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Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 114 INFERNO: DE RUBRICAS, DE ENCENAÇÕES..., DE VOLTA ÀS FONTES INFERNO: OF HEADINGS, OF STAGING..., BACK TO THE SOURCES Márcio Muniz Universidade Federal da Bahia/ CNPq Resumo: Retomando estudos publicados anteriormente, nos quais analisei, em perspectiva estrutural, a relação do Auto da Barca do Inferno com os tratados medievais das Artes de morrer, amplio a proposição feita naqueles estudos observando, agora, o momento da representação, uma das forças criadoras de forma do teatro de Gil Vicente, segundo Margarida Vieira Mendes. Para tanto, considero duas edições quinhentistas de Inferno, a de 1517, em folha volante, e a de 1562, na Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, discutindo a autoridade desses testemunhos, a autoria deles, as indicações sobre as circunstâncias de representação do auto fornecidas por suas rubricas e outras indicações contextuais presentes nelas. Palavras-chaves: Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente, Artes de Morrer Abstract: Taking up previously published studies, in which I analyzed, in a structural perspective, the relation of the Auto da Barca do Inferno with the medieval treatises of the Arts of dying, broad the proposition made in those studies observing now the moment of the representation, one of the creative forces of form of Gil Vicente s theater, according to Margarida Vieira Mendes. To this end, I consider two fifteenth editions of Inferno, that of 1517, in a folha volante, and that of 1562, in Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, discussing the 'authority' of these testimonies, their authorship, the indications about the circumstances of representation of the self provided by its rubrics and other contextual indications present in them. Keywords: Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente, Arts of dying 1. Há alguns anos, propus uma leitura aproximativa, em perspectiva estrutural, entre o Auto da Barca do Inferno e as Artes de Morrer, tratados didáticos de função edificante, cuja voga editorial se deu principalmente entre os finais do séc. XV e início do séc. XVI1. Sem pretensões de originalidade, seguia à altura 1 Refiro-me, especialmente, a dois textos: MUNIZ, M. R. C. Sobre a Arte de Morrer no Outono Medieval. Revista Outros Tempos – História, São Luís, n. 4, v. 4, 2007, p. 1-15, disponível em: http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/ outros_ tempos_uema/article/view/407/342; e MUNIZ, M. R. C. Pera a consolação...dos moribundos: fontes e sentidos do Auto da Barca do Inferno. Em: CAÑAS MURILLO, J et all i. Medievalismo en Extremadura. Estudios sobre Literatura y Cultura Hsipánicas de la Edad Media. Cáceres: Universidad de Extremadura, 2009, p. 1191-1201. Disponível também em: http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/%20outros_%20tempos_uema/article/view/407/342 Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 115 caminho já sugerido por outros estudiosos – particularmente por Paulo Quintela, Laurence Keats, José Augusto Cardoso Bernardes e Andrès José Pociña López2. Animava-me também a proposição de Margarida Vieira Mendes que, num pequeno mas arguto estudo sobre a questão dos gêneros nas obras de Gil Vicente, defendia a necessidade de se reconhecer a diversidade das forças criadoras de forma dos autos vicentinos, arrolando uma longa série de factores formativos – 12 ao total –, dentre os quais indicava as funções enunciativas de ocasião (elogio da família real, adoração, paródia de discursos, arte de morrer, triunfos etc.) e os momentos da representação (festas ou celebrações régias, calendário religioso etc.) como factores genológicos de diversa proveniência agindo na atividade criativa do dramaturgo3. Naqueles textos, trilhei uma perspectiva estrutural na aproximação do Auto da Barca do Inferno às Artes de Morrer. Retorno a eles agora para acentuar não mais as estruturas, mas sim a circunstância de representação, a ocasião, o momento da representação. Ciente do quão controverso é a delimitação das circunstâncias de representação do Auto da Barca do Inferno, embrenho-me por elas contando convencer o leitor da probabilidade de minhas proposições. 2.4 Philippe Ariès, em sua já clássica História da Morte no Ocidente, analisando a relação do homem para com a morte durante o período medieval demonstra que, https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_ e_sentidos_do_Auto _da_Barca_do_Infernos 2 QUINTELA, Paulo. Introdução. Em: VICENTE, Gil. Auto da Moralidade da Embarcação do Inferno. Edição e estudos de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1946; KEATS, Laurence. O teatro de Gil Vicente na corte. Lisboa: Teorema, 1988 [1962]; BERNARDES, José Augusto Cardoso. Danças da vida e da morte nas Barcas de Gil Vicente. Leituras: Gil Vicente, Lisboa, 2003, p. 81-102; POCIÑA LÓPEZ, Andrés José. Gil Vicente y Las Naves de Los Locos. Salamanca: Luso-Española Ediciones, 2006. 3 MENDES, Margarida Vieira. Gil Vicente: o génio e os géneros. Em: Estudos portugueses: homenagem a António José Saraiva. Lisboa: ICALP/FLUL, 1990, p. 327-334. A citação encontra-se na p. 333-334. 