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GUSTAVO DOS SANT OS GASPAROT O DIREIT O PENAL E PROCESSUAL PENAL NA PRÁTICA © 2019 - Editora Canal Ciências Criminais Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004. Direção Editorial Bernardo de Azevedo e Souza Conselho Editorial André Peixoto de Souza Bruno Augusto Vigo Milanez Diógenes V. Hassan Ribeiro Fábio da Silva Bozza Fauzi Hassan Choukr Felipe Faoro Bertoni Fernanda Ravazzano Baqueiro Maiquel A. Dezordi Wermuth Capa e pr ojeto gráfico Estúdio Xiru Diagramação Bernardo de Azevedo e Souza Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G249d Gasparoto, Gustavo dos Santoss Direito penal e processual penal na prática [recurso eletrônico] / Gustavo dos Santos Gasparoto. – Porto Alegre : Canal Ciências Criminais, 2019. ISBN: 978-85-92712-31-0 (e-book) Modo de acesso: http://editora.canalcienciascriminais.com.br 1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3. Apropriação indébita previdenciária. 4. Armas - porte ilegal – princípio da consunção. 5. Gestão temerária – princípio da legalidade. 6. Habeas corpus. 7. Prisão em flagrante. I. Título. CDD 341.43 Bibliotecária Responsável: Eliane Mª. Per eira Kr onhardt (CRB 10/1518) CONTENTS APRESENTAÇÃO 1. Apropriação indébita previdenciária e inexigibilidade de conduta diversa 2. Aplicação do princípio da consunção no crime de porte ilegal de armas 3. Não declarar o imposto de renda constitui crime contra a ordem tributária? 4. O crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade 5. Produtos vencidos expostos à venda, por si só, configuram crime contra as relações de consumo? 6. Crimes contra a administração pública podem ser considerados insignificantes? 7. A ausência de fundamentação das decisões que ratificam o recebimento da denúncia 8. A acusação pode impetrar mandado de segurança a fim de manter o acusado preso? 9. Habeas Corpus: superando a súmula 691 do STF 10. A inquirição de testemunhas à luz do sistema cross examination 11. Os efeitos da transação penal 12. Prisão em flagrante, e agora: relaxamento da prisão ou liberdade provisória? 13. Medidas cautelares e o princípio da necessidade 14. O suprimento inidôneo de decisões não fundamentadas 15. A ilegalidade das prisões preventivas fundamentadas em fatos pretéritos 16. Insegurança jurídica e Direito Penal da “sorte” CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS APRESENTAÇÃO O trabalho em apreço nada mais é que um compilado de diversos artigos que poderão auxiliar os leitores durante a prática penal, seja no que tange ao direito material como o direito processual. Importante consignar, que não há obrigatoriamente ligação entre um artigo e outro, uma vez que são abordadas diversas matérias distintas. A intenção da obra é demonstrar que a teoria e a prática nem sempre caminham juntas, razão pela qual a postura e atuação do advogado são de suma importância para que a defesa do cliente seja a mais eficiente possível. Entre os temas estão: Direito Penal da “sorte”; se é crime não declarar o imposto de renda; a legalidade do crime de gestão temerária; a ilegalidade de prisões preventivas fundamentadas em fatos pretéritos; medidas cautelares e o princípio da proporcionalidade; a superação da súmula 691 do STF em sede de habeas corpus ; entre outros. Portanto, o e-book poderá ser muito útil aos que pretendem adquirir mais conhecimento para exercerem a tão apaixonante advocacia criminal. CAPÍTULO 1 APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA O crime de apropriação indébita previdenciária está previsto no art. 168-A do Código Penal: Apr opriação indébita pr evidenciária Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. §1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público; II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. Parte da doutrina entende que o legislador falhou ao inserir, por meio da Lei 9.983/2000, esse delito no título II do Código Penal – Dos Crimes Contra o Patrimônio -, uma vez que, na verdade, trata-se de crime que atinge a previdência social. Há quem defenda, ainda, que o tipo penal em debate seria inconstitucional, pelo fato do objeto do crime não passar de mera inadimplência perante a União pelo não pagamento de contribuição previdenciária. Dessa forma, como o crime em apreço permite a privação de liberdade, estaria afrontando o art. 5º, LXVII, da Carta Magna: não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Pois bem, para a configuração do crime, em síntese, é necessário que haja o recolhimento da contribuição previdenciária e que ela não seja repassada ao Órgão competente. Por exemplo: o dono de uma empresa desconta do salário de seus funcionários o valor referente ao pagamento do INSS, no entanto, ao invés de efetuar o devido repasse à previdência social, o agente deixa de fazê-lo. Seria possível que isso ocorra sem que o agente seja responsabilizado penalmente? Sim, e no caso em debate será esclarecida uma das possíveis hipóteses. Sabe-se que segundo o conceito analítico de crime tripartido, os elementos capazes de configurar o delito são: (i) fato típico; (ii) antijurídico; e (iii) culpável. O terceiro elemento – culpabilidade - é composto pela imputabilidade do agente, pelo potencial de consciência da ilicitude e pela exigibilidade de conduta diversa. A exigibilidade de conduta diversa seria, em suma, a possibilidade de o agente agir de acordo com o direito no momento da ação ou omissão. Ocorre que isso nem sempre é possível, sobretudo no ramo empresarial, o qual envolve diversos riscos devido à instabilidade do mercado. Imagine-se a seguinte situação: a empresa de João, após ser atingida pelos efeitos da crise econômica, sofreu um prejuízo significante. Em razão disso, o João não conseguiu arcar com todas as suas responsabilidades, motivo pelo qual diversos equipamentos foram penhorados, muitos funcionários foram demitidos (tendo que pagar valores altos de acertos trabalhistas), a empresa teve a falência decretada, sofreu diversas ações de execução, entre outras. Assim, João não teve outra saída, senão utilizar o valor que deveria ter repassado à previdência, para pagar o salário de alguns funcionários. Diante desse quadro, deveria o Direito Penal ser acionado? Há outra conduta a ser exigida de João diferente da narrada no exemplo acima? Por óbvio que não. Muito embora a conduta do João se enquadre no tipo penal previsto no art. 168-A (sendo típico e antijurídico), o contexto não permite que ela seja culpável, uma vez que no caso em tela João está amparado por uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade, qual seja: a de inexigibilidade de conduta diversa. O professor Cleber MASSON[1] ensina que quando uma pessoa física ou jurídica, deixa de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional, em razão de dificuldades financeiras, firmou-se tese no sentido de não ser legítima a atuação do Direito Penal, pois seria injusta a incidência prática do crime definido pelo art. 168-A do Código Penal. Prevalece o entendimento de que se afasta a culpabilidade,em face da ausência de um dos seus elementos constitutivos, a exigibilidade de conduta diversa. Importante esclarecer que para o reconhecimento dessa causa supralegal de exclusão da culpabilidade é imprescindível que o acusado demonstre de forma contundente os problemas suportados pela empresa que o impediu de repassar o valor do INSS à União, do contrário o juiz não poderá reconhecer a presença da inexigibilidade de conduta diversa. Na prática essa prova não pode ser feita somente por meio de testemunhas, pois os Tribunais Superiores entendem que o acusado deve fornecer documentos capazes de demonstrar o histórico negativo que a empresa esteva suportando na época dos fatos (como exemplo: documentos que demonstrem a decretação da falência, cópias de ações de execução, documentos da contabilidade, entre outros). Não se pode olvidar, ainda, que essa causa de exclusão da culpabilidade decorre da natureza de exceção do Direito Penal, isto é: não há motivos para acionar o ramo mais invasivo do Direito, a fim de punir um agente que não poderia ter agido de outra forma. Por fim, com a intenção de aclarar situações em que essa causa supralegal é aplicada, seguem precedentes dos Tribunais Federais da 2ª e 3ª Região, respectivamente: APROPRIAÇÃO INDÉBIT A PREVIDENCIÁRIA (TRF 2): Nada obstante, compulsando os autos, verifica-se haver provas suficientes de que o quadro de penúria financeira por que atravessava a pessoa jurídica administrada pelas rés à época dos fatos analisados na ação penal (...) não se reverteu, aliás, agravou se, perdurando, inclusive, até os dias de hoje, caracterizando, assim, mais uma vez, inexigibilidade de conduta diversa, a excluir a culpabilidade das rés, como se dessume do entendimento já exposado na sentença, cujos fundamentos, pela clareza, solidez e juridicidade, incorporo como razões de decidir e agrego outros: (...) As afirmações das testemunhas são condizentes com a prova dos autos e corroboradas pelas declarações de IR relativas aos anos de 2003 a 2006, juntadas às fls. 110/304. Da análise de tais declarações resta claro que as Rés não obtiveram acréscimo significativo de patrimônio no período em que se deu a inadimplência e que não faziam retiradas vultuosas da referida empresa, demonstrando, assim, que não se locupletaram dos valores não repassados à autarquia previdenciária. Sendo assim, resta claro que a empresa administrada pelas Rés enfrentou grave obstáculo financeiro a impedir que as mesmas, como suas administradoras, agissem conforme determinava o comando contido no tipo em apreço, de modo que a inadimplência civil não transcendeu desta sede para a esfera criminal. A circunstância que vem endossar a absolvição tal como colocada referese à inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade das acusadas. (...) De todos estes fatos, resta comprovada a situação de excepcional gravidade financeira da sociedade empresarial à época dos fatos descritos na denúncia, caracterizando a excludente de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa por parte de (...), que deixaram de adimplir as obrigações tributárias. (APL n.