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A impuTAção dolosA no cAso do rAchA Em BErlim comEnTários à dEcisão do TriBunAl dE BErlim, dE 27 dE fEVErEiro dE 2017 - (535 Ks) 251 Js 52/16 (8/16)

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EDUARDo vIAnA / ADRIAno tEIxEIRA
A impuTAção dolosA no cAso do “rAchA Em BErlim”
comEnTários à dEcisão do TriBunAl dE BErlim, 
dE 27 dE fEVErEiro dE 2017 - (535 Ks) 251 Js 52/16 (8/16)
IntEntIonAL ConDUCt on thE “BERLIn StREEt-RACE” CASE
CoMMEntS to thE BERLIn CoURt DECISIon oF FEBRUARy 27, 
2017 - (535 KS) 251 JS 52/16 (8/16)
LA IMPUtACIón DoLoSA En EL CASo DE LA 
‘‘CARRERA ILEgAL En BERLín”
CoMEntARIoS A LA DECISIón DEL tRIBUnAL DE BERLín 
DE 27 DE FEBRERo DE 2017 - (535 KS) 251 JS 52/16 (8/16)
Eduardo Viana 
Doutor e Mestre em Direito Penal pela UERJ;
Estágio doutoral na Universität Augsburg (Alemanha).
Professor adjunto de Direito Penal da Universidade Estadual 
de Santa Cruz – Bahia e da Fainor, Bahia.
Adriano Teixeira
Doutor e Mestre em Direito
pela Universidade Ludwig-Maximilian de Munique (Alemanha), 
consultor e advogado.
Resumo: 
O artigo aborda a questão do dolo eventual nos casos de “racha” entre veículos automotores,
à luz da decisão do Tribunal de Berlim de 27 de fevereiro de 2017, bem como do acórdão do Tri-
bunal Federal da Alemanha. Apresentam-se e analisam-se os posicionamentos da crítica cientí-
fica a respeito, discutindo-se sobretudo a pertinência da exigência do elemento volitivo do dolo.
Palavras chave: 
Racha, dolo, elemento volitivo.
Abstract: 
The article addresses the issue of criminal intent in cases of "cars street race" in light of the
Berlin courts decision of February 27, 2017, as well as the judgment of the Federal Court of Ger-
many. We present and analyze the positions of scientific criticism about it, discussing above all
the pertinence of the specification of the volitional element of criminal intent.
Keywords:
Cars street race, criminal intent, volitional element.
Resumen: 
El artículo aborda la cuestión del dolo en los casos consecutivos de "carrera ilegal de coches”,
a la luz de la decisión del tribunal de Berlín de 27 de febrero de 2017, así como la sentencia del
Tribunal Federal de Alemania. Se presentan y analizan los posicionamientos de la crítica científica
al respecto, discutiendo sobre todo la pertinencia de la especificación del elemento volitivo del
dolo.
Palabras-clave: 
Carrera ilegal de coches, dolo, elemento volitivo.
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considErAçÕEs iniciAis
Incidentes no trânsito, principalmente os que resultam em vítimas fatais, colocam
desafios para o direito penal. Um desses desafios diz respeito à imputação subjetiva, ou
seja, se o comportamento causador da morte deve ser reprovado penalmente a título de
culpa ou de dolo. Mais precisamente, trata-se de determinar se o agente (no mais das vezes,
o condutor) agiu, para usar a terminologia clássica, com dolo eventual ou culpa consciente.
Um dos casos típicos em que tal indagação sói colocar-se, além das hipóteses de condução
sob efeito de álcool (BRASIL, 2007; 2011a, p. 7; 2011b, p. 6; 2014, p. 5; 2016, p. 6), são os even-
tos conhecidos como “racha” ou “pega”, em que condutores acordam em “apostar corrida”
em via pública (BRASIL, 1995; 2010; 2011c; 2012)1. 
Recentemente, o tribunal de Berlim (Landgericht Berlin – Lg Berlim) e, na sequên-
cia, o tribunal Federal Alemão (Bundesgerichtshof – Bgh) ocuparam-se dessa questão e
chegaram a resultados díspares: o tribunal de Berlim, em um caso extremo de racha,
considerou que, na hipótese, estava presente o dolo eventual de matar e condenou os
condutores à pena de prisão perpétua por homicídio qualificado. o Bgh, por sua vez, julgou
que a decisão do Lg Berlim havia se equivocado em três pontos fundamentais: (I) sustentou
a condenação na figura do dolo subsequente; (II) não conferiu valor suficiente ao fato de
que os próprios autores estariam se colocando em perigo; e (III) afirmou a coautoria, apesar
de inexistir um plano conjunto de realização do homicídio.
neste artigo trataremos detalhadamente da primeira decisão. Isso certamente
provocará no leitor o legítimo questionamento sobre o porquê deste modo de proceder.
Cremos que nossa opção está metodologicamente justificada pelo seguinte: a rigor, o Bgh
não negou definitivamente o dolo eventual ou anulou a decisão do tribunal de Berlim. Ele
apenas destacou que o deficiente sopesamento dos fatores objetivos e subjetivos que
envolvem o fato impediria o reconhecimento do dolo eventual e, em razão disso, remeteu
o caso novamente à instância inferior para que se realizasse outro juízo de valoração. é
verdade, como já advertido, que o Bgh tratou de dois pontos por ele considerados
essenciais para a determinação do dolo: a dimensão temporal e o risco próprio assumido2.
Entretanto, o Bgh os desenvolveu apenas superficialmente – foram levantados apenas de
forma prévia e introdutória sobre o que será debatido em uma eventual reapreciação da
hipótese. Justamente por isso apresentaremos somente os dois argumentos centrais do
Bgh. À primeira vista – que é o nosso caso – o julgamento de revisão3 não oferece nada de
realmente (muito) interessante (hÖRnLE, 2018, p. 1576). Por isso, consideremos justificada
a redução do nosso âmbito de análise ao julgamento do Lg Berlim.
1 trataremos com mais detalhes a respeito da nossa jurisprudência em um outro estudo, a ser publicado
futuramente.
2 Para além da nossa breve incursão nestes dois argumentos, o leitor interessado nessa discussão também
poderá encontrar uma abordagem em Hörnle (2018, p. 1576), Puppe (2018, p. 323) e Preuß (2018, p. 345)
3 o processo chegou ao Bgh por meio da Revision, que, grosso modo, corresponde ao recurso especial
brasileiro e não guarda qualquer semelhança com a nossa revisão criminal. A respeito, veja-se a explicação
de Luís greco (2018, p. 67).
o certo é que essas decisões judiciais e o caso a elas subjacentes provocaram intensa
discussão na ciência penal alemã, resultando igualmente em juízos divergentes4. não apenas
pela polêmica e pela importância prática do problema, mas também pela dificuldade e pelo
fascínio das questões dogmáticas que o envolvem, afigura-nos oportuno apresentar ao leitor
brasileiro esse caso e as discussões judiciais e doutrinárias dele decorrentes.
Em linhas gerais, discutiremos se a decisão do Lg Berlim merece aprovação e tentare-
mos identificar se os critérios apontados para se chegar ao resultado são ou não corretos.
