazer Sócrates, e tratei os sis- temas de Plank) o Arismlvlcs como tentativas de transpor para & intcrpretuçáu do mundo as conseqúências da des- coberta (Ic “matos. ()htivc maior compreensão dessa descoberta no livro de M. Henri Bergson, Les deuxsozuª- ces de la mom/e cº! (10 la religion IAS duas fontes da moral e da religião], que me chegou às mãos quando eu esta- va meditando sobre estas palestras. Um pouco antes de apresentar a última da série., sou- be da morte de Goldsworthy Lowes Dickinson, () huma- nista sábio e cortês que foi meritorizunente escolhido para abrir nosso estudo sobre a contribuição da Grécia para zl v ida moderna. Nenhum outro estudioso inglês demons- trou, mais pelo que ele foi do que pelos seus escritos, como, num mundo que por vezes parece ter esquecido mais do que aprendido desde a queda de Atenas, () espí- rito de Sócrates pode. voltar a se mostrar VÍVO. FMC. Agosto, 7932 Capítulo I A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE SÓCRATES Nesta série de palestras, tocou-me falar sobre todo o período criativo da filosofia grega — da ciência iônica da natureza antes de Sócrates, do próprio Sócrates e de seus principais seguidores, Platão e seu discípulo Aristóteles. Nem sequer posso tentar um simples resumo da história do pensamento ao longo de um período que cobre qua- se três séculos — o sexto, () quinto e o quarto — antes de nossa era. Vou limitar—me à tentativa de explicar por que a vida e a Obra de Sócrates marcam a crise central ou mo- mento de transformação dessa história. Vou falar dos pré- socráticos, de Sócrates e, por fim, da filosofia socrática elaborada por Platão e Aristóteles. Por que o nome de Sócrates deve ser usado para descrever a filosofia ante- rior a ele e também a que veio depois dele? Em um de seus diálogos, Platão fez o próprio Sócra- tes descrever a revolução do pensamento por ele efetua- da — como ele converteu & filosofia do estudo da nature- za externa ao estudo do homem e dos objetivos da ação humana na sociedade. No Fédon, & conversa entre Só- crates e seus amigos no dia de sua morte aborda & ques- tão de a alma ser um tipo de coisa que pode começar a 4 AN'l'l-IS r: DEPOIS DE SÓCRATES e cessar de existir. Hsm questão exige uma revisão das ex- plicações dudas quamto ao surgimento e desaparecimen- to das coisas trunsiu'n'izls. Assim, vou relembrar & essên- cia dessa famosa! passagem. Sócrates começa zll"i1'111;1ncl.() que, em sua juventude, ele se mostrava ansioso por aprender como os filósofos tinham explicado u origem do mundo e dos seres Vivos. Ele em breve abandonou esta ciência da natureza, pois não conseguia se satisfazer com as explicações ou moti- vos por ela oferecidos. Alguns filósofos, por exemplo, identificaram 21 origem da vida em um processo de fer- mentação provocado pela ação do calor e do frio. Sócra- tes achava que essas explicações não () tomavam mais esclarecido, concluindo que não possuía talento natural para inquirições desse tipo. Desse incidente, podemos inferir por que ele se mos- trou insatisfeito. Nessa primitiva ciência, supunha-se que um evento físico podia ser “explicado" quando era (por assim dizer,) decomposto em pedaços e descrito em ter- mos de outros eventos físicos que O precediam ou o com- punham. Essa explicação oferece um quadro mais deta- lhado de como esse evento ocorria; Sócrates achava que ela não dizia por que ele ocorrera. O tipo de explicação que Sócrates desejava era a da razão pelo qual algo ocorria. Sócrates, certa feita, ouviu alguém lendo em voz alta um livro de Anaxágoras, () filósofo amigo de Péricles, que dizia que o mundo havia sido ordenado por uma Inte- ligência. Isto fez sua expectativa aumentar. Uma Inteli- gência que ordenasse todás as coisas, pensou ele, com A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE SÓCRATES % certeza as disóoria “para o melhor”. Ele esperava consta- tar que Anaxágoras explicasse & ordem do mundo como obra de um planejamento, e não como resultado da cega necessidade mecânica. Assim, a razão dessa ordem não deveria ser localizada em um estado de coisas prévio do qual ela emergira, mas em algum fim ou propósito para o qual se pudesse demonstrar que ela servisse. Para Só- crates, razões desse tipo pareciam inteligíveis e satisfató- rias. Por que, nesse momento, ele estava sentado em sua prisão esperando pela morte? Não porque os músculos de seu corpo tivessem se contraído de uma certa manei- ra para leVá—lo até ali e o colocado sentado, mas porque sua mente havia achado melhor acatar a ordem do tribu- nal ateniense. Contudo, ao ler Anaxágoras, Sócrates des- cobriu que a ação dessa Inteligência limitara—se a dar iní- cio ao movimento no espaço; quanto ao restante, Ana- xágoras retornava às causas mecânicas do tipo habitual. Neste sistema, o mundo, afinal, não fora projetado para nenhum bom propósito. Sócrates não conseguiu fazer o que Anaxágoras havia deixado incompleto. Ele abriu mão de toda esperança num sistema inteligível da Natureza, afastando-se do estudo das coisas externas. Assim, encontramos o Sócrates pintado por Platão em conversa com Xenofonte, não sobre a Natureza, mas sobre a vida humana em sociedade, o significado do certo e do errado, os objetivos pelos quais deveríamos viver. Aqui, Platão descreveu algo com um significado mui- to mais profundo que um momento crítico da biografia de Sócrates. Não fora apenas o homem Sócrates, mas a ó ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES própria filosofia, que se voltam, na pessoa dele, do mun- do exterior para o interior. Até aquele momento, os olhos da filosofia tinham-se voltudD para o exterior, em busca de uma explicação razoável do espetáculo mutante da Natureza que nos rodeia. Agora, sua Visão dirigia-se para outro campo — a ordem dos objetivos da vida humana - e, no centro desse campo, para íl natureza da alma indi- v idual. A filosofia pré-socráticzl começa (como vou ten- tar mostrar) com a descoberta da Natureza; a. filosofia socºática começa com a descoberta da alma humana. A Vida de Sócrates encontrou seu devido lema na inscrição délficu “Conhece—te a ti mesmo". Por que teria () homem, exatamente nessa época e nesse lugar, desco- berto em si mesmo um problemzl de uma importância mais premente que ai compreensão da Natureza externa 21 ele? Podelfíumos esperar que a filosofia começasse em casa, com a compreensão de que a própria alma huma- na e () significado da vida humana representam mais para o homem que a história natural das coisas inanima- dus-. Por que () homem estudou a Natureza em primeiro lugar, tendo—scesquecido da necessidade de conhecer a si mesmo até Sócrates. proclamar que essa necessidade em sua principal preocupação? Para descobrir uma res- posta pam esta pergunta, devemos agora examinar os inícios da ciência iônica da Natureza, seu caráter e como ela surgiu. Esta Ciência é chamada “iônica” porqueteve início com Tales e seus sucessores em Mileto,'umz1 das colônias jônicz s da costa da Asia Menor. Tales Viveu no começo do A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES Dl-z sCuzMTus 7 século VI. O desenvolv imento da ciência jôniczl teve Seu ápice dois séculos depois, com () atomismo de Demócrito, um contemporâneo de Sócrates e Platão. Todas as histórias da filosofia grega, da época de Aris- tóteles até hoje, começam com Tales de Mileto. É geral- mente aceito que, com ele, algo novo, aquilo que Cha- mamos de ciência ocidental, apareceu no mundo — a ciência como (: correntmente definida: a busca do conhe- cimento pelo conhecimento, e não por qualquer uso prático & que ele se preste. A0 viajar pelo Oriente, Tales descobriu 'que os egípcios possuíam algumas regras tos- cas para a medição da terra. Todos os anos a inundação do Nilo apagam os marcos div isórios, (: as terras dos cum- poneses tinham que ser demarcadas novamente. Os egíp- cios possuíam um método para calcular áreas retangula- res, podendo assim resolver seus problenms prátium. O grego inquiridor não estava interessado na demarcação dos campos. Ele percebeu que O método podia ser trans- I'crido desse propósito particular (: generalizado em um método para se czllculzlrem árªas de qualquer formato. Assim, as regras de medida da terra foram transformadas na ciência da geometria. O problema — algo a ser resolv i- (|<)— cedeu lugar 210 teorema — algo a ser contemplado. A razão teve um novo deslumbramento ao constatar que ns ângulos da base de um triângulo isósceles são sem- prc iguais* e por que eles devem ser iguais. O topógrafo ainda faz uso desta verdade ao elaborar seus mapas; o filc'mofo limita-se & comprazer-se com ela por se tratar de um;! verdade. Da mesma forma, os gregos transformaram & arte da emirologiu na ciência“ da astronomia. Durante muitos sé- 8 ANTES E DEPOIS DE só (IRATI) s culos, os sacerdotes da Babilônia haviam registrado os movimentos dos planetas para prever os eventos huma- -nos, que, segundo sua crença, emm ('()numdados pelos corpos celestes Os gregos tomaram emprestado os re- sultados dessas ()hserzv lgoes «: "] llCS previu um eclipse oconido na Ásia Meno: em 585 :!.