º 0000141-34.2015.4.02.5001, TRF2, DJe 25/08/2017) APROPRIAÇÃO INDÉBIT A PREVIDENCIÁRIA (TRF 3): PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA RETROATIVA RECONHECIDA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DIFICULDADES FINANCEIRAS COMPROVADAS. RECURSO DA DEFESA PROVIDO. RECURSO DA ACUSAÇÃO DESPROVIDO. 1. Réu denunciado como incurso no artigo 168-A, §1º, I e artigo 337- A, I, c.c. o artigo 71 e 69, todos do Código Penal e condenado, apenas, pelo delito de sonegação previdenciária. 2. A jurisprudência sedimentou-se no sentido da aplicação da Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal aos crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária, reconhecendo a natureza material das infrações e, consequentemente, a consumação com a constituição definitiva do crédito tributário, bem como a necessidade do prévio exaurimento do procedimento administrativo fiscal como condição de procedibilidade para deflagração da ação penal. O termo a quo para a contagem da prescrição é constituição definitiva do crédito tributário. Prescrição da pretensão punitiva retroativa reconhecida em relação ao delito de sonegação previdenciária entre a data do recebimento da denúncia e a publicação da sentença. 3. Capítulo absolutório da sentença. A defesa trouxe aos autos elementos concretos de que a existência da empresa/sociedade estava comprometida, sendo graves e contundentes as dificuldades financeiras experimentadas pela pessoa jurídica no período indicado na denúncia. Ações de execução, despejo por falta de pagamento de aluguel, demissões, penhora de bens do acusado e involução patrimonial do sócio. Empresa com atividade encerrada quando da fiscalização. Mantido o capítulo absolutório da sentença na qual se reconheceu causa supralegal de exclusão de culpabilidade. 4. Recurso da defesa provido e da acusação desprovido. (APL n.º 0000691- 66.2006.4.03.6181, TRF 3, DJe 13/11/2018 (apenas ementa, pois o processo tramita sob segr edo de justiça) CAPÍTULO 2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO NO CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMAS O crime de porte ilegal de arma de fogo está descrito nos artigos 14 e 16 da Lei n.º 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), a única diferença que há entre aludidos tipos penais é de que o primeiro é relativo ao uso de arma permitida e o segundo relativo ao uso de arma restrita: Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (...) Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Como se vê os verbos descritos nos tipos penais em apreço são praticamente os mesmos, a diferença, repise-se, é somente em relação ao tipo do armamento. No entanto, ambos protegem o mesmo bem jurídico – segurança pública. Feito essa premissa, vamos imaginar a seguinte situação: em uma blitz de rotina policiais militares se deparam com um indivíduo portando ilegalmente diversas armas em seu automóvel, tanto de uso permitido como de uso restrito, e, em razão disso, o agente foi preso em flagrante. Encerrado os trâmites na Delegacia de Polícia os autos foram encaminhados ao Ministério Público e, nesta oportunidade, o Promotor de Justiça entendeu por bem denunciar o indivíduo pelos fatos subsumidos aos tipos penais acima ilustrados (arts. 14 e 16 da Lei n.º 10.826/03). A acusação oferecida em desfavor do agente está correta? Analisando as poucas informações descritas no exemplo anteriormente mencionado qual seria a melhor tese defensiva? A denúncia não está correta e a melhor tese defensiva seria a da aplicação do princípio da consunção, a fim de evitar o excesso de punição, isso porque todas as armas foram apreendidas durante a mesma situação fática. O professor Cleber MASSON[2] ensina que de acordo com o princípio da consunção “o fato mais amplo e grave consome, absorve os demais menos amplos e graves”. Isso para que o indivíduo não seja responsabilizado pelos mesmos fatos mais de uma vez, o que destoaria da finalidade do Direito Penal. Nota-se que a matéria em debate é de extrema objetividade. Isto é, como o crime previsto no art. 16 da referida Lei é mais grave (porte ilegal de arma de uso restrito: reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa), ele absorve o crime previsto no art. 14, pois este, por se tratar de armas de uso permitido, é menosgrave. Ademais, importante consignar que o princípio da consunção (ou absorção) pode ser aplicado ainda que os tipos penais protejam bens jurídicos distintos, conforme se verifica por meio das lições do Cezar Roberto BITENCOURT[3]: Não convence o argumento de que é impossível a absorção quando se tratar de bens jurídicos distintos. A prosperar tal argumento, jamais se poderia, por exemplo, falar em absorção nos crimes contra o sistema financeiro (Lei n. 7.492/86), na medida em que todos eles possuem uma objetividade jurídica específica. (...) No conhecido enunciado da Súmula 17 do STJ, convém que se destaque, reconheceu-se que o estelionato pode absorver a falsificação de documento. Registra-se, por sua pertinência, que a pena do art. 297 é de 2 a 6 anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5 anos. Não se questionou, contudo, que tal circunstância impediria a absorção, mantendo-se em plena vigência a r eferida súmula. Portanto, mesmo que os bens jurídicos tutelados sejam diversos o princípio da consunção deve ser aplicado, a fim de que o agente não seja responsabilizado duas vezes pelos mesmos fatos e condutas – non bis in idem. Importante registrar, ainda, a título de esclarecimento, que o princípio da consunção também é utilizado em casos em que um crime é praticado a fim de alcançar outro crime. Por exemplo: uso de documento falso para a prática do crime de estelionato. Nesse caso o agente deve ser responsabilizado tão somente pelo crime de estelionato, uma vez que, por meio do princípio da consunção, o crime meio (uso de documento falso) é absorvido pelo crime fim (estelionato). Por fim, seguem precedentes bastante didáticos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ilustram a aplicação do princípio da consunção em ações penais em que o agente foi denunciado por crimes previstos no Estatuto do Desarmamento: APL N.º 0009459-23.2015.8.26.0609, TJSP , REL. DES. CLÁUDIA LUCIA FONSECA F ANUCCHI, DJE 12/07/2017 Assiste razão à Defesa, mostrando-se de rigor a aplicação do princípio da consunção com relação aos delitos tipificados nos artigos 12, 14, caput, e 16, parágrafo único, inciso IV, todos da Lei nº 10.826/03, de sorte a considerar os dois primeir os (posse e porte ilegal de arma, munições e acessórios de uso permitido) absorvidos pelo delito mais grave (posse de arma com numeração suprimida e posse de munição de uso restrito), porquanto a apreensão dos armamentos, das munições e do acessório sucedeu-se no mesmo contexto fático, caracterizando, assim, crime único. APL N.º 0059831-38.2014.8.26.0050, TJSP , REL. DES. TOLOZO NETO, DJE 06/12/2017 Com efeito, havendo na hipótese único contexto fático, deve ser aplicado o princípio da consunção no que diz respeito aos crimes de porte ilegal de arma de fogo com numeração suprimida e disparo de arma de fogo, ambas infrações penais pelo qual o apelado foi condenado. Inobstante, tratando-se de porte de arma de fogo que se equipara à de uso restrito pelo fato de sua numeração ter sido raspada, em consonância com o art. 16, parágra fo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/03, crime cuja pena é mais grave do que a prevista para o disparo de arma de fogo, delito previsto no art. 15 do mesmo Diploma Legal, o critério quantitativo do aludido princípio da consunção, derivado dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, demanda que o disparo seja tomado como post factum impunível em relação ao porte, prevalecendo este a absorver o primeiro. Importante, porém, distinguir a hipótese dos presentes autos daquela em que a arma de fogo é de uso permitido. Cominada ao delito previsto no art. 14 da Lei nº 10.826/03 pena idêntica àquela adstrita ao art. 15 do mencionado Diploma Legal, o crime fim de disparo de arma de fogo resta por absorver o crime meio de porte, desde que, frise- se, não haja o estabelecimento de contextos fáticos diversos para cada conduta, ou seja, o porte e o disparo ocorram em uma mesma conjuntura. APL n.