Para tanto, procederemos da seguinte maneira: (I) descreveremos o caso concreto tal qual
foi narrado na justiça alemã; (II) apresentaremos o teor e os argumentos das decisões do
Lg Berlim e do Bgh; (III) traçaremos uma síntese da discussão científica a respeito; e (Iv)
avançaremos nossas próprias considerações dogmáticas .
dEscrição do cAso 5
Dois jovens dirigindo automóveis potentes6 apostam uma corrida para saber quem
chegará primeiro em um determinado local. Ambos, por volta da 1:00 da manhã, dirigiam
por uma movimentada avenida de Berlim com velocidade excessiva, alcançando uma velo-
cidade de até 170 km/h (eram permitidos 50 km/h), quando, em um cruzamento, avançando
um sinal vermelho, o automóvel conduzido por um deles atinge violentamente um outro
veículo dirigido por Z 7, que cruzava a avenida com o sinal verde. Com o impacto, Z sofre di-
versas lesões graves, que levam à sua morte ainda no local8.
Da análise da sentença, destacamos os seguintes dados: (I) os corredores amadores
percorreram aproximadamente 3,4 km até o ponto de colisão; (II) no total, ultrapassaram
20 cruzamentos (ou bifurcações); (III) 13 destes cruzamentos, no momento do ato, estavam
com sinalização semafórica proibindo a passagem de veículos; (Iv) respeitando todas as re-
gras de trânsito, seriam necessários no mínimo oito minutos para percorrer aquela distância;
(v) um perito em acidentes afirmou, em juízo, que em mais de doze anos de trabalho so-
mente em ocorridos em rodovias havia visto tamanha destruição; (vI) com o impacto, o
Jeep Wrangler conduzido pela vítima foi arremessado pelos ares com uma velocidade apro-
ximada de 60 km/h, parando a uma distância de cerca de 70 m do ponto de colisão ;(vII)
essa colisão praticamente partiu o Jeep ao meio; (vIII) em razão da velocidade atingida, o
condutor do Audi, que se chocou com o veículo conduzido pela vítima, era absolutamente
incapaz de reagir à colisão9; (Ix) a avenida Kurfürstendamm, local onde o racha teve lugar,
é uma das principais avenidas da região administrativa de Charlottenburg-Wilmersdorf e
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4 Conferir, por exemplo, Jahn (2017, p. 700), Kubiciel e hoven (2017, p. 439), Puppe (2017a) e Walter (2017, p. 1350).
5 Essa descrição já se encontra em obra publicada por um dos autores (vIAnA, 2017, p. 276).
6 Um Mercedes-Benz AMg CLA 45 e um Audi S6 tDI 3.0 Quattro.
7 Será utilizado Z para proteger a identidade da vítima.
8 Para maior detalhamento das circunstâncias fáticas conferir a decisão publicada (AUtoR, 2017, p. 471-478).
9 o leitor também encontrará esse detalhamento em Preuß (2017, p. 303-304) e Puppe (2017a, p. 440).
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também é considerada uma das mais populares de Berlim; a avenida, dividida por um
pequeno canteiro central, tem duas pistas para cada lado10. 
As dEcisÕEs
A decisão do Tribunal de Berlim11
o tribunal de Berlim condenou os jovens por homicídio doloso qualificado (Mord)12,
conforme o § 211 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch – StgB) em coautoria (§ 25,
II, StgB), em concurso formal com lesão corporal perigosa (gefährliche Körperverletzung
– § 224 StgB) e periclitação dolosa do tráfego viário (vorsätzliche gefährdung des Stra-
ßenverkehrs – § 315c StgB). Deixemos de lado, por um momento, as imputações de lesão
corporal e periclitação do tráfego e nos concentremos na condenação por homicídio
doloso qualificado. Aqui abrimos um pequeno parêntese no que tange aos crimes de
homicídio no âmbito do direito penal alemão.
o StgB conhece dois tipos penais básicos de homicídio: Mord (§ 211 StgB) e totschlag
(§ 212 StgB). Curiosamente, o primeiro representa o delito mais grave, com previsão de pena
de prisão perpétua em regime fechado (embora revisável13), e o segundo (totschlag),
“menos grave”, ao qual se comina uma pena privativa de liberdade de cinco anos ou mais
(não há pena máxima cominada). o que caracteriza o Mord é a presença de elementos qua-
lificadores, tais como torpeza, insídia, crueldade e – o que interessa para o caso analisado –
emprego de meios que representam perigo comum. há um dissenso entre a jurisprudência
e a doutrina alemãs a respeito da relação entre esses dois delitos: a jurisprudência os consi-
dera tipos penais autônomos14, ao passo que a doutrina majoritária os enxerga como tipos
penais em gradação (tipo penal básico e tipo penal qualificado) (ESER; StERnBERg-LIEBEn,
2014; REngIER, 2016, p. 14). Para os propósitos deste comentário, não precisamos explorar
essa questão, de modo que, à guisa de simplificação, trataremos daqui por diante esses dis-
positivos como homicídio simples (§ 212 – totschlag) e homicídio qualificado (§ 211 – Mord).
Essa distinção é importante para a questão da imputação subjetiva: pelas circunstâncias do
crime, a imputação a título de dolo eventual ou culpa consciente significa a diferença entre
uma pena mínima de cinco anos ou multa (homicídio culposo, § 222 StgB) e uma pena de
prisão perpétua (§ 211 StgB).
10 Para que se tenha uma imagem visual do local, convidamos o leitor a visitar a plataforma eletrônica
Instant google Street view.
11 Lg Berlin JZ, 2017, p. 1062.
12 o tribunal também aplicou uma pena acessória: comunicou ao órgão responsável pelas habilitações no
país a proibição perpétua de concessão de novas carteiras de habilitação para os condutores.
13 Cumpridos 15 anos da pena, é possível determinar algo análogo ao nosso livramento condicional, de
acordo com o § 57 StgB.
14 BghSt 1, 368 (370); BghSt 50, 1 (5).
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voltemos à decisão do tribunal berlinense. Primeiramente, o tribunal dedicou algumas
linhas à fundamentação da coautoria, regulada no § 25, II, do StgB, que diz: “cometendo
várias pessoas o delito em conjunto, cada um será punido como autor” (conceito de coau-
tor). Esse ponto é importante, pois não se deve perder de vista que apenas um condutor
atingiu a vítima fatal. Assim, para condenar o outro condutor como autor do crime, é preciso
recorrer a algo que apenas a figura da coautoria propicia: a chamada “imputação recí-
proca”.15 no caso concreto, significa imputar a um condutor a colisão fatal provocada dire-
tamente pelo outro. nas palavras do tribunal, há coautoria quando um agente não deseja
apenas favorecer, promover, dar suporte à atividade alheia, mas sim quando ele considera
sua contribuição como parte integrante da ação do outro e, de modo inverso, a atividade
alheia como complemento de sua própria ação. Isso teria se manifestado no caso em exame,
pois os acusados acordaram espontaneamente em realizar uma corrida de carros, incita-
ram-se mutuamente a medir forças em uma competição automobilística e, juntos, ignoraram
conscientemente o potencial perigo de acidentes. Essa medição de forças materializada na
corrida, segundo o tribunal, representaria um comportamento marcado por um domínio
do fato compartilhado por ambos. Juntos, os réus teriam determinado o trajeto e o desen-
rolar da corrida, arriscando-se conjuntamente e, concomitantemente, produzido, em união
de forças, os perigos para o entorno.