(J. MIS eles ignolaram todo o contexto da supersliguo ustmlogicu que, até en- tão, propiciam () motivo prático para a observação dos Céus. Praticamente não existem traços de astrologia no pensamento grego antes da fusão entre Ocidente e Orien- te que se seguiu às conquistas de Alexandre. Assim, o surgimento da ciência. significou que & inte- ligência tornam—se desinteressada e agora se sentia livre para viajar pelos mares do pensamento estranhos às men- tes voltadas para os pa,)blemas imediatos da ação. A ra- zão buscou e descobriu uma verdade que era universal, mas que podia, ou não, ser útil para as exigências da Vi- dzt. Voltando cerca de 2.500 anos no tempo, encontra- mos as cosmogonias da Escola de Mileto COmo & aurora ou infância da ciência. Aqui começam as histórias da fi- losofia, depois de algumas observações sobre o período anterior da mitologia e da superstição. Mas, para o nosso Objetivo de apreciar a revolução socrática do pensamen- to, será útil examinarmos este ponto de partida da filo- sofia de. outro ângulo — () ângulo mais afastado. Se pu- déssemos examinar todo o desenvolv imento da humani- dade, estes últimos vinte e cinco séculos, de Tales aos nossos dias, surgiriam numa proporção e numa perspec- tiva diferentes. Veríamos, então, a filosofia como & últi- ma das grandes realizações do homem. A especulação A CIÉNCIA _IÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'RS 9 pré-socrática já não nos pareceria rudimentar e pueríl, mas () coroamento de um desenvolv imento que cobre muito mais épocas do que a história possa registrar. Já me referi & esta época como a descoberta da Na- tureza — uma expressão que exige uma explicação. Com ela refiro-me à descoberta de que todo o mundo que nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos for- necem, & natural, e não em parte natural e em parte so- brenatural. A ciência tem início quando se compreende que o universo é um “todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios — comportamentos que podem ser determinados pela razão humana, mas que estão além do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de Vista foi uma grande conquista. Se quisermos avaliar sua magnitude, deveremos examinar certas características da época pré-Científica. Ou seja: 1) o distanciamento do ser com relação ao Objeto externo — a descoberta do objeto; 2) a preocupação da inteligência com as necessidades práticas de ação ao lidar com o objeto; 5) a crença nos poderes invisíveis, sobrenaturais, por trás do objeto com que se tem que lidar, ou dentro dele. 1) Quanto ao primeiro ponto — o distanciamento do ser com relação ao objeto externo — se for verdade que o indiv íduo é uma recapitulação em miniatura da histó- ria da raça humana, aqui estaremos preocupados com algo que remonta ao início do desenvolv imento huma- no. Só nas primeiras semanas de Vida o bebê humano é um solipsista, aceitando sem questionar que seu meio ambiente é parte integrante dele. Esta filosofia infantil é logo perturbada pela dúvida. Algo está errado: a comida 10 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES não surge como resposta imediata à fome. O bebê Chora de raiva e aflição. Ele tem que se esforçar para que o meio ambiente se comporte segundo sua vontade. O 50- nho solipsista é logo desfeito. Por volta de um mês, ele terá consciência de que existem outras coisas, exteriores & ele, a serem aduladus ou evitadas. O bebê (como di- zem as babás) “começa a notar“, ou (como diz Virgílio) & “reconhecer a mãe com um sorriso”. Começou a abrir- se a brecha entre o ser e o mundo exterior. Esta crença nascente na existência independente de objetos externos está na base da filosofia do senso co- mum, imposta à criança pelo colapso de seu solipsismo ingênuo. No desenvolv imento da raça humana, & desco- berta de que existem coisas exteriores ao ser deve, como já afirmei, localizar—se em tempos remotos. Mas uma coi- sa & fazer esta descoberta, e outra coisa bastante diferen- te é Chegar à idéia de que esses objetos externos poS- suem uma natureza própria, estranha à natureza do ho- mem, e que não exibem nem simpatia nem lu,)stilidztde pelas paixões e desejos do ser humano. Um tempo mui- to longo deverá passar antes de a linha entre o ser e () objeto ser traçada onde a ciência & localiza, quando en- tão () objeto será completamente separado do ser. 2") A razão é que a inteligência permanece, durante todo este longo período, imersa nos interesses da ação, não tendo qualquer interesse pela especulação desinte- ressada. Essa é a segunda característica da época pré- científica. No homem, bem como nos animais superio- res, () primeiro uso da inteligência foi estabelecer meios de alcançar os fins práticos que não podem ser alcança- A CIENCIA _]ÓNICA ANTES DE g(lem'rus ll dos de imediato. Se oferecermos uma banana & um mau- caco, ele a pegará e começará & comê-la, sem necessi- dade de reflexão. Mas, se pendurarmos & banana fora de seu alcance, a ação se fará necessária. A inteligência de- verá ser invocada em favor do desejo frustrado. Haverá uma pausa antes de a ação ser retomada. Depois de ob- sewarmm a 'ação que. se segue, preencheremos essa pausa com uma linha rudimentar de raciocínio. Imagina- rcmos que () macaco tenha refletido: “Como vou pegar essa banana? Aqui estão algumas caixas. Se eu as empi- lhar e as escalar, serei capaz de alcançar zl banana." Não podemos saber () que realmente passou pela mente do macau). Mus sabemos que () homem usou a inteligên- cia parasuperar os obstáculos inunnuns 1 ação, e, por meio da invenção de ferramentas e implementos de to- dos os tipos, ampliou, e continua a ampliar, seus pode- res naturais por meios naturais. Assim, a inteligência, em todos os tempos, atendeu aos objetivos da ação; e con- jeturamos que, a princípio, atendeu exclusivamente 21 esses objetivos. A limitação da inteligência a coisas que merecem atenção porque podem ser voltadas para um certo obje- tivo prático ainda é característica dos povos primitivos. O dr. Malinowski' escreve sobre os melanésios: O mundo exterior interesszl-os na medida em que lhes oferece coisas úteis. Aqui, a utilidade, evidentemen- te, deve ser entendida em seu sentido mais amplo, incluin- 1. C. K. Ogden e I. A. Richards. 7279.1'Iemzmg q/Á—líeaning(1930). Supple- mcnl I. p. 35]. iz ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES do não apenas o que o homem pode consumir como ali— ' mento, usar como abrigo e implemento, mas também tudo 0 que estimula suas ativ idades lúdicas, ritualístas, guerrei- ras ou artísticas. Todas essas coisas significativas apresentam—se ao homem primitivo como unidades isoladas e destacadas com relação zl um fundo imliferencíudo. Quando eu me deslocava com primitivos por qualquer ambiente natural — navegando no mar, caminhando numa praia ou pela selva, ou olhando para o Céu estrelado —, amiúde me im- pressionava com sua tendência & isolar os poucos obje- tos que lhes eram imp(')rtantes, e tratar o restante como mero pano de fundo. Numa floresta, uma certa planta ou árvore me impressionava, mas ao perguntar sobre elas, eles me respondiam: “Oh, isso é só “mato'.” Um inseto ou ave que não desempenhe nenhum papel na tradição ou no cardápio local será chamado de “Mamza waldº - “um simples animal voador”. Mas se, pelo contrário, o objeto for útil de alguma forma, receberá um nome; refe- rência detalhada aos seus usos e propriedades será men- cionada, e a coisa será assim distintamente indiv idualiza- da... Em toda parte há tendência a isolar o que se desta- czl por ter uma ligação útil, tradicional ou ritual com o homem, e 21 descartar todo o restante como um todo in- discriminado. 3) Portanto, a princípio o alcance do pensamento er; limitado pelas imperiosas necessidades da ação. As coi- sas externas e “am selecionadas na medida em que entra- vam para as ativ idades humanas. Não eram interessantes pelo que são em si mesmas, mas como coisas com as quais podemos fazer algo ou que podem agir sobre nós. A CIENCIA _IÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'IES 15 Passemos, agora, & considerá-las segundo esta segunda capacidade, ou seja, como agentes. Voltemos ao nosso macaco, em seu desejo frustrado de apanhar a banana. No intervalo da ação suspensa, po- demos imaginá—lo achando que as coisas estão se opon- do ao seu desejo com uma certa vontade contrária e pró- pria — uma experiência bastante familiar nos seus contatos com seus irmãos macacos. Existem resistências & serem vencidas — poderes 21 serem evitados apelando para os seus próprios poderes. E quando ele percebe que as caixas () ajudarão a alcançar seu Objetivo, achará que o mundo não está todo contra ele: também existem coisas com in- tenções l,)enévolas que atendem a seus desejos. Estas inten- ções úteis ou danosas, estas forças invisíveis que possi- bilitam ou .fnlstram & ação, são elementos fragmentários da personalidade. Elas constituem & mutéria-prima & partir da qual o homem, quando começou a refletir, construiu () mundo s<,>brenatural. Na religião romana encontramos incontáveis mmn'noz — poderes cujo conteúdo total se ex- pressa por meio de nomes abstratos, os 1"lOH"l'Í72d: _]ânua não é um deus totalmente pessoal que presid ª as entradas 1105 lugares, mas apenas o espírito da “entrada”, conce- bido como força presente em todas as portas, que pode ajudar ou prejudicar quem passa por elas. Existe uma esca- la desses mm'zma elementares, que vai de espíritos de vá- rios tipos & um deus completamente antropomórfico, co- mo os deuses de Homero. Estes elementos fragmentários da personalidade a princípio residem simplesmente nas coisas. Num certo sentido, são projetados, a partir do ser humano, nos ob- 1 | ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES jetos, mas não devemos pensar neles como criações de alguma teoria consciente. Respondendo a um recensea- mento, () homem primitivo não diria que sua religião é “animista” ou mesmo “pré-animista”. A suposição de que coisas úteis ou danosas possuem a vontade de ajudar ou prejudicar é feita de maneira tão irrefletida pela criançz que chuta 21 porta que lhe prendeu o dedo quanto pelo homem que xinga seu taco de golfe por não ter acerta- do a bola. Se esse homem fosse lógico, rezaria para seus tacos de golfe antes de começar uma partida, ou mur- murarizl algum encantamento para lezê-los acertar sem- pre. Pois esses elementos projetados da personalidade são os próprios objetos da arte mágica. São “sobrenatu- rais” no sentido de que seu comportamento não & regu- lar ou