º 0010632-52.2015.8.26.0037, TJSP , Rel. Des. Gilber to Ferr eira da Cruz, DJe 17/1 1/2017 Entretanto, embora comprovado o fato objetivo descrito no tipo penal do artigo 14 da Lei nº 10.826/03, é inconteste a sua absorção pelo crime do artigo 15 da referida Lei especial, pois os dois delitos atingem o mesmo bem juridicamente tutelado, qual seja, a incolumidade pública pertencente ao mesmo sujeito passivo: coletividade. Assim, o delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido praticado por (...) fica absorvido pelo crime de disparo de arma de fogo. Satisfeitas as exigências do princípio da consunção no conflito apar ente de normas. Isso em razão daquele ser meio ou instrumento para a perpetração deste último crime de maior gravidade. CAPÍTULO 3 NÃO DECLARAR O IMPOSTO DE RENDA CONSTITUI CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA? O crime de omitir informações às autoridades fazendárias a fim de suprimir tributos está previsto no art. 1º, I, da Lei 8.137/90, o qual assevera que: Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias. Ocorre que há grande debate se a omissão nesse caso se configura (i) quando o agente declara o imposto, mas omite informações a fim de suprimir o tributo, ou (ii) se o simples fato de não fazer a declaração, por exemplo do Imposto de Renda, já é o suficiente para ensejar o crime previsto na Lei 8.137/90. De fato, o legislador não foi muito claro, mas ao analisar de forma minuciosa o tipo penal em apreço, verifica-se que as condutas incriminadoras consistem, ipsis litteris, em (i) omitir informações (ou seja: informações eventualmente declaradas, porém, com alguma supressão), bem como (ii) prestar declaração falsa às autoridades fazendárias. Dessa forma, a não declaração de imposto de renda, em tese, não se amolda ao delito de sonegação de tributo – portanto, referida conduta é formalmente atípica. Há decisão recente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região bastante didática sobre o tema aqui trazido (APL n.º 0007036-77.2008.4.03.6181/SP, DJe 13/09/2018). No julgamento foram analisados dois anos calendários distintos (2003 e 2004). No ano de 2004 o agente não apresentou à Receita Federal os rendimentos da sua empresa; já no ano de 2003 o agente declarou o imposto de renda da pessoa jurídica à Receita, mas omitiu informações a fim de suprimir tributos. Qual foi o resultado? 2004: A conduta descrita na denúncia quanto ao ano-calendário 2004 é atípica, pois a omissão na entrega da PJSI 2005 não configura, por si só, a omissão fraudulenta descrita na norma penal. Com efeito, perfilho do entendimento de que a "omissão" da qual trata a norma penal somente se perfaz quando o contribuinte apresenta a declaração e nela omite as informações acerca dos fatos gerador es da obrigação tributária. (...) Isto porque, quando o contribuinte não entrega a Declaração da Pessoa Jurídica, não há falsidade, não há fraude, e o Fisco pode arbitrar o valor devido segundo a lei tributária, como, in casu, ocorreu. Conclui-se, portanto, que a conduta imputada à acusada é atípica em relação a não entrega da PJSI 2005, correspondente ao ano-calendário de 2004. 2003: No que tange ao ano-calendário de 2003, tem-se perfeitamente demonstrada a materialidade do crime do art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90. Com efeito, segundo restou apurado no bojo do processo administrativo fiscal nº 10880.07525/2008-65, houve redução de tributos mediante omissão de informação, na Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica, acer ca da r eceita auferida pelo contribuinte (...) Portanto, por meio dessa decisão do TRF3, não apresentar à Receita Federal a declaração dos rendimentos, por si só, não configura crime contra a ordem tributária. Consistiria, apenas, uma inadimplência perante o fisco. No entanto, essa questão não é tão simples. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região foi julgada uma situação bem semelhantecom a ilustrada acima (APL n.º 5005382-31.2010.404.7002, DJe 14/12/2012), todavia além de não declarar o imposto de renda, o agente não prestou informações à Receita Federal quando essa o intimou. Nesse caso, o agente foi condenado em primeira instância, mas o Tribunal (TRF4) reformou a decisão por entender que a conduta de não apresentar à Receita Federal os informes necessários não constitui o crime estampado na Lei 8.137/90, conforme se verifica por meio do voto do relator: O tipo penal exige o dolo genérico, consistente em uma conduta ativa ou omissiva de consciente sonegação fiscal, assim entendida a omissão de informação na declaração de rendimentos ou a prestação de informações falsas nessa declaração dirigida às autoridades fazendárias, bem como a inserção de elementos incorretos ou a omissão de operações fiscais nos livros e documentos exigidos pela lei fiscal, com o intuito de omitir ou reduzir a tributação. Entretanto, a não apresentação da declaração de Imposto de Renda, como soe ocorrer no caso, não constitui infração penal, mas mera infração tributária. O relator reconheceu a atipicidade do delito de ofício e julgou prejudicado o recurso de apelação do Ministério Público Federal. Irresignado com o acórdão proferido, o MPF interpôs recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 1390125/PR) alegando que pelo fato do agente não ter declarado o imposto, bem como por não ter prestado informações quando intimado pela Receita, o crime de sonegação de tributo mediante omissão estava devidamente configurado. Verifica-se excerto do recurso: não apenas não apresentou a declaração de imposto de renda relativa ao ano-calendário 1997, como omitiu informações devidas à autoridade fazendária a respeito da origem dos valores movimentados em suas contas-corr entes quando por ela intimado para tanto (conduta fraudulenta). Assim agindo, suprimiu tributos, na medida em que não recolheu valores devidos à título de Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF (inadimplemento). É imperioso que se reconheça que, na espécie, houve omissão de informação à autoridade fazendária em duas oportunidades: a primeira no momento em que o recorrido não apresentou a declaração anual do imposto de renda relativa ao ano-calendário 1997, que era devida; e a segunda ocorrida, quando regularmente intimado pelo Fisco para prestar esclarecimentos sobre a origem dos valores recebidos, passíveis de tributação, deixou transcorrer o prazo que foi assinalado sem manifestação. Resultado do julgamento? O ministro Felix Fischer, monocraticamente, deu provimento ao recurso especial. Muito embora o ministro tenha determinado que o TRF4 julgasse a apelação lá interposta (a apelação do MPF foi julgada prejudicada, uma vez que o relator reconheceu de ofício a atipicidade da conduta) ele entrou no mérito da questão e no voto restou consignado que: In casu, não há como se concluir pela ocorrência de mera infração tributária, eis que esta se verifica quando há intensão do autuado em saldar o débito fiscal constituído e, assim, as circunstâncias não o permite. O que se vê é a adequação típica imediata da conduta, valorada no acórdão combatido, ao art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/90. Ou seja: entendeu que o fato de o agente não ter declarado o imposto de renda seria o suficiente para configuração do crime em tela. Portanto, por meio dos precedentes dos Tribunais Regionais trazidos ao debate e pela análise feita no tipo penal estampado na Lei n.º 8.137/90, em tese, não configura crime contra a ordem tributária deixar de apresentar a declaração do imposto de renda; configura mera inadimplência perante o Fisco. No entanto, nota-se que a questão não é pacífica, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou de forma contrária, sobretudo quando o contribuinte devidamente intimado pelo órgão tributário fiscalizador se mantém inerte. CAPÍTULO 4 O CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Um dos mais importantes princípios em matéria criminal, sem dúvida alguma, é o da legalidade (anterioridade da lei penal). Não é à toa que além de estar previsto na Constituição Federal (art. 5º, XXXIX), também está estampado no primeiro artigo do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” . Isto é, para que um indivíduo seja responsabilizado penalmente pela prática de uma conduta, é preciso que a sua ação (ou omissão a depender do caso) esteja prevista em algum tipo penal de forma prévia. Sua função é limitar o poder punitivo do Estado a fim de evitar acusações arbitrárias; sem amparo legal. Paulo BONAVIDES[4] ensina que: O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se r eputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem r econhecidas. Exatamente! Não haveria como viver em uma sociedade se as regras não fossem claras e determinadas. Para o presente e-book é importante aclarar as quatro principais funções do princípio da legalidade, sendo elas: a) proibir a retroatividade da lei penal (caso um indivíduo pratique uma conduta, e esta seja posteriormente definida como crime pelo legislador, ele não poderá ser punido); b) não permitir a criação de crimes e penas por meio dos costumes; c) não permitir que a analogia seja utilizada para a criação de crimes ou para fundamentar e agravar penas; d) e proibir que o legislador crie tipos penais vagos e indeterminados. Ocorre que em razão da evolução incessante da sociedade (industrial, tecnológica, etc) e do grande aumento demográfico, o Direito Penal teve que se adequar às novas relações sociais, bem como tutelar diversos bens jurídicos, que até então, sequer existiam. Dessa forma, a fim de dar resposta a inúmeras situações distintas, o legislador acabou falhando ao criar alguns tipos penais muito abertos, como exemplo: o crime de gerir temerariamente instituição financeira. GESTÃO TEMERÁRIA Aludido crime está previsto no art. 4º, § único, da Lei .