Em seguida, o tribunal enfrentou a questão central do caso, a saber: a presença do
dolo eventual. Como de praxe na jurisprudência alemã, inicia-se apresentando os conceitos
teóricos aplicáveis ao caso concreto. In casu, afirmou-se que dolo eventual e culpa cons-
ciente diferenciam-se na medida em que o autor negligente (culposo), embora vislumbre a
possibilidade de ocorrência do resultado, não o aprova e confia que não vai ocorrer; ao passo
que o agente com dolo eventual “aprova” o resultado na medida em que o assume como
“parte do pacote” de sua ação (billigend in Kauf nimmt) ou que, ao menos, se resigna com
a realização típica (sich damit abfindet). Essas formulações teóricas para a estrutura do crime
doloso demonstram, como tradicionalmente se entende aqui e acolá, que o dolo é com-
posto por um elemento cognitivo e por um elemento volitivo, os quais devem ser provados
separadamente na análise do concreto. Essa análise, segue a decisão, exige uma apreciação
global de todos os fatores circundantes do fato – objetivos e subjetivos –, sendo que, para
a verificação do elemento volitivo, ordinariamente se faz necessário que o juiz leve em con-
sideração a personalidade do autor, a sua motivação e a sua condição psicológica no mo-
mento da ação delitiva16. o tribunal ressaltou que o fato de o agente não querer o resultado
não exclui a afirmação do dolo eventual, basta que ele “aceite” o resultado com indiferença.
Dito de outro modo, um resultado tipicamente indesejado não exclui a “assunção aprova-
dora” (billigende Inkaufnahme). Fazendo alusão à recente jurisprudência do Bgh, o tribunal
berlinense afirmou que o tamanho do perigo de morte causado e conhecido pelo autor tem
consequência também para o elemento volitivo do dolo. A presença de um extraordinário
e visualizável risco de morte é suficiente para fundamentar a atribuição (Zuschreibung) do
15 A respeito desse conceito ver greco et al. (2014, p. 58).
16 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1064).
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dolo eventual17. nessa hipótese, com arrimo em Puppe (2017a), o tribunal sugere que, caso
o juiz queira negar o dolo, ele precisa de uma fundamentação especial para tanto18. 
todos esses elementos necessários para a imputação dolosa são afirmados pelo tri-
bunal em relação ao caso concreto. Primeiro, destacaremos aquilo que, na concepção do
tribunal, milita a favor da presença do elemento cognitivo e, posteriormente, os dados que
têm força para afirmar o elemento volitivo.
Em relação ao elemento cognitivo, ressaltou-se que os acusados conduziam veículos
robustos e potentes e percorreram 2,5 km em altíssima velocidade,avançando vários sinais
vermelhos na rua mais movimentada e frequentada de Berlim, na qual, mesmo à noite, se
pode verificar um tráfego considerável de ônibus, táxis, carros privados e pedestres19. tudo
isso indicaria a presença do elemento cognitivo do dolo no caso em análise20. 
também se afirmou o elemento volitivo, já que os réus teriam agido com indiferença
(Gleichgültigkeit) em relação ao resultado fatal, embora não o desejassem. Devido à extrema
velocidade com que conduziam, ao passar pelo cruzamento onde houve a colisão, os réus
não poderiam mais confiar que tudo sairia bem, de modo que teriam relegado ao acaso as
consequências de suas ações21. Possuídos pela vontade de ganhar a corrida, não realizaram
– e nem poderiam, em virtude da velocidade que imprimiram nos veículos – qualquer movi-
mento para evitar um eventual acidente, qualquer manobra de desvio ou frenagem22. 
Dois argumentos defensivos foram refutados pelo tribunal: conforme o primeiro, afir-
mar que os agentes representaram mentalmente a possibilidade de lesão ou morte de ter-
ceiros significaria dizer que também teriam imaginado a própria lesão ou a própria morte,
ou seja, que teriam agido de forma “kamikaze”; de acordo com o segundo, também seria
um contrassenso ignorar o fato de os condutores obviamente não desejarem que seus “san-
tuários sobre quatro rodas” sofressem qualquer dano. Contra o primeiro desses argumen-
tos, aduziu-se que os potentes e robustos carros utilizados pelos réus lhes forneciam uma
sensação especial de segurança, como se estivessem em um tanque de guerra23. Em relação
ao segundo, argumentou-se que, no momento do êxtase provocado pela adrenalina, os
possíveis pensamentos sobre danos ao automóvel são suprimidos.
Quanto ao tipo de pena a ser imputado aos condutores, sustentou-se a condenação
por homicídio qualificado (§ 211 StgB) baseado na utilização, para o cometimento do crime,
de meios que representam perigo comum (gemeingefährliche Mittel). no caso em questão,
considerou-se que os réus produziram um verdadeiro “campo de batalha” (Schlachtfeld),
17 vale advertir o leitor que, na jurisprudência do Bgh, mesmo nos casos de perigo objetivo extremo, é
possível negar o dolo eventual. Isso se dá, especialmente, na constelação de casos que se ajusta à chamada
teoria do obstáculo psíquico (Hemmschwellentheorie). Sobre isso, ver viana (2017, p. 305).
18 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1064).
19 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1065).
20 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1066).
21 Isso inviabiliza ser cogitada uma imputação a título de culpa e, consequentemente, impede ser reconhe-
cida a realização do tipo previsto no § 222 do StgB.
22 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1066).
23 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1067).
criando, na situação concreta, um risco para os condutores e as pessoas que se encontravam
no entorno do acidente. Apenas por sorte não houve, segundo o tribunal, mais feridos ou
mortos24. 
A decisão do BGh: argumentos centrais
Como antecipamos, a rigor, a decisão do Bgh não nos oferece nada de extraordinaria-
mente novo a ponto de justificar uma análise isolada de sua decisão. Dois argumentos ma-
nejados pelo tribunal, contudo, merecem uma abordagem, ainda que breve. vamos a eles.
De saída, o Bgh questionou o marco temporal para a afirmação do dolo tal qual fixado
pelo tribunal de Berlim. Segundo o Bgh, um delito doloso se configura apenas quando, após
tomada a resolução delitiva (Tatentschluss), ainda procede ao menos uma ação que desem-
bocará no resultado. Por exemplo: a decisão de apertar o gatilho precede o disparo. Assim,
o dolo de matar teria de ser provado antes da entrada dos condutores no cruzamento, pois,
depois disso, como o tribunal de Berlim afirmou, eles nada mais podiam fazer. A possível
circunstância de que, no momento do atravessar do cruzamento, em que mais nada poderia
ser feito, os agentes possuíam dolo de matar é irrelevante. tratar-se-ia do que sói chamar-
se de dolus subsequens25. 
