Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autor: Prof. Cassio Marcos Vilicev Colaboradores: Prof. Thiago Macrini Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Anatomia Básica dos Sistemas Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Professor conteudista: Cassio Marcos Vilicev Cassio Marcos Vilicev é graduado em Educação Física pela Universidade de Mogi das Cruzes e em Fisioterapia pela Universidade Bandeirante de São Paulo. É doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo e mestre em Ciências pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Possui especialização em Educação a Distância pela UNIP e em Didática do Ensino Superior pela Universidade Sant’Anna (1999). Atualmente, cursa Formação Pedagógica em História pela UNIP (EaD). Foi professor de Educação Física em escolas e clubes desportivos de São Paulo e no curso de graduação em Educação Física e Enfermagem do Centro Universitário Santa Rita e das disciplinas Anatomia Humana, Cinesiologia e Semiologia na UNIP. Atualmente, é professor titular da UNIP nos cursos presenciais de Fisioterapia, Enfermagem, Nutrição, Farmácia, Biomedicina, Estética e Cosmética e Educação Física na modalidade presencial, de Educação Física, Fisioterapia, Enfermagem, Nutrição, Farmácia e Biomedicina na modalidade EaD e de pós‑graduação. Foi consultor na elaboração de questões para o Serviço Nacional do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), de Educação Física, junto à Empresa EGaion. Tem publicado vários trabalhos em diversas áreas das ciências biomédicas, como Anatomia dos Sistemas: Educação Física e Anatomia dos Sistemas: Enfermagem, entre outros. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. U503.03 – 19 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V586a Vilicev, Cassio Marcos. Anatomia Básica dos Sistemas / Cassio Marcos Vilicev. – São Paulo: Editora Sol, 2019. 268 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2‑212/19, ISSN 1517‑9230. 1. Morfologia. 2. Coração. 3. Aparelho respiratório. I. Título. CDU 611 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Juliana Muscovick Lucas Ricardi Vitor Andrade Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Sumário Anatomia Básica dos Sistemas APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 INTRODUÇÃO À MORFOLOGIA ................................................................................................................... 13 1.1 Período pré‑científico ......................................................................................................................... 14 1.2 Período científico ................................................................................................................................. 15 1.2.1 Mesopotâmia e Egito ............................................................................................................................ 15 1.2.2 Grécia Antiga ............................................................................................................................................ 16 1.2.3 Roma ............................................................................................................................................................ 21 1.2.4 A contribuição do povo islame ......................................................................................................... 25 1.2.5 O Renascimento ...................................................................................................................................... 26 1.2.6 As ciências contemporâneas .............................................................................................................. 32 1.3 Bases gerais da anatomia ................................................................................................................. 34 1.3.1 Divisão da anatomia: estudos............................................................................................................ 35 1.4 Anatomia sistêmica e topográfica ................................................................................................ 41 1.4.1 Anatomia sistêmica................................................................................................................................ 41 1.4.2 Anatomia topográfica ........................................................................................................................... 44 1.5 Terminologia anatômica .................................................................................................................... 44 1.6 Conceito de normal e variações anatômicas ............................................................................ 45 1.6.1 Fatores gerais de variação anatômica ............................................................................................ 46 1.7 Anomalias ................................................................................................................................................ 53 1.8 Monstruosidade .................................................................................................................................... 58 1.9 Divisão do organismo humano ....................................................................................................... 60 1.10 Posição anatômica............................................................................................................................. 61 1.11 Planos de delimitação do organismo humano ...................................................................... 61 1.12 Planos de secção do organismo humano ................................................................................ 62 1.13 Termos de posição e direção ......................................................................................................... 