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FACULDADE DO VALE DO JAGUARIBE – FVJ CURSO DE BACHARELADO EM SERVIÇO SOCIAL ROBERTA REINALDO DE OLIVEIRA A VISÃO DO ASSISTENTE SOCIAL EM RELAÇÃO ÀS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO MUNICÍPIO DE RUSSAS-CE ARACATI-CE 2018 ROBERTA REINALDO DE OLIVEIRA A VISÃO DO ASSISTENTE SOCIAL EM RELAÇÃO ÀS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO MUNICÍPIO DE RUSSAS-CE Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Serviço Social da Faculdade do Vale do Jaguaribe, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Prof.ª Patrícia de Pontes Teixeira Alhadef ARACATI-CE 2018 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, que permitiu que tudo isso acontecesse, ao longo de minha vida, e não somente nestes anos como universitária, mas que em todos os momentos é o maior mestre que alguém pode conhecer. À Faculdade do Vale do Jaguaribe, pela oportunidade de fazer o curso. Agradeço a todos os professores por me proporcionar conhecimento não apenas racional, mas a manifestação do caráter e afetividade da educação no processo de formação profissional, e, especialmente, à minha orientadora Patrícia Teixeira, pelo exemplo de profissional, pela compreensão, pelas correções, confiança e apoio. Aos meus pais, por todo amor, dedicação, pela educação e por me ensinarem a ser uma mulher forte. Ao meu irmão Robson, pela ajuda e pelo incentivo na concretização do meu sonho. Ao meu namorado e melhor amigo Gabriel, pelo amor, carinho e companheirismo. Por estar ao meu lado, apesar das distâncias, me apoiando em todos os momentos. À minha tia Eliete e à minha prima Cintia, por todo amor, apoio e zelo dedicados a mim. Às minhas amigas e companheiras de curso Ariane e Mariana, por todos os momentos compartilhados ao longo da nossa carreira acadêmica. Às minhas amigas Ana Karoline, Valdilene e Roseane, pela amizade sincera de muitos anos. À minha querida Alice, pela ajuda ofertada a mim. A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação, o meu muito obrigada. RESUMO O presente estudo buscou fazer uma análise da visão do assistente social em relação às medidas socioeducativas, previstas no artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente, efetivadas no município de Russas-CE. Buscou-se verificar a relação entre o profissional de Serviço Social e o adolescente em conflito com a lei no CREAS. Indicar quais as dificuldades apontadas pelos profissionais de Serviço Social para aplicar a medida socioeducativa. Discutir os princípios norteadores da Lei do SINASE, em consonância com o projeto ético-político da profissão. Este estudo de caso foi realizado com assistentes sociais que atuaram no CREAS do referido município, através de uma entrevista semiestruturada por meio de um questionário, usando como aporte teórico a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. Observou-se que os adolescentes em conflito com a lei sofrem preconceito por parte das instituições ao aceitá-los para o cumprimento da medida. Verificou-se também a falta de políticas sociais de inclusão voltadas aos jovens após a execução da medida. Pode-se constatar que o trabalho do assistente social é fundamental na efetivação das medidas socioeducativas, pois o profissional está diretamente envolvido em todo processo de realização do serviço, sob a égide das leis que regem o Sistema Socioeducativo. Os resultados podem colaborar futuramente, como subsídio a outros profissionais e pesquisadores em novas formas de intervenção no enfrentamento a essa expressão da Questão Social. PALAVRAS-CHAVE: Medida socioeducativa. Assistente social. Adolescente em conflito com a lei. ABSRACT The present study sought to analyze the social worker's vision in relation to socio- educational measures, provided for in article 121 of the Statute of the Child and Adolescent, carried out in the municipality of Russas-CE. We sought to verify the relationship between the Social Work professional and the teenager in conflict with the law in CREAS. Indicate the difficulties pointed out by Social Work professionals to apply the socio-educational measure. Discuss the guiding principles of the SINASE Law, in line with the ethical-political project of the profession. This case study was carried out with social assistants who worked in the CREAS of the mentioned municipality, through a semi-structured interview through a questionnaire, using as theoretical contribution the bibliographic research and the documentary research. It was observed that adolescents in conflict with the law suffer prejudice from the institutions when accepting them to comply with the measure. There was also a lack of social inclusion policies aimed at young people after implementation of the measure. It can be verified that the work of the social worker is fundamental in the accomplishment of socio-educational measures, since the professional is directly involved in every process of performing the service, under the aegis of the laws that govern the Socio-educational System. The results can collaborate in the future, as a subsidy to other professionals and researchers in new forms of intervention in coping with this expression of the Social Question. Keywords: Socio-educational measure. Social worker. Adolescent in conflict with the law. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................... 9 2. CRIANÇA E ADOLESCENTE ..............................................................11 2.1 A história da criança e do adolescente no Brasil .............................12 2.2 A trajetória da família brasileira ...................................................... 22 3. LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS ......................................... 29 3.1 Legislação de proteção à criança e ao adolescente ..................... 29 3.2 Das políticas públicas voltadas à juventude ..................................37 4. DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS ................................................44 4.1 O que são as medidas socioeducativas ..........................................44 4.1.1 Da Advertência ....................................................................................49 4.1.2 Da Obrigação de Reparar o Dano .......................................................49 4.1.3 Da Prestação de Serviços à Comunidade ...........................................49 4.1.4 Liberdade Assistida .............................................................................50 4.1.5 Regime de Semiliberdade ...................................................................51 4.1.6 Internação ............................................................................................52 4.2 Das políticas públicas de assistência social e o sistema socioeducativo ...................................................................................54 4.3 Do processo de efetivação das medidas socioeducativas ...........57 4.4 Dos técnicos envolvidos ...................................................................61 5. ESTUDO DE CASO ............................................................................63 5.1 Sobre o CREAS e a sua atuação no município de Russas-CE .....63 5.2 O assistentesocial e o seu trabalho com as medidas socioeducativas .................................................................................66 5.3 A visão do assistente social em relação às medidas socioeducativas efetivadas no município de Russas-CE ..............70 5.4 Metodologia de pesquisa ..................................................................79 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................80 REFERÊNCIAS ................................................................................. 82 APÊNDICE ..........................................................................................88 ANEXOS .............................................................................................89 9 1. INTRODUÇÃO Atualmente, no Brasil, está em vigor o programa de Medidas Socioeducativas (MSE), que são medidas aplicáveis a pessoas na faixa etária de 12 a 18 anos, e em casos excepcionais, pode estender-se a jovens com até 21 anos. Não apresentam caráter punitivo, apesar de configurar como resposta a um ato infracional, mas de cunho pedagógico com intuito de responsabilizar o adolescente. Está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e são aplicadas pelo Juiz da Infância e da Juventude, após proferir sentença. Esta pesquisa tem por objetivo analisar a visão do profissional de Serviço Social em relação às medidas socioeducativas (MSE) na cidade de Russas-CE, bem como verificar a relação entre o assistente social e o adolescente em conflito com a lei no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); indicar quais as quais as dificuldades apontadas pelos profissionais de Serviço Social para efetivar o serviço de medida socioeducativa e discutir os princípios norteadores da Lei do SINASE, em consonância com o projeto ético-político da profissão. Primeiro, percorremos a história da criança e do adolescente no Brasil, desde a sua vinda nas embarcações portuguesas, onde as crianças pobres e órfãos eram submetidos a todo tipo de abuso e violência pela tripulação; o histórico de negligências, abandono e doenças das crianças desvalidas no período colonial, e a criação das primeiras instituições de acolhimento. Retratamos também, a