4 Retomo, neste ponto, texto e considerações feitas em MUNIZ, M. R. C. Pera a consolação...dos moribundos: fontes e sentidos do Auto da Barca do Inferno. Em: CAÑAS MURILLO, J et ali. Medievalismo en Extremadura. Estudios sobre Literatura y Cultura Hsipánicas de la Edad Media. Cáceres: Universidad de Extremadura, 2009, p. 1191-1201. Disponível também em: https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_ e_sentidos_do_Auto_da_Barca_do_Infernos https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_%20e_sentidos_do_Auto%20_da_Barca_do_Infernos https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_%20e_sentidos_do_Auto%20_da_Barca_do_Infernos https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_%20e_sentidos_do_Auto_da_Barca_do_Infernos https://www.academia.edu/34242338/Pera_a_consola%C3%A7ao...dos_moribundos_Fontes_%20e_sentidos_do_Auto_da_Barca_do_Infernos Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 116 distintamente da Antiguidade greco-latina, a morte para o homem da Idade Média era ao mesmo tempo familiar e próxima . Esperava-se pela morte com tranquilidade, nos diz Ariès. Não havia dramaticidade nesta espera. Entendia-se a morte como pertencente a uma ordem maior da natureza, a que todos estavam submetidos e contra a qual não havia de sublevar-se. Ao contrário, a aceitação desta ordem da natureza permitiu ao homem domar a morte , estabelecendo rituais que todos deveriam seguir: Com a morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas que cada vida devia sempre transpor5. Todavia, a partir do que Ariès denomina segunda fase da Idade Média, ou seja, após os séculos XI e XII, foram sendo introduzidas pequenas mudanças naqueles rituais da morte que, embora não alterem significativamente a familiaridade do homem com esta, passam a dar mais dramaticidade e individualidade a seus rituais. Ainda segundo o historiador, são quatro os fenômenos que promovem essas transformações: a representação do juízo final, que passa a compor a configuração dos rituais ligados à morte; a individualização deste juízo final, que até então possuía um caráter coletivo, conforme descrito no livro do Apocalipse, e que agora passa a ser algo individual, configurado no leito de morte, relacionando-se diretamente com a biografia do moribundo; o crescimento dointeresse pelos temas macabros, particularmente pelas imagens de decomposição física; e, por fim, a personalização das sepulturas, por meio de um retorno às epígrafes funerárias6. Interessa-me, em particular, o segundo desses fenômenos descritos por Philippe Ariès. A individualização do juízo final , deslocando-o para a hora da morte, para o leito do moribundo, passou a conferir a este momento um papel central na história de cada um. O juízo final transformou-se numa última prova, 5 ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 46-47. 6 Idem, p. 47 e ss. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 117 que ao jacente caberia vencer. Ali, sua biografia seria posta à prova. Anjos e principalmente diabos o cercariam como se estivessem num tribunal. Últimas tentações e demonstrações de graça seriam postas a sua frente. Caberia ao seu livre arbítrio decidir pela fé da graça divina ou deixar-se levar pelos medos aterrorizantes da hora final. O momento torna-se, então, dramático e sua representação plástica e literária far-se-á abundante. Dois acontecimentos históricos importantes colaboraram para essa individualização e maior dramatização da morte: o surgimento e crescimento das ordens mendicantes, particularmente a partir do séc. XIII, como franciscanos e dominicanos, que passaram a pregar uma maior individualidade no exercício da fé e a ressaltar a responsabilidade de cada um na construção de uma vida guiada por valores morais e éticos cristãos e a importância disto para a constituição de um mundo mais fraterno, como desejava Cristo7; e a crise por que passou o séc. XIV marcado por guerras no interior da cristandade, pelos problemas climáticos que provocaram períodos de má colheita e desabastecimento, resultando em longos períodos de fome, bem como pelo recrudescimento da peste, particularmente nos grandes centros urbanos, tornando a morte presença muito concreta8. Tudo isso fez com que a solenidade ritual da morte no leito [tomasse], no fim da Idade Média, entre as classes instruídas, um caráter dramático, uma carga de emoção que antes não possuía 9. Dessas transformações resultou uma maior consciência do homem relativo ao papel central que desempenha nesse momento de passagem que é a morte. Antes, ritos de fundo coletivo dominaram o cenário dessa transição e o homem pôde contar com os seus na garantia de uma boa e tranquila passagem10; no outono medieval, passou a pesar mais o comportamento passado do indivíduo que, 7 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII a XIII. Trad. de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995; e BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média: séc. XII. Trad. de Maria da Luz Veloso. Lisboa: Edições 70, 1985. 8 BOIS, Guy. La grande dépression médiévale XIV e XV siècles: le précédent d une crise systémique. Paris: PUF, 2000. 9 ARIÈS, op. cit., p. 53. 10 Lembre-se que no Auto da Barca do Inferno, o Fidalgo recorre a argumento semelhante para defender seu direito em entrar na Barca da Glória. À pergunta do Diabo Em que esperas ter guarida? , o Fidalgo retruca: Que leixo na outra vida/ quem reze sempre por mi Inferno, v. 42- 44). Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 118 em forma de espelho, se veria refletido no momento do julgamento, speculum mortis. Cabia, desta feita, preparar-se bem para o ataque da morte. 