65 1.14 Eixos de movimento ......................................................................................................................... 67 1.15 Cavidades corporais .......................................................................................................................... 68 1.16 Princípios gerais de construção do organismo humano ................................................... 70 1.16.1 Antimeria ................................................................................................................................................. 70 1.16.2 Metameria ...............................................................................................................................................71 1.16.3 Paquimeria .............................................................................................................................................. 71 1.16.4 Segmentação ......................................................................................................................................... 71 1.16.5 Estratimeria ou estratificação ......................................................................................................... 72 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 2 OSTEOLOGIA ...................................................................................................................................................... 73 2.1 Os principais papéis do esqueleto e dos ossos ......................................................................... 76 2.2 Arquitetura óssea ................................................................................................................................. 79 2.3 Periósteo e endósteo ........................................................................................................................... 81 2.4 Vascularização óssea ........................................................................................................................... 82 2.5 Inervação óssea ..................................................................................................................................... 83 2.6 Morfologia óssea .................................................................................................................................. 83 2.7 Características anatômicas de superfície dos ossos ............................................................... 88 2.8 Fatores de variação anatômica no número de ossos ............................................................ 92 2.9 Divisão do esqueleto ........................................................................................................................... 93 2.9.1 Esqueleto da cabeça .............................................................................................................................. 94 2.9.2 Ossos do neurocrânio ............................................................................................................................ 97 2.9.3 Ossos da face ............................................................................................................................................ 97 2.9.4 Ossos do esqueleto da cabeça em conjunto ................................................................................ 98 2.9.5 Esqueleto do pescoço ............................................................................................................................ 98 2.9.6 Esqueleto do tronco ............................................................................................................................... 99 2.9.7 Esterno ......................................................................................................................................................100 2.9.8 Costelas .....................................................................................................................................................100 2.9.9 Coluna vertebral ....................................................................................................................................102 2.9.10 Cintura escapular ...............................................................................................................................103 2.9.11 Membro superior ................................................................................................................................104 2.9.12 Cintura pélvica ....................................................................................................................................106 2.9.13 Membro inferior..................................................................................................................................109 Unidade II 3 ARTROLOGIA ...................................................................................................................................................115 3.1 Articulações fibrosas .........................................................................................................................116 3.1.1 Suturas ...................................................................................................................................................... 