trajetória e transformação da família brasileira ao longo dos séculos, da família patriarcal, a inserção da mulher no mercado de trabalho, e as inúmeras composições familiares que existem atualmente. Em seguida, tratamos da legislação de proteção à criança e ao adolescente, e das políticas públicas voltadas à juventude. A problemática que levou a elaboração do Código de Menores, em 1927, que após sua implantação iniciou uma fase de maior interferência do Estado no trato aos menores abandonados e delinquentes juvenis, e mais tarde, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, foi instaurada a doutrina de proteção integral a esse público, com leis que os amparam 10 e garantem direitos, bem como as políticas governamentais destinadas à juventude brasileira nos últimos anos. No capítulo seguinte, exploramos as medidas socioeducativas do ECA, cada um de seus princípios, processo de efetivação e os técnicos envolvidos, o público- alvo que são os adolescentes em conflito com a lei, sondando os possíveis motivos que os levam a cometer os atos infracionais. As políticas públicas de assistência social, o Sistema Socioeducativo e as leis que os regem. Por conseguinte, procuramos analisar a visão do assistente social que trabalha no serviço de medidas socioeducativas executadas no CREAS do município de Russas-CE, o ponto de vista do profissional quanto as leis do Sistema Socioeducativo, o perfil do adolescente que comete o ato infracional, o comprometimento do jovem e sua família no cumprimento da medida, e as dificuldades enfrentadas pelo profissional de Serviço Social para efetivação do serviço. Para tanto, utilizamos a técnica de pesquisa de campo através uma entrevista semiestruturada por meio de questionário aplicado às Assistentes Sociais. Pesquisas bibliográficas e pesquisa documental na instituição CREAS do referido município, foram usadas como aporte teórico para embasar o tema proposto, e assim, obter o resultado pretendido. 11 2 . CRIANÇA E ADOLESCENTE 2.1 A história da criança e do adolescente no Brasil A história da criança e do adolescente no Brasil é marcada por uma série de privações de direitos essenciais como saúde, educação e alimentação. A negação desses direitos produziu um alto contingente de crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos, brutalidade, negligência aos casos de deficiência, fome, abuso sexual, exploração do trabalho, privação de brincar, perambulação, extermínio e mortalidade precoce. (SAETA, 2004, p.1) Para que se possa compreender como se deu esse histórico de privações de direitos, será preciso compreender qual o significado imputado à infância e adolescência no decorrer da história. “A criança como indivíduo percorreu a história da humanidade recebendo diferentes tratamentos em função das diferentes relações que foram estabelecendo.” (BERNARTT, 2009, p.2) No Brasil, o significado de infância começou a ser construído do país na colonização do país, a partir de 1530, com sua nova população de imigrantes. Com a colonização no início do século XVI, o Brasil passava por um processo de povoamento. Junto com os imigrantes vinham seus filhos e outras crianças; órfãos e crianças pobres recrutados pela Coroa Portuguesa. (BERNARTT, 2009, p.5) Durante as viagens nas embarcações lusitanas, as crianças eram as que mais sofriam: Grumetes e pagens eram obrigados a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos. Crianças, mesmo acompanhados dos pais eram violadas por pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim de manter-se virgens pelo menos, até que chegassem à Colônia. (RAMOS, 1999, p.19) 12 Por causa da alta taxa de mortalidade infantil na Idade Média, a expectativa de vida, durante um período, chegava aos 14 anos, o que fazia com que não tivessem valor algum, assim, sendo forçadas a trabalharem durante o curto período de vida que tinham. Como faltava mão-de-obra adulta, a Coroa recrutava meninos órfãos e de famílias pobres para trabalharem como grumetes1 nas naus portuguesas. Eram enviadas também nas embarcações, meninos que exerciam a tarefa de pagens, mais livres e menos perigosas que as tarefas dos grumetes, pagens tinham mais proximidade com os oficiais, o que lhes garantiam algumas vantagens, mesmo assim não estavam livres de sofrerem abuso por parte dos marinheiros. Faziam parte também dos imigrantes as órfãs do Rei, meninas sem família e pobres que moravam em abrigos. E crianças que iam como passageiras acompanhadas de suas famílias, na qual chamavam de miúdos. “Diferente das outras crianças a bordo, esses pequenos passageiros podiam ter menos de cinco anos ou ser ainda de colo.” (RAMOS, 1999, p.34) Os maus tratos e violência não ficaram apenas restritos às crianças imigrantes: “Já no Brasil colonial, milhares de crianças indígenas morreram com a chegada dos primeiros colonizadores que tentavam “domesticar” as tribos.” (SAETA, 2004, p.1) Os colonizadores impuseram sua cultura cristã aos indígenas e suas crianças, na tentativa de destruir a cultura ancestral das tribos. Os jesuítas acreditavam que a salvação das crianças indígenas viria através da catequização, mantê-los obedientes até a fase adulta e assim, levá-los a esquecer sua própria cultura. Os jesuítas acreditavam trazer aos índios o benefício inestimável da “graça do batismo cristão”. Esta exigência da Coroa portuguesa, entre outros, ajudavaa escamotear a exploração do trabalho indígena e das riquezas naturais da Colônia como os minérios e o pau-brasil. (SAETA, 2004, p.2) 1 Os Grumetes eram os aprendizes de marinheiro, tinham em torno de 12 anos e realizavam inúmeras tarefas como limpeza e auxílio no carregamento de ferramenta dos carpinteiros, quando havia algum reparo na Nau, o que levava a ser a classe menos favorecida nas embarcações. Disponível em: http://oficinadohistoriador.blogspot.com.br/2010/10/quem-eram-e-o-que-faziam-os-grumetes.html?m=1. Acesso em: 23 fev. 2018 http://oficinadohistoriador.blogspot.com.br/2010/10/quem-eram-e-o-que-faziam-os-grumetes.html?m=1 13 O histórico de negligências e trabalhos forçados não ficou apenas nas embarcações lusitanas, no Brasil quinhentista o trabalho fazia parte do cotidiano das crianças escravas, incorporando-as ao mundo adulto. Diferentemente das crianças brancas e ricas, que no nascimento eram confiadas às amas de leite e quando estavam maiores, ingressavam nos colégios religiosos onde recebiam aprendizados e boas maneiras. Com o passar do tempo, cresceu o número da população pobre, e consequentemente, o aumento do abandono e da rejeição infantil. É difícil definir os motivos que levaram as mães ao abandono dos filhos, mas tudo faz crer que as razões eram principalmente de ordem econômica e social. A doutrina cristã, no decorrer da história, consolidou o valor ético da família e condenou severamente o adultério, a ponto de o Direito Canônico não admitir a ordenação sacerdotal de um filho bastardo. Na sociedade patriarcal brasileira, o adultério era um delito que recaí a mulher e a criança. Enquanto a rejeição se resolvia pelo infanticídio nas sociedades primitivas, o abandono ou confinamento em instituições de caridade era uma prática comum nas sociedades urbanas “civilizadas”. (SAETA, 2004, p.2) Os recém-nascidos eram deixados em terrenos baldios e ali abandonados, onde quase sempre morriam de fome, frio e por ferimentos causados por bichos que viviam nas ruas. Tal visão causava escândalo na população daquela época, inclusive os governadores portugueses que eram sempre indiferentes ao sofrimento daquele povo. As leis portuguesas da época colonial, diziam que os hospitais, primeiramente, teriam a responsabilidade de dar assistência aos meninos e meninas entregues ao abandono. No Rio de Janeiro, a referência mais remota a respeito da fundação de hospital é de 1582, e, em Salvador, 1552. As então denominadas Santas Casas eram mantidas por irmandades leigas sob a invocação de Santana, Nossa Senhora do Bonsucesso ou da Misericórdia. Em sua maior parte, os membros dirigentes dessas irmandades originavam-se das elites da sociedade soteropolitana e carioca. O principal objetivo das confrarias consistia em preparar a “boa morte”, ou seja, garantir que os irmãos fossem atendidos espiritualmente no momento derradeiro. (VENÂNCIO, 1999, p.25) 14 Em Portugal, as Câmaras contratavam funcionários encarregados de recolherem os recém-nascidos abandonados em locais públicos ou nas portas dos domicílios, a essas pessoas dava-se a denominação de pais ou mães dos enjeitados. Depois que recolhiam os recém-nascidos, comunicava ao presidente da Câmara que analisava o pedido, inscrevia e nome da criança no Livro de Matrícula dos Expostos. Depois de cumprir as determinações, a criança era trazida para ser cuidada. ...o bebê era entregue a uma ama-de-leite paga as expensas da municipalidade por um período de três anos; finda a época de amamentação, o menino ou a menina permanecia na casa da ama, que a partir dessa data, tinha o salário reduzido, sendo contratada como ama-seca até os expostos completarem sete anos de idade. Quando chegavam à dita idade da razão, os enjeitados submetidos a tutores e ao Juiz dos Órfãos deveriam ser dados a lavradores para, como mandavam as Ordenações, no livro I, título 88, poder “servirem-se deles em guardar o gado e bestas outros serviços, quando lhes cumprir, com tanto que principalmente os ocupem na lavoura. (VENÂNCIO, 1999, p.27) Porém, em Salvador e no Rio, nunca foram contratados esses funcionários