3. Se voltarmos os olhos, agora, para o teatro de Gil Vicente, observaremos que alguns de seus autos parecem encenar aquelas Artes de morrer, guardando muito de suas características e intenções didáticas. No limite deste texto, tratarei apenas do Auto da Barca do Inferno, mas outros podem ser inseridos no horizonte do que aqui vou falar, como o Auto [da Praia] do Purgatório, o Auto da Barca da Glória ou o Auto da Alma. Representado no período e participando, de certa forma, do mesmo contexto que animou a escrita daqueles tratados didáticos, o Auto da Barca do Inferno, a meu ver, constrói-se como representação cênica de uma Arte de morrer. São diversos os elementos que me levam a esta perspectiva. Centremo-nos nas circunstâncias prováveis de representação, ou na ocasião, no momento, no contexto e motivação da representação. Cardeira e Villalva, em estudo sobre o auto, resumem assim as hipóteses da data, contexto e motivação da representação: Talvez tenha sido composto para celebrar um nascimento real, ocorrido em Setembro de 1516, mas as circunstâncias (morte do infante recém-nascido) terão obrigado a adiar a representação de Inferno até ao final desse ano ou início do seguinte, na câmara da rainha doente (Maria), nos Paços da Ribeira [em Lisboa]. Também pode ter sido preparado já em 1517, por encomenda da rainha [velha] Lianor, para marcar o termo de dois lutos (pelo infante e pela sua mãe), e representado ao rei Manuel I. Outra hipótese a considerar é a de ter havido duas representações11. Essas dúvidas e hipóteses são geradas, como se sabe, pela existência de rubricas inicias distintas, com informações variadas, nas duas primeiras edições do 11 VILLALVA; CARDEIRA. Inferno. Lisboa: Quimera, 1993, p. 3. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 119 auto: uma, no exemplar em folha volante, de 151712, outra, na Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, de 1562. A rubrica da folha volante diz o seguinte: Auto de moralidade composto per Gil Vicente. Por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor nossa senhora, e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel primeiro de Portugal deste nome [...]13. Desta rubrica da edição em folha volante, que a princípio deveria ser merecedora de mais crédito, pois feita em vida do autor, Cardeira e Villalva retiram duas hipóteses: uma, de Inferno ter sido escrito antes de 1517, preparado para compor as festividades de comemoração do nascimento do futuro infante D. António, que não vingou; outra, a de ter servido como atividade para se retomar as festas do reino, a pedido da rainha velha, D. Leonor, depois do prolongado e duplo luto, pelo infante e pela rainha D. Maria, falecida em 07 de março de 1517. A consideração da rubrica presente na edição da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, de 1562, levam Cardeira e Villalva a outras hipóteses. Vejamos o que diz a rubrica: Representa-se na obra seguinte ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem. E por tratar desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno. [...] Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro, nas obras de devação: porque a segunda e terceira parte foram representadas na capela, mas esta primeira foi representada de câmara, pera consolação da muito católica e santa Rainha dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de 151714. 12 Segundo Villalva e Cardeira, a impressão do folheto, provavelmente, deve ter acontecido entre o fim de 1516 – pois, na rubrica final é referida a edição do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – e anterior a dezembro de 1518 – data de representação de Purgatório. Cf. VILLALVA, CARDEIRA, op. cit., p. 3. 13 Cito segundo a edição do Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Século XVI – Base de dados textual [on-line] http://www.cet-e-quinhentos.com/. 14 Cito segundo a edição do Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do SéculoXVI – Base de dados textual [on-line] http://www.cet-e-quinhentos.com/. javascript:od('d_1'); javascript:od('d_4876'); javascript:od('d_3160'); javascript:od('d_4461'); javascript:od('d_14'); javascript:od('d_5697'); javascript:od('d_180'); javascript:od('d_2'); javascript:od('d_2'); http://www.cet-e-quinhentos.com/ http://www.cet-e-quinhentos.com/ Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 120 Desta rubrica, Villalva e Cardeira retiram a hipótese de Inferno ter sido representado de câmara , em , para consolação da moribunda D. Maria, ou ter tido dupla representação, embora não especifiquem quando e onde teria se dado cada uma delas. Além disso, ainda segundo Villalva e Cardeira, a informação [das circunstâncias e do local da primeira representação, de câmara ] é dada para justificar a inclusão do auto no livro das obras de devação, representada em capelas 15. Não é difícil de entender que se chegue a esta configuração de hipóteses considerando-se a existência dessas duas rubricas. Gostaria, no entanto, de propor outra interpretação para as informações constantes nessas duas rubricas introdutórios e discutir algumas das hipóteses de Cardeira e Villalva, que em suas considerações resumem o como se tem interpretado esses paratextos. Primeiramente, considero pouco provável que Inferno tenha sido composto para comemorar o nascimento do futuro infante D. António ou para finalizar o prolongado luto da