116 3.1.2 Sindesmoses ............................................................................................................................................118 3.1.3 Gonfoses ...................................................................................................................................................118 3.1.4 Esquindilese .............................................................................................................................................119 3.2 Articulações cartilagíneas ...............................................................................................................120 3.3 Articulações sinoviais .......................................................................................................................121 4 MIOLOGIA .........................................................................................................................................................126 4.1 Tipos de músculos ..............................................................................................................................127 4.2 Papéis dos músculos .........................................................................................................................129 4.3 Componentes macroscópicos dos músculos estriados esqueléticos.............................129 4.4 Nomenclatura dos músculos estriados esqueléticos ...........................................................132 4.4.1 Localização ............................................................................................................................................. 132 4.4.2 Tamanho relativo ................................................................................................................................. 132 4.4.3 Forma ........................................................................................................................................................ 132 4.4.4 Disposição das fibras musculares .................................................................................................. 133 4.4.5 Número de origens .............................................................................................................................. 136 4.4.6 Número de inserções .......................................................................................................................... 137 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 4.4.7 Localização de suas fixações ........................................................................................................... 137 4.4.8 Número de ventres .............................................................................................................................. 138 4.4.9 Embriologia ............................................................................................................................................ 140 4.4.10 Ação ........................................................................................................................................................ 140 Unidade III 5 CORAÇÃO .........................................................................................................................................................145 5.1 Volumes e pesos do coração ..........................................................................................................148 5.2 Localização do coração....................................................................................................................148 5.3 Limites do coração .............................................................................................................................149 5.4 Configuração externa do coração ...............................................................................................150 5.5 Configuração interna do coração ................................................................................................153 5.6 Características morfofuncionais do átrio direito ..................................................................154 5.7 Características morfofuncionais do átrio esquerdo .............................................................156 5.8 Características morfofuncionais do ventrículo direito .......................................................156 5.9 Características morfofuncionais do ventrículo esquerdo ..................................................157 5.10 Tipos de circulação do sangue ....................................................................................................159 5.10.1 Circulação sistêmica e pulmonar ................................................................................................ 159 5.10.2 Circulação portal ................................................................................................................................161 5.10.3 Circulação cardíaca ............................................................................................................................161 5.10.4 Circulação fetal .................................................................................................................................. 163 5.10.5 Circulação colateral .......................................................................................................................... 164 5.11 Aparelho valvar do coração .........................................................................................................164 5.12 Microanatomia .................................................................................................................................168 5.13 Pericárdio ............................................................................................................................................169 5.14 Complexo estimulador do coração ...........................................................................................170 6 VASOS DE SANGUE E LINFÁTICOS ..........................................................................................................171 6.1 Circuito sistêmico ...............................................................................................................................176 6.2 Aorta e seus ramos ............................................................................................................................177 6.3 Tronco pulmonar ................................................................................................................................183 6.3.1 Artérias pulmonares ........................................................................................................................... 