encarregados do recolhimento das criança abandonadas, o que permitia que os vereadores contratassem, de forma clientelista, famílias que os mesmos conheciam para serem criadeiras, e assim, receberem o auxílio. Como a quantidade de enjeitados e as despesas que os mesmos demandavam aumentavam cada vez mais, o governador achou necessário formular um meio de proibir os pais e mães de procurarem subsídios, assim, implantaram a Roda dos Expostos, um recurso que já era usado há muito tempo em Portugal e todo continente europeu. A Rodas dos Expostos consistia numa roda de formato cilíndrico que girava sobre o próprio eixo, que continha duas partes, uma voltada para o exterior da Santa Casa onde o recém-nascido era deixado, que ao ser girada, levava-o ao interior da instituição. “As primeiras “rodas” foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro no século XVIII, o que caracterizava em problema urbano. A deposição da criança na “roda” garantia o anonimato dos genitores.” (SAETA, 2004, p.2) 15 Depois de acolhidos, muitos funcionários do hospital eram responsáveis por cuidar das crianças. As Santas Casas disponibilizavam de vários setores, entre eles a Mesa dos Expostos, que formava o setor administrativo composto pelo presidente Mesa que também era o responsável por administrar o hospital. O segundo cargo era ocupado pelo escrivão, responsável pelas Receitas e o conhecimento das mesmas, lançando- as no livro das Despesas, que o tesoureiro realizar. Depois do escrivão, vinha o tesoureiro, que determinava a data de pagamento das amas e serventes empregados. Da mesma maneira que o escrivão, o tesoureiro não entrava em contato direto com os expostos; por ocasião de pagamento das amas, ele recorria ao mordomo da Casa da Roda. [...] No último grupo, era selecionado o secretário, a quem cabia [...] elaborar e conservar vários registros administrativos. [...] Por fim, faziam parte da Mesa, o visitador e dois mordomos. (VENÂNCIO, 1999, p.28 e 29) Simultaneamente às funções administrativas da Mesa, havia outros funcionários da Casa da Roda que lidavam diretamente com as crianças, como ama seca ou rodeira e as amas-de-leite internas. Mesmo com tantas pessoas envolvidas nos cuidados aos enjeitados, o índice de morte nas Casas dos Expostos era bastante elevado. A grande maioria falecia antes de chegar a um ano de vida. Diante dessa situação, os médicos ficavam perplexos; os sábios doutores arriscavam explicações, alguns acusavam as criadeiras de maltratar as crianças, outros reclamavam melhores instalações de acolhida, todos porém concordavam num ponto: alguma medida precisava ser tomada. (VENÂNCIO, 1999, p.99) Muitos escritos guardam a visão perplexa dos médicos em relação ao sistema de assistência da Casa da Roda, pelo fato do alto índice de mortalidade. Justamente a obra de caridade mais reverenciada, mais imbuída de espírito cristão, era a que pior tratava as crianças. Perante essa cruel constatação, os doutores procuraram soluções. Alguns atribuíram a mortalidade dos expostos à doenças, confundindo quase sempre os sintomas com as causas das moléstias; outros procuravam responsabilizar os pais das crianças ou 16 então as amas escravas e os “miasmas” urbanos pelas múltiplas mortes registradas na Casa da Roda. (VENÂNCIO, 1999, p.11) As causas das mortes só começaram a ser divulgadas muito tarde. Sarnas, dentição, doenças do aparelho digestivo e tétano foram algumas doenças registradas nos enjeitados baianos. Assim como em Salvador, no Rio foram realizadas avaliações com resultados vagos. Outras possíveis causas apontadas pelos médicos e administradores eram ospais doentes e amas desleixadas: Os pais eram culpados pela morte dos filhos; se os progenitores sofriam de mal sifilítico, alcoolismo ou taras sexuais, a criança necessariamente herdava essas aberrações, falecendo precocemente. Segundo outros doutores, os bebês chegavam à instituição já fragilizados. Uma vez que matriculados, eles eram amamentados por amas escravas que lhes transmitiam novas doenças.” (VENÂNCIO, 1999, p.115) Os miasmas, hoje nominados bactérias ou vírus, também era uma das grandes causas de mortes das crianças, devido as péssimas condições insalubres dos estabelecimentos hospitalares. Com o aval dos irmãos da Mesa, os doutores propuseram formas de diminuir a mortandade, como a mudança na Casa da Roda, onde defendiam a extinção da criação externa, o aumento da quantidade de administradores e um médico encontrar- se obrigatoriamente dentro da instituição. Defendia-se também o aumento do pagamento das criadeiras e a troca da residência em que as crianças se encontravam. Evidentemente, várias transferências deviam-se a morte, doenças ou viagens das amas externas, mas, vez por outra, era a saúde do bebê que os irmãos da Misericórdia tinham em vista proteger. Infelizmente, na maioria das ocorrências, não era mencionado o motivo da mudança de domicílio. Contudo, a grande incidência desse expediente sugere que os administradores estavam atentos às desventuras sofridas pelos abandonados resistentes nos lares de amas mercenárias. (VENÂNCIO, 1999, p.119) Quando as crianças conseguiam sobreviver aos primários anos de vida, surgia uma série de oportunidades como, seminários religiosos e os abrigos de órfãos. 17 O Estado passou a valorizar os serviços dos expostos: as meninas nas ocupações de fiandeiras e costureiras e os meninos teriam que aprender ofícios manuais, ou seriam direcionados à Marinha de Guerra. Havia, porém, a possibilidade da criança se rebelar contra esse destino a ela imposto e fugir para as ruas, voltando assim, a situação de abandono. Infelizmente, o destino de muitas crianças abandonadas era a escravização. Apesar da condição de enjeitadas as tornarem livres, muitas vezes as criadeiras as levavam e vendiam como escravas. Para realizar o intento malévolo, as criadeiras nem mesmo precisavam inventar estratagemas complicados; bastava dar nome e endereço falsos e depois desaparecer com o bebê. Situações como essa foram recorrentes no século XVIII e XIX. (VENÂNCIO, 1999, p.132) Nos registros de matrícula da Casa dos Expostos, continha a data que a criança dava entrada, a data que ela era repassada à criadeira, a data que encerrava a fase da criação, seja por motivo do enjeitado atingir a idade regulamentada ou por morte. Mas, foi observado que em algumas matrículas não havia a data do período que encerrava a criação. Em Salvador, o número de desaparecidos aumentou consideravelmente no começo do século XIX. Obviamente, muitos dos “desaparecidos” eram crianças que haviam falecido ainda bebês. Nesses casos, as criadeiras consideravam que não valia a pena voltar à Santa Casa para receber míseros réis. O provável destino desses recém-nascidos mortos era o de serem enterrados em um canto qualquer, enterrados em campos baldios ou mesmo no fundo do quintal, fugindo ao controle da Misericórdia. Por outro lado, tal situação não excluía a possibilidade de que inúmeros enjeitados desaparecidos tenham sobrevivido, sendo postos à venda no mercado de escravos. (VENÂNCIO, 1999, p. 133) Em contrapartida, em inúmeros casos acontecia o inverso: muitas crianças eram adotadas pelas famílias que a acolhiam. Tais ocorrências, porém, não deviam ser frequentes, pois a entrega da criança à Casa da Roda não implicava a perda do pátrio poder. Só podiam ser legalmente adotados os meninas e meninas acompanhados de documentos que comprovassem seu estado de orfandade. Em Salvador, um 18 levantamento minucioso dos livros cartoriais revelou 14 adoções durante o século XIX. (VENÂNCIO, 1999, p. 137) As famílias interessadas em adotar legalmente as crianças enjeitadas enfrentavam normas restritivas, o que dificultava o processo de adoção e integração ao novo lar. Outro assunto era motivo de preocupação dos legisladores portugueses: o destino das crianças que retornavam à Santa Casa. Ao completar sete anos, a criança que não permanecia na residência das amas seriam inscritas no Juizado dos Órfãos. Caso não aparecesse nenhum interessado, o juiz faria a distribuição dos órfãos pelas casas que poderiam dar sustento, educação e designá-los a serviços conforme sua idade. Se, por um lado, por meio do trabalho gratuito, o dispositivo legal estimulava a permanência dos expostos no seio de famílias adotivas, por outro, abria caminho para a escravização da criança. Afinal, tal qual os cativos, os enjeitados trabalhavam em troca de um prato de comida e de um abrigo para dormir à noite. (VENÂNCIO, 1999, p. 143) Entretanto, havia o alerta com relação ao envio de meninas muito novas ao serviço nas residências, pois por serem pobres e incultas “...podiam enveredar em uma vida de escandalosos e “devassos costumes”.” (VENÂNCIO, 1999, p.144) As Santas Casas sustentavam algumas meninas até sua maioridade ou se casarem. Conventos e abrigos também resguardaram muitas expostas ameaçadas em residências: “Em alguns casos, as meninas aceitas a título de “educandas” substituíam a mão-de-obra cativa. [...] Ser uma pequena trabalhadora era o destino das recolhidas de origem humilde.” (VENÂNCIO, 1999, p.145) No caso dos meninos, ocasionalmente, eram aceitos em recolhimentos. Quando não eram aceitos em nenhuma família, recorria aos seminários religiosos. Sucedia a necessidade de ensinar algum ofício manual aos sem-família. O Juiz dos Órfãos escolhia os mais aptos e os enviava aos mestres de ofício. A lista de ofícios mecânicos incluía diversas atividades: as meninas deviam aprender fiação e costura e os meninos, ferreiros, pedreiros, pintores, marceneiros entre outras. 