º 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro): Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. O que se qualificaria como temerário? Afinal, em qual diploma encontramos esse conceito? Não se sabe, uma vez que o legislador não diz. Muito embora este crime seja considerado uma norma penal em branco, não há norma secundária que permita encontrar o conceito necessário. O agente não sabe o que pode ou não fazer para evitar que seja acusado pelo crime em apreço, pois o legislador não respeitou uma das principais funções do princípio da legalidade: a de proibir a criação de tipos penais vagos e indeterminados. Na prática, quem define as possíveis condutas temerárias é o Banco Central do Brasil. Por exemplo: o gerente de um banco privado está sendo investigado, pois supostamente teria gerido de forma temerária a instituição financeira onde ele trabalhava. Durante as investigações, por requisição do Ministério Público ou da Autoridade Policial, é expedido ofício à instituição para que os analistas responsáveis emitam um parecer sobre a conduta do investigado. Assim, eles irão consignar no documento se a conduta deste foi temerária ou não. Neste caso, o legislador não definiu a norma secundária, a qual deveria informar o conceito de “temerário”. Quem faz isso, conforme se verifica acima, é o Banco Central – autarquia federal. Dessa forma, o crime de gestão temerária previsto na Lei de crimescontra o sistema financeiro nacional não está constitucionalmente amparado, pois viola frontalmente o princípio da legalidade. Não há lógica deixar nas mãos do Banco Central o papel de decidir se o agente praticou crime. Desse modo, salta aos olhos a insegurança jurídica que essa situação causa. Por fim, são válidas as lições do desembargador Guilherme de Souza NUCCI[5]: Temerário significa arriscado, perigoso e imprudente. O termo é extremamente vago e aberto. Pensamos ofender o princípio da taxatividade e, por consequência, a legalidade. Exige o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que “não há crime sem lei anterior que o defina...” (grifamos). Ora, a doutrina é praticamente unânime ao apontar, como corolário dessa definição, seja ela bem-feita, com detalhes suficientes para ser bem compreendida por todos, vale dizer, os tipos penais incriminadores necessitam ser taxativos. Está bem longe de atingir esse objetivo o crime previsto no art. 4º parágrafo único, da Lei 7.492/86. É inconstitucional, portanto. Todavia, o entendimento dos Tribunais Superiores não é esse: Para parcela da doutrina, a indeterminação do termo levaria à inconstitucionalidade do tipo penal, por ofensa ao princípio da legalidade. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal tem se deparado com a aplicação do tipo penal desde a edição da lei, há 30 anos, e jamais reconheceu a sua inconstitucionalidade (...). Devendo ser admitida, destarte, a constitucionalidade do tipo penal, a saída que se apresenta, para compreendê-lo como válido, é submetê-lo a uma “interpr etação conforme” à Constituição, através de uma redução teleológica do seu campo de incidência. Para tanto, é preciso afastar da incidência da norma penal os casos que se encontrem cobertos pelo risco permitido na esfera da atividade financeira. Desse modo, a contrario sensu, deve-se entender que o tipo penal de gestão temerária pressupõe a violação de deveres extrapenais. (Resp n.º 1613260, STJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 24/08/2016). Assim, ainda que parcela significativa da doutrina, composta por grandes autores, entenda que o crime de gestão temerária é inconstitucional, este continua, como se vê, válido perante os Tribunais. CAPÍTULO 5 PRODUTOS VENCIDOS EXPOSTOS À VENDA, POR SI SÓ, CONFIGURAM CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO? Os crimes contra as relações de consumo estão previstos no art. 7º da Lei 8.137/90. Entre eles, no inciso IX, encontra-se o crime de vender produtos em condições impróprias: Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: (...) IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo; Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa. Mas, o que seriam condições impróprias para consumo? Como se vê, trata-se de uma norma penal em branco, ou seja: para verificar quando o crime de fato está configurado é preciso procurar a complementação em outro diploma, e no caso em tela, devemos consultar o Código de Defesa do Consumidor (art. 18, § 6º, inciso I): Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. (...) § 6° São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos. Seguindo as diretrizes do Código de Defesa do Consumidor, uma das hipóteses de produtos impróprios ao consumo está relacionada com a questão temporal, isto é, quando o produto está vencido. No entanto, ainda nos cabe outro questionamento - o qual é o foco deste artigo: o simples fato do produto estar vencido possui o condão de ensejar o crime contra as relações de consumo? A resposta só pode ser negativa, em razão de 2 (dois) grandes motivos: O primeiro deles é por conta do caráter subsidiário do Direito Penal, pois este só pode e deve ser acionado quando outros ramos do Direito, que também exercem a função de controle social (ex.: Direito Civil, Direito Administrativo, etc), falham. Conforme acima mencionado, o Código de Defesa do Consumidor possui mecanismos capazes de controlar a exposição de produtos vencidos à venda. Assim, não se justifica o acionamento do ramo mais invasivo do Direito apenas pela questão relacionada ao prazo de vencimento. Roxin discorre de forma pontual sobre essa característica: A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos. (ROXIN, Claus. Derecho penal, t. I, p. 65. - g.n.). O segundo motivo é que para a configuração do crime previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei 8.137/90, não basta que a mercadoria exposta à venda esteja com o prazo de validade expirado. É de suma importância a realização de laudo pericial a fim de constatar se o produto está adequado ao consumo ou não, pois como o crime em apreço deixa vestígios, a perícia é imprescindível (art. 158 do Código de Processo Penal). Esse é o entendimento dos Tribunais Superiores, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê abaixo: DECISÃO PROFERIDA PELO MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK NOS AUT OS DO RHC N.º 91.502/SP: Com efeito, esta relatoria não ignora que a jurisprudência do STJ oscilou acerca do tema, todavia tem se firmado no sentido de que o delito de expor à venda produtos impróprios para o consumo deixa vestígios, razão pela qual a perícia é indispensável para a demonstração da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do CPP. Assim, a ausência de perícia autoriza o trancamento da ação penal por falta de justa causa. (...) Como se vê, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência no sentido de que para a configuração do delito descrito no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 é indispensável a realização de perícia que demonstre a impropriedade dos alimentos para consumo, sob pena de configuração de responsabilidade objetiva. Nessa esteira, carece de justa causa a ação penal proposta pelo Ministério Público sem exame pericial, circunstância que autoriza o trancamento da ação penal. (...) Ante o exposto, voto pelo provimento do recurso ordinário em habeas corpus para determinar o trancamento da Ação Penal. (RHC n.º 91.502/SP, STJ, rel. min. Joel Ilan Paciornik, DJe 01/02/2018). DECISÃO PROFERIDA PELO MINISTRO ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ NOS AUT OS DO RHC N.º 69.692/SC: Na espécie, o laudo pericial que serviria à aferição da possibilidade de lesão (ou risco de lesão) à saúde humana, dos gêneros alimentícios apreendidos no estabelecimento comercial administrado pelo recorrente nem sequer foi produzido. Inexistente, portanto , prova direta, necessária, in casu, à conformação dos fatos ao elemento objetivo do tipo – produto "impróprio para o consumo" –, reserva-se apenas ao Direito Administrativo ou Civil eventual responsabilização e punição pelo descumprimento de normas relativas à conservação e exposição, para venda, de gêneros alimentícios. Afinal, o violador da proteção devida ao consumidor poderá não sair ileso nessas esferas, porque ali pode ser responsabilizado objetivamente por eventuais danos ao consumidor e, ainda, multado administrativamente, o que se mostra eficaz e, o mais importante, mais consentâneo com o sistema jurídico pátrio.(...) Portanto, in casu, concluo pela existência de constrangimento ilegal, consubstanciado na ausência de prova da materialidade delitiva, uma vez que sequer produzido laudo pericial para atestar a impropriedade dos alimentos. É insuficiente a ilação de que os produtos apreendidos são impróprios para o consumo humano com esteio em características sensoriais comuns ou, exclusivamente, em virtude da ausência de informações obrigatórias de rotulagem (como denominação do produto, prazo de validade, data de fabricação/fracionamento), e não, como exigido, por aferição técnica, direta, acerca da impropriedade da mercadoria para o consumo.” (RHC n.