183 6.4 Irrigação da cabeça e do pescoço................................................................................................183 6.5 Irrigação dos membros superiores ..............................................................................................185 6.6 Irrigação da região pélvica .............................................................................................................188 6.7 Irrigação dos membros inferiores ................................................................................................189 6.8 Sistema linfático .................................................................................................................................191 6.8.1 Anatomia ............................................................................................................................................... 192 Unidade IV 7 SISTEMA RESPIRATÓRIO: NARIZ, FARINGE E LARINGE ..................................................................205 7.1 Nariz.........................................................................................................................................................206 7.2 Cavidade nasal .....................................................................................................................................207 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 7.3 Seios paranasais ..................................................................................................................................210 7.3.1 Seios frontais ..........................................................................................................................................210 7.3.2 Seios maxilares .......................................................................................................................................210 7.3.3 Seios esfenoidais ................................................................................................................................... 211 7.3.4 Células etmoidais .................................................................................................................................. 211 7.4 Faringe ....................................................................................................................................................212 7.4.1 Dimensões ................................................................................................................................................212 7.4.2 Cavidades da faringe ...........................................................................................................................212 7.4.3 Parte nasal da faringe .........................................................................................................................212 7.4.4 Parte oral da faringe ............................................................................................................................213 7.4.5 Parte laríngea da faringe ...................................................................................................................214 7.4.6 Músculos da faringe ............................................................................................................................214 7.5 Laringe ....................................................................................................................................................215 7.5.1 Papéis da laringe ...................................................................................................................................215 7.5.2 Esqueleto da laringe ............................................................................................................................216 8 SISTEMA RESPIRATÓRIO: TRAQUEIA, BRÔNQUIOS E PULMÕES .................................................221 8.1 Brônquios ..............................................................................................................................................222 8.2 Pulmões ..................................................................................................................................................223 8.3 Segmentação broncopulmonar ....................................................................................................225 8.4 Pleura ......................................................................................................................................................225 9 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 APRESENTAÇÃO Caro aluno, Esta disciplina tem como objetivo servir de alicerce e recurso aos alunos que buscam profissões relacionadas à área da saúde, entre elasa Estética e Cosmética. Preparado para enriquecer os cursos que abordam anatomia humana, este livro‑texto traz uma introdução indispensável a esse assunto. O objetivo é beneficiar as informações aplicadas das estruturas anatômicas do organismo humano e as noções sobre as bases para o aproveitamento de outras disciplinas básicas. Aqui são retratadas experiências práticas que permitem aos universitários da área da saúde a utilização de episódios referentes às situações fidedignas nas quais eles poderão se deparar na profissão que optaram. Inicialmente, é contada a história da anatomia e suas bases gerais e, em seguida, são abordadas generalidades do esqueleto e dos ossos. Posteriormente, são estudadas as articulações, como as sinartoses, anfiatroses e diartorses, os músculos e os principais grupos musculares. Por fim, são explorados os aspectos anatômicos, funcionais e clínicos do sistema cardiovascular, linfático e do sistema respiratório. Todas as unidades