19 Outra possibilidade de ensino profissional eram os Arsenais da Marinha, que recebiam aprendizes acima de sete anos e podia estender-se por nove anos, onde recebiam instrução de escrita, desenho e poderiam aprender outro ofício. “As aulas de primeiras letras ficavam a cargo de um pedagogo. Já o ensino dos ofícios manuais cabia a mestres e contramestres, distribuídos em 21 oficiais de tanoaria, carpintaria, serralheria, latoaria e espingardaria.” (VENÂNCIO, 1999, p. 151) Infelizmente, as condições de vida da maioria da população brasileira mostravam-se muito difíceis no século XIX, sobretudo nas grandes cidades, onde a população tentava sobreviver, devastada pelo desemprego se amontoava nas periferias em péssimas condições. Como sempre, os mais atingidos nessa situação eram as crianças e jovens, que abandonados vivam inúmeras carências. Devido a essa situação, o índice de mortalidade infantil chegou ao dado impressionante de 51% em crianças com até dez anos de idade. Em decorrência dessa realidade, as crianças se tornaram o centro do movimento higienista que nasceu no final do século XIX e começo do século XX, que tinha como meta mudar o comportamento da população. Os médicos higienistas acreditavam que a maior parte dos problemas do país estava ligado a questões sanitárias. Para eles, esta influência era a fim de manter e melhorar a vida da coletividade – classe trabalhadora – no que diz respeito à educação, salário, saúde, ou seja, pretendiam valorizar a população do Brasil. [...] As classes ditas perigosas representadas pelos pobres, apresentavam perigo social devido aos problemas que ofereciam à organização do trabalho, a manutenção ordem pública e perigo de contágio. (FERNANDES e OLIVEIRA, s.d., p.3) Ao passo de que por um lado, as propostas dos higienistas auxiliariam no progresso dasaúde da população, por outro era um reforço aos interesses do Estado. No século XIX, acompanhou-se o progresso da infância e o interesse de especialistas no conhecimento o assunto: A temática da infância abriu as portas para esses especialistas (os médicos higienistas) por meio de três pontos principais: a elevada taxa de mortalidade infantil, o problema do menor abandonado e a necessidade do médico na medicalização da família. O poder médico defendeu a preservação da saúde 20 (higienização) na cultura popular – mudança dos hábitos diários do trabalhador e de sua família, principalmente na criança e no recém-nascido. (FERNANDES e OLIVEIRA, s.d., p.5) A autoridade médica procurou projetar-se no mundo político através da apropriação da infância, conseguindo uma progressiva participação no governo, discutindo projetos de construções de escola, apresentação de sugestões para todas as áreas do ensino, especialmente para a educação primária e infantil. Neste período surgem as primeiras instituições profissionalizantes, como o Instituto de Proteção e Assistência à Infância no Rio de Janeiro, fundada pelo Dr. Moncorvo Filho em 1901; o Instituto Disciplinar de São Paulo surgido em 1902; 1909 são criados os institutos profissionais para menores pobres e, em 1911 as escolas profissionais masculinas e femininas. (FERNANDES E OLIVEIRA, s.d., p.6) Na concepção higienista, a rua era o lugar público onde surgiam os criminosos e delinquentes, e que era de preocupação do Estado formar o caráter da criança influenciado nos princípios morais da burguesia. Para os médicos, filantropos e para a classe dominante, a maneira mais eficaz de adestrar a criança pobre era trancá-la em espaços disciplinares, defendiam também o aprendizado de uma atividade profissionalizante incutindo-lhe hábitos de trabalho para mantê-la ocupada. No que diz respeito às crianças das famílias abastadas, os médicos indicavam paras as horas vagas, leituras e ginástica. (FERNANDES e OLIVEIRA, s.d., p. 7) A preocupação dos médicos com o alto índice de mortalidade infantil era tanto com as classes mais pobres como com as classes mais ricas, por isso procuravam descobrir as causas gerais. Dentre essas causas estão a falta de conhecimento da mulheres pobres, que sem informações não sabiam cuidar da higiene dos bebês; a pobreza que era refletida na falta de recursos para uma boa alimentação; doenças digestivas e respiratórias; causas pré-natais e natais e aleitamento mercenário. A ocupação com a criança, tratava-se principalmente do aproveitamento do seu aprendizado que poderia ser utilizado na geração de um trabalhador “perfeito”, saudável, disciplinado, de modo a propiciar o aumento da produção e a eliminação dos conflitos sociais. 21 Pode-se observar que as instituições de educação infantil surgiram com a implantação do capitalismo, que tinha por objetivo ampliar a força de trabalho. As instituições que atendiam os filhos de famílias pobres surgiram em 1899, enquanto que os jardins-de-infância, criados para atender os filhos da elite, em 1875. Observamos que o modelo de educação proposto pela medicina higienista, objetivava controlar a população carente, a fim de proteger a paz e a integridade da elite. Para que isso fosse possível, introduzir-se-iam, a cultura e os costumes do homem europeu. (IANISKI, 2009, p.6). A situação da criança e do adolescente não pode ser estudada fora do contexto econômico do país. Apesar de algumas leis como o Código do Menor de 1917 e a Constituição de 1932, garantirem que a criança não trabalharia antes do 12 anos de idade, era permitido o trabalho antes dos 12 ou 14 somente na condição de aprendiz. Os empresários sempre encontravam uma maneira de fraudar as leis empregando crianças. Na década de 1940, foi fundada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que entre os objetivos incluía a proteção da família. Em 1987, foi divulgada pela CNBB a existência de 36 milhões de menores pauperizados no Brasil, dos quais 7 milhões eram desvalidos. A falta de políticas sociais bem estabelecidas no Brasil, articuladas com a sociedade civil e circunscritas nas relações produtivas, delineia um quadro de políticas do mal-estar social, que compreendemos num contexto de desenvolvimento desigual/combinado. Isto significa que não acreditamos que exista uma política de bem-estar e outra do “mal-estar” social desarticuladas. (SAETA, 2004, p.5) Séculos de práticas desacertadas da sociedade civil e do Estado brasileiro, levaram a um desequilíbrio da distribuição da riqueza nacional: “... em 1990, 1% da população brasileira detinha 17,3% da riqueza nacional, no topo da pirâmide, enquanto os 10% mais pobres eram forçados a sobreviver com 0,6% da riqueza nacional.” (SAETA, 2004, p.5) O resultado foi a morte de 250 mil crianças por ano, antes de chegar a um ano de idade. Quatro milhões entre sete e quatorze anos estavam fora da escola no Nordeste. 22 A temática da Constituição de 1969 e do Código do Menor de 1979, era de responder ao problema do menor carente e abandonado, pela institucionalização, porém, a finalidade pedagógica era de puni-lo pela sua pobreza, como exposto a seguir: Até os anos trinta, a pobreza era julgada como uma questão policial. Esse procedimento sempre acabava por responsabilizar o menor por sua sina e o classificava pelos rótulos de “marginal, trombadinha e delinquente”. (SAETA, 2004, p.6) Diante dessa realidade de mal-estar, nos anos setenta, forças sindicais dedicaram-se na construção da liberdade, democracia e cidadania. Ampliaram as pesquisas e estudos a respeito da privação de direitos da infância e juventude. Somente na década de 1980, que a sociedade conseguiu integrar as legislações internacionais de defesa dos direitos e converter em políticas. Na Constituição de 1988 e no ECA, há um novo desenho da sociedade, capaz de impulsionar uma nova história a ser redigida pelos próprios protagonistas, uma vez que oferecem sustentação jurídica para garantir as conquistas sociais. Na construção dessas leis, houve a participação de meninos e meninas de todo o Brasil. [...] Demonstraram a maturidade de seu desenvolvimento no período Constituinte, souberam pressionar os parlamentares [...] O ECA é uma lei escrita por muitas mãos e pensada por vários segmentos sociais. (SAETA, 2004, p. 8) No início dos anos 2000, o IBGE calculou que quase 28 milhões de crianças e adolescentes vêm de famílias com renda mensal igual ou menor a R$ 120,00 (cento e vinte reais). Esses dados demonstram a fragilidade das políticas sociais, os direitos enxergados como favores e os programas impactados pelas práticas de corrupção, dificultando assim, o caminho ao bem-estar social. 