º 69.692/SC, STJ, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 13/06/2017). Portanto, ainda que o crime em debate seja formal - não depende da ocorrência de efetivo prejuízo ao consumidor -, é necessário averiguar, por meio de laudo pericial, a impropriedade da mercadoria, pois só assim será possível verificar a materialidade do delito. Ações penais iniciadas em desacordo com o entendimento citado estão enraizadas na famigerada responsabilidade objetiva, ou seja, são ilegais! CAPÍTULO 6 CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PODEM SER CONSIDERADOS INSIGNIFICANTES? O Direito Penal brasileiro adotou o conceito analítico de crime tripartido, isto é: fato típico, antijurídico e culpável. Para o presente debate o elemento mais importante é o primeiro, pois é nele que se encontra a tipicidade. Esta se divide em formal e material. Representam, respectivamente, a adequação do fato ao tipo penal, e a adequação do fato ao tipo de injusto, ou seja, se a conduta do agente é capaz ou não de lesar o bem jurídico tutelado. Pois bem, o Direito Penal é regido por diversos princípios, os quais possuem a finalidade de limitar o poder punitivo do Estado. Entre esses, temos o famigerado princípio da insignificância, que possui o condão de afastar a tipicidade material do fato, quando a conduta do agente não possui capacidade de lesar de forma expressiva o bem jurídico tutelado – não se pode esquecer que o Direito Penal possui caráter fragmentário, bem como subsidiário, assim, nem sempre deve ser aplicado. Por isso, muitos doutrinadores afirmam que o princípio da insignificância é corolário de aludidas características. A título ilustrativo, segue hipotético caso: João estava em um conhecido hipermercado consolidado em todo o território nacional na cidade onde reside, após verificar que ninguém estava o supervisionando, subtraiu para si um litro de óleo de cozinha e se evadiu do local. Assim que saiu da loja, em razão do sistema de câmeras, foi surpreendido pelos seguranças, que chamaram a polícia. João foi preso em flagrante. Seguindo a linha do princípio da insignificância, criado por meio da doutrina e jurisprudência, seria juridicamente correto condenar o João pelo crime de furto (art. 155 do Código Penal)? A resposta só pode ser uma: não! Ao analisar o caso, verifica-se que a conduta praticada por João não possui potencial para lesar o patrimônio de um hipermercado com estrutura em todo o país, dessa forma, a tipicidade material não foi configurada. Isso porque os vetores necessários à aplicação do princípio da insignificância foram devidamente preenchidos no caso ilustrado, os quais, conforme já reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF, HC 84.412- 0/SP, Min. Celso de Mello, DJU 19/11/2004), são: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Indaga-se: preenchidos referidos vetores o princípio da insignificância pode/deve ser aplicado a todo e qualquer crime? Deveria. No entanto, não é assim que os Tribunais têm entendido, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça, que por meio da súmula 599, afirmou que “o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública” . Um dos casos que serviu de paradigma para este entendimento foi o debatido nos autos do HC n.º 274.487/SP (STJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJE 15/04/2016), o qual asseverou: o crime foi cometido contra sociedade de economia mista estadual (SABESP), ou seja, contra a administração pública indireta, o que configura reprovabilidade suficiente a justificar a intervenção estatal por meio do pr ocesso penal. Não se pode olvidar que os fundamentos utilizados pela egrégia Corte Cidadã para não aplicar o princípio da insignificância no crime praticado contra a Administração Pública são louváveis, pois de fato a moral administrativa deve ser imperiosamente resguardada. Mas, para isso, princípios basilares do Direito Penal clássico, conquistados ao longo dos anos, não deveriam ser violados. Ademais, para este debate, é muito válido, ainda, o seguinte raciocínio: no precedente acima mencionado (HC n.º 274.487/SP do STJ), o qual, repise- se, também foi utilizado como base para a edição da súmula 599 do STJ, versou sobre o caso de um indivíduo que foi condenado à pena de 9 meses e 10 dias por ter furtado um holofote, avaliado em R$ 100,00, das dependências da SABESP – sociedade de economia mista. Até que ponto se justifica acionar o Direito Penal, levando-se em conta sua onerosidade, para responsabilizar um agente que praticou um crime de furto conta a administração pública, sendo que o prejuízo não foi capaz de gerar dano ao bem jurídico tutelado? Não é preciso muito esforço para perceber que isso não faz sentido. Isso porque além de violar um princípio do Direito Penal, a aplicação dessa súmula de forma automática também viola princípios que regem todo o ordenamento jurídico, como exemplo, o princípio da economia processual – gastou-se muito para punir o agente que lesou tão pouco, para não dizer nada. Noutro giro, encontra-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Este entende que o simples fato de ter sido praticado um crime contra a administração pública não é o suficiente para afastar a aplicação do princípio da insignificância. Deve-se analisar caso a caso, a fim de garantir o caráter fragmentário do Direito Penal (HC n.º 112.388, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 21/08/2012). Verifica-se excerto do voto do relator: eu levo em consideração o fato de que a própria administração pública desconsidera maiores prejuízos a seu patrimônio mesmo, em relação a tributos, para descaracterizar , por atipicidade, certos crimes, à conta de insignificância da ação. Eu acho que o caso é análogo. Portanto, como se vê, a matéria não possui um entendimento pacificado perante os Tribunais. Todavia, a posição do Supremo Tribunal Federal condiz muito mais com a realidade jurídica do nosso sistema. Ou seja: o princípio da insignificância não deve ser automaticamente afastado quando há pratica de crime contra a administração pública. É necessário analisar as peculiaridades de cada caso. CAPÍTULO 7 A AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES QUE RATIFICAM O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA Com o advento da Lei 11.719/2008 o Código de Processo Penal sofreu diversas mudanças, sobretudo nos procedimentos processuais. A partir das alterações trazidas pela referida Lei, foi concedido ao acusado, após o recebimento da denúncia, à oportunidade de apresentar a resposta à acusação (arts. 396 e 396-A do CPP), na qual pode ser alegado tudo o que interesse para sua defesa, inclusive juntar documentos, especificar as provas que pretende produzir, bem como arrolar testemunhas. Depois de apresentada a resposta à acusação, os autos do processo são encaminhados ao juiz competente para que ele analise as matérias aventadas pela defesa e verifique se é ou não o caso de dar prosseguimento à ação penal, isto é: verificar se há justa causa; se não é o caso de absolver o réu sumariamente; se a denúncia de fato está devidamente elaborada (art. 41 do CPP); etc. Feito isso, se o magistrado entender por bem que as matérias alegadas pela defesa do acusado não devem ser acolhidas, ele deve ratificar o recebimento da denúncia fundamentando o porquê que as teses nãodevem ser acolhidas, em homenagem ao princípio da motivação das decisões judiciais estampado no art. 93, IX, da Constituição Federal: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Ocorre que na prática o juiz nem sempre fundamenta a decisão que ratificou o recebimento da denúncia. Na maioria das vezes, se limita em afirmar que por não ser o caso de absolver sumariamente o acusado, deve-se manter o recebimento da denúncia realizado às fls. “XX”, uma vez que há indícios de autoria e materialidade, bem como designa audiência de instrução. É inequívoco que essa prática está totalmente destoada do que prevê a legislação, principalmente após as mudanças legislativas trazidas por meio da Lei n.º 11.719/2008. Não é à toa que o legislador se preocupou em conceder ao réu a oportunidade de apresentar a resposta à acusação depois que a denúncia é recebida pelo juiz, esse direito visa garantir a ampla defesa e também dar a chance de o acusado mostrar ao magistrado que a acusação que pesa em seu desfavor não condiz com a realidade fática. Assim, caso o juiz de base entenda por bem dar prosseguimento ao feito, ele deve fundamentar por qual motivo as teses aventadas pela defesa estão sendo afastadas. A decisão que ratifica o recebimento da denúncia é tão importante quanto a que a recebeu pela primeira vez. A resposta à acusação não pode ser vista como mera formalidade; não pode ser tratada como uma peça que possui a única finalidade de arrolar as testemunhas da defesa. A resposta à acusação deve ser minuciosamente analisada pelo juiz competente, pois só assim poderá ser verificada a necessidade de dar andamento ao processo criminal. Sobre a importância da decisão que analisa a resposta à acusação, é válido citar trecho de um brilhante voto proferido pelo ministro Teori Zavascki – in memorian: A decisão que aprecia a resposta à acusação prevista no art. 396-A do CPP é, sem dúvida alguma, de suma importância para o resguardo de direitos fundamentais do denunciado. É que nesse momento processual a defesa está autorizada a invocar, desde logo, questões aptas a impedir o seguimento de um processo criminal temerário (STF, RHC 120267 / SP, rel. Min. Teori Zavascki, DJ 18/03/2014) Exatamente! É nesse momento que o juiz terá condições de verificar a necessidade de manter a acusação que pesa em desfavor do denunciado, por isso a análise deve ser devidamente feita e a decisão suficientemente fundamentada. Caso isso não ocorra, na prática o melhor caminho a ser tomado é a impetração de habeas corpus ao Tribunal de Justiça competente e, se porventura a ilegalidade for chancelada pelos desembargadores, o defensor deverá recorrer aos Tribunais Superiores (STJ e STF). Por fim, seguem precedentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a intenção de ilustrar situações em que os desembargadores reconheceram a nulidade de decisões que ratificaram o recebimento da denúncia de forma desfundamentada: HC N.