são acompanhadas de exemplos de aplicação, saiba mais, lembretes e observações, destaques que facilitam a memorização dos assuntos centrais deste livro. As figuras apresentadas também auxiliam no esclarecimento das características de cada tema, complementando o aprendizado. Além disso, está presente uma revisão terminológica, relevante em um livro dessa natureza, que compreende a versão dos epônimos mais utilizados na clínica médica, protegida tecnicamente pela terminologia anatômica. Há, ainda, notas explicativas com termos e expressões definidas, o que facilita a compreensão do texto, mesmo para os principiantes ainda não familiarizados com a terminologia da área. Escrever um livro demanda não só concentração, mas também uma análise crítica permanente sobre a filosofia e o conteúdo de anatomia. Portanto, ele foi destinado a facilitar o estudo da anatomia para alunos da área de saúde. A ciência moderna traz consigo um conjunto de particularidades que pode ser muito bem figurado no conhecimento metodológico abordado pelas ciências da natureza, tais como a ideia de neutralidade científica, o afastamento radical entre sujeito e objeto, a ideia de objetividade e a fragmentação do saber. Alguns campos de saber concentram como alicerce para seus estudos e influências as teorias e metodologias tanto das ciências naturais como das ciências humanas. Essa é a conjuntura atual de cursos da área da saúde, campo multi ou interdisciplinar do saber, que se distingue pelo estudo e pesquisa com fins de intercessão pedagógica. Portanto, tal área une as teorias e metodologias de diversas outras ciências que podem ser denominadas disciplinas‑mãe. INTRODUÇÃO Os conhecimentos anatômicos são indispensáveis para o profissional da área de saúde, que lida durante toda sua carreira com o corpo humano. A anatomia humana é o alicerce para a compreensão de outras disciplinas essenciais, como, por exemplo, a fisiologia, a patologia e a clínica. 10 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 O aprendizado da anatomia envolve, na maioria das vezes, trabalho árduo, pois os alunos devem se habituar à terminologia anatômica, bem como às peças anatômicas, que diversas vezes não se assemelham aos impressos nos atlas de anatomia. A anatomia humana desde sempre foi influenciada por fatores sociais, políticos, econômicos, religiosos e por tendências e modismos educacionais. Sua incorporação no estudo da medicina significou a cisão de uma medicina mística, pouco precisa, para uma medicina objetiva. Os primeiros registros do estudo e ensino de anatomia remontam à Escola de Alexandria, onde, segundo os registros de Galeno, teriam sido efetuadas as primeiras dissecações públicas de animais e corpos humanos. A etimologia da palavra “dissecar” origina‑se do verbo latino disseco, are, que também se redige deseco, are, cujo significado é o de cortar dividindo e separando as partes. No grego é escrito aνaλúστε e quer dizer corte, fatia, secção. O substantivo correspondente, desectio, onis traduz‑se por corte, talho. Dissecare, como termo médico, já foi utilizado por Plínio, no século I d.C. Desectio, onis foi adaptado para dissección, em espanhol; dissezione, em italiano; e dissecção, em português. Os léxicos da língua portuguesa têm manifestado dúvida entre dissecção e dissecação. Em Gardner, Gray e Rahilly (1988, p. 3) lê‑se: “Do ponto de vista etimológico, o termo dissecação: dis – significa separadamente e secare, cortar é o equivalente latino do grego anatomé”. A história da anatomia humana, todavia, foi marcada também por estorvos, quando, após a queda do Império Romano, houve um avanço mínimo em seu desenvolvimento, devido à sobrepujança da doutrina, filosofia e prática da era autoritária que teve início com a Idade Média. Na primeira metade do século XVI, surgiram questões religiosas acerca da atividade de dissecar corpos para o aprendizado e o Papa Bonifácio VII tentou excomungar os anatomistas. Muitos deles chegaram a ser agredidos pela própria população, exilados ou acusados de forma injusta por práticas desumanas, como a de dissecar corpos ainda com vida. A dissecação humana foi proibida em diversos locais e quase nenhum estudo de caráter inovador ou extraordinário foi efetuado na área durante esse período. Contudo, as dissecações para fins de estudo sempre geraram contestações e pode‑se afirmar que foi só a partir do século XIV que, na Europa, mais especificamente na Universidade de Bolonha, elas se tornaram parte do ensino médico sob os auspícios de Mondino de Luzzi. Nessa época, por influência do movimento escolástico, os estudos e as investigações em anatomia humana fundamentavam‑se, especialmente, na tradução de obras e tratados anatômicos, sendo a dissecação um método de averiguação de dados preexistentes. Apenas no século XVI e em pleno movimento renascentista que Andreas Vesalius publicou a obra De Humanism Corporis Fabrica. As contribuições de Vesalius ao desenvolvimento da anatomia humana como ciência são inúmeras. No campo do ensino, destacou‑se sua ardorosa defesa da prática sistemática da dissecação de animais e de seres humanos; no campo da pesquisa, a inovação de sua sugestão foi projetar paralelos entre as estruturas corporais humanas e animais, demonstrando as dessemelhanças entre elas e, por conseguinte, assinalando os deslizes da anatomia galênica que imperava nos principais livros‑texto usados até então, como, por exemplo, o Anothomia, de Mondino de Luzzi. 