2.2 A trajetória da família brasileira A família brasileira passou por muitas transformações, seguindo os eventos históricos, sociais, demográficos e econômicos ao longo dos séculos. Nas últimas décadas, mais precisamente, inúmeras mudanças foram verificadas como; diminuição 23 da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida ao nascer, viabilizadas por melhores condições básicas de vida e saúde; no papel da mulher dentro e fora do ambiente domiciliar e na ampliação no número de uniões consensuais, etc. A vida familiar se modificou para todos os segmentos da população brasileira. É um fenômeno marcante que as estatísticas, desde o primeiro Censo, realizado em 1892, até o atual, realizado em 2000, vêm demonstrando. São números cada vez mais desagregados e informações amplamente detalhadas que ajudam a entender um País que tem se transformado a cada Censo, a conhecer a evolução de sua população e o caminho percorrido pela família. (NASCIMENTO, 2006, p.1) A história da família no Brasil começa desdea época do império, com a chegada e adaptação da família portuguesa, com seu modelo patriarcal e conservador, mas ao que tudo indica esse modelo não era hegemônico: “No entanto, pesquisas recentes tem tornado evidente que as famílias extensas do tipo patriarcal não foram as predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simples e menor número de integrantes.” (SAMARA, 2002, p. 28) Os primeiros estudos sobre a família no Brasil, iniciaram a partir das primeiras décadas do século XX. Os primeiros estudos, que, de um lado, tendem a afirmar que a família pode ser considerada a instituição social fundamental, da qual dependem todas as demais e, de outro, podem se vincular a dois posicionamentos conceituais específicos, que retomam três modelos básicos de família – a patriarcal, a nuclear e a atual. (ALVES, 2009, p.1) Nos séculos XVI e XVII, a economia da Colônia era baseada nas plantações de cana no Nordeste. Foi nesse mundo rural que as famílias elitistas viviam nos casarões, com muitos dependentes e escravos. Nos casamentos, os papéis de cada cônjuge eram bem estabelecidos pelas tradições e amparados pelas leis, deixando explícita a autoridade masculina: “O poder de decisão formal pertencia ao marido, como protetor e provedor da mulher e dos filhos, cabendo à esposa o governo da casa e a assistência moral à família.” (SAMARA, 2002, p. 32) 24 Como na sociedade portuguesa, no Brasil a figura masculina exercia uma grande influência nas relações do campo jurídico e que apesar dos variados modelos de famílias, o dominante era famílias grandes e com base no modelo patriarcal. Neste contexto, a estrutura familiar funcionava como um núcleo constituído pelo patriarca (chefe da família), sua esposa, filhos e netos, representantes principais; e o núcleo secundário, composto por filhos ilegítimos ou de criação, afilhados, parentes, serviçais, amigos e escravos. Ainda dento deste sistema, desenvolveu-se a tradição da primogenitura, em que o filho mais velho herdava todos os bens do pai. Se a família tivesse mais de um filho, os outros eram mandados para estudar e se formar em Medicina, Direito ou se quisessem, seriam padres. As meninas, na maioria das vezes, eram levadas aos conventos para aprenderem a ler, escrever, cantar e bordar, enquanto estavam solteiras. No caso dos escravos, sua família geralmente era formada de maneira complexa e até violenta, visto que a disputa por uma esposa era acirrada, pois o número de mulheres era bem inferior ao número de homens. Preferiam casar com pessoas da mesma etnia, apesar de existirem diferentes grupos étnicos africanos. A família patriarcal era, portanto, a base da sociedade e exercia as funções de procriação, administração econômica e política. A riqueza e organização da família se mantinha sob a chefia do patriarca. Percebe-se, então, que a família patriarcal era o mundo do homem por excelência. Crianças e mulheres não passavam de seres insignificantes e amedrontados, cuja maior aspiração eram as boas graças do patriarca. A situação de mando masculino era de tal natureza que os varões não reconheciam sequer a autoridade religiosa dos padres. (ALVES, 2009, p. 5) Na década de 1690, foram descobertas as minas de ouro, constituindo-se em um novo núcleo de colonização antes localizado no Nordeste e agora no Sul do país. Esse novo ramo atraiu muitas pessoas na caça ao ouro e aventuras, direcionando o tráfico de escravo durante o século XVIII. A sociedade que se formou a partir daí era um misto de diversas raças difíceis de serem controladas, apesar da Coroa e a Igreja tentarem diversas vezes. 25 O número de celibatários era alto, proliferavam os concubinatos e a ilegitimidade era comum. Mulheres exerciam atividades econômicas fora do âmbito doméstico e as solteiras com prole natural chefiavam famílias. Nessas paragens, não era fácil para os poderes constituídos, tentar fixar os padrões impostos pela colonização, que não eram seguidos pela maior parte da população. (SAMARA, 2002, p. 33) A situação era semelhante nas áreas mais desfavorecidas do Sul, que girava em torno das Minas que nem a Capitania de São Paulo, com centros urbanos em fase de expansão e uma vida rural mais reduzida que a do Nordeste. Nos engenhos paulista como havia a falta de mão-de-obra escrava, agricultores pobres trabalhavam a terra com seus familiares e sempre aceitavam integrantes auxiliares para ajudar no cultivo da terra. Nos centros urbanos, pequenos negócios e uma série de serviços vinculados ao abastecimento ofereciam oportunidades para as pessoas que não eram ligadas ao setor exportador, o que favoreceu as mulheres atuarem e ocuparem as vagas deixadas pelos homens que migraram e pelos escravos. A presença feminina podia ser vista em todas as partes. Esses fatores contribuíram para alterar as relações de gênero e consequentemente, o quadro familiar. Assim, especialmente no meio urbano, os papéis informais, embora não oficialmente reconhecidos e pouco valorizados, integravam a vida cotidiana, servindo também para desmistificar, no sistema patriarcal brasileiro, o papel reservado aos sexos e a rígida divisão de tarefas e incumbências. (SAMARA, 2002, p.34) Ao longo do século XIX, ocorreu o desenvolvimento econômico gerado pela cafeicultura, estimulando a imigração em dimensões maiores do que as oportunidades de emprego no campo. Além disso, eventos importantes como a Independência em 1822, a República em 1889, abolição da escravatura em 1888 e a chegada dos imigrantes, contribuíram na distribuição da população e refletiu no mercado de trabalho. A quantidade de trabalhadores ultrapassou a carência do mercado, ocasionando variadas formas de trabalhos informais como temporário e em domicílios, tornando-se significativa para as mulheres. 26 O que se nota, ainda nessa fase, é que, apesar da República e das mudanças que estavam ocorrendo, a vida continuou girando em torno da família e que a legislação reforçou, uma vez mais, o privilégio masculino. O marido continuava, legalmente, com a designação de chefe da família. [...] O Código Civil de 1916 reconheceu a supremacia masculina. [...] As mulheres casadas ainda eram, legalmente, incapacitadas e apenas na ausência do marido podiam assumir a liderança da família. (SAMARA, 2002, p.35) Algumas mudanças ocorreram no início do século XX entre as mulheres da elite e das classes médias. Progressivamente, foram ocupando espaços nas áreas da Física, Direito, Farmácia e Arquitetura. Porém, até 1930, o número de mulheres nos cursos superiores era bastante limitado, concentrando o maior número de universitárias na área farmacêutica. Entretanto, as mulheres contribuíram de forma significativa para a expansão do mercado de trabalho industrial, sendo maioria na indústria têxtil. Deve-se ressaltar que a inserção feminina no mercado informal, contribui no orçamento familiar, porém, não aparece contabilizada. Em contrapartida, durante o século XX, a atuação das mulheres no mercado de trabalho, caracteriza-se pela sua incorporação em profissões que não haviam nos séculos passados, algumas como, médicas, advogadas e empregadas públicas. Nos séculos anteriores, a maioria das mulheres trabalhadoras apareciam nas chamadas atividades femininas tradicionais, marginais ao processo de produção e sendo remuneradas abaixo do padrão de pagamento masculino, na mesma função. O Primeiro Censo Geral do Brasil, realizado no Império em 1872, mostra essa setorização de atividades por gênero, predominando entre as mulheres, as lavradoras, as costureiras e aquelas nos serviços domésticos. (SAMARA, 2002, p.37) Constatou-se também que a maioria das profissões como artistas, proprietários, comerciantes, guarda-livros e caixeiros eram do sexo masculino, indicando assim, que o gêneroera um fator determinante, mas que também a presença das mulheres era relevante, se for levado em consideração as áreas específicas de atividades, especialmente a esfera informal. 27 Apesar das mudanças demográficas e econômicas que ocorreram ao final do período imperial, terem influenciado as famílias patriarcais, esse modelo ainda é disseminado hoje em dia e tido como sinônimo de família brasileira. A família nuclear, difere da patriarcal, pois é composta apenas pelo núcleo principal, pai (chefe), esposa e seus filhos legítimos, também teve grande importância no processo de construção da sociedade brasileira. A família ficou limitada a um pequeno espaço, separando os criados do restante da casa, gerando assim, uma vida particular. A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças, e da qual se excluíam os criados, os clientes e os amigos. A preocupação maior com a formação dos filhos passou a canalizar a maior parte da energia da família e, sendo o estudo privilégio de poucas pessoas, essa educação dos filhos também passou a depender muito da experiência de vida dos próprios pais. (ALVES, 2009 p.8) Assim como a saída da mulher de casa para o mercado de trabalho, outras mudanças ocorreram em todo o mundo modificaram o conceito de família nuclear e o casamento. As mudanças mais significantes ocorreram no final do anos de 1960; aumentou o número de separações e divórcios, a religião foi perdendo a relevância, não conseguindo mais manter os casamentos fracassados. A partir disso, surgiram inúmeras composições familiares: Casamentos sucessivos com parceiros distintos e filhos de diferentes uniões; casais homossexuais adotando filhos legalmente; casais com filhos ou parceiros isolados ou mesmo cada um vivendo com uma das famílias de origem; as chamadas “produções independentes” tornam-se mais frequentes; e, mais ultimamente, duplas mães solteiras ou já separadas compartilham a criação de seus filhos. (ALVES, 2009, p.10) O século XXI apresenta um modelo de família mais pluralista, assim chamada, por causa dos tipos alternativos que a compõe. Uma característica de grande relevância da família atual é a redução do seu tamanho. São formadas por pais, ou mães, e filhos. Outro aspecto foi a diminuição da 28 quantidade de filhos por mulher, restringindo-se na maioria das vezes a um ou dois filhos. Outro ponto que chama atenção se insere nas famílias mais das camadas mais pobres. Cresceu o número de famílias compostas apenas por mulheres e seus filhos menores de idade E por fim observa-se a existência de famílias, principalmente nas cidades maiores e regiões metropolitanas, vivendo em situações de risco, com doenças, desemprego, desavenças conjugais, envolvimento com atividades ilícitas e problemas com a polícia, dependência com drogas, entre outros fatores. Sem condições de manterem os cuidados básicos de seus membros, o que leva a necessidade de receberem uma atenção diferenciada do Estado para garantir seus direitos. 