corte pelo infante e pela rainha, sua mãe. O tema predominante em Inferno não condiz com as duas situações. Inferno é Moralidade, na qual se representa a regorosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem , como nos informa ainda a rubrica presente na Copilaçam de 1562, acima citada. Portanto, pouco condizente com clima de festas natalícias e, muito menos, para reiniciar a rotina da vida, depois de luto prolongado. Se considerarmos, no todo da obra vicentina, os autos representados para saudar nascimentos de príncipes, em número de nove16, todos eles ou são do gênero das Farsas ou das Fantasias Alegóricas ou das pouco precisas Tragicomédias, isto é, ou teatro para fazer rir ou teatro para elogio da corte e dos hábitos cortesãos. Nunca uma Moralidade, por mais elementos farsescos que esta possa conter, como Inferno contém. 15 CARDEIRA e VILLALVA, op. cit., p. 4. 16 Se não me engano, são estes os nove autos feitos para saudar nascimentos de príncipes: Visitação, Pregação, Serra da Estrela, Inverno e Verão, Romagem de Agravados, Floresta de Enganos, Juiz da Beira, Clérigo da Beira e Lusitânia. Apresento e discuto este levantamento em: MUNIZ, Márcio R. C. O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI. In: Papéis: revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, v. 1, n. 1, 1997 p. 80-81. Também disponível em: http://www.papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V14_N28.pdf http://www.papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V14_N28.pdf Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 121 Por outro lado, num evento organizado para se marcar o fim dum período de luto, que teria durado mais de um ano, é pouquíssimo provável que Vicente voltasse ao tema da morte, ainda mais numa perspectiva tão moralista, como é o caso de Inferno. Vicente sempre soube adequar o assunto de seus autos à motivação ou ao contexto que o exigia. Lembre-se, a título de exemplo, que não aceitou repetir o Auto da Visitação, representado em junho de 1502, para o nascimento do príncipe e futuro rei D. João III, durante as festas natalinas do mesmo ano, conforme o havia solicitado D. Leonor, pois, embora o natalício marcasse as duas datas, Vicente achou que a substancia era mui desviada , como informa a rubrica de Pastoril Castelhano, de dezembro de 150217. Preferiu, então, fazer outro auto, Castelhano, desenvolvendo a matriz natalina cristã. Considero também pouco provável a hipótese de adiamento devido ao luto pela morte do infante, pois não creio em Inferno como auto comemorativo de nascimento, embora a hipótese tenha recebido créditos de parte da crítica18. Já o inusitado de uma representação para uma rainha à beira da morte, conforme indica a rubrica da Copilação de 1562, merece ser melhor compreendida. Lembro que Laurence Keats defende que Inferno tem como pretexto uma morte19. Para tentar compreender o inusitado de uma representação para uma rainha à beira da morte, tentemos um olhar especular, comparativo, entre as duas rubricas. Comecemos pela da edição de 1517, da folha volante. Os dados que imediatamente temos é da ordem do teatral ou do metateatral: gênero auto de moralidade , autor/poeta composto por Gil Vicente , mecenas por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Leonor nossa senhora e destinatário imediato representada per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel [...] . Em seguida, anuncia-se o argumento do auto, no qual se fegura a tradição clássica da travessia da morte metaforizada pela 17 Eis o que diz a rubrica de Castelhano: E por ser cousa nova em Portugal, gostou tanto a rainha velha desta representação [o Auto da Visitação] que pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas do Natal, endereçado ao nacimento do redentor. E porque a substância era mui desviada, em lugar disto fez a seguinte obra [Pastoril Castelhano] . Cito por: CAMÕES, José (Ed.). As Obras de Gil Vicente. Lisboa: CET/INCM, 2002, v. 1, p. 23. 18 Particularmente da professora Carolina Michaellis de Vasconcelos: VASCONCELOS, C. M. A rainha velha e o Monólogo do Vaqueiro. Notas Vicentinas. Lisboa: Ocidente, 1949. 19 KEATS, op. cit. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 122 travessia de um rio, o Lete da Antiguidade, mas já cristianizado, pois estão ancorados em seu porto , dous batés , um que passa pera o paraíso e outro, pera o inferno . Cada batel traz a personagem alegórica de seu destino: precisamente, um Anjo , e um Arrais infernal e um Companheiro . Indica-se, então, o primeiro entrelocutor , o Fidalgo, com sua configuração devidamente construída: chega com um Paje que lhe leva um rabo mui cumprido e ữa cadeira d esbaldas , como se sabe signos referidos textualmente pelas personagens como provas do senhorio fumoso que condena o Fidalgo ao fogo ardente . Por fim, aponta-se a personagem que dará início ao auto: e começa o Arrais do Inferno desta maneira ante que o Fidalgo venha 20. Por esta paráfrase, observa-se que o ordenamento da rubrica de 1517 revela em seu horizonte de expectativa um leitor afeito ao teatro, seu frequentador ou seu encenador. De onde se iniciar pelas referências valorativas do auto (gênero, autor, mecenas, destinatário, argumento clássico), a lhe conferir autoridade; e se seguir por índices de encenação (cenário, objetos de cena e adereços, personagens centrais e iniciadores do auto). Atente-se que esta rubrica da primeira edição, em