11 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Outro aspecto considerável da obra de Vesalius foi o uso de figuras que buscavam inserir os conhecimentos científicos e anatômicos em um contexto natural e social mais extenso, dando de certa maneira vida aos cadáveres representados, alçando, assim, a figura do anatomista carrasco, até então considerado um personagem sombrio ligado à morte, ao patamar de profissional socialmente aceito, especialmente com o começo das dissecações públicas anuais, que se tornavam cada vez mais frequentes no âmbito europeu. O desenvolvimento da anatomia descritiva teve na figura e na obra de Vesalius uma época de renovação a partir do qual, paulatinamente, novas estruturas do corpo humano foram sendo identificadas e/ou nomeadas. Dentre seus alunos destacaram‑se Gabriel Falloppio e Fabricio d’Acquapendente. A anatomia descritiva, ao final do século XVIII, já tinha buscado, identificado e descrito grande parte das estruturas do corpo humano, concedendo lugar, gradualmente, a outras disciplinas que viriam a constituir as relações entre essas estruturas, como, por exemplo, a fisiologia. A anatomia descritiva fracassou ao mostrar‑se estática, uma vez que não desvendava as relações entre as estruturas do corpo humano identificadas, e, seguramente, isso pode ser uma das razões pela qual, no século XIX, com o surgimento da medicina experimental, a anatomia deixa parte de seu campo de ação para disciplinas como,por exemplo, a fisiologia e a anatomia patológica. Isso ratificava um novo posicionamento epistemológico, funcionalista e experimental para os estudos modernos acerca dos condicionantes do estado normal e patológico do corpo humano. Exemplo disso é o fato de que dentre os nomes proeminentes da anatomia do século XIX sobressaíram‑se William Sharpey e Henry Gray, ambos célebres por suas colaborações tanto na organização de algumas das edições do Quain’s Anatomy, quanto na publicação do Gray’s Anatomy, obras dedicadas ao avanço do conhecimento da anatomia humana por parte de médicos cirurgiões, cujas atividades foram estimuladas pelo aparecimento da anestesia. Porém, a história da anatomia não está interligada só à história do ensino e do aprendizado, contudo, também à história da arte. As dissecações habituavam ser eventos mais de cunho teatral do que letivo, podendo acontecer dentro ou fora dos terrenos das universidades, nos chamados teatros anatômicos, visto que a população também admirava acompanhar tais práticas. As personalidades locais eram até mesmo seduzidas a seguir as dissecações de cadáveres. Em geral, os cirurgiões e os estudantes de medicina eram obrigados a ver essas demonstrações. A apreensão era em demonstrar onde se encontravam os órgãos, quais suas interconexões, cores, formas e texturas, ou seja, a anatomia popular. Lembrete Dissecção ou dissecação significa a ação de dissecar, separar as partes de um corpo ou de um órgão. Utiliza‑se tanto na anatomia (dissecação de um cadáver ou parte desse) como em uma cirurgia (dissecação de uma artéria ou de uma veia). 13 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Unidade I 1 INTRODUÇÃO À MORFOLOGIA O trecho a seguir foi retirado da Oração ao Cadáver Desconhecido, de Carl Rokitansky, e é direcionado aos estudantes de anatomia humana. Ao te curvares com a rígida lâmina de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra‑te que este corpo nasceu do amor de duas almas, cresceu embalado pela fé e pela esperança daquela que em seu seio o agasalhou. Sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens. Por certo amou e foi amado, esperou e acalentou um amanhã feliz e sentiu saudades dos outros que partiram. Agora jaz na fria lousa, sem que por ele se tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome, só Deus sabe. Mas o destino inexorável deu‑lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade. A humanidade que por ele passou indiferente (CAPELLI, 2016, p. 4). A história da anatomia humana é análoga à da medicina. De fato, a preocupação com a estrutura do corpo humano foi estimulada pelo anseio dos profissionais da área de saúde em esclarecer uma disfunção orgânica do corpo. Em contrapartida, diversas religiões reprimiram o estudo da anatomia por meio das restrições atribuídas à dissecação humana e das evidências nas explanações não científicas para as doenças e fraquezas. Durante séculos, o interesse inato dos indivíduos em seus próprios corpos e capacidades físicas se deparou com diversas maneiras de demonstração. Os gregos, por exemplo, estimulavam as provas atléticas e apregoavam a perfeição do corpo em suas esculturas, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 1 – Discóbolo, de Mirón 14 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Do escultor grego Mirón, produzida em torno de 455 a.C., a obra da figura anterior representa um atleta momentos antes de lançar um disco. Os gregos antigos já tinham o conhecimento do nu artístico e apreciavam a boa forma física, logo davam destaque ao retratar a musculatura dos corpos, principalmente o corpo masculino Posteriormente, muitos dos grandes mestres do Renascimento costumavam retratar na arte figuras humanas. Alguns destes artistas eram magníficos anatomistas, pois a apreensão deles com as minúcias pedia que o fossem. Michelangelo foi um desses artistas que captou o luxo da forma humana em esculturas como David, conforme ilustra a figura a seguir, e em pinturas como as da Capela Sistina. O estudo da história da anatomia nos auxilia a contemplar a ciência que se tornou tão importante atualmente. Figura 2 – David, de Michelangelo 1.1 Período pré‑científico É possível que um tipo de anatomia comparada prática seja a ciência mais antiga. Os primórdios do conhecimento anatômico mediante elementos e inscrições datam da pré‑história, então, é possível deduzir que já nesse período haviam algumas informações anatômicas circulando. Essas informações foram eternizadas ao longo da história como, por exemplo, por meio de desenhos que representam partes da anatomia humana encontrados nas montanhas de Tassili n’Ajjer, no Saara argelino, datadas de aproximadamente 3000 a.C., conforme ilustra a figura a seguir. 