calculável; não podemos ter certeza quanto 51 nm- neira pela qual eles agirão, não da forma como temos certeza de que queimaremos zt mão se tocarmos uma chama. A mágica inclui toda uma série de práticas desti- nadas & colocar essas forças sobrenaturais sob um certo controle. E se elas devem ser controladas, será bom eo- nhecermos () máximo possível sobre sua natureza e hábitos. A mitologia atende a esta necessidade ao fabri- car uma história do sobrenatural, com o efeito de fixar OS poderes invisíveis sob uma forma mais definida e do- tá-los de uma substância mais concreta. Eles se tornam distanciados das coisas em que, a princípio, residiam, sendo transformados em pessoas completas. Assim, a magia e a mitologia ocupam a imensa região exterior do desconhecido, englobando () pequeno campo do conhe- cimento concreto comum. O sobrenatural está em todas A CIÉNCIA ]ÓNICA ANTES DE SÓCRATES 1% as partes, dentro ou além do natural; e () conhecimenu) ('() sobrenatural que o homem aCredita possuir não sen- do extraído da experiência direta Comum,pa1ece ser um Conhecimento de uma 01 dem diferente e superior. É uma revelação acessível apenas ao homem inspirado ou (co- mo diziam % gregos) “div ino" — O mágico e o sacerdote, () poeta e () vidente. O nascimento da Ciência na GréCia é marcado pela tácita negativa desta distinção entre duas ordens de CO- nhecimento, 21 experiência e a revelação, e entre as duas ordens correspondentes da existência, () natural e C) SO- brenzltural. Os cosmogônicos jônicos presumem (sem mesmo sentir a necessidade de Cleclztrá—lo) que todo () universo é natural e está potencialmente dentro do ul- canCe dO conhecimento Como algo tão comum e racio- nal quanto nosso conhecimento de que () fogo queima e -Ctágua afoga. É isto o que quero dizer com a descoberta da Natureza O conceito de Natureza e ampliado para incorporar o que havia sido o domínio CIC) sobrenatural O sobrenatural concebido pela mitologia simplesmente desaparece; tudo o que realmente existe é natural Talvez já se tenha dito () suficiente para justificar a afirmativa de quea fidescoberta da Natureza foi uma das maiores realízaçoes da mente humana. Como todas as outras grandes realizaçoes foi Obra de uns poucos indi- v íduos com dotes excepcionais. Por que esses indiv íduos foram gregos jonicos do século VI? Por essa época, as Cidades jônícas da Ásia Menor es- tavam no apogeu da Civ ilização ocidental. Nelas existiam homens que haviam'superado as práticas mágicas que 16 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES nunca desaparecerizlm entre os camponeses. Também haviam superado a religim) ()límpica de Homero. Graças aos poetas, & tendência ;mtmpC)mórfica do mito havia se suplantado. A imaginação grega era, talvez, única em sua Claridade visual. supernmlu em muito :) romana neste sentido. Os poderes solwcnuturuis haviam assumido for- mas humanas lim concretas C bem definidas que um gre- go conseguia reconhecer qualquer deus ao avistá—lo. Quando ()alto e barbudo Barnabé e () irrequieto e elo- quente Paulo Chegaram a Listra, os habitantes imediata- mente os identificaram com Zeus e Hermes. Era inevitá- vel que, depois de os deuses terem se transformado completamente em pessoas humanas, as mentes Céticzls se. recusassem & acreditar que uma tempestade na Ásia Menor fosse realmente devida à Cólera de uma divindzí- Cle sentada no cume CIC) Olimpo. NO século VI, Xenófa- nes atacou () politeísmo antropomórfico com uma obje- tiv idade devz-rstadora: Se os cavalos e os bois tivessem mãos e conseguis- sem desenhar ou fazer estátuas, os cavalos representa- riam os deuses sol) a forma de cavalos, e os bois, sol) a forma de bois. A partir daí, 21 Ciência natural incorporou a seus Clo- mínios tudo () que estava “suspenso” no céu ou “debai- xo da terra”. O trovão e () raio, afirmava Anaximandro, eram causados pela força do vento. Enclausurado em uma nuvem espessa, () vento explode e, em seguida, o romper Clanuvem produz () barulho do trovão, e :) bre- A CIÉNCIA ]ÓNICA ANTES DE SÓCRATES 17 Chá dá a impressão do brilhar do raio contra & escuridan da nuvem. Esta é uma típica “explicação” Científica. Não existe mais () pano de fundo sobrenatural, povoado de personalidades fragmentárias ou completas, acessíveis por meio da prece e do sacrifício, ou receptíveis 1 com- pulsão mágica. A inteligência é excluída da ação. O pen- samento se vê confrontando & Natureza, um mundo de coisas impessoais, indiferentes aos desejos do homem e que existem por si mesmas. O desligamento entre () ser e () objeto ago'a está completo. Para os poucos inteleCtOS avançados que Chegaram a este ponto de vista, provavelmente parecia que ha- viam se descartado da mitologia, de uma vez por todas, por ser algo simplesmente falso. É importante ter em mente que eles não levaram consigo O restante do mun- do grego. Durante mil anos, a fumaça do sacrifício ainda se erguia dos altares de Zeus. Mentes não menos argutus e possivelmente mais profundas achavam que O mito não era uma fantasia sem fundamento da superstição, mas podia ser como as Musas de Hesíodo, que sabiam não ape- nas dizer mentiras sol) a forma de verdades, mas também, quando queriam, dizer a própria verdade. A Afrodite e :) Ártemis do Hzpólíto e () Dioníso das Bacantes eram, para Eurípides, algo mais que projeções da psicologia humana ou personificações fictícias das forças naturais. Assim, O mito estava destinado a sobreviver ao desprezo do raciona- lismo iônico e a aguardar uma reinterpretação. Mas, no momento que estamos agora considerando, a Ciência parece ter varrido a mitologia para longe. Os sistemas do século VI assumem a forma de cosmogo- 18 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES nias. Duas questões principais são respondidas. Primei- ro, corno () munck) quo vvmos foi criado tal como se apresenta: no centro, zl term com as grandes massas de água no leito Clos ()Cczlnns; em torno dela, a região eté- rea CIC nehlína, nuvens :: Chuva; e, além desta última, os fogos celestiais? Segundo, como a vida surgiu dentro dessa ordem? A resposta é uma história do nascimento de uma ordem mundial a partir de um estágio inicial das coisas (um “início”, o arcbê). Tomemos como ilustração & mais completa e ousa- da dessas cosmogonias, 0 sistema de Anaximandro, o sucessor de Tales que estabeleceu o modelo para & tra- dição jônica. No princípio, havia uma massa informe e desordenada de matéria indefinida, que continha os po- deres antagônicos do calor e do frio. Esta massa tinha a, propriedade viva do movimento eterno. Num determi- nado momento, um núCleo, prenho desses poderes an- tagônicos, tomou forma — um equivalente racionalizado do ()vo-mundo Cla cosmogonia mítica. Talvez devido ao fato de a hostilidade entre O calor e () frio tê-los separa- do, o núcleo tornou-se diferenciado. O frio transformou- se numa massa aquosa de terra envolv ida em nuvens; () calor, numa esfera de Chamas envolvendo o todo, como a casca em torno de uma árvore. Então, a esfera de fogo explodiu e se estilhaçou, formando anéis de fogo rodea- dos e escondidos por escura neblina. O Sol, a Lua e as estrelas, os pontos luminosos que vemos no Céu, são jorros de luz que saem desses anéis opacos, da mesma forma que o ar escapa de um fole. A terra era ressecada devido ao calor dos fogos celestes, e () mares encolhiam- A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES DE sóCuA'l'Es lª) se em seus leitos. Por fim, a vida surgiu no lodo quente. Os primeiros animais eram corno ouriços-do-mar, Cªncer- rados em conchas espinhentas. Dessas criaturas marinhas, os animais terrestres, inclusive 0 homem, evoluíram. O significado desta cosmogonia não está tanto no que ela contém, mas no que não contem. A cosmogonia desligou-se Cla teogonia. Não há uma só palavra sobre os deuses ou algum agente sobrenatural. Esta nova for- ma de pensamento trazia para o campo da experiência quotidiana () que antes ficava fora dele. Podemos ver a diferença no contrastar esta história do mundo com 11 an- tiga teogonizt poética de Hesíodo. Quando Hesíodo re- trocedeu no tempo, distanCiztnClo-se de sua própria época e da vida que ele conhecia e da qual se ocupava todos os dias, para além das épocas primitivas — () Período HeróiCC), a Idade da Prata — até () domínio de Cronos e dos deuses mais velhos, e, ainda mais além, ate () nascimento dos pró- prios deuses zt partir do misterioso casamento entre () Céu e a T erra, deve ter—lhe parecido que () mundo se torna- va cada vez menos semelhante ao mundo Corrente das experiências familiares. Os eventos — O casamento e () nas- cimento dos deuses, & guerra entre os Olímpicos e os Titãs, a lenda de Prometeu — não eram eventos da mesma. ordem que os que aconteciam na BeóCia do tempo de Hesíodo. Podemos ter a mesma sensação ao ler () Livro do Gênesis — todos os eventos desde a criação até () Cha- mado de Abraão. Á medida que acompanhamos & histó- ria, vamos gradativamente mergulhando em um mundo que conhecemos, e as figuras sobre-humanas reduzem—se & proporções humanas. Era assim que o passado olhava 20 ANTES E l)l".