folha volante, não guarda nem o nome nem a memória de Dona Maria. Em seu lugar, refere-se à solicitante, D. Leonor, nossa senhora , e ao receptor imediato, D. Manuel I, por ambos, à altura, serem os mecenas por excelência de Gil Vicente, cuja ausência na rubrica seria uma indelicadeza do autor e um risco para o constante mecenato de que usufruía. Além disso, os nomes dos monarcas respaldavam o valor da obra, eram auctoritates a que interessava recorrer e referir. Está claro que, por outro lado, a indicação da provável motivação do auto, uma reflexão moral sobre a morte, em 20 Rubrica de 1517: Auto de moralidade composto per Gil Vicente. Por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor nossa senhora e representada per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei domManuel primeiro de Portugal deste nome. Comença a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto se fegura que no ponto que acabamos d espirar chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batés que naquele porto estão: um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno. Os quais batés tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um Anjo e o do inferno um Arrais infernal e um Companheiro. O primeiro entrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui comprido e ũa cadeira d espaldas. E começa o Arrais do Inferno desta maneira ante que o Fidalgo venha . Cito segundo a edição do Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Século XVI – Base de dados textual [on-line] http://www.cet-e-quinhentos.com/ http://www.cet-e-quinhentos.com/ Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 123 , talvez não servisse aos propósitos de divulgação mercadológica de uma edição em folha volante, pois guardaria o peso do acontecimento que se lhe seguiu à representação, a morte da rainha, constrangendo o riso solto, farsesco, que muitas vezes Inferno desperta. Já a rubrica de Inferno presente na edição da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, de 1562, parece organizar-se segundo outros propósitos. Feita ou refeita para compor uma espécie de rúbrica geral da, agora, trilogia das embarcações presentes na Copilaçam e, talvez, para justificar a presença desta primeira parte – dominada pelo farsesco em boa parte de suas ações e auto de câmara – entre as obras de devação , cujas representações geralmente davam-se em espaços sacros, na capela , a rubrica inicia-se pela indicação do matéria moralizadora da obra seguinte : ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem . Coerente com o novo suporte, o livro, com o novo papel que passa a desempenhar nele, o de introduzir e dar unidade à trilogia , a rubrica pensa primordialmente no leitor da Copilaçam e dá-lhe as informações que entende importante para que ele compreenda a matéria que predominará nas três partes, ainda que lidas como uma única obra compondo cada embarcação ữa cena . Dá-lhe também a matéria das três partes já cristianizada, sem referências ao mito clássico – como se ao leitor provável não faltasse cultura para reconhecer a referência. Revela, então, a estratégia cênica básica que orientará os três autos ou as três cenas : figura-se que as almas humanas , ao deixar seus humanos corpos, chegam a um braço de mar, onde estão dous batéis , um passa pera a glória , outro, pera paraíso . Alinhavada a unidade temática e estrutural da trilogia , ainda que a posteriori, passa-se para a particularidade da cena primeira : a da viagem do inferno . Em seguida, lista-se com pouca precisão as figuras que comporão Inferno: somente na rubrica, o Companheiro do Diabo é nomeado Barqueiro e o javascript:od('d_1'); javascript:od('d_4876'); javascript:od('d_3160'); javascript:od('d_4461'); javascript:od('d_14'); javascript:od('d_5697'); Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 124 Anjo também ganha um companheiro Barqueiro21, como a se reforçar a imagem das embarcações que compõem a trilogia ; além disso, nomeia Florença, personagem muda e somente referida em falas alheias, e esquece-se do Moço da cadeira, citado por uma rubrica e interlocutor silencioso do Diabo: Diz o Diabo ao Moço da cadeira . Quase ao final, explicita-se a destinatária, única pessoa da nobreza referida na longa rubrica, e os objetivos da encenação: Esta prefiguração [...] foi representada de câmara, pera consolação da muito católica e santa Rainha dona Maria [...] . D. Maria é alçada à condição de santa e afirma-se que o auto teve como objetivo servir-lhe per consolação . Lembre-se que, embora referidas em termos semelhantes, D. Leonor é adjetivada de sereníssima – adjetivo normalmente aplicado aos sábios – e revelada como espectadora privilegiada, pois a encenação foi feita para sua contemplação . Distinta e simultaneamente, Inferno foi admirado e financiado por uma, e serviu de consolo para outra. Conclui-se a rubrica de 1562 com a lembrança do ano e da morte de D. Maria: [...] estando enferma do mal de que faleceu na era do senhor de . D. Maria faleceu em 07 de março de 1517. A referência explícita a sua morte já não comoveria em 153622 e, muito menos, em 1562 o leitor da Copilaçam, comoção que certamente despertaria nos anos próximos da publicação da edição em folha volante, de onde sua explicitação na rubrica só se justificar como repositório da memória do contexto de encenação do auto, que à altura somente Gil Vicente ainda teria, exatamente quando estava preparando a copilação de sua obra para que não se perdessem , pois eram muitas delas de devação e a serviço de Deos endereçadas . 