As considerações teóricas gerais sobre o dolo carreadas pelo Bgh não diferem subs-
tancialmente das expostas pelo tribunal de Berlim. no entanto, o Bgh aponta falhas – mais
precisamente omissões – na análise do caso por parte da instância anterior. Em primeiro
lugar, aponta que uma questão fundamental para análise do dolo deixou de ser enfrentada,
a saber: o fato de se colocarem em perigo, também, os acusados. o Bgh aduz que, em casos
como esse – de comportamentos arriscados no trânsito, nos quais o interesse primário dos
envolvidos não é lesionar terceiros –, a possibilidade de lesão dos agentes faz que estes ten-
dencialmente acreditem em um desfecho positivo – o que afastaria o dolo, segundo a (tra-
dicional) fórmula jurisprudencial. o argumento do tribunal de Berlim, de que os condutores
se sentiam seguros nos seus automóveis, não teria sido acompanhado por nenhuma evi-
dência, seja do caso concreto, seja do senso comum26. Além disso, embora a instância tenha
negado um “dolo de autolesão” em relação aos acusados, ela afirmou o dolo de lesão cor-
poral relacionado à pessoa que estava no banco do passageiro do carro de um dos acusados.
Assim, o tribunal de Berlim analisou de modo contraditório e ambivalente a representação
de perigo dos acusados em relação a ocupantes do mesmo carro (negativa para o condutor
e positiva para o passageiro)27. 
Agora, conhecidos os argumentos de ambos os tribunais, passaremos ao debate dou-
trinário travado, especialmente, em razão da decisão do Lg Berlim. Em relação ao Bgh nos
ocuparemos, brevemente, do dolus subsequens e, um pouco mais detidamente, do fato de
os condutores colocarem a si mesmos em perigo, eis que esse argumento também é levan-
tado pela doutrina que discutiu a decisão do Lg Berlim.
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24 Lg Berlin JZ 2017, 1062 (1068).
25 Bgh nJW 2018, 1621 (1622).
26 Bgh nJW 2018, 1621 (1623).
27 Bgh nJW 2018, 1621 (1623).
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AnálisE douTrináriA
Como antecipamos, a decisão do tribunal de Berlim provocou um intenso debate na
ciência penal alemã28. Apesar de não ter sido o único caso de racha discutido nos tribunais
alemães29, o caso de Berlim exigiu especial atenção da literatura científica porque foi a pri-
meira vez que os condutores participantes de um racha foram condenados, não por homi-
cídio culposo, mas por homicídio qualificado doloso na modalidade eventual.
De saída, convém remarcar que a decisão do Lg Berlim merece aprovação. Isso não
significa que todos os argumentos ventilados são corretos e/ou necessários. há, portanto,
por parte dos autores, alguma concordância em relação ao resultado final, mas não em re-
lação ao caminho percorrido para se chegar a ele.
Analisaremos a decisão levando em consideração as opiniões científicas lançadas até
então, pontuando: (a) a presença do elemento cognitivo do dolo e (b) a presença do ele-
mento volitivo. Passemos, então, à análise do elemento cognitivo.
(a) Elemento cognitivo
A questão que (tradicionalmente) se põe nesse caso é a seguinte: os condutores con-
sideraram a possibilidade de que seu comportamento poderia matar alguém? Como men-
cionamos acima, o Lg Berlim afirmou a presença do elemento cognitivo do dolo, sem
maiores problemas, com base nos elementos objetivos do caso concreto que indicariam
que os acusados teriam representado mentalmente a possibilidade (ou até mesmo a pro-
babilidade) de um infortúnio fatal, quais sejam: porte e potência dos veículos, excessiva ve-
locidade e tráfego ainda relativamente intenso na rua. o leitor poderia estranhar e objetar
que esses se tratam de elementos objetivos e não subjetivos, o que realmente estaria em
jogo. no entanto, embora o tribunal declare ser necessário perquirir a personalidade e a
motivação dos autores, não há outra saída metodológica senão apoiar-se em elementos ob-
jetivos, os quais, à míngua da existência de fatores que indiquem o contrário, apontem que
os agentes conheciam os perigos que produziam diante das circunstâncias, com base em
uma avaliação equilibrada do senso comum.Com efeito, aqueles que conduzem potentes
carros a 170 km/h numa avenida movimentada da cidade, ignorando semáforos vermelhos
e não procedendo a nenhuma medida de segurança que possa atenuar possíveis riscos não
tem qualquer razão para crer que tudo terminará bem30. 
tonio Walter (2017) põe em xeque o peso do elemento cognitivo a partir das conse-
quências, que retira do elemento volitivo. Ele parte da premissa que os jovens não queriam
ou não aprovavam o resultado morte, pois isso iria contra seu senso de sobrevivência (ar-
gumento de se colocar em perigo, ver a seguir (b)) e o amor que tinham pelos carros e pelas
28 Para além daqueles trabalhos já citados na nota de rodapé nº 7, vale destacar, também: herzberg, (2018,
p. 122), Krell (2018, p. 237), Kubiciel e Wachter (2018, p. 332), Preuß (2017, p. 303) e Puppe (2018, p. 326).
29 Bgh – 4 StR 501/16, nZv 3/2017, p. 135; Bgh – 4 StR 311/17, JR 7/2018, p. 348. Para outros casos na doutrina,
vide Krell (2018, p. 237), Puppe (2018, p. 326) e Preuß (2017, p. 345).
30 Com esse sentido concordam Kubiciel e hoven (2017, p. 440). também próxima a essa opinião é grüne-
wald (2017, p. 1070).
passageiras. tudo isso leva a crer que, interna e subjetivamente, esses jovens não travaram
o diálogo mental: “se algo acontecer, acontecido está” e, portanto, confiavam num desfe-
cho favorável (WALtER, 2017, p. 1350). Dessa ausência de aceitação do resultado, Walter
também deriva transcendência para o próprio elemento cognitivo: a inexistência daquele
diálogo mental (“o que acontecer, acontecido está”) implica reconhecer que os condutores
reprimiram a possibilidade de algo ruim acontecer. Em outros termos, eles não representa-
ram o real perigo: “Quem confia, está seguro de que tudo sairá bem” (WALtER, 2017, p.
1351, tradução nossa)31. Diante dos seus olhos estava, apenas, o “como” chegar triunfante
ao final da aventurosa corrida.
A objeção de Walter (2017) é metodologicamente equivocada e, de certa maneira, cir-
cular, pois parte da premissa não justificada da suposta ausência do elemento volitivo do
dolo. os elementos do dolo, mesmo na jurisprudência do Bgh, precisam ser comprovados
separadamente. Por uma exigência de lógica, a análise do elemento cognitivo (correspon-
dente à representação) precede a análise do elemento volitivo (correspondente ao “estar
de acordo com”). E isso porque somente se pode estar de acordo quando há representação.
noutros termos: é o conhecimento que condiciona a vontade e não o inverso, afinal, so-
mente posso querer aquilo que conheço. A posição de Walter (2017), injustificadamente,
nos leva à inversão dessa análise e, em últimos termos, à circularidade do argumento, afinal,
ele deriva dos indícios da ausência de querer a própria ausência de representação.
nesse sentido, convém remarcar que o importante não é saber se o indivíduo efetiva-
mente confiou, ou não, que tudo sairia bem, senão se, nas circunstâncias, esse indivíduo,
racionalmente, poderia confiar que nada de muito grave ocorreria. A evasiva da “pseudo-
confiança”, normalmente ventilada, isto é, averiguar em que o indivíduo confiava quando
acelerava a 170 km/h, abrirá as portas da imputação subjetiva culposa para os aventureiros,
pois esses dificilmente confiam que o seu comportamento desembocará em algo ruim32.