|*()[S DE SÓCRATES para todos antes dO surgimento da Ciência jônica. Cons- tituiu um extratordinz'n'iu feito do pensamento racional con- seguir dissipar eh'sa bruma do mito das origens do mundo e da vida. O sistema de Anaximandro remete-nos ao pró- prio início da operação de forças comuns, tais como as que vemos em ação na Natureza todos os dias. A forma- ção do mundo torna-se um evento natural, e não mais sobrenatural. Taís eram as cosmogonias jônicas do século VI: elas contavam como um mundo ordenado evoluíra a partir de um indiferenciado estado inicial de coisas. No século V, a Ciência adere a uma linha um tanto diferente, uma linha que passou a seguir desde então. Conservando & forma da cosmogonia, ela se tornou, mais particular- mente, uma investigação da constituição da substância material — a “natureza das coisas”, uniforme e perma- nente. Para concluir, vamos considerar o surgimento desta investigação: a teoria atômica de Demócrito, ou atomismo. O atomismo &: uma teoria sobre a natureza da subs- tância física tangível. A noção de substância é tirada do senso comum. A crença em coisas substanciais externas a nós remonta à separação original entre o ser e o obje- to. Uma substância é algo que existe independentemen- te de eu poder Vê—la ou tOCá-la — algo que permanece como a mesma coisa, esteja ou não eu lá para vê-la. O problema para a Ciência é o seguinte: o que é essa subs- tância que permanece a mesma quando deixa de impres- sionar nossos sentidos? Sob meus olhos tenho o que Cha- mo de folha de papel. O que efetivamente vejo é uma A CIÉNCIA jÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'HS 21 área branca com marcas negras. Quando & toco, sinto a resistência de uma superfície lisa, podendo traçar com meu dedo sua forma retangular. Estas sensações são minha única garantia de que ali está algo exterior a mim. Se volto meus olhos para outra direção, &brancura e as marCas negras desaparecem. Só conto, então, com as sen- sações táteis da resistência da superfície lisa e retangu- lar. Se erguer meu dedo, estas sensações também desa- parecem. Contudo, tenho certeza absoluta de que algo ainda está lá — uma substância que não depende de eu ter sensações por ela provocadas. Quais destas proprie- dades — preto e branco, resistência, lisura, forma — real- mente pertencem de maneira independente à coisa exte- rior & mim, e que continuam a existir quando não a es- tou olhando e tocando? Os atomistas afirmavam que as propriedades tácteis são as únicas verdadeiras; as propriedades visuais não são substanciais ou objetivas. Elas não estão presentes quando não estou olhando. Nun) quarto escuro, a folha de papel perderia sua cor; eu não veria nada. Mas ainda poderia sentir a forma e a resistência da superfície. Se não pudesse detectar essas propriedades, eu não sentiria nada e teria certeza de que, quando acendesse & luz, as propriedades Visuais voltariam & existir. Por meio desta linha de pensamento, o senso co- mum pode ser dirigido para as doutrinas fundamentais dos atomistas. Os átomos de Demócrito são corpos rijos, pequenos demais para serem vistos, e privados de todas as propriedades, com exceção da forma e da resistência — as propriedades tangíveis necessárias e suficientes para JZ ANTES lí DEPOIS DE SÓCRATES nos convencer de que algo real está à nossa frente. Um corpo maior não se destrói quando é div idido em áto- mos. Todos os pedaços ainda estão lá, podendo ser rea- grupados. Eles também podem se mover no espaço sem sofrer qualquer mudança de qualidade. O atomismo afir- mava que o real — o núcleo permanente e imutável da substância — não passa de átomos se movendo num es- paço vazio. Estes átomos não são apenas reais, mas tam- bém constituem o todo da realidade. Não estou sugerindo que () atomismo de DemóCrito tenha sido efetivamente elaborado por meio da linha de pensamento que apresentei acima. Em termos históricos, ele surgiu como teoria matemática de que a matéria con- siste de unidades distintas. Mas () resultado e 0 mesmo. Os átomos de( Demócrito são corpos minúsculos, mas que não podem ser div ididos em partes menores. São ab- solutamente sólidos, compactos e impenetráveis. O atomismo Científico ia além do senso comum quando afirmava que os átomos de um corpo são abso- lutamente indestrutíveis e imutáveis. Isto exigia a interfe- rência da. razão. O senso comum, não monitorado pela Ciência, suporia que os corpos podem ser, e constante- mente () são, destruídos. Uma coisa permanecerá & mes- ma durante um certo tempo, embora algumas de suas propriedades possam mudar; mas ela pode simplesmen- te deixar de existir e uma outra coisa passará a existir. Mas a antiga Ciência, apegando-se ao princípio de que nada pode surgir do nada, exigia um “ser” permanente e indestrutível por trás da cortina das aparências mutantes. Este postulado ia 210 encontro da mesma necessidade A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'I'IS 25 racional que permitiu à Ciência moderna a definição (ln princípio de conservação sob várias formas: a lei Cln inér- cia, a conservação da massa, a conservação da energia. Já se observou que todas estas proposições foram, 21 prin- cípio, anunciadas sem provas de nenhum tipo ou como resultado de uma demonstração a priori, embora, poste- riormente, tenham sido vistas como leis puramente em- píricasª. A coisa — qualquer que seja ela — da qual a Ciên- Cia moderna defende a conservação corresponde ao “ser” permanente, ou à “natureza das coisas”, defendido pelos untigos. Para os atomistas, eram impenetráveis partículas de uma substância material. A Ciência antiga, tendo deduzido () átomo indestrutí- vel, achou que havia Chegado & verdadeira natureza das coisas. As qualidades variáveis que as coisas parecem ter, mas que os átomos não têm — as cores, os gostos e assim por diante —, eram tidas como meras sensações que re- Cuem sobre os nossos órgãos do sentido. Elas não são "substanciais”, pois sua existência depende de nós. Só os átomos são reais, com () vazio onde se movimentam e Chocam-se uns com os outros. A característica essencial deste atomismo é que se trata de uma doutrina materialista. Com isto não quero dizer simplesmente que se trata de uma explicação da na- tureza da substância material ou do corpo. É materialista no sentido de que declara que a substância material, o mrpo tangível, não é apenas real, mas também () todo 2. Cf. E. Meyerson, De l'explicaríon dans les sciences (Paris, 1921), 11, #37; Paul Tannely, Pom'l'bistoíre de la science hellêne (Paris, 1887). p. 264. 24 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES da realidade. Tudo o que existe ou acontece pode ser ex- plicado em termos destes fatores físicos. O mundo e re- solv ido por um invisível jogo de bilhar. A mesa e () espa- ço vazio. As bolas são os átomos; eles colidem entre si, transmitindo seus movimentos uns aos outros. E isso é tudo: nada mais é real. Não existem jogadores neste jogo. Se três bolas formarem uma Carambola, isto será um me- ro golpe de sorte — necessário, mas não ensaiado. O jogo consiste inteiramente do acaso; e não há qualquer inteligência controladora por trás dele. Considerado como teoria da natureza da substâncid material, o atomisrno foi uma hipótese brilhante. Reviv i- Clo pela Ciência moderna, levou às mais importantes des- cobertas da química e da física. Mas, como já afirmei, () antigo atomismo foi mais longe que isso. Ele se declara- va uma explicação do todo da realidade — não uma sim- ples hipótese Científica, mas uma filosofia completa. CO- mo ta], deveria incluir uma explicação do aspecto espiri- tual do mundo, bem como do material. Mas quando examinamos () sistema desse ponto de Vista, descobri- mos que qualquer coisa que reconheçamos corno espiri- tual simplesmente desapareceu. Quando o atomista é solicitado a dar uma explicação para a alma, responde que ela (como tudo 0 mais) consiste de átomos. Estes átomos da. alma são da mesma substância impenetrável que todos os outros, mas. têm forma esférica, podendo assim mover—se com muita facilidade e deslizar por entre os átomos angulares e menos fluidos do corpo. A sensa- ção é devida ao Cheque dos átomos externos contra os átomos da alma. A variedade das qualidades que perce- bemos corresponde à variedade das formas atômicas. já A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE sóczlm'l'us 2% em 1675, um químico francesª, cujo tratado mzmtevc-sc como um Clássico por meio século, escreveu: A natureza oculta de uma coisa não pode ser mais bem explicada que pela atribuição às suas partes de for- mas correspondentes a todos os efeitos que ela produz. Ninguém negará que a acidez de um líquido consiste de partículas aguçadas. A experiência confirma isto. Basta ex- perimentá—lo para sentir uma ulfinetada na língua, como aquela que é provoCaCla por um material cortado em pon- tas muito finas. Esta afirmativa poderia ter sido escrita por LucréCío, e (pelo que eu saiba) e uma explicação razoável Cla cau- sa mecânica de uma determinada sensação. Mas, se eu me deslocar da causa mecânica para a própria sensação, e-depois para a alma que tem a sensação, bem como os sentimentos, pensamentos e desejos, não fico tão facil- mente convencido de que a alma consiste de átomos ar- redondados e. de quenada realmente acontece além de colisões. É muito mais difícil acreditar que um processo de pensamento ou uma emoção raivosa seja totalmente irreal ou que realmente consista. de um certo número de partículas sólidas se ChOCando entre si. Se o homem ti- vesse começado a estudar a si mesmo, e não a nature- za externa, nunca teria Chegado a uma conclusão tão fantástica. “ 3. Lémery. Cours de ch).)mie. Citado por E. Mcyerson, De l'explicatímz dans les sciencerParis, 1921). I, 285. 