29 3. LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS 3.1 A legislação de proteção à criança e ao adolescente A discussão sobre os direitos da criança e do adolescente têm ganhado cada vez mais espaço em nossa sociedade, nas últimas décadas. Durante muito tempo, esses direitos se mantiveram quase inexistentes e pouco relevantes no contexto jurídico mundial. A existência de um sistema de proteção ineficaz passou a ser motivo de temor da população, visto que o índice de abandono e exploração infantil aumentava vertiginosamente. Essa questão ganhou, progressivamente, espaço na sociedade, que exigia uma resposta eficiente a essa situação Atualmente, o conceito de criança e adolescente é ditado pela idade. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescentes aqueles entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. (BRASIL, 1990, p.25) Esse conceito nem sempre existiu. A criança só começou a ser vista como indivíduo no século XIX, período em que ela passou a ser o centro de atenção no meio familiar. No final do século XIX, as crianças abandonadas eram o motivo de preocupação de vários médicos, juristas e filantropos. Essa preocupação se baseava nos altíssimos números de mortalidade infantil e no crescente número de crianças moradoras de ruas. O aumento da população devido a imigração estrangeira e de outros estados do país para as maiores cidades brasileiras, como São Paulo, em busca de emprego e melhores condições de vida, foram fatores que contribuíram para o aumento da pobreza, das condições precárias de higiene e moradia, e o aumento da mortalidade 30 infantil, levaram, consequentemente, a um quadro de desproteção e negligência à criança. A roda dos expostos, no século XIX, no Brasil, também era considerada responsável pela alta taxa de mortalidade infantil, atribuída às amas de leite, que muitas vezes moravam em locais insalubres, o que favorecia a proliferação de doenças, como também os maus tratos causados por estas às crianças. Muitas crianças achavam-se em situação de abandono e desamparo nas ruas, esta realidade as empurrava para uma vida delinquência, prostituição e vadiagem, tornando-os assim, um problema social: A delinquência juvenil era, portanto, tratada com repressão, não havendo preocupação com a intervenção educativa como forma de prevenção. A criança estava inserida nesse mesmo contexto e era percebida como um problema social. Muitos menores encontravam-se sem amparo familiar, o que os impelia a condutas impróprias: a mendicância, a vadiagem, a prostituição, a delinqüência e o crime (MOURA, 1999 apud SILVA, s.d., p. 3) O Código Penal de 1890, incumbia à polícia a função de reprimir e controlar a desordem e a vadiagem. Portanto, a criança que cometesse algum crime estava sujeita a esse Código, tratadas de maneira repressiva. Pelas disposições do Código de 1890, a partir de nove anos a criança estava sujeita a sofrer processo criminal, sendo portanto, tratada como adulto, sendo que, entre 9 e 14 anos, o “menor” que tivesse cometido algum delito “sem discernimento” não seria responsabilizado criminalmente. (SILVA, s.d. p.3) Visando resolver o problema social da criança abandonada e da delinquência juvenil, formas de prevenção através da educação e da assistência, alguns juristas, médicos e filantropos se responsabilizaram em lutar por novas formas de prática, e passaram a exigir ações da parte do Estado. Neste contexto, o Juiz José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, elaborou o Código de Menores, regulamentado em 12 de outubro de 1927, através do decreto nº 17.943 A, que também teve a contribuição para sua formulação, juristas, pedagogos, parlamentares e higienistas brasileiros. 31 De acordo com Silva (s.d., p.6), houveram muitas divergências com relação ao Código de Menores: Um dos principais argumentos dos adversários contra sua aplicação é o fato do código resultar de uma delegação de poderes do Congresso ao Executivo e de conter disposições novas que alteram os Códigos Civil e Penal da República. O Sr. Ministro Pedro Santos, apesar de não ter negado a constitucionalidade do Código, afirmou que: “Não sendo oriundo do Legislativo, o Código de Menores não é lei. Não é também consolidação porque o executivo não é o consolidador.” (BRITO, 1929). Já o Supremo Tribunal Federal, intérprete da constituição, se manifestou pela constitucionalidade do Código, assim como o Sr.Ministro Heitor de Sousa. Depois da implantação do Código de Menores, o Estado iniciou uma fase com maior interferência no que refere ao trato aos menores abandonados e delinquentes juvenis. No governo de Getúlio Vargas, entre 1940 e 1943, foram criados: o Departamento Nacional da Criança (DNCr), o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Serviço Nacional do Comércio e a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Todos com a finalidade de amparar as crianças pobres e suas famílias. O SAM funcionava como um sistema penitenciário voltado somente para os menores de idade, na qual adolescentes que haviam praticado o ato infracional era internado em reformatórios ou casas de correção, e o menor abandonado seria encaminhado para ser ensinado algum ofício. O Serviço de Assistência ao Menor se configurou pelas internações, acreditava ser o mecanismo mais eficiente na recuperação de crianças e adolescentes, o que divergia do objetivo de promover assistência aos mesmos. “O objetivo do Estado nesse período era fazer com que menores se adequassem ao comportamento por ele estabelecido.” (OLIVEIRA, s.d., p.348) A Ditadura Militar em 1964, estabeleceu um estado de autoritarismo e congelamento do avanço da democracia no país. Com a elaboração de uma nova Constituição em 1967, instituiu-se os Atos Institucionais, que permitia repressões à liberdade de expressão. Neste período foram pautados dois documentos para a área da infância: A Lei 4.513 de 01/12/1964, que deu origem a Fundação Nacional do Bem- Estar do Menor e o Código de Menores, Lei 6.697 de 10/10/1979. 32 Na década de 1960, a SAM passou a utilizar um sistema repressivo e desumano, não cumprindo o seu objetivo inicial que era de promover assistência, o que acabou por levar na extinção e a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). O regulamento estabelecido pela FUNABEM era contrário à metodologia utilizada pela SAM. Visava a integração de crianças e adolescentes na comunidade através de programas, sempre buscando valorizar a família. A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor que tinha como objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem Estar do Menor, herdando da SAM o prédio e pessoal e com isso, toda sua cultura organizacional. A FUNABEM propunha-se a ser a grande instituição de assistência à infância, cuja linha de ação tinha na internação, tantos dos abandonados e carentes como dos infratores, seu principal foco. (LORENZI, 2007, p.2) O Código de Menores de 1979, foi uma releitura do de 27, mantendo a mesma linha arbitrária, repressiva e assistencialista perante crianças e adolescentes. Essa lei também adotou a doutrina da situação irregular, que ocupou espaço no âmbito jurídico infanto-juvenil, era restrita e tratava aqueles que se encaixavam no perfil estabelecido no art. 2º do Código de Menores: Compreendia o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde, e instrução obrigatória, em razão da falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; as vítimas de maus-tratos; os que estavam em perigo moral por se encontrarem em ambientes ou atividades contrárias aos bons costumes; o autor da infração penal e ainda todos os menores que apresentassem “desvio de conduta em virtude da grave inadaptação familiar ou comunitária”. (AMIN, s.d., p.54) O Juiz de Menores era o responsável por controlar as funções a administrativas e jurisdicionais. O atendimento efetuado pelas entidades de internação eram pautados no controle social. A responsabilidade de educar esses menores era de suas famílias, porém, se as mesmas fracassassem nessa obrigação, por questões de incapacidade material ou emocional, ou por não