4. Aqui, esbarramos na problemática de como considerar ou qual o grau de legitimidade que podemos e devemos conferir à edição da Copilaçam, de 1562, 21 Seja na edição de 1517 seja na de 1562, as rubricas indicativas de fala de personagens referem-se apenas ao Companheiro do diabo, não a um Barqueiro. Da mesma forma, não há indicação de o Anjo ter um companheiro. Ele está sozinho em seu batel, à espera dos Cavaleiros de Deos 22 Período em que, se dermos crédito a carta do dramaturgo para D. João III solicitando mercê para a impressão de suas obras, provavelmente Gil Vicente revisitava e organizava suas obras ou em suas palavras: [...] por cujo serviço [a D. João III] trabalhei a copilação delas com muita pena de minha velhice e glória de minha vontade [...] . Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 125 frente aos dois testemunhos paratextuais presentes em seu início: o Prólogo escrito por Luís Vicente dirigido a D. Sebastião; e o Prólogo redigido por Gil Vicente e dirigido a D. João III. Atente-se, primeiro, para as seguintes palavras de Luís Vicente: E porque sei que já agora nessa tenra idade de vossa alteza gosta muito delas e as lê e folga d´ouvir representadas [as peças de Gil Vicente], tomei em minhas costas o trabalho de as apurar e fazer emprimir sem outro interesse senam servir vossa alteza com lhas deregir e comprir com esta obrigação de filho. E porque sua tenção era que se empremissem suas obras escreveu per sua mão e ajuntou em um livro muito grande parte delas e ajuntara todas se a morte o nam comsumira. A este livro ajuntei as mais obras que faltavam e de que pude ter notícia23. Como se pode verificar, o Prólogo de Luís Vicente a seu mecenas e rei, no qual registra a relação de D. Sebastião com a obra vicentina – gosta muito , as lê e folga d ouvir representadas –, indica a valoração de Luís à importância que o monarca conferia à obra de seu pai, o que, portanto, obrigava-lhe – enquanto filho, compilador, mas também vassalo –, no máximo, as apurar . Repare-se que ao referir-se a sua edição da obra do pai, Luís Vicente não utiliza os termos corrigir ou alimpar , que implicariam indicação de maior intervenção e são recorrentes em contexto de paratexto prologal, embora não se escuse de os utilizar neste mesmo Prólogo quando se refere a outros editores que cuidaram de obras clássicas, particularizando o editor de Homero, que, segundo Luís, apurou e alimpou e fez que fossem vistas e achadas as cousas de Homero . Para além deste momento, quando volta a referir-se a sua intervenção na obra do pai, ele afirma que ajuntou as mais obras , já que o pai ajuntou em um livro muito grande parte delas , a maioria portanto, já que ajuntara todas [as partes] se a morte o nam consumira . Nesta interpretação sintática que proponho, se se me permite o termo, o livro de que se fala não recebe qualificativo, o que me parece de acordo com o discurso em registro modesto predominante no Prólogo. Modéstia revelada por Luís Vicente na vinculação de seu trabalhode editor às obrigações de sua condição de filho, assim como na afirmação de que as obras de seu pai fica[m] 23 Cito por: CAMÕES, José (Ed.). As Obras de Gil Vicente. Lisboa: CET/INCM, 2002, v. 1, p. 11-12 Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 126 muito abaixo das de outros poetas antigos e modernos tam celebrados em todo o mundo 24. O mesmo registro modesto encontra-se no Prólogo de Gil Vicente a D. João III. O pai antecipa o tom do discurso do filho. Atentemo-nos, todavia, para as palavras finais do Prólogo vicentino, que são as que interessam para o que discuto aqui. Diz Gil Vicente ao final de seu Prólogo a D. João III: Finalmente que, por escusar estas batalhas e por outros respeitos, estava sem propósito de emprimir minhas obras se vossa alteza mo nam mandara, nam por serem dinas de tam esclarecida lembrança, mas vossa alteza haveria respeito a serem muitas delas de devação e a serviço de Deus e nam quis que se perdessem, como quer que cousa virtuosa por pequena que seja nam lhe fica por fazer, por cujo serviço trabalhei a copilação delas com muita pena de minha velhice e glória de minha vontade que foi sempre mais desejosa de servir a vossa alteza que cobiçosa de outro nenhum25. Também na condição de vassalo, assim como Luís, Gil Vicente dirige-se a D. João III, confirmando sua obediência em estar entregando a copilação de suas obras àquele que as havia mandado copilar. E, ainda que retórica e modestamente afirme elas nam serem dinas de tam esclarecida lembrança , justifica sua impressão por serem muitas delas de devação e a serviço de Deus . Por isso, embora com muita pena da velhice, mas com a glória da vontade , ele trabalhou muito na copilação de suas obras. Ainda que estejamos no campo do provável, parece-me mais do que razoável aceitar que, ao menos, o livro das obras de devação tenha sido preparado por Gil Vicente. Lembro que Giuseppe Tavani, em texto de 2002, analisou e discutiu com vagar as alterações encontráveis nos textos da folha volante de Inferno, de 1517, e da Copilação, de 1562. Tavani conclui seu estudo defendendo que as alterações identificadas em 1562 são mais pertinentes se vindas das mãos de Gil Vicente, não de seu filho. Mesmo nas mudanças em que se revelam perspectivas mais moralizantes, o investigador italiano reconhece nelas a adequação e a moderação do velho Gil Vicente a um novo contexto editorial e mecenático. Em 24 Idem, ibidem. 