26 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES Talvez o que afirmei antes a respeito da peculiar Clare- za visual da mitologia grega possa explicarde que forma a Ciência passou finalmente a ignorar ou negar () espiri- tual como algo distinto do material. Se 0 mundo possui um aspecto espiritual, () homem só pode expliCá-lo em termos de seu próprio espírito ou de sua mente. A prin- cípio, ele projetou elementos de sua personalidade nas coisas exteriores & ele. Então, a imaginação grega desen- volveu esses elementos, transformando—os nas persona- lidades humanas completas de deuses antropomórficos. Mais cedo ou mais tarde, a inteligência grega estava fa- dada a descobrir que esses deuses não existiam. Assim, a mitologia superou—se e desacreditou & própria existên- cia de um mundo espiritual. A Ciência não Chegou à con- clusão de que o mundo espiritual fora erroneamente concebido, mas à de que tal mundo não existia: nada era real além do corpo tangível composto por átomos. O resultado foi uma doutrina que os filósofos Chamam de materialismo, e os religiosos, de ateísmo. A filosofia socrática é uma reação contra essa incli- nação materialista da Ciência física. Para redescobrir C) mundo espiritual, a filosofia teve que desistir, por um momento, da busca da substância material na Natureza externa, e voltar os olhos para a natureza da alma huma- na. Foi esta a revolução realizada por Sócrates, com sua injunção délfica “Conhece—te a ti mesmo”. Capítulo II SÓCRATES Como vimos, a Ciência iônica da Natureza — () germe a partir do qual toda a Ciência européia se desenvolveu — marcou uma atitude mental em que o objeto foi com- pletamente separado do sujeito, podendo ser contem- plado pelo pensamento como algo livre dos interesses da ação. Os frutos desta atitude foram os primeiros siste- mas do mundo que se declaravam construções racionais da realidade. Chegamos, então, à seguinte pergunta: por que eles não foram capazes de satisfazer as expectativas de Sócrates? Se 0 pensamento desses jôniCos era genui- namente filosófico, se eles tinham por objetivo um qua- dro inteiramente racional da realidade, por que desapon- turam um homem a quem o mundo reconheceu como grande filósofo e que exaltou :) razão acima de todas as outras faculdades humanas? Todas as nossas autoridades confiáveis — Platão, Xe- nofonte, Aristóteles — concordam que Sócrates, depois de seu desencanto juvenil com relação aos métodohs e resul- tados da investigação física, nunca discutiu questões re- ferentes à origem do mundo. Xenofontel apresenta-nos ..................... ]. Memorabilia, ], i, 11—16. 28 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES algumas razões para isso. Será que os homens de Ciência imaginavam entender as preocupações humanas tão bem que podiam se dar ao luxo de negligenCiá—las em favor do estudo de coisas externas à esfera humana e além da capacidade humana de descobrir a verdade? Eles nem sequer concordam entre si, contradizendo—se em pontos fundamentais. Será que, ao estudar o Céu, esperavam controlar () tempo; ou será que se contentavam em saber como () vento sopra e a Chuva cai? Sócrates, segundo Xenofonte, só discutia as inquietações humanas — o que torna os homens bons como indiv íduos ou Cidadãos. () conhecimento neste campo era a condição para um ea- ráter livre e. nobre; & ignorância fazia do homem apenas um escravo. Se podemos confiar em Xenofonte, Sócrates rejeita- va a especulação sobre a natureza por dois motivos: ela era dogmática e inútil. A primeira é 21 objeção de alguém a quem se 'pede que aceite O que lhe dizem Cºnfiantemente homens que não podem saber se () que estão dizendo &: verdade. Es- tes jônicos tinham descrito a origem dO mundo com. tal segurança que pareciam tê—la testemunhado. Um deles estava certo de que as coisas eram compostas por quatro elementos que possuíam as quatro qualidades primárias; outro estava igualmente certo de que eram Compostas por inúmeros átomos sem diferenças de qualidade. Estas explicações para a natureza das coisas eram especula- ções a priqri, não sujeitas a nenhum controle experi- mental e sem nenhuma prova. Hipócrates, O pai da me- dicina, protestava, com razão, cont'a () fato de elas cons- SÓCRATES 29 tituírem a base do tratamento médico e da experiômºiu Clínica. O produto da razão pode ser tão perigosamente falso quanto 0 produto da imaginação produtora de mi- tos. Na verdade, () caminho da Ciência foi pavimentado com os destroços de conceitos descartados, cujos propo- nentes agarravam-se a eles com uma obstinação tão cega quanto a de qualquer teólogo. “Com relação aos deuses”, afirmava Protágoras, “não sei se eles existem ou não, nem qual é a sua forma. Muitas coisas atravancam a Cer- teza ——a obscuridade da matéria e & brevidade da vida humana.” Sócrates tinha toda razão ao afirmar () mesmo com relação aos átomos. Uma característica essencial de Sócrates é seu Claro senso (10 que podemos e do que não podemos conhecer, bem como do perigo de aspirar a um conhecimento Cujzts bases nunca foram examina- das. A filosofia reserva—se o direito de perguntar ao Cien- tista como ele Chegou a seus conceitos e se estes são Válidos. A outra objeção e que essas teorias são inúteis. Xe- nofonte confessa que não entendia o que Sócrates que- ria dizer com “inúteis”. Nos jônicos, era um mérito, e não um erro, O fato de poderem estudar () Céu sem ter :) pre- tensão de controlar o tempo ou ler & queda de impérios e os resultados das batalhas no aspectC) das estrelas. Com “inútil”, Sócrates queria se referir à inutilidade daquilo que não fosse a principal e verdadeira preocupação hu- mana: O conhecimento de si mesmo e a maneira correta de viver. Se não consigo conhecer os inícios da vida no passado não registrado, eu posso, achava Sócrates, conhe- cer os fins da vida aqui e agora. 30 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES Esta mudança da busca dos inícios para a busca dos fins naturalmente coinCiCle com a mudança de interesse que a Natureza external tinha para o homem. A Ciência física da qual Sócrates se afastou não era, como & Ciên- Cia moderna, uma tentativa de formular leis da Natureza, sempre com um olho na previsão de eventos futuros e con) () ganho incidental de um maior controle das forças naturais. Ela assumiu a forma de cosmogonia, ou seja, uma investigação de como 0 mundo veio a ser o que é; em segundo lugar, ela perguntava qual é a verdadeirª; natureza dessa substância material de que as coisas, ago- ra e sempre, consistem. A resposta 21 estas perguntas pa- recia estar num passado que se estendia até o presente. A Ciência tentava voltar ao início das coisas ou aos prin- cípios materiais a partir dos quais as coisas passaram a existir. O futuro não ofereceria nenhuma promessa de algo diferente. Mas, assim que passamos & Considerar nossas vidas, nossos pensamentos estão quase sempre voltados para () futuro. O passado nao pode ser muda- do, e os nossos mais fortes instintos impelem—nos & vol- tar as costas para ele e olhar para () porvir. No futuro fi- cam os fins que desejamos e esperamos encampar por meio do exercício da vontade e da escolha. O futuro mostra -se como () reino da contingência e da liberdade, e não, como o passado, um registro fechado Cla necessi- dade imutável. Sócrates, ao comentar suas experiências na passagem do Fédon que já citei, conta como se apegou à sugestão de que () mundo er :) obra da inteligência, esperando des- cobrir que Anaxágoras pudesse explicar como a ordem SÓCRATES 51 (Ins coisas havia) sido planejada para o melhor. A especu- lação física, pensava ele, podia ser transformada em uma explicação significativa e inteligível se os homens de Ciência conseguissem olhar para outra direção e não con- siderar O mundo como o reino da necessidade mecâni- (':l, mas como um processo em direção a um fim — um Hm que era bom e, portanto, objeto do planejamento mCional. Esta passagem contém uma antecipação do sis- tema do mundo proposto por Platão, mas Sócrates não se considerava à altura da tarefa de transformar a Ciência (lu Natureza. Ele só preparou o caminho concentrando& atenção na vida humana, um campo em que a questão dos fins em função dos quais devemos viver é suprema. Esta questão — qual é a finalidade da vida? — era, nessa época e agora, raramente formulada. Quando um homem se torna médico, ele estabelece que sua função e curar os doentes. A partir daí, v ive principalmente nu- ma rotina. Quando tem que parar e pensar no que fazer em seguida, pensa nos meios, e não no valor dos fins. líle não se pergunta: “Este paciente deveria ser curado ou seria melhor que morresse? Qual é o valor da saúde, ou da própria vida, em comparação com outras coisas valiosas?” O negociante tampouco se detém para per- guntar: “Será que devo ganhar mais dinheiro? Qual é o valor da riqueza?” Assim vamos vivendo dia após dia, urquitetando meios para atingir fins estabelecidos, sem nos perguntarmos se vale a pena viver para atingir esses fins. Essa é, exatamente, a questão que Sócrates levan- tóu, forçando seus contemporâneos & considerá—la e as- sim provocando muito desconforto. Considerando a vida 52 ANTES 1-1DEPOIS DE SÓCRATES como um todo, ele perguntava quais dos fins que busca- mos são real e intrinsecamente valiosos, e não apenas meios de obter algo que acreditamos valioso. Existirá em nossa vida um objetiva que seja único em termos do valor de nosso desejo? Não seria difícil convencer um negociante de que () dinheiro não C" um fim em si mesmo. Ele concordaria que deseja () dinheiro em função de uma outra coisa. que po- deria chamar de prazer ou felicidade. E um médico admi- tiria que a saúde só & valiosa como condição para a feli- cidade. Dessa forma, a felicidade humana surgiria como um fim comum, ao qual outros fins estariam subordina- dos. Mas o que é a felicidade? Da época de Sócrates em diante, esta foi a principal questão debatida pelas esco- las. Os filósofos viam que a humanidade podia ser, gros- so modo, Classificada em três tipos, na medida em que estes identificavam & felicidade com () prazer, com () su- cesso social, a honra e a fama, ou com o conhecimento e a sabedoria. O debate voltou-se para as alegações relati- vas & estes três tipos principais de objetivos de Vida. A]- gum deles poderia, por si mesmo, constituir a felicidade e, se assim fosse, qual deles seria? Ou eram todos consti- tuintes de uma vida perfeita; e, assim sendo, como se re- lacionariam entre si? Vamos agora nos ocupar da solução que Sócrates propôs para este problema. Sócrates afirmava que a felicidade devia ser encon- trada no