conseguirem afastá-los da marginalidade, ficaria a cargo do Estado, o dever de corrigi-los através da internação. Era uma prática de 33 segregação, pois apenas menores de famílias pobres eram mantidos em detenção por instituições mantidas pela Febem. Ao mesmo tempo que o sistema educacional brasileiro foi afetado pela Doutrina da Segurança Nacional, com a introdução de elementos curriculares que reforçassem os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a educação das crianças e sob a tutela da Funabem/Febem passou a ser feita segundo os preceitos do militarismo, com ênfase na segurança, na disciplina e na obediência. (SILVA, 2001, p.6) Em síntese, a situação irregular era restrita apenas ao público infanto-juvenil. Não era uma doutrina que garantia direitos, agia apenas na consequência do problema, e não na sua causa. Era um Direito do Menor, ou seja, que agia sobre ele, como objeto de proteção e não como sujeito de direitos. Daí a grande dificuldade de, por exemplo, exigir do Poder Público construção de escolas, atendimento pré- natal, transporte escolar, direitos fundamentais que, por não se encontrarem previsão no código menorista, não eram, em princípio, possíveis de tutela jurídica. (AMIN, s.d., p.55) Os princípios da Declaração de Genebra, em 1924, sobre os Direitos da Criança e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, não tiveram nenhuma relevância na elaboração dos Códigos de 1927 e 1979, apesar da postura receptiva dos profissionais à discussões sobre o tema. A Doutrina da Proteção Integral do Menor foi enunciada inicialmente na Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8º Congresso da Associação Internacional dos Juízes de Menores, (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido de que não era função do Poder Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao tratamento médico dos deficientes. (SILVA, 2001, p.7) Em contrapartida, a doutrina da proteção integral rompe com esse padrão estabelecido de situação irregular e adquire os valores inscritos na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. 34 A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança foi um marco bastante significativo, pois foi a partir dela que estabeleceram-se bases para a implantação de uma doutrina de proteção integral. Seus efeitos foram tão significativos que, logo em seguida, outras medidas visando à proteção à infância foram tomadas, como a Cúpula Mundial de Presidentes (estabelecendo um plano de ação de 10 anos em favor da infância) e a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, por meio da Lei nº 8.069/90. (OLIVEIRA, s.d., p.344) Vale ressaltar, que o primeiro documento internacional que apresentou preocupação em reconhecer os direitos da criança e do adolescente foi a Declaração dos Direitos da Criança de Genebra, em 1924, favorecida pela Liga das Nações. A Declaração Universal dos Direitos da Criança, amparada pela ONU, em 1959, foi a grande referência no reconhecimento de crianças como sujeitos de direitos, merecedores de proteção e cuidados excepcionais. O documento estabeleceu, dentre outros princípios: proteção especial para o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual; educação gratuita e compulsória; prioridade em proteção e socorro; proteção contra negligência, crueldade e exploração; proteção contra os atos de discriminação. (AMIN, s.d., p.53) A ONU, em 1979, preocupada principalmente com os direitos fundamentais, organizou um grupo para planejar o documento da Convenção dos Direitos da Criança, que foi aprovado em novembro de 1989. Pela primeira vez, foi adotada a doutrina da proteção integral fundada em três pilares: 1) reconhecimento da peculiar condição da criança e jovem como pessoa em desenvolvimento, titular de proteção especial; 2) crianças e jovens têm direito à convivência familiar; 3) as Nações subscritoras obrigam-se a assegurar os direitos insculpidos na Convenção com absoluta prioridade.(AMIN, s.d., p.54) Em 1990, foi realizado o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, na ocasião foi assinada a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança, por representantes de 80 países, incluindo o Brasil. 35 No Brasil, no início dos anos 1980, diante do cenário político e social de repressão e autoritarismo causado pela Ditadura Militar, buscava-se avidamente o resgate da democracia e dos direitos humanos, a pressão da população juntamente com as organizações sociais, levou a promulgação da Constituição Federal em 1988, que assegurava prioridade às crianças, adolescentes e aos jovens, direitos fundamentais como saúde, educação, direito à vida, respeito, lazer, entre outros. O Artigo 226 incorporou todos os preceitos das Cartas Internacionais de 45, 48, 51, 66, 68, 69 e 79, no que se refere à proteção à mulher e a família, mas foi no Artigo 227, ao exigir uma lei específica que o regulamentasse, que possibilitou, através do Estatuto da Criança e do Adolescente, finalmente aprovado em 13 de julho de 1990, que o constituinte incorporou como obrigação, da família da sociedade e do Estado, assegurar com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente. (SILVA, 2001, p.8) O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi assinado, pelo então presidente na época, Fernando Collor de Mello, após o rompimento com a Ditadura Militar. O Estatuto instaurou a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, na qual conceituou como criança pessoa até doze anos incompletos, e adolescente pessoa entre doze e dezoito anos, impondo-lhes direitos e deveres legais. A partir daí, os estereótipos de “menor”, “abandonado” e “infrator” foram eliminados e todos foram classificados como crianças e adolescentes em situação de risco. O ECA possibilitou que crianças e adolescentes se tornassem indivíduos detentores de direitos fundamentais, como está explícito no Art. 7º: A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e a saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. (BRASIL, 1990, p.26) Nesse mesmo contexto, torna-os livres de todas as formas de maus-tratos, causados tanto pela família, como por agentes públicos: 36 Art.18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Art.18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, trata-los, educá-los ou protegê-los. (BRASIL, 1990, p.28) A família, seja ela natural ou substituta, tem o dever de assegurar o bem-estar e a convivência familiar de suas crianças e adolescentes, com poder exercido igualmente pelo pai e pela mãe, cabendo aos mesmos a responsabilidade de sustentar os filhos menores e resguardá-los em um ambiente isento de pessoas usuárias de substâncias entorpecentes. O conceito de família natural é descrito no Art. 25 do ECA: “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.” (BRASIL, 1990, p.30) No caso da família substituta, a inserção da criança ou adolescente se fará por meio da guarda, tutela ou adoção, nos termos da lei e sob supervisão periódica de uma equipe interprofissional, na qual a opinião dos indivíduos (crianças e adolescentes) será sempre considerada. A comunidade, fração da sociedade que é mais próxima das crianças e adolescentes, morando mesma região, compartilhando dos mesmos costumes, por exemplos, vizinhos, integrantes da escola e da igreja, é também responsável por resguardar os direitos deste grupo. Pela proximidade com suas crianças e jovens, possui melhores condições de identificar violação de seus direito ou comportamento desregrado da criança ou adolescente, que os colocam em risco ou que prejudiquem a boa convivência. (AMIN, s.d., p.61) O Estatuto determina ao Poder Público em todas as esferas legislativa, judiciária e executiva, preservar e respeitar, com superioridade, os direitos fundamentais infanto-juvenis. 37 Ao Poder Judiciário é atribuído a defesa dos direitos, promovidos e fiscalizados pelo Ministério Público e Conselhos Tutelares. A responsabilidade de formular as políticas nacionais, estaduais e municipais, estão a cargo dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais. Mesmo no ECA, a Justiça da Infância e da Juventude e o juiz continuaram com a possibilidade de intervenção junto à família e a criança nos casos típicos de Direito Processual Civil e Penal, como guarda, tutela, adoção, investigação de paternidade e maus-tratos. (SILVA, 2001, p.9) O juiz passou a ser assessorado por uma equipe técnica composta por no mínimo, um psicólogo e um assistente social, sendo do juiz a maior autoridade, concedida pelo ECA ao Poder Judiciário. Diferentemente do Código de 1979, ao qual conferia ao magistrado total liberdade de consulta ou não. O ECA inaugurou uma nova ordem jurídica e institucional para o trato das questões da criança e do adolescente, estabelecendo limites à ação do Estado, do Juiz, da Polícia, das Empresas, dos adultos e mesmo dos pais, mas não foi capaz ainda de alterar significativamente a realidade da criança e do adolescente. A mudança de nomenclatura, substituindo os rótulos pejorativos de “menor”, “infrator”, “abandonado” e etc., estabeleceu a cultura do “politicamente correto”, mas quem estava nas ruas ou nas instituições antes do ECA, hoje, se adulto, está no Sistema Penitenciário ou continua sendo portador das marcas e dos estigmas incorporados durante a infância. (SILVA, 2001, p.9) Hoje em dia, o ECA é alvo de preconceito por uma parte da sociedade, que ao determinar limites com relação a autoridade sobre a criança e ao adolescente, reforça o pensamento de impunidade às infrações cometidas por estes. 