Isso pode ser facilmente comprovado, levantando-se a pergunta-teste a seguir para um hi-
potético participante de racha: “o que você considera quando acelera a 170 km/h durante o
racha?” Uma possível resposta seria “penso somente em vencer a corrida33” . Com isso
poderíamos retorquir a Walter (2017) sobre se essa representação (egoísta) do condutor
é suficiente para impedir uma imputação dolosa. Cremos que não, a seguir o leitor saberá
os porquês. Por ora, é possível seguir uma intuição: a ideação do próprio indivíduo sobre o
resultado que o seu comportamento pode produzir deve desinteressar à imputação subje-
tiva34. E deve ser assim porque a valoração sobre a representação do risco e o risco do com-
portamento não são a mesma coisa: a primeira é realizada pelo próprio indivíduo e a segunda
pelo direito. Se esse elemento merece, ou não, ser verdadeiramente discutido, isso é algo
que o leitor saberá logo adiante. Por ora, pareceu-nos importante já destacar o quanto ele
pode ser problemático.
REvIStA Do MInIStéRIo PúBLICo Do EStADo DE goIáS
86
31 no original: “Wer vertraut, der ist sich gewiss, dass es gutgehen werde” (WALtER, 2017, p. 1351).
32 Considerando que o direito precisa levar em conta a irracionalidade das ações porque a maioria dos au-
tores também são irracionais, estão contra isso Momsen (2018, p. 89) e Walter (2017, p. 1350).
33 Justamente por isso a afirmação de que não tinham como objetivo matar qualquer pessoa dos indivíduos
que participaram do racha em Berlim não causa qualquer surpresa.
34 Inclusive, também é possível pôr em xeque a tentativa de encontrar algum preciso estado mental no
indivíduo durante a realização do seu comportamento: quem saberá efetivamente o que alguém, em um
determinado momento, pensou ou quis? Antes disso, este quem chegou a pensar em algo?
EDUARDo vIAnA / ADRIAno tEIxEIRA
87
(b) Elemento volitivo
Respondida positivamente a pergunta sobre se os autores consideraram que o seu
comportamento era capaz de resultar morte, é necessário indagar se eles tiveram uma pos-
tura de assunção em relação a isso ou se, no mínimo, estavam de acordo. é neste segundo
elemento que se encontra, no dizer da doutrina, a quintessência da fronteira entre o dolo e
a culpa (KUBICIEL; WAChtER, 2017, p. 333). E a razão para isso está ancorada na premissa
de que a punição mais severa somente está justificada se vinculada ao diagnóstico psíquico
de que o indivíduo reconheceu o perigo e estava internamente de acordo com ele35.
As argumentações contrárias à decisão do Bgh alinham-se no sentido de que essa
aceitação não está evidente no caso em tela porque, como dito, isso implicaria reconhecer
que os indivíduos estariam assumindo um comportamento “kamikaze”, o que in casu não
ocorreu (MItSCh, 2017, p. 70). Assim sendo – e considerando apenas duas das fórmulas
ainda hoje propostas –, há o dolo eventual quando a ocorrência do resultado típico é prefe-
rível à renúncia do seu objetivo principal36 ou quando o autor apresenta uma assunção apro-
vadora do resultado. Em todas as fórmulas substitutivas da genuína vontade de realizar o
tipo penal, a literatura científica atribui à vontade uma carga semântica psicológica, isto é,
a interpreta como um verdadeiro estado psíquico (interno) do indivíduo.
há mais de cem anos, parcela da literatura científica alemã – e mais recentemente al-
gumas exceções na literatura brasileira37 – já demonstrou quais são os resultados a que che-
gamos quando argumentamos com base nessa perspectiva psicológica do dolo (LACMAnn,
1911, p. 158). Para recordar essa objeção centenária: imagine-se que dois fazendeiros brincam
de tiro ao alvo numa feira popular e decidem fazer uma aposta. o desafio: atirar no chapéu
da menina que se encontra vinte metros adiante sem a ferir. o prêmio: todo o patrimônio
do perdedor. o primeiro fazendeiro atira e ocorre o duplamente indesejado, a menina é
atingida e morre. neste caso, é óbvio que o atirador não quis, em sentido psicológico-des-
critivo, o resultado. Conclusão: aquele que pretende ser coerente com as premissas que
professa – leia-se, a literatura que defende um conceito psicológico de vontade – deve estar
disposto a atribuir ao atirador a realização de um homicídio culposo (gRECo, 2009, p. 887;
SoUZA SAntoS, 2008, p. 285). Em poucas palavras: deve estar disposto a assumir que a
morte da menina foi obra do azar.
é justamente por isso que, nesse âmbito, psicólogos e juristas não falam o mesmo
idioma, isto é, utilizam o termo querer em sentidos distintos. Para evitar uma decisão que
contraria a intuição, que é a que precisaríamos tomar no caso da menina, o Bgh retoma o
caminho da normatização do elemento volitivo38. na perspectiva jurídico-normativa não
35 Sobre os equívocos desteproceder, ver viana (2017, p. 147).
36 “Ist dem täter der eintritt des tatbestandlichen Erfolges liber, und deswegen handelt er schließlich auch”
(BUng, 2009, p. 184, itálico no original).
37 Para além dos autores deste artigo, Luís greco (2009, p. 885) também adota, ou já adotou, uma concep-
ção meramente cognitiva de dolo. negando a vontade em sentido psicológico, temos gomes (2017) e
Souza Santos (2008, p. 285). Repercutem, em maior ou menor extensão, as teorias que dispensam a von-
tade: Busato (2018, p. 381-382), Martinelli e Bem (2018, p. 466-468) e tavares (2018, p. 253-266).
38 originariamente exposta no famoso caso da correia de couro, BghSt 7, 363 e ss. ver também Bgh nStZ
2011, p. 211; Bgh nStZ-RR 2015, p. 109.
interessará ao dolo aquilo que o autor efetivamente considerou quando pôs em marcha o
seu comportamento, senão que é decisivo averiguar o que o autor, ante à imagem do risco
que se punha diante dos seus olhos, precisaria ter considerado. Fala-se, neste caso, em uma
“aprovação em sentido jurídico” (Billigen im Rechtssinne)39. 
Contra a admissibilidade do dolo, como antecipamos, foram levantadas objeções adi-
cionais: dolus subsequens e a exposição de si mesmo ao perigo. Essa última, que certamente
mais militaria em desfavor de uma imputação dolosa, move-se na seguinte quadra: quando
houver uma exposição do próprio condutor ao perigo, também seria preciso admitir a exis-
tência de um “dolo de autolesão”; e condutores de racha, em absoluto, são potenciais suicidas.
Ademais, que o objetivo do condutor é ganhar a corrida, o que obviamente não é compatível
com a assunção aprovadora de qualquer outro resultado (MItSCh, 2017, p. 70; WALtER, 2017,
p. 1531). A isso precisamos indagar: essa objeção efetivamente milita contra o dolo? Parece-
nos que a existência da possibilidade de autolesão, ainda que alta, não é, em absoluto, um in-
dicador definitivo de que estamos diante de uma conduta culposa. Com efeito, não há qualquer
dúvida quanto à correção da hipótese psicológica segundo a qual o condutor pode confiar
que tudo saia bem, mas há boas razões para considerar que isso é insuficiente para negar o
dolo. Portanto, esse (retórico) argumento de “morte não desejada” não nos convence.