que ele chamava de perfeição da alma — “tornar a alma tão boa quanto possível” —, e que todos os outros objetivos desejados pelos homens não possuíam, estrita- mente falando, nenhum valor em si mesmos. Se fossem SÓCRATES 55 dignos de busca, só o seriam como meios para atingir a perfeição da alma. Na Apologia de Platão, que, sem CIÚ- vida, é fiel em espírito e substância ao discurso efetiva- mente pronunciado por Sócrates em sua defesa, () filóso- [k) recusa—se a aceitar () perdão ao custo de negar a bus- ca da sabedoria e a missão que ele assim descreve: Se me oferecesseis o perdão nestes termos, minha resposta seria: “Atenienses, tenho-vos em alta afeição e estima, mas prefiro obedecer aos Céus e não a vós; por- tanto, enquanto eu tiver ânimo C forçz em mim, não dei- xarei de buscar a sabedoria ou de exortzlr—vos & buscar a verdade, apontando—a & qualquer de vós que eu casual- mente encontre, com minhas costumeiras palavras: Meu bom amigo, tu és Cidadão de Atenas, uma grande Cidade, famosa por sua sabedoria e poderio; não te envergonhas de te ()Cupares tão arduamente da acumulação de rique- zas, honrarias e reputação, sem nada dedicares à sabedo- ria, à verdade e à perfeição de tua alma? E se ele protes- tar que não se importa com essas coisas, não O liberarei de imediato, seguindo o meu caminho; vou questioná—lo, examiná—lo e testá—lo, e se me parecer que ele não possui a virtude que pretende ter, vou censurá—lo por ver como inúteis as coiszs mais preciosas, e como valiosas as mais inClignas. Isto farei a qualquer um que encontre, jovem ou velho, Cidadão Du estrangeiro, mas especialmente a vós, meus concidadãos, já que sois meu próprio povo. Pois tende a certeza de que tal é o desígnio (lbs Céus; e acredito que a maior dádiva com que a fortuna já con- templou Atenas foi meu engajamento ao serviço dos Céus. Pois minha única tarefa é persuadir todos vós, jovens ou velhos, a vos dedicar menos aos vossos corpos e à 54 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES vossa riqueza, e mais à perfeição de vossas almas, fazen- do disto vossa primeira preocupação e vos dizendo que a bondade não provém da riqueza, mas é a bondade que transforma a riqueza ou qualquer outra coisa, em público ou na vida privada, em algo valioso para o homem. Se, ao afirmar isto, estou corrompendo a juventude, tanto pior; mas, se. afirmardes que eu nada mais tenho a dizer, estareis faltando corn a verdade. Portanto, atenienses”, digo eu concluindo, “podeis ou não dar ouvidos & Anito; podeis ou não condenar—me; mas não mudarei meu com- portamento, mesmo que eu tenha que morrer mil vezes.” Acredito que, com “perfeição da alma”, Sócrates queria se referir ao que poderíamos Chamar de perfeição espiritual. É nisto que ele localizava a verdadeira preo- cupação humana; e, ao deixar de lado as especulações sobre a origem e a constituição do mundo, consideran- do-as “inúteis”, ele se referia ao fato de que o conheci- mento dessas coisas, mesmo que pudesse ser obtido, não lançaria luz sobre a natureza da perfeição espiritual ou sobre os meios de atingi—la. Para tal propósito, fazia- se necessário um tipo diferente de conhecimento — ou seja, uma revelação direta (de que todo homem era ca- paz) do valor das Várias coisas que desejamos. Este é o conhecimento que Socrátes identificava com a bondade no famoso paradoxo normalmente traduzido como “A virtude e o conhecimento”. De outro ponto de Vista, este conhecimento pode ser Chamado de “autoconhecimen- to” — o reconhecimento daquele ser — a alma em cada um de nós — cuja perfeição e O verdadeiro objetivo da vida. A razão de Sócrates colocar-se entre os maiores SÓCRATES 35 filósofos está em sua descoberta dessa alma e de uma moralidade de aspiração espiritual, que deveria ocupar 0 lugar da moralidade corrente, baseada na submissão social. Para apreciarmos o significado dessa descoberta, agora deveremos examinar o movimento do pensamen- to associado aos rivais contemporâneos de Sócrates, os sofistas. Os sofistas não constituíram uma escola; eram professores indiv iduais dos mais variados tipos. Mas te- mos afirmativas esparsas de um ou outro sefistzt que se encaixam como elementos de uma filosofia de vida ca- racterística deste período do pensamento grego, particu- larmente em Atenas. Sugiro que () Chamemos de filoso- fia da adolescência. Voltemos à analogia de que já me utilizei, entre 0 desenvolv imento da especulação filosófi- ca primitiva e o desenvolv imento da mente indiv idual na infância e na juventude. Referimo-nos à primitiva Ciência da Natureza como O ápice de um processo secular. O nascimento da Ciência marcou () momento em que o ho- mem conseguiu apartar sua própria natureza do mundo exterior a ele. Renunciando 210 patético sonho de con- trolar um meio ambiente animado por poderes e pai- xões semelhantes às dele, () homem descobriu que sabia muito menos a respeito do mundo do que tinha imagi- nado, e os intelectos mais argutos foram inspirados por uma nova curiosidade por penetrar na realidade oculta nas coisas. Imerso no interesse pelo objeto, o homem es- queceu—se de pensar em si mesmo. Existe alguma coisa nesta curiosidade dirigida para o exterior que lembra o div ino assombro nos olhos de uma criança quando lhe 56 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES apresentamos o máximo de informação sobre os astros variáveis, os electrons ou a Circulação sanguínea. Deste ponto de Vista, podemos considerar a Ciência pré-socrá- tica comoa infância da nova forma de pensamento. Os jônicos do século VI haviam alcançado um estágio aná- logo à atitude mental de uma criança dos, digamos, seis anos de idade até o início da adolescência. Nesse perío- do de nossas Vidas, já abandonamos o solipsismo do re- Cérn-nascido e deixamos de acreditar que os contos de fada são literalmente verdadeiros. A criança normal en- tão se interessa pelas coisas não apenas em função ,de seus propósitos práticos, mas se mostra genuinamente curiosa e capaz de investigar as coisas. Ela tem o poder de sentir prazer no conhecimento puro, até esse prazer ser morto pelo que conhecemos como educação. Tam- bém na criança, tal curiosidade e orientada para () exte- rior e desinteressada. A conduta não oferece qualquer campo para a especulação independente. A vida é co- mandada pela autoridade das babás e dos pais; e por mais obstinada que seja a criança, uma cena autoridade é normalmente aceita como infalível. A infância termina com a crise mais revolucionária da vida humana — a adolescência. Assim, minha suges- tão é que a adolescência corresponde à segunda fase da filosofia grega — a época dos sofistas. Durante a adolescência, digamos dos quatorze aos Vinte anos, o jovem está empenhado em um segundo esforço de desligamento, mais consciente e mais doloro- so que o da criança quando esta procura se desligar do mundo exterior. Sua autoconsciência agora é de um ou- SÓCRATES 57 tro tipo. Agora, sua principal preocupação e desligar seu ser indiv idual de seus pais e do grupo familiar, bem como de qualquer outro grupo social que pretenda dominar sua vontade e moldar-lhe & personalidade. O indiv íduo precisa se descobrir como ser moral que deve aprender a manter-se sobre seus próprios pés como um homem. É de vital importância que ele tenha êxito nesse esforço para desligar—se; e parece que o principal objetivo da edu- cação deve ser ajudá-lo nessa tarefa, com um mínimo de danos para o indiv íduo e para a sociedade da qual ele deve permanecer membro. A educação que na verdade oferecemos parece, pelo contrário, impedir esse objeti- vo. O adolescente é levado a aprender muitas coisas que poderiam satisfazer a curiosidade desinteressada se esta não tivesse cedido lugar a uma necessidade mais urgen- te; e ele se Vê cercado pela pressão quase sufocante de um grupo de contemporâneos que exigem absoluta con- formidade com um padrão que deveria superar. O resul- tado é uma reação contra toda autoridade que seja des- necessariamente violenta. Na sociedade grega, depois das Guerras Pérsicas do primeiro quartel do século V, podemos observar, com admirável Clareza, um esforço análogo do indiv íduo para se desligar do grupo social — a Cidade e seus costumes tradicionais. Até essa época, a pretensão da autoridade de regulamentar a conduta do Cidadão ainda não havia sido explicitamente desafiada. Por maior ou menor que fosse o grau de conduta com relação aos costumes e leis da sociedade, havia sido tacitamente acordado que esses costumes e leis incorporavam uma obrigação absoluta, 58 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES acima de qualquer contestação. Mas na época de Sócra- tes alguns sofistas começaram a levantar dúvidas quanto a este pressuposto básico, com uma ousadia que, para as mentes conservadoras, parecia ameaçar toda & estru- tura da sociedade. Tomemos, por exemplo, um fragmento recentemen- te descoberto do sofista Antífon, que estabelece um con- traste significativo entre as leis do Estado e a lei da Na- tureza. A lei da Natureza é tida como o princípio da au- topreservação — cada indiv íduo deveria procurar o que é vantajoso para a Vida e, consequentemente, agradável. As leis do Estado, por outro lado, prescrevem um com- portamento que & desagradável e, portanto, antinatural. Essas leis são contrárias à Natureza, que é o verdadeiro modelo do que é certo. Em que jaz sua professa autori- dade? Em nada mais que na convenção. As leis foram originalmente criadas por concordância entre os homens, não sendo naturalmente aceitas pela posteridade que já não fazia parte dessa aliança. A conclusão prática é que, enquanto as leis da Natureza não podem ser evitadas, as leis da sociedade só deveriam ser obedecidas quando existisse o risco de sermos descobertos e punidos. A Na- tureza sempre nos descobrirá, mas, com a sorte ou & esperteza de nosso lado, a sociedade pode não nos des- cobrir. O contraste entre a lei da Natureza e a lei humana aparece aqui pela primeira vez. É só agora que a mente grega percebe com Clareza que as leis sociais não são instituições div inas operando com inevitáveis sanções corno penalidades da transgressão contra a lei natural. 