2.2 Das políticas públicas voltadas à juventude Segundo a UNESCO, a definição de juventude se caracteriza como o ciclo etário dos 15 aos 21 anos de idade. Porém, essa definição é um tanto limitada, pois 38 determinar o conceito de juventude envolve uma série de fatores culturais, sociais, biológicos e psicológicos que variam de acordo com cada sociedade ou país. Embora a juventude seja considerada, geralmente, como uma totalidade cujo principal atributo é dado pela faixa etária na qual está circunscrita, deve-se tomá-la também como um conjunto social diversificado, para que classe social, à situação econômica, aos interesses e oportunidades ocupacionais e educacionais, específicos. (KERBAUY, 2005, p.195) No Brasil, segundo a Lei nº 11.129/2005, é considerado jovem pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade, subdividos em três categorias: adolescente – jovem (15 a 17 anos); jovem – jovem (18 a 25 anos) e adulto – jovem (26 a 29 anos). O tema juventude como um período de transição de um ciclo de vida, quando os jovens tornam-se membros da sociedade assumindo papéis adultos, é constituído como categoria de análise pela sociologia funcionalista. É nesse sentido que a ênfase da sociologia funcionalista e quase que de toda sociologia preocupada com o tema da juventude recai sobre o processo de socialização vivido pelos jovens e sobre as possíveis disfunções nele encontradas. Como a juventude é pensada como um processo de desenvolvimento social e pessoal de capacidades e ajustes aos papéis adultos, são falhas nesse desenvolvimentoe ajuste que se constituem em temas de preocupação social. É nesse sentido que a juventude só está presente para o pensamento e a para a ação social como “problema”: como objeto de falha, disfunção ou anomia no processo de integração social; e, numa perspectiva mais abrangente, como tema de risco para a própria continuidade social. (ABRAMO,1997, p.29) O principal foco dessa preocupação é do jovem como futuro componente da sociedade e adaptado a ela. Existem propostas que procuram determinar uma nova condição juvenil na sociedade contemporânea associadas: . ao quase desaparecimento da infância – e ao consequente prolongamento da juventude -, com o adiantamento precoce da adolescência e o retardamento da juventude até depois dos 30 anos; 39 . às dificuldades das sociedades atuais em facilitar o trânsito da juventude pelo circuito família-escola-emprego, no mundo adulto; . à influência dos meios de comunicação que (1) traduzem uma cultura juvenil com características quase universais, heterogêneas e inconstantes, e que (2) estabelecem um paralelo contraditório com a transmissão cultural das instituições tradicionais (família, escola e emprego), que se debilitaram devido ao não-cumprimento de suas promessas e à perda de sua eficácia simbólica, como ordenadoras da sociedade. (KERBAUY, 2005, p.195) Com relação às políticas públicas, no Brasil, até então, não havia a prática de políticas destinadas exclusivamente aos jovens, diferentemente do resto do mundo. Na Europa e Estados Unidos a formulação de políticas para jovens e a designação de instituições governamentais responsáveis por sua implementação têm se desenvolvido ao longo do século; nos países de língua espanhola da América Latina, esse fenômeno, de modo geral, ganha significação a partir dos anos 80, principalmente como a CEPAL, ONU e o governo da Espanha, gerando algumas iniciativas de cooperação regional e Ibero-americana, com intercâmbio de informações e experiências, promoção de capacitação técnica, de encontros para realização de diagnósticos e discussão de políticas. (ABRAMO, 1997, p.26) No Brasil e no mundo, o processo de elaboração de políticas públicas para a juventude se construiu de maneira complexa e constante, onde não havia uma participação conjunta entre as esferas de poder do Estado. O investimento na educação se tornou a principal política na busca pela inserção social das futuras gerações. Na década de 1950, o maior problema social da juventude era o grande número de envolvimentos em atos de transgressão e delinquência. A educação se tornou um importante mecanismo de ascensão social, mas ao longo do tempo esse artifício perdeu seu valor devido a decadência na qualidade do ensino. ... década de 50, considerada como um momento de inclusão dos jovens aos processos de modernização, por meio de políticas educativas. Os dados estatísticos mostram que é a partir desse período que se processa a admissão maciça de crianças, adolescentes e jovens nos ensino primário e 40 médio, tendo o Estado como instância definidora da formulação e implementação destas políticas. (KERBAUY, 2005, p.197) Os jovens eram incentivados a ocupar seu tempo livre com atividades de profissionalização, preparando-se assim, para tornar-se um adulto produtivo, responsável pelo progresso do país. Diante dos altos índices de delinquência juvenil nos setores marginalizados da sociedade, o Estado buscou medidas educacionais e controladoras a fim de conter a delinquência que afetava os setores operários e de classe média. O Código de Menores, de 1927 – (...) orientou as políticas para os jovens até sua revogação, no final da década de 70. A tônica da tutela esteve presente também no Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), criado em 1941. A substituição da SAM pela, em 1964, pela Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM), serviu também como que para consagrar definitivamente a idéia de o jovem (especialmente o pobre) ser um “infrator em potencial” (...). Ao Estado caberia o papel de intervir para garantir o modelo de integração defendido pela sociedade. (KERBAUY, 2005, p.198) No Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, jovens de classe média, envolvidos com partidos de esquerda, influenciados pela revolução cubana, apropriaram-se de um perfil desafiador e contestatório ao sistema político, cultural e moral. Através dos movimentos estudantis, a juventude apareceu como portadora de uma transformação na sociedade contra o sistema autoritário do Estado, que em resposta às recusas da juventude de se adaptar a esse sistema, foi a execução de violência e repressão policial, visando a total extinção desses movimentos. A juventude dos anos 1970 foi considerada o modelo ideal de atuação jovem frente ao cenário político e cultural e moral da época, diferentemente da geração dos anos 80, categorizada como conservadora, apática e individualista. Apesar dessa imagem formada sobre os jovens dos anos 80, o Estado não cedeu em nada no exercício de seu papel controlador, especialmente ao lidar com jovens pertencentes ou ligados aos grupos surgidos em estratos populares (as gangues juvenis, de punks, as “galeras” de modo geral) e com jovens de vivência e expressão urbanas, principais vítimas da deterioração da qualidade de vida, que atinge principalmente as camadas populares, e do 41 empobrecimento generalizado da população latino-americana. (KERBAUY, 2005, p.199) Somente a partir dos anos 1990 no Brasil, pode-se notar uma preocupação especial para com os jovens na elaboração e implementação de políticas específicas. Porém, os governos ao planejarem políticas de juventude como destinadas a uma determinada realidade, criaram apenas políticas de governo, tendo em vista que percebe-se a ausência da participação dos jovens e suas sentenças coletivas no desenvolvimento das políticas de juventude, o que levou a criação de um modelo hegemônico e com características imediatistas e compensatórias. Um importante referencial sobre infância e adolescência no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desde a sua publicação, em 1990, passou a considerar crianças e adolescentes como cidadãos em desenvolvimento, ancorados numa concepção plena de direitos. No entanto, a juventude não surge, nesse contexto, como protagonista com identidade própria, uma vez que parece reforçar a imagem do jovem como um problema, especialmente em questões relacionadas à violência (...). A partir dessa concepção limitada, os programas governamentais procuram apenas – e nem sempre com sucesso – minimizar a potencial ameaça que os jovens parecem representar para a sociedade. (KERBAUY, 2005, p.194) Aprovada em 1993, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), implementou o Sistema Descentralizado e Participativo da Assistência Social, na qual foram pautadas também ações para a adolescência e juventude. Na década de 1990, os índices de desemprego juvenil e a intensificação da precarização social impulsionaram a efetivação de políticas de inclusão na sociedade, em meio a uma crise do Estado decorrente da soberania das políticas neoliberais. Observa-se, a partir dos meados dos anos 1990, nos planos local e regional, o aparecimento de organismos públicos destinados a articular ações no âmbito do poder executivo e estabelecer parcerias com a sociedade civil, tendo em vista a implantação de projetos ou programas de ações para jovens, alguns financiados pela esfera federal. (...) Constata-se que debates e programas desenvolvidos por organizações não-governamentais foram importantes como fomentadores de novas idéias para a ação do governo municipal. (SPOSITO; CARRANO, 2003, p.33) 42 ONGs, associações beneficentes, instituições de assistência, entre outras, há mais tempo e em maior quantidade, têm realizado
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