A premissa de que condutor do racha acreditaria num desfecho livre de acidente pode
ser compreendida dentro de uma moldura argumentativa delineada por Roxin e greco (no
prelo)40. Segundo esses autores, numa ultrapassagem perigosa, em geral, não há dolo in-
tencional no comportamento. Isso porque, em uma tal situação de risco – e em que pese a
consciência desse risco – o condutor confia que a sua “destreza” evitará o resultado. Do
contrário, desistiria da sua ação, pois ele mesmo seria a primeira vítima do seu comporta-
mento (RoxIn; gRECo, no prelo). Mas é preciso ficar atento para o fato de que os autores
ressaltam que “por regra”, “normalmente” (in aller Regel) o resultado não será dolosamente
causado. Se consideramos a semântica, não é possível taxar, nem de longe, que um racha
pelas ruas movimentadas de uma cidade expressa uma hipótese de “normalidade”.
observando-se com cuidado a descrição de Roxin e greco (no prelo), é possível retirar
um importante elemento para a imputação subjetiva. Com efeito, em uma situação de risco,
o autor representa simultaneamente duas coisas: o (irracional) “tudo sairá bem”, mas, igual-
mente, o arriscado método de condução. E é justamente a representação desse letal método
de condução que deve ser valorada. Isso porque não se trata de considerar a consideração
que o indivíduo fez sobre a probabilidade de uma autolesão, senão a sua consideração da
probabilidade de lesão de terceiros. Aquele que ingressa em uma disputa automobilística
ilegal pelas ruas movimentadas da cidade, embora não realize um ataque direto contra o
corpo, em regra, reconhece a probabilidade de uma consequência fatal (EISELE, 2018, p.
552). o que ele “faz” com essa representação (se a reprime psiquicamente, se confia que
tudo sairá bem ou mantém-se indiferente) deve interessar somente ao seu patrimônio psí-
quico; mas o que ele “faz” apesar dessa representação, isso sim precisa interessar ao direito
penal. numa linguagem mais pedestre, o condutor do racha pode “jogar” com a própria
vida, mas não com a vida dos outros.
REvIStA Do MInIStéRIo PúBLICo Do EStADo DE goIáS
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39 Sobre esse modo de proceder em relação ao dolo e a correspondente crítica, ver viana (2017, p. 98).
40 o assunto é igualmente tratado por Schmidhäuser (1980), especialmente na página 244.
EDUARDo vIAnA / ADRIAno tEIxEIRA
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Para seguir argumentando com um leitor desconfiado das objeções aqui levantadas
sobre o quanto pode ser problemático recorrer a essa cabalística categoria do “confiar que
tudo sairá bem”, poderíamos lançar a esse leitor a seguinte pergunta: porventura estaríamos
dispostos a negar, sempre, uma imputação dolosa ao indivíduo que, sabendo da sua condi-
ção sorológica positiva para o vírus hIv, apesar de crer que não contaminará a(o) parceira(o)
porque o risco de transmissão é muito pequeno, mesmo assim, tem com essa(e) relações
sexuais desprotegidas, transmitindo efetivamente o vírus? A exemplo do racha, o agente
somente busca o prazer e, ao mesmo tempo, também faz malabarismos com a saúde física
dos outros. Por mais que seja forte a sua confiança de que não transmitirá o vírus à
parceira(o), isso, por si só, não pode afastar a possibilidade de averiguar o dolo. 
Por outro plano, também não está político-criminalmente justificada a razão pela qual
a representação do autor de que tudo sairá bem deve excluir o dolo. os limites deste artigo
não permitem uma fundamentação mais aprofundada, reservada para trabalhos futuros,
pelo que deixaremos aqui somente uma provocação: por que razão o direito deve valorar
positivamente a autoconsideração do risco realizada por condutor aventureiro (leia-se, ex-
cluir o dolo) e a vítima deve pagar o preço pela sede de prazer absoluto41? não cremos ser
possível uma fundamentação razoável para superar essa perplexidade. Justamente por isso,
o fundamental para a imputação subjetiva é que o terceiro racional averigue a intensidade
do perigo e o grau de vulnerabilidade da vítima para verificar se, no caso concreto, o condu-
tor estabeleceu ou não um compromisso cognitivo com o perigo de realização do tipo
(vIAnA, 2017, p. 251). Disso podemos derivar a seguinte conclusão: nem todos os casos de
excesso de velocidade implicarão, necessariamente, uma imputação dolosa, tampouco uma
imputação culposa. Para dar um exemplo: nem todos que conduzem com velocidade exa-
geradamente superior à permitida pelo local expressam um compromisso cognitivo com o
perigo de morte, basta imaginar a não incomum atitude de quase todo condutor inexpe-
riente acelerar demasiadamente seu veículo. Essa hipótese, como é possível intuir, difere
completamente dos hedonistas que se esforçam (somente) em buscar a emoção.
A segunda objeção adicional – essa levantada somente pelo Bgh – diz respeito à
dimensão temporal do dolo. o Bgh recorreu a uma consideração um tanto quanto óbvia:
nos delitos comissivos o decisivo para o dolo é o momento no qual o indivíduo conduz a
sua ação à realização do tipo – fala-se, neste caso, em princípio da coincidência (hRUS-
ChKA, 1988, p. 4; JoECKS, 2017; KÜhL, 2017, p. 89; RoxIn; gRECo, no prelo; vIAnA, 2017,
p. 19-82). Com essa premissa em mente, argumentou-se que os condutores estavam
diante de um “dolo de matar” somente no momento do cruzamento fatal, ou seja, no
momento em que eles não poderiam mais reagir para evitar a colisão. Essa questão fica
melhor esclarecida com o próprio exemplo usado pelo Bgh para afirmar o dolus subse-
quens. Para o Bgh, o caso do racha se assemelha à seguinte situação: “imagine-se que
alguém, por travessura, jogue uma rocha morro abaixo; após fazê-lo, reconhece que
abaixo passa o seu inimigo. Esse alguém, então, pensa: ‘isso vem bem a calhar’. Esse pen-
samento posterior é, contudo, insignificante, eis que a verdadeira ação – jogar a rocha
morro a baixo– foi efetuada sem dolo”.
41 Um esboço para a consideração da vítima no âmbito da imputação objetiva já foi realizado por um dos
autores (vIAnA, 2017, p. 265-270; p. 336-340).