º 2100527-38.2014.8.26.0000 A decisão é padronizada, limitando-se a afirmar que os argumentos defensivos carr eados nas defesas preliminares não autorizam a absolvição sumária. Sua simplicidade subverte o sistema processual por ignoraras teses defensivas da resposta à acusação, violando a garantia do devido processo legal e negando vigência ao rito processual delineado pela reforma operada pela Lei 11.719 de 2008. (...) A ratificação do recebimento da denúncia, portanto, é decisão de conteúdo decisório (já que não se pode cogitar “decisão que não decide”) e, como tal, deve ser devidamente fundamentada por mandamento constitucional: artigo 93, IX (“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”). Considero inadequado equiparar decisão que aprecie manifestação defensiva em que se pode “ar guir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arr olar testemunhas [...]” (artigo 396-A do Código de Processo Penal) a um despacho de mero expediente. Fosse assim, a manifestação defensiva seria completamente inútil. (...) Em face do exposto, concedo a ordem para anular a decisão que ratificou o recebimento da denúncia por falta de fundamentação, determinando a prolação de outra em seu lugar, analisand o, ainda que de forma concisa, todas as teses aduzidas por todas as defesas. (HC n.º 2100527- 38.2014.8.26.0000, TJSP, Des. Rel. Otávio de Almeida Toledo, DJe 22/08/2014) HC N.º 0038937-60.2015.8.26.0000 A esta altura, imperioso salientar que, de acordo com a nova sistemática processual, o direito à resposta preliminar conferido à defensoria tem como contrapartida o dever do magistrado de apreciar, fundamentadamente, as preliminares e alegações nela contidas. (...) Dessarte, forçoso reconhecera nulidade do feito, em virtude da ausência de fundamentação do despacho que negou a absolvição sumária. (...) Ante o exposto, concede-se a presente ordem, a fim de anular o feito originário, a partir da decisão que ratificou o recebimento da denúncia (fls. 67), para que outra seja proferida, apreciando-se as teses expendidas em defesa preliminar. (HC n.º 0038937- 60.2015.8.26.0000, TJSP, Rel. Min. Guilherme G. Strenger, DJe 16/09/2015) CAPÍTULO 8 A ACUSAÇÃO PODE IMPETRAR MANDADO DE SEGURANÇA A FIM DE MANTER O ACUSADO PRESO? Nos termos do art. 127 da Constituição Federal o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, sendo que uma das principais atribuições concedidas a ele é a competência privativa de promover a ação penal pública (art. 129, I, CF). Por ser o titular da ação penal pública, o MP possui as seguintes responsabilidades: de requisitar a instauração de inquérito policial; instaurar Procedimento Investigatório Criminal (essa questão é muito debatida, no entanto o STF já se manifestou no sentido de ser possível a investigação por parte do Órgão acusador); oferecer denúncia; requerer medidas cautelares; recorrer; entre outras. No entanto, durante o “jogo” processual nem todas as jogadas são permitidas por parte do MP. Por exemplo: durante o processo criminal, o juiz, após analisar o requerimento de revogação de prisão preventiva apresentado pela defesa, acolhe o pleito e determina que seja expedido alvará de soltura em favor do acusado que já estava preso há vários meses, por entender, em suma, que os requisitos ensejadores do enclausuramento prematuro (art. 312 do CPP) haviam desaparecido. Irresignado com a decisão proferida pelo juiz, o promotor de justiça oficiante interpõe recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581 do Código de Processo Penal, a fim de que a prisão preventiva do acusado seja reestabelecida. Concomitante a isso, o representante do Parquet impetra ao Tribunal de Justiça do Estado competente mandado de segurança, distribuído por dependência ao Desembargador Relator do RESE, com a intenção de dar efeito suspensivo ao recurso interposto – referido efeito seria para evitar a eficácia/aplicabilidade da decisão recorrida, assim, enquanto o recurso não fosse julgado o acusado não seria colocado em liberdade. Ocorre que, com exceção das hipóteses previstas no art. 584 do CPP, o RESE possui apenas o efeito devolutivo misto, isto é: “há efeito duplo, pois permite que o juiz a quo possa reexaminar sua própria decisão e, caso a mantenha, o recurso será remetido para o tribunal ad quem.” (Aury LOPES JR.[6]) Ou seja: tendo em vista que a decisão que revoga prisão preventiva não está presente nas hipóteses do art. 584 do CPP, a estratégia utilizadapela acusação não está correta, uma vez que não possui amparo jurídico. Contudo, na prática isso nem sempre é tão simples assim, pois diversas vezes o MP já logrou êxito em conceder efeito suspensivo ao RESE, a fim de manter o acusado preso preventivamente enquanto o recurso interposto não fosse julgado pelo Tribunal ad quem. Assim, cabia a defesa, diante dessa ilegalidade, impetrar habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça para cassar a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça competente, o qual conferiu o efeito suspensivo ao RESE em sede de mandado de segurança. Isso porque o mandado de segurança é remédio constitucional utilizado pelo cidadão para impedir a prática de abusos e ilegalidades por parte do Estado (quando não seja sanável pelo habeas corpus ou habeas data), ou seja, é uma medida pró-cidadão, e não o contrário! Permitir a utilização de mandado de segurança para manter a prisão do acusado seria distorcer as regras e normas previstas em todo sistema constitucional. Nesse sentido, importante citar precedente bastante didático da ministra Maria Thereza de Assis Moura: Da atenta leitura dos autos, não obstante as inflamadas teses sobre o cabimento ou não da prisão domiciliar na hipótese em liça, ao que cuido, quaestio outra emerge do caderno processual. De fato, situação que se me apresenta é o exame da possibilidade de se conceder efeito suspensivo a recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público. O artigo 584 do Código de Processo Pena l estatui, como regra, que o recurso em sentido estrito será recebido apenas no seu efeito devolutivo, somente lhe sendo atribuído o efeito suspensivo em casos de perda da fiança, de concessão de livramento condicional, da decisão: i) que denegar a apelação ou julgá-la deserta, ii) sobre a unificação de penas, iii) que converter a multa em detenção ou em prisão simples; sendo que o caso vertente não figura nessas hipóteses legais. Ademais, não se mostra desapercebido que o manejo do mandado de segurança ministerial no Tribunal local ocorreu em 18.3.2017 (fls. 14/26) - dois dias antes da interposição do recurso em sentido estrito naquela Corte (fls. 56/66) -, sendo que o ajuizamento de petição no writ, requestando o efeito suspensivo ao recurso stricto sensu, data de 20.3.2017 (fls. 53/55), mesmo dia da decisão liminar monocrática aqui vergastada. Diante dessas considerações, inconteste que dado proceder do Par quet causa espécie. (...) Observe-se, inclusive, que esta Corte Superior tem proferido entendimento no sentido de não ser cabível a impetração de mandado de segurança pelo Par quet para conferir efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito interposto contra decisão que deferira liberdade ao réu. Conclui-se, portanto, que o decisum do Desembargador do Tribunal de origem, data maxima venia, destoa dos precedentes deste Superior Tribunal de Justiça. Dessarte, sobressai o fumus boni iuris e o periculum in mora a autorizar o deferimento da medida de urgência, inclusive superando-se a mens do enunciado sumular n.º 691 da Suprema Corte, visto que, no presente caso, o constrangimento ilegal manifesta-se dos autos. (HC n.