35" SÓCRATES j 59 J teoria docontrato social é anunciada. Alega-se que os indiv íduos eram originalmente livres para buscarem, to- dos eles, a autopreservação, o prazer e o interesse pró- prio. Por algum motivo, talvez pela vantagem da prote- ção mútua contra grupos hostis, um certo número de in- div íduos concorda em abrir mão de sua liberdade. Mas as leis que eles fazem não têm qualquer outra fonte de obrigação. O homem naturalmente forte e como um leão preso numa rede de proibições e restrições. Ele tem o direito natural de libertar-se, se puder, como Gulliver ao atirar para longe as cadeias liliputianas, e, valendo-se de sua força, reclamar a parte do leãoª. Nesta filosofia da afirmação de si mesmo, os pais Vão reconhecer algo análogo ao espírito da reação ado- lescente Contra a autoridade do lar. Não lhes surpreen- derá o fato de os sofistas encontrarem ouvintes atentos entre os jovens que assistiam & suas palestras e seus de- bates. Na Cidade grega não havia escolas secundárias. Depois da adolescência, o próprio Estado era visto como a instituição educacional que moldava o jovem Cidadão. O que ele lhe ensinava era a lei estabelecida, um precio- so legado da sabedoria ancestral ou mesmo divina. Nes- ta escola pública, os únicos professores eram os Cida- dãos mais velhos. E uma afirmação como a de Antífon não soava menos ofensiva aos “seus ouvidos que aos ou- vidos dos professores de uma escola pública de hoje. Pa- ra os rapazes, por outro lado, soava como expressão 2. lista visão do direito natural do mais forte e reufirmada com grande ênfase por Cálicles, o rapaz do mundo nas Górgías de Platão, pp. 482 ss. 40 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES igualmente bem-vinda da rebelião contra aquelas regras estúpidas. Qual foi a atitude de Sócrates para com esta filosofia da adolescência? Nu mentalidade popular, ela foi sim- plesmente confundida com a dos sofistas. Aristófanes e os outros comediógrafos propiciaram o equívoco. Aos setenta anos de idade, ele foi julgado e condenado por “corromper & juventude”. Esta acusação era inteiramente falsa, ou representava uma certa verdade muito mais pro- funda que o sentido superficial que ostentava na boca de seus acusadores? Sócrates estava sempre disposto a conversar com qualquer pessoa, mas, acima de tudo, ele prezava & com- panhia dos adolescentes. Estes descobriam nele exata- mente aquilo de que a juventude precisa nesta fase de reação — um homem cuja coragem comprovada eles pu- dessem respeitar e admirar, e cujo intelecto sutil estava sempre a serviço da paixão dos jovens pela argumenta- ção. Ele nunca silenciava seu questionamento imaturo com o tom superior da experiência adulta; era seu dese- jo saber tudo o que se passava em suas mentes e incen- tivá-los positivamente a pensar por si mesmos em todos os assuntos, particularmente quanto ao certo e ao erra- do. Sócrates sempre afirmava, com manifesta candura, que ele próprio era questionador, que nada sabia e nada tinha a ensinar, mas Via toda questão como uma questão em aberto. E, por trás da inteligência Cheia de humor, eles sentiam & presença de uma personalidade extraordi- nária, calma, segura e de posse de uma misteriosa sabe- doria. Diante deles estava um homem que descobrira o SÓCRATES 41 segredo davida e conseguira um equilíbrio e uma hur- monia de caráter que nada conseguia perturbar. Seu tem- po estava sempre à disposição de qualquer um que de- sejasse descobrir esse segredo — acima de tudo, o jovem cuja necessidade obscura e premente era alcançar a li- berdade da idade adulta emancipada. Os leitores superficiais dos primeiros diálogos por vezes têm a impressão de que Sócrates montava arma- dilhas para seus oponentes e procurava sair v itorioso. Como o próprio Platão condena esta prática da “erística” — contenção verbal sem consideração pela verdade —, sua intenção não pode ser apresentá-la como característica de Sócrates. O leitor cuidadoso vai notar que Sócrates só monta armadilhas desse tipo quando está expondo as pretensões de retóricos e debatedores profissionais ou de outros que se atribuíam uma sabedoria superior. Esses homens não podem contribuir para a busca da verdade; eles aCham que já possuem a verdade ou algo que fun- cione como ela. O sábio só pode enfrentá-los com suas próprias armas, assim convencendo seus jovens admira- dores de que a habilidade verbal não significa sabedo- ria. Ao conversar com os jovens, seu método é diferente. Ele Começa por intrígá- -los de modo que possam ver como sabem pouco e se preparar para busCar & verdade em sua companhia. Depois de iniciada ;) buscagenuína, ele sempre trata o outro participante da conversa como companheiro e aliado, mas nunca como oponente. Sócrates dizia que nada sabia que pudesse ser ensi- nado :) outra pessoa. Ao mesmo tempo, declarava que a 42 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES perfeição humana está no conhecimento do bem e do mal. Por que este conhecimento não pode ser ensinado como os conhecimentos de outros tipos? Porque tudo o que outra pessoa pode me ensinar e que tais e tais coi- sas são tidas como boas, que tais e tais ações são tidas como certas, por uma autoridade exterior ou pela pró- pria sociedade. Informações deste tipo podem ser passa- das por meio da instrução; na verdade, elas formam a substância total da educação moral tal como é comu- mente praticada. Não saberei se isto ou aquilo é bom ou certo até que possa vê-lo diretamente por mim mesmo; e, assim que eu puder ver por mim mesmo, esse conhe- cimento pode descartar aquilo em que, segundo me di- zem, as pessoas acreditam ou pensam acreditar. O co- nhecimento dos valores, na verdade, é uma questão de revelação direta, como ver que o Céu é azul e a grama, verde. Ele não consiste de pedaços de informação que podem ser passados de uma mente para outra. Em últi- ma instância, todo indiv íduo deve ver e julgar por si mesmo o que é bom para ele fazer. O indiv íduo, se deve ser um homem completo, deve tornar—se moralmente autônomo e controlar sua própria vida. Esta é uma responsabilidade da qual nenhum indiv í- duo pode escapar. Ele pode, de uma vez por todas, aceitar uma certa autoridade externa, tratando-a como respon- sável pelo que lhe diz para fazer. Mas continua responsá- vel por sua escolha original de uma autoridade a ser obe- decida. Sócrates afirmava que o juiz que está dentro de cada um de nós não pode delegar suas funções a outrem. Um homem perfeito em autoconhecimento pode dizer SÓCRATES 473 quando e Clara sua própria Visão do que é bom; ele não consegue olhar na mente dos outros e dizer se a visão de- les é Clara ou não. Esta opinião pressupõe que toda alma humana pos- sui o poder necessário de revelação imediata ou percep- ção do bem e do mal. Como ocorre com o olho físico, a visão da alma pode ser obscurecida e diminuída, poden- do ser enganada pelas falsas aparências. O prazer, por exemplo, é constantemente tomado por bom quando efe- tivamente não o é. Mas quando o olho da alma vê de ma- neira direta e Clara, não se pode apelar contra sua decisão. No campo da conduta, a educação (depois da necessária tutelagem da infância) não significa ensinar; ela é () abrir dos olhos da alma, clareando sua visão pelo afastamento das névoas deturpadoras do preconceito, bem como do orgulho do conhecimento que, na verdade, não passa de uma opinião de segunda mão. Não é de surpreender que os Cidadãos mais velhos de Atenas, quando souberam (talvez por meio de desa- gradáveis conversas com seus próprios filhos adolescen- tes) que Sócrates incentivava os jovens a questionar to- do preceito moral, não viram nenhuma diferença entre sua doutrina e a de Antífon, concluindo que ele estava corrom- pendo os jovens. Se tomarmos nossa palavra “corromper” em seu sentido literal, a acusação era verdadeira. Dizer aos jovens que, para obter a total liberdade da idade adulta, eles devem questionar toda máxima de conduta que rece- beram e julgar toda questão moral por si mesmos signi- fica corrompê-los no sentido de destruir toda a muralha com que os pais e a sociedade, de maneira tão laborio- 44 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES sa, cercaram-lhes & infância. Na verdade, Sócrates estava minando & moralidade da submissão social ——aquela mo- ralidade da obediência à autoridade e da concordância com o costume, que tem mantido coesos os grupos huma- nos de todos os tamanhos, da. família à nação, ao longo de toda a história da humanidade. Ou melhor, ele estava indo além desta moralidade de submissão e proibição para uma moralidade de tipo diferente, da mesma forma que o Sermão da Montanha vai além da lei oferecida no Sinai. O surgimento desta nova moralidade está dentro da própria alma. Pode ser Chamada de moralidade da aspiração à perfeição espiritual. Se a perfeição espiritual for Vista como o objeto da vida e o segredo da felicidade, então a ação não pode ser governada por nenhum Códi- go de regras imposto do exterior. Se essas regras são váli- das em algum caso real, é uma questão que só pode ser decidida pelo veredicto sincero e desinteressado da alma indiv idual. Descobrir um novo princípio de moralidade e pro- Clamá-lo sem medo ou compromisso significa provocar o ressentimento da sociedade que vive segundo uma mo- ralidade cujas limitações devem ser rompidas. Também significa correr o risco de ser mal interpretado pelos ou- vintes que já se deram conta dessas limitações, mas que podem não ser capazes