Como alguns autores já apontaram, a objeção da dimensão temporal do dolo deve-se
mais a uma filigrana linguística, a uma formulação infeliz da decisão do Lg Berlim (ou até
mesmo a uma interpretação tendenciosa do Bgh (PUPPE, 2017a, p. 323)) do que a sua in-
correção material (KUBICIEL; WAChtER, 2017, p. 335). Como já mencionamos, os condutores
não avançaram apenas um cruzamento com sinal vermelho (no qual ocorreu a colisão), mas
vários, sendo possível afirmar o dolo já antes do (suposto) momento fixado pelo Lg Berlim42.
nesse sentido, se a formulação linguística do Lg Berlim não foi das melhores, o mesmo se
dá com o retórico exemplo elaborado pelo Bgh. A situação do racha é substancialmente
distinta do exemplo da pedra porque, no nosso caso, os condutores não poderiam contar
com uma rua deserta. Sendo, portanto, fiel ao caso que examinamos, o exemplo correto,
seria: “alguém, por travessura, e sabendo que na base do morro há uma passagem de pe-
destres muito movimentada, resolve, apesar disso, rolar uma pedra morro abaixo”. nesse
caso, ainda que após soltar a pedra ele não possa mais voltar atrás, isso não muda nada em
relação ao dolo (hovEn, 2018). Já no momento da ação, quando ainda segura a pedra, há
elementos para o dolo. E isso é assim porque, apesar de representar o perigo para a vida
dos outros, isso não foi suficiente para o indivíduo dominar o seu comportamento e abster-
se de realizar a travessura. 
Recorrendo a esses argumentos, é possível chegar a uma racionalização intermediária,
qual seja: o dolo não deve ser derivado da valoração da postura psíquica do indivíduo. Apre-
sentam-se, então, dois caminhos: o abandono ou ao normatização do elemento volitivo
(gRÜnEWALD, 2017, p. 1071). Com isso elaboramos o ponto construtivo do artigo, isto é, o
delineamento da nossa proposta. 
posicionAmEnTo
De acordo com a ideia de dolo como um compromisso cognitivo com o perigo repre-
sentado, o nível de imputação indicado pelo Lg Berlim merece concordância.
Está bastante claro que os condutores não queriam causar qualquer “acidente” fatal;
sua motivação é hedonista e, por isso mesmo, o “acidente” é completamente incompatível
com a meta de cada um: o prazer de ganhar a corrida. Como demonstrado, adotando-se
uma concepção volitiva de dolo, seríamos forçados, neste ponto, a não prosseguir com a
análise do caso, eis que a inexistência do estado mental em relação ao resultado inviabilizaria
uma imputação dolosa. Chegamos, então, a um ponto crucial: acaso uma hipotética posição
mental do indivíduo contrário ao resultado efetivamente existisse, isso seria suficiente para
justificar uma imputação culposa43? Cremos que essa pergunta merece uma resposta ne-
gativa. trocando em miúdos, julgamos que a imputação subjetiva não pode ser determinada
a rogo de uma (hipotética e insondável) postura mental, sob pena de se abrir para o autor
uma porta de possibilidades de manipulação dos fatos (e do direito)44. A esta altura, isso já
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42 Puppe (2017a, p. 324) e Schneider (2018, p. 528) vão nesse sentido.
43 Comparar com o disposto em Puppe (2017b).
44 Comparar com o disposto em grünewald (2017, p. 1070).
EDUARDo vIAnA / ADRIAno tEIxEIRA
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não deve ser novidade. Devemos ao leitor, contudo, a missão de averiguar se o caminho
da normatização ou abandono do elemento volitivo do dolo representa uma alternativa
plausível.
Parcela da literatura chama a atenção para o fato de que a normatização do dolo não
é algo fácil, afinal ela privilegiaria, entre outras coisas, a invasão do dolo eventual no âmbito
da culpa consciente (gRÜnEWALD, 2017, p. 1071). Essa não é uma objeção forte. E não o é
porque – como a própria literatura reconhece –, sendo a zona do dolo (eventual) e a da
culpa consciente extremamente imprecisas, não seria possível falar, sem ferir a lógica, em
invasão de zonas. Decisivo, isso sim, é fornecer critérios que permitam situar a imputação
subjetiva dentro de parâmetros razoáveis. não há, aqui, espaço suficiente para abordar
todas as alternativas científicas que a literatura apresenta para a retirada do elemento voli-
tivo da estrutura do dolo, razão pela qual, neste ponto, apresentaremos apenas um esboço
da nossa ideia e reservaremos para outra oportunidade a discussão sobre as possíveis ob-
jeções a essa proposta.
o caminho adotado pelo Lg Berlim foi a normatização do elemento volitivo do dolo.
Uma pessoa racional, no lugar do condutor, não adotaria o comportamento dos participan-
tes do racha de Berlim se não estivesse de acordo com o resultado. Mas essa não é a única
opção. o elemento volitivo também pode ser completamente desconsiderado. observe-se
que, nem mesmo diante do direito brasileiro – e estamos nos referindo ao art. 18, I, do
Código Penal, “diz-se do crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o
risco de produzi-lo” (BRASIL, 1940) – o elemento volitivo, tal como a doutrina clássica o com-
preende, mostra-se necessário. Primeiro porque não está nem um pouco claro qual o signi-
ficado das expressões “querer” ou “assumir o risco” utilizadas pelo legislador. Isso nos
conduz a sustentar a tese de que esse querer não precisa ser necessariamente interpretado
dentro de uma configuração psicológica. Afirmar que “A” quis isso ou aquilo depende muito
mais de um rigoroso processo de valoração de seu comportamento do que de seu patrimô-
nio psíquico. naturalmente, compete à ciência indicar quais são os parâmetros que devem
ser manejados pelo magistrado para que se possa, com segurança, valorar o comporta-
mento humano. E, nesse caso, a rigor, já não fará qualquer diferença indagar sobre se o
indivíduo teve ou não vontade.
De saída, é preciso deixar bastante claro que o caso analisado não expressa um caso
normal de trânsito. E é importante frisar isso porque a solução aqui apresentada não é rea-
lizada no modo “tudo ou nada” – isto é, todo caso de racha implica necessariamente uma
imputação dolosa.
o processo de determinação da responsabilidade depende – nesse ponto em sintonia
com o Lg Berlim – da interpretação do terceiro. não uma interpretação do comportamento
à luz do resultado, mas sim como consequência da própria qualidade do perigo criado. Res-
ponderá dolosamente aquele indivíduo que, aos olhos do terceiro racional, realiza um com-
portamento idôneo para a realização do tipo. Por exemplo: quem atira um coquetel Molotov
em um quarto com pessoas ou bate com uma barra de ferro na cabeça de outra realiza um
método adequado para matar. no nosso caso, o veículo não foi outra coisa, senão uma arma
para matar. Para que o leitor tenha uma ideia da quantidade de energia cinética liberada
pelo impacto entre os carros, ela se assemelha à liberada pela explosão de meio quilograma
REvIStA Do MInIStéRIo PúBLICo Do EStADo DE goIáS
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de tnt ou, segundo outro referencial, o equivalente a ser atingido por uma pessoa de 75 kg
jogada da altura de um prédio de mil andares45. Esse método, para além de sua inquestio-
nável violência, retira qualquer possibilidade concreta de a vítima ativar algum mecanismo
de autossalvação. Ao fim e ao cabo estamos diante de uma situação que envolve circuns-
tâncias especialmente perigosas, tão perigosas que a morte está umbilicalmente vinculada
ao comportamento (método utilizado). Com isso, é possível concluir que estamos diante
da realização de um homicídio. 
Antes de apresentar ao leitor as nossas considerações finais, convém antecipar uma
previsível objeção que pode ser levantada em relação ao abandono do elemento volitivo
do dolo: a questão da tentativa.