º 392.806, STJ, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 28.03.2017) Como se vê no precedente transcrito, o art. 584 do Código de Processo Penal prevê, como regra, hipóteses limitadas para concessão de efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito, sendo certo que decisão que revoga prisão preventiva não está entre aludidas hipóteses. Por fim, importante consignar que essa matéria foi debatida por tantas vezes perante o Superior Tribunal de Justiça que já foi devidamente sumulada: Súmula 604-STJ: O mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público. (STJ. 3ª Seção. Aprovada em 28/2/2018, DJe 5/3/2018) CAPÍTULO 9 HABEAS CORPUS: SUPERANDO A SÚMULA 691 DO STF Nos termos da súmula 691 do STF, “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus r equerido a tribunal superior , indefere a liminar.” Essa regra também se aplica no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, se o advogado impetrar um habeas corpus ao STJ contra decisão monocrática proferida por desembargador que indeferiu pedido liminar, o ministro que receber essa impetração irá indeferi-la liminarmente com fundamento na súmula 691 do STF (não irá processar/receber o HC). Ocorre que essa limitação é bastante prejudicial à defesa, pois em razão da demanda processual os Tribunais Superiores têm demorado muito para conseguir pautar em julgamento os habeas corpus lá impetrados. Por exemplo: durante a marcha processual o advogado criminalista observa que ocorreu uma nulidade extremamente prejudicial no processo, diante disso impetra ordem de habeas corpus ao Tribunal do Estado competente a fim de sanar o constrangimento ilegal. Após alguns dias da impetração o relator do HC indefere o pedido liminar e requisita informações ao Juízo apontado como autoridade coatora, com a finalidade de dar prosseguimento aos trâmites do HC e futuramente, em conjunto com os demais desembargadores, analisar o mérito da impetração (nesse caso a nulidade apontada no processo). Com base na súmula 691 do STF a única medida a ser tomada diante desse quadro seria aguardar o julgamento do mérito, o que pode demorar meses! Seria essa a postura mais adequada do defensor? A depender do caso não! Isso porque se o objeto da impetração for contra uma ilegalidade flagrante o STJ e o STF têm admitido o afastamento do preceito sumular em debate com a finalidade de sanar o constrangimento ilegal que pesa em desfavor do paciente. Assim, no exemplo ilustrado anteriormente, o advogado deve impetrar uma nova ordem de habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça, ainda que contra decisão monocrática que indeferiu pedido liminar, para que a ilegalidade evidente seja sanada. Nessa nova impetração é de suma importância que seja elaborado um tópico próprio demonstrando os motivos pelos quais a súmula deve ser superada. Isto é, não basta o advogado simplesmente transportar a matéria do primeiro HC ao Tribunal Superior. Ele deve aclarar ao ministro o porquê que a matéria merece ser analisada, explicar de forma minuciosa os principais pontos da ilegalidade praticada pelo Juízo coator, repise-se, por meio de um tópico específico, pois só assim o ministro terá substrato suficiente para superar o entendimento da súmula 691 do STF. Importante consignar que a regra é a aplicação da súmula, por isso que o advogado deve demonstrar de forma contundente por qual motivo o ministro poderá, excepcionalmente, afastá-la. E mais: quando se trata de habeas corpus que busca a liberdade do cliente (como exemplo: contra a decretação desfundamentada de uma prisão preventiva), esse cenário é ainda mais delicado, uma vez que enquanto a matéria não é analisada pelas instâncias superiores o cliente continuará suportando um decreto preventivo ilegal. Com a finalidade de exemplificar situações em que os Tribunais Superiores afastam aludida súmula, seguem decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que conheceram habeas corpus ainda que impetrados contra decisões que indeferiram pedidos liminares: DECISÃO PROFERIDA PELO MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ NOS AUT OS DO HC N.º 477.091 (STJ, DJE 31/10/2018) alega sofrer coação ilegal no seu direito de locomoção, em decorrência de decisão proferida por Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que indeferiu o pedido de liminar formulado em seu favor (...). Consta dos autos que o paciente foi preso em flagrante como incurso no art. 1º da Lei n. 12.850/2013 em 23/10/2018 e permanece "sem qualquer decisão homologatória e avaliação da legalidade do flagrante por autoridade judicial e/ou sem qualquer previsão para realização de audiência de custódia" (fl. 4). Neste writ, a defesa sustenta que "o Desembargador (ora autoridade Coatora), se mostrou omisso às ilegalidades,em especial a inexistência de decisão fundamentada (ainda que minimamente) acerca da análise do procedimento do flagrante e a suposta manutenção da custódia, tornado a situação totalmente ilegal" (fl. 5). (...) Inicialmente, destaco que as matérias aventadas nesta ordem de habeas corpus não foram objeto de análise pelo Tribunal a quo, ficando, assim, impedida sua admissão, sob pena de indevida supressão de instância. Nesse sentido é o disciplinamento do enunciado da Súmula n. 691 do Supremo Tribunal Federal: "não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de 'habeas corpus' impetrado contra decisão do relator que, em 'habeas corpus' requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar. O referido impeditivo é ultrapassado tão somente em casos excepcionais, nos quais a evidência da ilegalidade não escapa à pronta percepção do julgador, como ocorre no caso em exame. (...) À vista do exposto, defiro o pedido liminar, para relaxar a prisão em flagrante do autuado, cuja precariedade não permite sua subsistência por tantos dias. DECISÃO PROFERIDA PELO MINISTRO DIAS TOFF OLI NOS AUTOS DO HC N.º 135.926 (STF , DJE 02/08/2016): Os impetrantes sustentam, inicialmente, que é o caso de superação da Súmula 691 desta Suprema Corte, “já que o indeferimento do provimento liminar na impetração em sede do Superior Tribunal de Justiça se enquadra nas hipóteses ensejadoras do afastamento sumular” (pág. 5 do documento eletrônico 1). No mérito, alegam que “a questão cerne do habeas corpus cinge-se à nova interpretação deste Excelso Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de início da execução penal após o julgamento de 2ª instância pelos Tribunais de Apelação” (pág. 6 do documento eletrônico 1). (...) Como tenho reiteradamente afirmado, a superação da Súmula 691 do STF constitui medida excepcional, que somente se legitima quando a decisão atacada se mostra teratológica, flagrantemente ilegal ou abusiva. No caso sob exame, verifico estar-se diante dessa situação, apta a superar o entendimento sumular, diante do – à primeira vista - flagrante constrangimento ilegal a que está submetido o paciente. Passo, então, ao exame do pedido de medida liminar. A concessão de medida liminar se dá em casos particularíssimos, nos quais se verifique, de plano, o fumus boni iuris e o periculum in mora. Na anál ise que se faz possível nesta fase processual, entendo que se mostram presentes tais requisitos. (...) Assim, diante de tudo quanto exposto, e examinados os documentos coligidos aos presentes autos, constato, ainda que em juízo de mera delibação, a plausibilidade jurídica da pretensão cautelar sob análise. Destarte, defiro o pedido de medida liminar para suspender, integral e cautelarmente, a execução provisória das penas impostas ao ora paciente na Ação Penal. Por fim, ainda em relação ao exemplo citado anteriormente, caso o advogado não consiga sanar a ilegalidade flagrante ocorrida no processo de origem, nessa nova impetração é viável elaborar um pedido alternativo requerendo ao ministro do STJ que este determine que o Tribunal estadual paute com urgência o HC lá impetrado, em razão da demora excessiva. CAPÍTULO 10 A INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS À LUZ DO SISTEMA CROSS EXAMINATION Com o advento da Lei n.º 11.690/08 o Código de Processo Penal passou por diversas alterações, sobretudo em relação à produção de provas. Para o presente artigo a mudança que nos interessa é a referente ao procedimento de inquirição das testemunhas. Antes da chegada da aludida Lei o advogado, bem como o representante do Ministério Público tinham que requerer a pergunta que gostariam de fazer ao juiz que estava presidindo a audiência, para que este a formulasse à testemunha: Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida. Ou seja, o sistema que predominava antigamente era o presidencialista - a inquirição das testemunhas, seja da defesa ou da acusação, era realizada de forma indireta, uma vez que não competia às partes elaborar a questão diretamente às testemunhas, mas sim ao juiz. Uma das grandes críticas que rodeavam o sistema presidencialista é de que os princípios da ampla defesa e do contraditório eram por diversas vezes violados, pois nem sempre o magistrado transmitia para testemunha a pergunta da mesma forma que a parte requereu o que gerava, por consequência, respostas que não corroboravam com a tese sustentada pelas partes. Com a mudança legislativa de 2008 as perguntas passaram a ser feitas diretamente pelas partes, isto é: o promotor de justiça e a defesa fazem as perguntas para as testemunhas sem a necessidade de requerer ao juiz; as partes elaboram a indagação diretamente às testemunhas. Esse sistema ficou conhecido como cross examination e está previsto no art. 212 do Código de Processo Penal: Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida: Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. Assim, depois de instalada a audiência de instrução o juiz deve passar a palavra às partes para que elas possam formular as perguntas diretamente às testemunhas. Mas, se houveram pontos não esclarecidos, o juiz poderá, ao final, formular perguntas a fim de sanar qualquer dúvida gerada durante a inquirição. O professor Aury Lopes Jr.