25 Idem, ibidem. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 127 diálogo direto com as ideias de I. S. Révah, crítico ferrenho da edição de 1562, conclui Tavani: [...] em meu entender, a revisão de que foram objeto estes versos [ : Ireis lá mais espaçoso/ vós e vossa senhoria/ contando na tirania/ de que éreis tam curioso /// : Vos yreis mais espaçoso/ com fumosa senhoria/ cuydando na tirania/ do pobre povo queixoso ] não só não é suficiente à prouver le caractère inauthentique du texte de 1562 [I. S. Révah, ], mas ao contrário revela a intervenção de alguém que, tendo em conta a nova finalidade de um texto destinado primitivamente a ser representado e publicado em edição semi-popular, deve agora respeitar as regras implícitas na inclusão num livro encomendado pelo próprio rei 26. Como se observa, Tavani considera bastante provável a possibilidade de a rubrica de Inferno presente na edição de 1562 ter sido redigida por volta de 1536, pelo próprio Gil Vicente quanto copila seus autos a pedido de D. João III, sendo, portanto, fiável tanto quanto a da edição em folha volante, de 1517, apenas mais adequada a um novo contexto editorial e a uma nova função no interior de um novo suporte. Parece-me claro que a rubrica da Copilaçam esforça-se por aproximar e associar as três cenas de embarcações, conferindo-lhe nova unidade, e busca guardar na memória livresca o contexto, a circunstância de representação e a destinatária imediata de seu auto, Dona Maria27. 5. Considerando-se, assim, mais fiável, portanto mais provável, a circunstância de representação, o contexto, a motivação, o espaço e a estrutura da 26 TAVANI, Giuseppe. Edição e tradução para italiano de textos vicentinos. Em: BRILHANTE, Maria João et ali. Gil Vicente 500 anos depois. Lisboa: INCM, 2003, p. 62. O texto de Révah a que Tavani se refere é: RÉVAH, I. S. Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente. Édition critique du premier Auto das Barcas . Lisboa: Bibliothèque du Centre d Histoire du Théâtre Portugais, . 27 Sendo crível que D. Maria, segunda esposa de D. Manuel, com que foi casada entre 1500 e 1517, teria assistido a quase todos os autos representados por Gil Vicente a seu marido, é intrigante que ela apenas seja referida nas rubricas do primeiro auto vicentino, Visitação, de 1502 – justamente ao parto do primogênito do casal – e de Inferno, mas somente na edição de 1562. Apontada pela cronística e pela historiografia contemporânea uma princesa preparada pelos seus pais, Fernando e Isabel, os Reis Católicos de Espanha, para desempenhar altos papeis, como o de rainha, tendo bem cumprido seu papel de Rainha de Portugal por 17 anos, a maternidade, foram dez filhos, parece ter nublado sua imagem e importância, nuvem que Vicente afastou registrando seu nome na memória de seu mais exitoso auto. Cf. SERRANO, Joana Bouza. Maria de Castela (1482-1517): uma rainha do Renascimento. In: As avis: as grandes rainhas que partilharam o trono de Portugal na segunda dinastia. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009, p. 237-264. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 128 representação revelados pela rubrica de 1562, penso mais pertinente a hipótese que defendi anteriormente de o Auto da Barca do Inferno poder ser lido como encenação de uma Arte de morrer. Se tomarmos as representações pictóricas presentes nesses escritos didáticos medievais, veremos que a cena de representação teatral provável do Inferno vicentino reflete com razoável semelhança aquelas representações: num quarto/ de câmara 28, um moribundo em seu leito de morte, rodeado pelos seus parentes próximos, que o velam, enfrenta individualmente a ameaça da morte, e recebe a visita dos representantes do mal e do bem, Diabo e Anjo, alternadamente. Estes travam verdadeira batalha discursivo-retórica por sua alma. A cada momento/cena do auto são apresentadas argumentações, antitéticas entre si, que revelam a intenção de ganhar-lhe a alma. Observe-se que mesmo a sintaxe de representação escolhida por Vicente para a construção de Inferno – retomado nas cenas que lhe seguem, Purgatório e Glória – aponta para a influência das Artes de morrer medievais. Nestas, Diabo e Anjo nunca se encontram. Visitam o moribundo em seu leito de morte alternadamente, primeiro um, depois outro. Julgam-lhe como se estivera num tribunal. Em Inferno, o mesmo acontece. Suas cenas são justapostas. Cada personagem dialoga primeiro com o Diabo, depois, com o Anjo. Cada uma delas é estimulada pelo Diabo a revelar, em síntese da cena, as tentações a que cederam; já o Anjo lembra-lhes o caminho que deveriam ter seguido e que foi preterido pelo livre arbítrio individual. Embora a sentença já esteja previamente dada, os diálogos constroem-se por ataque e defesa. O léxico jurídico estrutura muitas vezes a fala das personagens, em particular, as do Corregedor e do Procurador. Embora manuais de consulta individual ou coletiva, com função de ensinar a quem o lê a encontrar a boa morte , a se fortificar para o ataque desta, as Artes 28 Em conversa ressente com José Camões, o professor me apresentou a possibilidade de câmara , neste caso, significar uma espécie de sala de conselhos , maior do que uma câmara /quarto da rainha, e mais adequado ao espaço cênicotalvez necessário para se representar Inferno, necessariamente ocupado por uma praia, duas embarcações e próximo de uma dezena de personagens, algumas vezes, concentradas em sua maioria no palco. Ainda assim, mesmo que em um espaço maior e público, a cena descrita não se desfaz, apenas se dilui em teatro mais verossimilmente. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 129 de morrer, como já apontou Philippe Ariès, carregam consigo grande dramaticidade. Ora, Gil Vicente o que faz é, de certa forma, transpor essa dramaticidade e o conhecimento que lhe está subjacente para a cena teatral. Muito argutamente, aproveita-se da presença da rainha moribunda e acaba por fazer dela e daqueles que a rodeiam personagens de sua arte de morrer encenada. Dá vida, movimento, ao que era, nos tratados, palavra e, algumas vezes, imagem. Há, todavia, uma distinção a se apontar: Diabo e Anjo, em Inferno, servem à mesma causa, a de Deus. Se nas Artes de morrer o Diabo cumpre seu papel de sedutor, de desvirtuador do reto caminho a seguir – e daí a necessária presença do Anjo para lembrar ao moribundo o percurso correto –, no Auto da Barca do Inferno, como todas as personagens já ultrapassaram o limite da vida, não cabe mais tentativas de sedução ou salvação. Seus destinos já estão selados. Todavia, como o quadro traçado por Vicente inclui os espectadores, talvez, em particular, a rainha moribunda, faz-se necessário revelar-lhe os motivos das condenações ou salvações. A meu ver, disto compõem-se a ação teatral em Inferno. Por exemplo, à arrogância, à tirania, ao senhorio demonstrado pelo Fidalgo, Diabo e Anjo, mais este que aquele, irão contrapor a necessidade da humildade, da generosidade, da bondade: Diz o Anjo [ao Fidalgo]: ...e porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso (1517/1562)29. Assim, sucessivamente, vícios os mais variados são ditos, encenados e muitas vezes defendidos pelas pobres e inconscientes Almas (avareza e usura, do Onzeneiro e do Judeu; roubo e engano, do Sapateiro; luxúria, do Frade e da Alcoviteira; injustiça, corrupção, roubo, do Corregedor e do Procurador, entre outros). Diabo e Anjo lembram-lhes, quando necessário, seus pecados, e a ausência das virtudes que os teriam salvados. Recorrente e uníssono nas falas dos dois é a lembrança de que os destinos ali encenados foram traçados na vida terrena, pelas escolhas feitas pelo livre arbítrio de cada um. A moralidade, ao fim, conforma todo 29 Cito segundo a edição do Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Século XVI – Base de dados textual [on-line] http://www.cet-e-quinhentos.com/. http://www.cet-e-quinhentos.com/ Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 130 o auto. E a mensagem dirige-se muito objetivamente aos espectadores/leitores, reais ou plebeus: Dizem os cavaleiros: ... senhores que trabalhais pola vida transitória memória por Deos memória deste temeroso cais. .............................................. vigiai vós pecadores que despois da sepultura neste rio esta aventura de prazeres ou Dolores [...]30. Embora ciente do quão controversa pode ser a hipótese de delimitação das circunstâncias de representação do Auto da Barca do Inferno proposta acima, sigo, assim, considerando pertinente alinhar Inferno à tradição dos escritos didáticos das Artes de morrer. Tendo sido representado no período e, de alguma forma, num contexto semelhante ao que animou a escrita daqueles tratados didáticos, Inferno encena uma Arte de morrer. A individualização do juízo final que, segundo Philippe Ariès, tornou mais dramático a hora da morte, propiciou que diversas artes compartilhassem e compusessem a cena deste momento. Pense-se nos diversos registros pictóricos, escultóricos, literários, musicais, entre outros, que dão testemunho desse momento de passagem, de juízo final, em que uma biografia é posta à prova. Arte da representação, o teatro tratou de encená-la, de potencializar a dramaticidade do momento, ao mesmo tempo em que possibilitava ao espectador refletir sobre a morte, preparar-se para sua chegada, melhor reger seu livre arbítrio. Defendo, assim, as Artes de morrer como uma das forças criadoras de forma, nas palavras de Margarida Vieira Mendes, de alguns dos autos vicentinos, especialmente, tendo em vista também o momento da representação, de Inferno. Em verdade, acredito que com esta proposição apenas alargo perspectivas de compreensão do auto, já anunciados por muitos de seus leitores por percursos 30 Idem, ibidem. Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 131 algumas vezes diferentes31, mas sempre preocupados em revelar os sentidos deste texto ainda hoje tão presente. Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018 31 BEAU, Albin Eduard. As Barcas de Gil Vicente. In: Estudos. Coimbra: Univ. Coimbra, 1949, p. 159- 218; MARTINS, Mário. Gil Vicente e as figuras da Dança Macabra dos Livros de Horas. In: Introdução histórica à vidência de Tempo e da Morte. Braga: Livr. Cruz, 1969, p. 237-295; ASENSIO, Eugenio. Las fuentes de las Barcas de Gil Vicente. In: Estudos Portugueses. Paris: Fund. Calouste Gulbenkian, 1974, p. 59-77; BLASCO, Pierre. La Barque de L´Enfern de Gil Vicente, comme miroir d´une mentalité. In: Estudos Portugueses: homenagem a Luciana Stegagno-Picchio. Lisboa: Difel, 1991, p. 339-348; e BERNARDES, José Augusto Cardoso. Danças da vida e da morte nas Barcas de Gil Vicente. Leituras: Gil Vicente, Lisboa, 2003, p. 81-102.