Contra a normatização do dolo, especialmente nos casos de racha, lança-se a objeção
do “dilema da tentativa” (Versuchsdilemma) (FISChER, 2018, p. 6; JÄgER, 2017, p. 788;
MoMSEn, 2018, p. 90; PREUß, 2017, p. 348; WALtER, 2018, p. 413): nos casos de racha em
que nada de graveocorre – nenhum incidente –, os envolvidos sempre teriam que ser puni-
dos por tentativa de homicídio (qualificado), pois se os agentes consideram e assumem o
risco de morte de eventuais condutores e/ou transeuntes, eles agem com dolo de homicídio,
durante toda a disputa, contra vítimas indeterminadas, o que representa inúmeras (e inde-
terminadas) tentativas de homicídio. Isso, segundo os críticos da decisão, afigurar-se-ia um
resultado absurdo, o que representaria uma razão adicional para se negar a presença do
dolo eventual no caso em tela (WALtER, 2017, p. 1352)46. nas palavras de Jäger (2017, p.
788), não é necessário ser profeta para poder prever que os condutores não teriam sido jul-
gados por tentativa de homicídio (qualificado) em concurso de pessoas se tudo tivesse ter-
minado bem e ninguém tivesse corrido perigo.
A essa objeção replica-se, com razão, que a punibilidade da tentativa, como se sabe,
não é construída somente pelo componente subjetivo – da chamada resolução delitiva (Ta-
tentschluss) –, mas também pelo aspecto objetivo, a saber o unmittelbares Ansetzen. Esse
componente objetivo, cuja determinação não raro se mostra difícil na prática, é constituído,
grosso modo, pelo point of no return, a partir do qual o resultado ocorrerá de forma natural,
sem ulteriores intervenções do autor. Isso não pode ser determinado de forma genérica,
mas sim ponderado em cada caso concreto. ou seja, não é possível afirmar que agentes já
adentraram na zona da tentativa quando ligaram os motores, quando excederam o limite
de velocidade pela primeira vez ou quando avançaram o primeiro sinal vermelho (KUBICIEL;
hovEn, 2017, p. 442; EISELE, 2018, p. 554). haverá tentativa, entretanto, quando uma po-
tencial vítima se aproximar do raio de ação dos motoristas – e pareceria muito estranho que
isso não fosse assim.
45 Para chegar a esse referencial igualamos a energia cinética de colisão com a energia potencial equivalente
a uma altura h.
46 Puppe (2018, p. 324), por sua vez, aceita a premissa dessa objeção – a afirmação de inúmeras tentativas
de homicídio –, mas não compartilha a conclusão que esse resultado seria absurdo, mas sim consequente
e correto. Puppe apenas concretiza o(s) momento(s) da(s) tentativa(s): o atravessar dos cruzamentos em
extrema velocidade.
EDUARDo vIAnA / ADRIAno tEIxEIRA
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considErAçÕEs finAis
Provavelmente a razão por que a discussão do dolo eventual nos casos de racha é tão
intensa e controvertida na comunidade jurídico-penal alemã – para além do apelo emocional
e midiático – é que esses casos colocam um dilema de natureza político-criminal: ou (I) no
caso de se negar o dolo e se afirmar apenas um homicídio culposo – aplicando uma pena
máxima de apenas cinco anos ou multa; ou (II) na hipótese de condenação por homicídio
qualificado doloso, é aplicada uma pena de prisão perpétua em regime fechado. Para casos
como o de racha, em que, por um lado os autores não consideram com tanta clareza o perigo
de morte (e muitas vezes não a desejam), e, por outro lado, acabam conscientemente pondo
vidas em risco, nenhuma das duas opções parece ser satisfatória (gRÜnEWALD, 2017, p.
1072; KRELL, 2018, p. 239). é verdade que esse dilema não se coloca no Brasil, ao menos não
nesse nível de radicalidade. Contudo, ainda assim, o aplicador do direito terá de escolher
um intervalo de dois a quatro anos de detenção (art. 302 do Código de trânsito Brasileiro –
homicídio culposo na direção de veículo automotor) ou de doze a trinta anos de reclusão
(art. 121, § 2º, do Código Penal), ou seja, duas opções bastante díspares. Para contornar ou
fugir desse dilema, apresentam-se soluções de caráter legislativo, uma já de lege lata, outra
de lege ferenda.
A primeira solução é a previsão de um tipo penal autônomo, que incrimine especifica-
mente a participação em rachas. Esse caminho foi trilhado recentemente pela Alemanha,
que criou o § 315d StgB, e pelo Brasil, que, desde 2017, conhece o crime do art. 308 do Código
de trânsito Brasileiro, cuja conduta punível com detenção de seis meses a três anos é:
“Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou compe-
tição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de
veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco
à incolumidade pública ou privada” (BRASIL, 1997). Diz ainda o § 2º: “Se da prática do crime
previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis
o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão
de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo” (BRASIL,
1997).
no entanto, essa não é uma solução definitiva, ao menos do ponto de vista teórico,
pois, mesmo com a existência desses tipos penais autônomos, na hipótese do resultado
morte, o julgador não fica isento de examinar a realização do tipo de homicídio e de aferir
se foi culposo ou doloso. não se poderia evocar aqui o princípio da especialidade em detri-
mento da punibilidade por homicídio.
A segunda solução situa-se no âmbito da parte geral e consiste na remodelação das
figuras de imputação subjetiva. Mais concretamente, sugere-se criar uma modalidade de
imputação intermediária entre o dolo e a culpa, uma espécie de culpa temerária, semelhante
ao recklessnes da common law, com a cominação de uma pena também proporcionalmente
intermediária ou com a previsão de uma causa obrigatória de diminuição de pena (tendo a
cominação dolosa como base) (gRÜnEWALD, 2017, p. 1072; hERZBERg, 2018, p. 129-130).
Essas questões, contudo, extrapolam os limites deste artigo. Entretanto, aqui ainda
cabe uma síntese da discussão central, qual seja, os critérios para a imputação a título de
REvIStA Do MInIStéRIo PúBLICo Do EStADo DE goIáS
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dolo: (I) o nível de responsabilidade penal independe do julgamento subjetivo do sujeito;
(II) a imputação subjetiva deriva de um processo de interpretação do terceiro racional; (III)
esse processo de interpretação deve obedecer a alguns critérios, entre os quais se encontra
a qualidade do perigo que o indivíduo cria para o bem jurídico e a possibilidade concreta de
a vítima ativar algum mecanismo de autossalvação; (Iv) os condutores, nesse caso, preen-
chem os dois critérios antes apontados: criam elevado perigo para uma vítima, com alto
grau de vulnerabilidade; (v) quem conduz a 170 km/h, dentro de uma cidade, numa rua mo-
vimentada, utiliza método idôneo para matar ou, dito de outro modo, estabelece um com-
promisso cognitivo com a realização do homicídio; (vI) nem todo racha, contudo, implica
dolo de homicídio; (vII) os casos precisam ser valorados à luz do feixe de circunstâncias que
envolve o comportamento, a exemplo da rua, da velocidade e do horário em que a corrida
ilegal teve lugar.
rEfErÊnciAs
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