[7] explica que: tal cenário está muito longe de colocar o juiz como uma “samambaia” na sala de audiência, como chegaram a afirmar maldosamente alguns, no pós-reforma, demonstrando a virulência típica daqueles adeptos da cultura inquisitória e resistentes à mudança alinhada ao sistema constitucional acusatório. Nada disso. O juiz preside o ato, controlando a atuação das partes para que a prova seja produzida nos limites legais e do caso penal. Ademais, poderá fazer perguntas sim, para complementar os pontos não esclarecidos. Jamais se disse que o juiz não poderia perguntar para as testemunhas na audiência! No entanto, na prática esse procedimento nem sempre é respeitado. Muitas vezes o magistrado esgota as perguntas de início e somente depois passa a palavra às partes, distorcendo, assim, a natureza acusatória do processo penal. Quando isso ocorrer o que deve ser feito? A não observância a qualquer procedimento previsto no Código de Processo Penal acarreta a nulidade do ato, portanto, se o juiz que estiver presidindo a audiência não respeitar a regra do art. 212 do referido diploma legal o advogado deverá requerer a nulidade da oitiva. É de suma importância que o advogado esteja atento quando isso ocorrer, uma vez que os Tribunais Superiores têm firmado o entendimento de que a nulidade não alegada no momento oportuno é atingida pelo instituto da preclusão. Por exemplo: se o advogado deixar para impugnar a forma em que as perguntas foram feitas somente ao final do processo e sem que tenha registrado o inconformismo na ata de audiência, ele não conseguirá anular a oitiva realizada de forma incorreta – a impugnação deve ser feita imediatamente. E mais, tendo em vista que se trata de nulidade relativa e em observância ao princípio da pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), não basta o advogado requerer a nulidade no momento oportuno, mas deve esclarecer, ainda, o porquê que a não observância ao procedimento correto (perguntas feitas diretamente à testemunha) prejudicou o direito de defesa, senão dificilmente conseguirá a nulidade pleiteada. Malgrado a Lei 11.690/08 tenha alterado esse procedimento há 10 anos, essa ainda é uma questão que gera muita discussão até mesmo entre juízes que compõem o colegiado do Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica por meio do julgamento do HC n.º 111.815 (DJe 14/02/2018): O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Ministro Marco Aurélio,só para eu entender. Normalmente o juiz faz perguntas complementares depois das perguntas das partes? O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Depois da reforma; antes era pr esidencial, era o juiz mesmo. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Certo. Portanto, aqui, a insurgência é contra a Juíza ter formulado as perguntas anteriormente às partes. Essa ordem dos fatores altera o pr oduto? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Altera. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Eu estou conversando verdadeiramente, para ouvir opinião. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Altera substancialmente. O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES - Eu fiz milhares de audiências como promotor criminal, altera substancialmente a correlação de forças. Na verdade, dependendo de como é o magistrado instrutor, ele ignora, depois, totalmente as outras perguntas é já, como se fosse um ato... Não era nem pr esidencial antes, era ditatorial. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Se for assim, fará diferença. No referido julgamento a oitiva da testemunha feita de forma incorreta foi declarada, por maioria de votos, insubsistente. Portanto, o advogado deve ficar muito atento com a forma que o juiz conduz a audiência, pois se o procedimento previsto no art. 212 do Código de Processo Penal (sistema cross examination) não for respeitado, deve-se buscar a nulidade do ato. CAPÍTULO 11 OS EFEITOS DA TRANSAÇÃO PENAL Sempre que o advogado criminalista informa ao cliente sobre a possibilidade de firmar um acordo de transação penal, a fim de evitar a instauração do processo, diversas dúvidas surgem: “eu serei considerado culpado?”; “essa transação me tornará reincidente?”; “será considerado como mau antecedente?”; entre outras. Assim, o objetivo deste artigo é esclarecer os principais pontos sobre o tema – os efeitos da transação penal. De início, importante consignar que a proposta de transação penal só será cabível quando o fato delitivo for de competência da lei do Juizado Especial Criminal, isto é: quando se tratar de infração de menor potencial ofensivo (contravenções penais – Decreto-Lei n.º 3.688/1941 - e crimes com pena máxima não superior a 2 anos). Diferente, portanto, da suspensão condicional do processo prevista no art. 89 do mesmo diploma legal, uma vez que a suspensão pode ser aplicada a qualquer crime, desde que a pena mínima não ultrapasse o patamar de 1 ano e os demais requisitos estejam devidamente preenchidos. Pois bem, o instituto da transação penal está previsto no art. 76 da Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais): Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. Ou seja, nada mais é que um acordo firmado entre órgão acusatório e o autor do fato delitivo, com a finalidade de impor o cumprimento de penas restritivas de direito ou multa, imediatamente, sem que seja necessário formalizar o processo criminal. Portanto, por meio da transação penal, a culpa do autor do fato não é discutida, bem como os males inerentes ao processo são evitados. A proposta de transação penal só será inviável nas seguintes hipóteses (art. 76, § 2º): I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida. Assim, não estando presente nenhuma das situações acima e o delito praticado for de competência do Juizado Especial Criminal, a transação penal poderá ser proposta pelo Ministério Público e, estando juridicamente correta, homologada pelo magistrado competente. Mas, quais são as consequências dessa homologação? Essa é uma dúvida que, conforme dito anteriormente, muito clientes possuem. A resposta é de que a decisão homologatória de transação penal não possui natureza condenatória, ou seja, o autor do fato não será considerado culpado (até mesmo porque não há o devido processo legal; o autor aceita a proposta justamente para que a sua culpa não seja auferida), não gerará reincidência e não poderá ser considerada como mau antecedente. Em 2015 o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o recurso extraordinário n.º 795.567 (com repercussão geral) reafirmou que essa decisão é meramente homologatória, por isso não tem os efeitos da condenação penal. Restou consignado no voto do ministro relator Teori Zavascki – in memoriam - que: A tese de repercussão geral a ser afirmada é, portanto, a seguinte: os efeitos jurídicos previstos no art. 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória. Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acor do. O único efeito acessório do acordo de transação penal é o previsto no art. 76, § 4º: Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. Portanto, o acordo será registrado tão somente para que o autor não seja beneficiado novamente em um período inferior a 5 anos. São válidas, ainda, as lições do desembargador Guilherme de Souza NUCCI[8]: Registro da penalidade: faz-se o r egistro da pena aplicada para o fim exclusivo de evitar nova transação no período de cinco anos posteriores ao trânsito em julgada da decisão homologatória do acordo. Não servirá o mencionado registro para ser considerado como antecedente criminal, em relação a futuros e eventuais delitos que o autor do fato possa cometer. Essa, aliás, é a grande vantagem trazida pela transação penal. Há uma punição, mas sem as consequências secundárias que a condenação criminal acarr eta. Destarte, o autor do fato que aceitar a proposta de transação não poderá sofrer nenhuma penalidade acessória e o acordo não será considerado, em nenhuma hipótese, como reincidência ou maus antecedentes. CAPÍTULO 12 PRISÃO EM FLAGRANTE, E AGORA: RELAXAMENTO DA PRISÃO OU LIBERDADE PROVISÓRIA? Os institutos da liberdade provisória e do relaxamento da prisão geram muitas dúvidas, sobretudo aos alunos que ainda estão no curso de direito, bem como aos advogados que começaram militar na área criminal há pouco tempo. A finalidade deste texto será de aclarar de forma bem objetiva quando cada instituto deverá ser utilizado. Na prática a utilização errônea dos institutos não costuma gerar prejuízos, isto é, o pedido, ainda que esteja com a nomenclatura errada, será devidamente analisado pelo juiz. No entanto, a fim de preservar a excelência técnica/profissional é de suma importância que o advogado se atente ao requerimento correto no momento de pleitear a liberdade do cliente. Pois bem, a principal diferença que há entre o relaxamento da prisão e a liberdade provisória é que o primeiro é um meio de impugnação de prisão em flagrante ilegal, com base no artigo 5º, LXV, da Constituição Federal: “a prisão ilegal será imediatamente r elaxada pela autoridade judiciária”. Diversos são os motivos que tornam a prisão em flagrante ilegal, alguns deles são: (i) não ter ocorrido o crime ou não ter provas suficientes que comprove a prática delitiva; (ii) se o tempo exigido pelo estado de flagrância for muito superior; (iii) flagrantes forjados/preparados; (iv) defeito no auto de prisão em flagrante (verificar as exigências formais previstas no art. 304 do Código
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