de apreender o novo princípio em suas implicações positivas. Com certeza, é perigoso afirmarmos: “Faça o que parecer certo aos seus olhos”, pois alguns de nossos ouvintes sairão achando que o que dissemos foi: “Faça o que bem entender”; e não te- rão apreendido esta importantíssima condição: “Mas an- f: ? ' ' SÓCRATES 45 tes certifique—se de que seus olhos Vêem com perfeita Clareza o que é realmente bom.” Se esta condição for satisfeita, se você enxergar a verdade e agir sobre ela - como é preciso que o faça quando ela é realmente ViS- ta —, você encontrará a felicidade na posse de sua pró- pria alma; mas você pode achar que fazer o que sabe ser certo pode não ser agradável, podendo custar-lhe & po- breza e o sofrimento, bem como, se você não conseguir evitar o conflito com a sociedade, a prisão e a morte. Se a condição não for satisfeita, você poderá se transformar em um sensualista egoísta e, se seu egoísmo estiver as- sociado ao poder, em um inimigo da humanidade, um lobo que a sociedade tem todo o direito de destruir. En- tão, você terá perdido sua alma e não terá encontrado a felicidade, embora possa ter atingido os píncaros do po- der que o mundo considera totalmente invejáveis. Agora posso definir com mais Clareza o que quis di- zer ao afirmar que o feito de Sócrates foi a descoberta da alma. Quando disse aos atenienses que a única coisa im- portante da vida não era a riqueza ou a posição social, mas a alma, ele estava usando uma linguagem que soa- va muito estranha aos ouvidos de seus conCiCladãos—ª. O ateniense comum achava que sua alma — sua psique - era um espectro etéreo e insubstancial, ou um duplo de seu corpo, uma sombra que, no momento da morte, po- dia esvoaçar para um sombrio Hades nos confins da não- existência, ou talvezescapar como um alento e se dissi- 5. Cf. ]. Burner, 77.79Socrafic Doctrine oftbe Soul, Essays and Addresses (1929), p. 126. -1() ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES par como a fumaça no ar. Ao falar de seu “ser”, ele esta- ria se referindo a seu corpo, a sede quente e viva da consciência — uma consciência que estava condenada a se enfraquecer à medida que suas faculdades fossem se en- fraquecendo com a idade, bem como a perecer com o corpo na hora da morte. Dízer—lhes que sua principal preocupação deveria ser o cuidado com a “alma” e sua perfeição era como lhes dizer que esquecessem sua subs- tância e acalentassem sua sombra. A descoberta de Sócrates foi que o verdadeiro ser não está no corpo, mas na alma. E, para ele, a alma sig- nificava & sede daquela capacidade de descoberta que consegue distinguir o bem do mal, infalivelmente esco- lhendo o bem. O autoconhecimento implica o reconhe- cimento deste ser verdadeiro. O auto—exame é uma dis- ciplina constantemente exigida para distinguir seu julga- mento das sugestões de outros elementos de nossa natu- reza, intimamente ligados ao Corpo e seus interesses perturbadores. O autocontrole é o domínio do verdadei- ro ser sobre os outros elementos — uma absoluta auto- cracia da alma. Pois este juiz interior do bem e do mal também é um governante. O verdadeiro ser é uma facul- dade, não apenas da descoberta intuitiva, mas também da vontade — uma vontade que pode anular todos os ou- tros desejos de prazer e aparente felicidade. A alma que vê o que é realmente bom infalivelmente deseja o bem por ela discernido. Sócrates afirmava que este desejo da alma esclarecida é tão forte que sempre suplanta todos os outros desejos cujos objetos o verdadeiro ser vê como ilusórios. SÓCRATES 47 Este é o significado dos paradoxos socráticos: “A vir- tude é o conhecimento”, “Ninguém erra deliberadamen- te.” As pessoas normalmente dizem: “Eu sabia que era errado, mas não pude evitá—lo.” Sócrates responde: “Isso nunca é realmente a verdade. Tu podes ter sabido que outras pessoas acham que o que fizeste era ruim, ou que te haviam dito que era ruim; mas se tivesses sabido por ti mesmo que era ruim, não o terias feito. Teu erro foi a falta de esclarecimento. Não viste o bem; foste engana- do por algum prazer que parecia bom naquele momen- to. Se tivesses visto o bem, também () terias desejado e agido para obtê—lo. Ninguem age mal por sua verdadeira vontade, pelo menos quando essa vontade foi direciona- da para. seu objeto, o bem, por uma visão genuína e es- ClareCida.” O nome especial dado ao verdadeiro ser nos escri- tos posteriores de Platão e em Aristóteles e nous, uma palavra comumente traduzida como “razão”. Para os ou- vidos modernos, “espírito” é um termo menos impreci- so, pois “razão” sugere uma faculdade que pensa mas que não deseja. Platão e Aristóteles viam este espírito como algo distinto da psique, que está inseparavelmente associada ao corpo, perecendo com a morte deste. Para a perfeição do espírito, os gregos usavam a palavra co- mum para “bondade”, areté, que não deve ser traduzida como “Virtude”. “Virtude”, em todas as situações, signifi- ca conformidade com os ideais de conduta em vigor. O homem Virtuoso é aquele que faz o que é aprovado pelo resto da sociedade. A filosofia socrática rejeita esta con- formidade, Chamando-a de “virtude popular”. Platão CO- 48 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES loca & virtude dos “Cidadãos respeitáveis” no mesmo ní- vel que & incessante busca do dever característica das abelhas, formigas e outros insetos gregários. Não é isto que Sócrates quer dizer com “bondade”. Tudo o que ele objetivava era a substituição da moralidade infantil da * conformidade irrepreensível por um ideal de idade adul- ta espiritual que se elevasse acima dos limites comumen- te reconhecidos da capacidade humana. Esse ideal deve- ria substituir uma moralidade da virtude atingível, que o mundo respeita e recompensa, uma moralidade aspiran- do a uma perfeição só atingível por uns poucos homens que o mundo rejeita enquanto Vivos, e que só muito mais tarde aprende a venerar como heróicos ou div inos. Só- crates foi um deles. Capítulo III PLATÃO Sócrates pertenceu àquele pequeno número de des- bravadores que, ocasionalmente, foram ampliando o ho- rizonte do espírito humano. Eles adiv inharam em nossa natureza poderes insuspeitos que só eles conseguiram, em suas próprias pessoas, transformar em realidade. Vi- venciando & verdade que descobriram, ofereceram ao mundo a única garantia possível de que ela não é uma ilusão. Por definição, é uma verdade além da compreen- são de seus contemporâneos e conCidadãos. A convicção é passada lentamente para a posteridade pelo exemplo de suas vidas, e não por algum registro que eles tenham nos legado em seus escritos. Pois, com poucas exceções, não escreveram livros. Foram sábios, sabendo que & escri- ta está destinada a matar boa parte da vida (mas não toda ela) que o espírito propiciou. A única linguagem que po- diam usar estava inevitavelmente aberta à interpretação errônea. Uma nova expansão da verdade mal podia ser revelada em palavras que ostentavam :) impressão des- gastada do uso familiar. Aqueles que, graças ao contato ín- timo, sentiram a força de sua personalidade acreditaram mais neles que em qualquer coisa que tenham dito. 50 ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES Só por um grande golpe de sorte um ou outro desses pioneiros do pensamento encontraram um discípulo que conseguiu apreender o sentido de suas palavras suficien- temente bem para executar a tarefa de retransmiti—lo. Mes- mo assim, surge um curioso dilema., que mal podemos evitar. A menos que esse discípulo também seja um ho- mem genial, e pouco provável que consiga atingir o nível de argumentação do mestre. Se for genial, não se limita- rá à simples reprodução do que entendeu de seu mestre. Ele avançará esse pensamento, seguindo suas implica- ções em campos para além de seu escopo original; e, ao proceder assim, pode transformar a verdade de uma for- ma que o mestre mal conseguiria reconhecer. Alguma coisa deste tipo aconteceu no caso de Sócra- tes e Platão. A única dádiva da fortuna para Sócrates foi ter, entre seus jovens discípulos, alguém que não só se tornaria um escritor de incomparável habilidade, mas que também foi, graças a seus dotes naturais, um poeta e pen- sador não menos sutil que o próprio Sócrates. Platão ti- nha cerca de Vinte e oito anos de idade quando Sócrates morreu, tendo continuado a escrever até os oitenta anos, quando faleceu. Um filósofo de seu calibre não poderia se limitar a reproduzir o pensamento de um mestre, por maior que este fosse. Sem dúvida, o germe central do pla- tonismo, do começo ao fim, é a nova moralidade socráti- ca da aspiração espiritual, mas nas mãos de Platão este germe transformou—se numa árvore cujos galhos cobrem os Céus. O platonismo é, coisa que a doutrina de Sócrates nunca foi, um sistema do mundo, abraçando todo aque- le domínio da Natureza exterior do qual Sócrates se afas- tara para estudar a natureza e a finalidade do homem. PLATÃO tªl A relação do platonismo com a filosofia de Sócrates — a questão de (por assim dizer) onde Sócrates termina e Platão começa — ainda é motivo de debate entre os estu- diosos. Não quero aqui entrar em controvérsia. Só posso descrever a relação como a vejo, e, em boa parte, como ela tem sido vista há muitos anos pela maior parte de ava- liadores competentes. Não devemos imaginar o jovem Platão como um re- cluso estudante de filosofia. Não devemos esquecer que, ao longo de toda sua infância e juventude, a sociedade grega esteve div idida em dois campos, que estenderam por trinta anos uma cruenta guerra do tipo que exaure e desmoraliza ambos os lados. Nós que participamos de um conflito similar sabemos, à nossa própria custa, como o recrudescimento da Violência física libera as paixões mais vis e cruéis, transfigurando em virtude patriótica
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