15 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 3 – Pinturas rupestres 1.2 Período científico O período científico se iniciou com os registros de observações anatômicas feitas na antiga Mesopotâmia em cerca de 3000 a.C., em blocos de argila, por meio da escrita cuneiforme, e continua até hoje. Obviamente, todas as colaborações do passado para a ciência da anatomia não podem ser especificadas, contudo, certos indivíduos e culturas tiveram grande impacto, que serão comentados brevemente nesta unidade. 1.2.1 Mesopotâmia e Egito Na Mesopotâmia, o olho era a parte constituinte do corpo humano que se expressava para o mundo, sendo tal fato destacado nas pinturas. Em contrapartida, o tronco permanecia na posição frontal, enquanto a cabeça, as pernas e os pés encontravam‑se de perfil. As esculturas produzidas não incluíam muitos detalhes anatômicos, entretanto, demonstravam um corpo sólido. Já no Antigo Egito o progresso das técnicas de embalsamamento obrigou e motivou o estudo da anatomia humana. Apesar de suas carências, os médicos egípcios julgavam que o coração era o centro motor do corpo humano, pois descreviam que o coração falava, batia e pulsava. Começo do segredo do médico: conhecimento da anatomia do coração. Há neles vasos (indo) a todos os membros. Quando qualquer médico da deusa Sekhmet [...], ou qualquer mágico coloca seus dedos na testa, na nuca, ou nas mãos ou sobre o próprio coração, ou sobre os 2 braços, ou sobre as 2 pernas, ou em qualquer parte do corpo humano, sente qualquer vestígio do coração, porque os vasos deste vão a todos os territórios do corpo humano (PAULA, 1962, p. 37). 16 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Os grandes discípulos dos egípcios seriam os gregos, que se saciaram nos conhecimentos daqueles que habitavam as regiões do Nilo desde Hipócrates até Galeno. Figura 4 – Deusa Sekhmet 1.2.2 Grécia Antiga Para os gregos o conhecer – o espetáculo, a inteligência – tem prioridade sobre o operar – a ação, o prático. A propriedade básica do pensamento grego está no dualismo das relações entre a realidade empírica e um absoluto que a esclareça, na separação entre Deus e o mundo. O resultado desse dualismo é o irracionalismo, que produz sustentação à serena compreensão grega do mundo e da vida. O mundo real dos indivíduos depende de Deus, porém, nunca se pode chegar até Ele, porque dele não deriva. Deus é o absoluto racional, todavia, ele não cuida do mundo e da humanidade, a qual não criou, não distingue e nem governa. Para os gregos, ela era governada pelo acaso, isto é, pela necessidade irracional. Essa concepção de mundo era, assim, marcada pelo pessimismo desesperado, razão pela qual foi considerado como período trágico. Aristóteles, conforme ilustra a figura a seguir, ao longo da vida escreveu mais de mil obras. Alguns de seus trabalhos mais relevantes são: História dos Animais, Das Partes dos Animais e A Geração dos Animais. Nesses trabalhos desenvolveu teorias coesas sobrea geração e a hereditariedade e sugeriu a anatomia comparada, embora nunca tivesse dissecado um corpo humano. 17 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 5 – Escola de Atenas, de Rafael. O ponto central de fuga fica entre Platão e Aristóteles Conforme mencionados anteriormente, Aristóteles dá belas descrições de alguns órgãos sob o ponto de vista da anatomia comparada. Tais descrições foram fortuitamente ilustradas com desenhos, que são as primeiras figuras anatômicas de que se tem conhecimento. Dentre seus erros anatômicos merece destaque a sua rejeição em dar grande relevância ao cérebro. A superioridade, segundo ele, reside no coração, sede também da inteligência, conceito contrário ao da maioria dos médicos escritores de seu período. Não é de todo incerto que Aristóteles tenha efetuado experimentos sobre o cérebro e observado tal falta de sensibilidade. Assim, considerou‑o simplesmente um meio para resfriar o coração e impedir seu superaquecimento. Segundo ele, esse processo de resfriamento era motivado pela secreção da fleuma. Aristóteles era, via de regra, muito mais fraco em fisiologia do que em anatomia. Portanto, não sabia as diferenças entre artérias e veias, e cria que as artérias contivessem ar, além de sangue. Por mais de 2 mil anos, a filosofia aristotélica, de forma mais ou menos modificada, estabeleceu a principal referência intelectual da humanidade. Segundo Galeno, foi Alcmeão de Crotona, conforme ilustra a figura a seguir, quem escreveu a primeira obra de anatomia. Ele dissecou a trompas auditivas, os nervos ópticos e o olho, o qual propunha ser feito de água (oriunda do cérebro e encontrada facilmente ao dissecá‑lo) e fogo (notado quando o olho é ferido). Assim, sugeriu uma teoria da visão, segundo a qual existiria no olho um fogo interno. Figura 6 – Busto de Alcmeão datado do séc. XIX 18 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Saiba mais Vários anatomistas imortalizaram seus nomes criando uma série de epônimos, ou seja, diversas estruturas anatômicas receberam denominações em homenagem aos primeiros anatomistas que as descreveram. Por exemplo, o polígono de Willis e a trompa de Eustáquio, as glândulas de Bartholin, o fundo de saco de Douglas e as trompas de Falópio, essas últimas sendo as seguintes estruturas anatômicas: as glândulas vestibulares, a escavação retouterina e as tubas uterinas. Para saber mais sobre o assunto: BEZERRA, A. J. C.; BEZERRA, R. F. A. Epônimos de uso corrente em anatomia humana: um glossário para educadores físicos. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, Brasília, v. 8, n. 3, 2000. Disponível em: <https:// portalrevistas.ucb.br/index.php/RBCM/article/view/369/421>. Acesso em: 9 maio 2019. Alcmaéon considerava o cérebro a sede das sensações e o centro da vida intelectual, informações essas que mais tarde foram resgatadas na medicina. Todos os órgãos dos sentidos estariam ligados ao cérebro – o centro da memória e centro do saber. Acreditava‑se também que era no cérebro que o espermatozoide se originava, a partir dos 14 anos de idade. Hipócrates, conforme ilustra a figura a seguir, é considerado o pai da medicina ocidental, entretanto, na área da anatomia nada alcançou de importante, mas foi provavelmente o precursor do estudo da anatomia constitucional. O médico acreditava que o encéfalo não só estava compreendido nas sensações, mas seria a sede da inteligência. Ele foi o primeiro a estabelecer uma relação entre o cérebro e a doença sagrada, a epilepsia. Figura 7 – Escultura facial de Hipócrates 19 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Embora Hipócrates supostamente tivesse só restrita a orientação em dissecações humanas, ele foi bem conduzido na afamada teoria humoral de organização do corpo. Por meio dessa teoria eram identificados quatro humores no corpo e cada um deles era agregado a um órgão em especial: sangue com o fígado; cólera, ou bile amarela, com a vesícula biliar; fleuma com os pulmões; e melancolia, ou bile preta, com o baço. Acreditava‑se que um indivíduo teria o equilíbrio dos quatro humores conforme ilustra a figura a seguir. Vale notar que os quatro humores ainda hoje fazem parte da linguagem e da clínica médica. Melancolia é um termo utilizado para descrever depressão ou desânimo de um indivíduo, enquanto “melano”, que significa preto, alude a um semblante obscuro ou pálido. Cólera é uma patologia intestinal que causa diarreia e vômito. Fleuma, no interior do sistema respiratório, é sinal de diversas doenças pulmonares. Fígado Baço Membros inferiores Pulmão Bíle amarela SIV VESangueVD Alma Cabeça Figura 8 – Esquema do sistema cardiovascular de acordo com os gregos antigos Na figura anterior há a presença de dois vasos paralelos oriundos do fígado e do baço, interligados ao coração, no tórax, aos membros inferiores e à cabeça. No coração, há um poro no septo interventricular conectando o VD (ventrículo esquerdo) e o VE (ventrículo direito), dois vasos conectados ao VD e um vaso conectado ao VE vindo dos pulmões. O VD é maior do que o esquerdo, ao passo que o VE é mais espesso do que o direito. O VD contém sangue, ao passo que o VE é preenchido com ar e bile amarela, de acordo com o Corpus Hippocraticum. 20 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Quando Atenas perdeu sua liberdade, o centro científico passou para Alexandria, no Egito, onde pela primeira vez a anatomia tornou‑se uma disciplina. Os dois primeiros e maiores professores dela foram Herófilo e Erasístrato, que iniciaram o chamado período alexandrino da anatomia. Herófilo, conforme ilustra a figura a seguir, é visto como o “açougueiro de homens”, pois realizava vivissecção em criminosos da prisão real. Acredita‑se que ele tenha dissecado vários seres humanos, muitas vezes em demonstrações públicas – “sem dúvida, o melhor método para aprender”, escreveu Celsius, aprovando (TERÇARIOL, 2018, p.18). Foi ele também que fez a primeira distinção clara entre as artérias e as veias e ampliou os estudos sobre a pulsação, que considerava um processo ativo das próprias artérias. Foi Herófilo definitivamente que reconheceu o cérebro como o órgão central do sistema nervoso e a sede da inteligência. O médico dividiu os nervos em motores e sensitivos e descreveu as meninges. Ampliou, ainda, o conhecimento sobre outras partes do cérebro, distinguindo o cérebro, o cerebelo e o quarto ventrículo. Os termos próstata e duodeno são derivados dos que foram usos por ele. Ele fez também a primeira descrição dos vasos quilíferos do intestino. Lembrete A vivissecção é a dissecação ou operação cirúrgica em animais vivos para estudo de alguns fenômenos anatômicos e fisiológicos. Figura 9 – Herófilo, em A Primeira Dissecação, na entrada principal da Nouvelle Faculté de Médecine de Paris Nouvelle Faculté de Médecine de Paris Erasístrato, conforme ilustra a figura a seguir, atentava‑se mais pelas funções do corpo humano do que pela estrutura, e comumente é chamado de pai da fisiologia. O anatomista aperfeiçoou os dados sobre o cérebro e o cerebelo, considerando tais órgãos como a sede da alma. Dentre suas diversas descrições determinou a substância cerebral, e não a dura‑máter, como sendo a origem dos nervos cranianos. Além disso, estabeleceu o cérebro e o cerebelo como órgãos parenquimatosos e descreveu os ventrículos encefálicos. Juntamente com Herófilo, determinou que o número de giros está relacionado 21 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS com a inteligência humana. Era um racionalista e se declarava inimigo de todo misticismo. Teve, ainda, que usar a ideia de natureza como força externa, que molda os objetivos para os quaiso corpo age. Erasístrato compreendeu a ação dos músculos na produção do movimento e atribuiu o encurtamento dos músculos à sua distensão pelo espírito animal. Figura 10 – Erasístrato Entretanto, o esplendor das descobertas anatomopatológicas de Herófilo e Erasístrato caíram em infortúnio quando se levantou a suspeita de que escravos e condenados à morte haviam sido dissecados vivos, após a autorização de Ptolomeu I. Machado de Assis, nos “Contos Alexandrinos”, cita Herófilo na história de dois filósofos: Stroibus e Pítias. Tinham sido escalpelados cerca de cinquenta réus, quando chegou à vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá‑los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram‑se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão os indivíduos que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos (VILICEV, 2002). Conta‑se que Herófilo e outros anatomistas pretenderam saber se “nervo do furto” residia na palma das mãos das pessoas. Pelo que se diz, Herófilo dissecou primeiro Stroibus e a seguir Pítias durante oito dias. 1.2.3 Roma O interesse do Estado em Roma fundamentava‑se em sua arte, que era caracterizada como sendo objetiva, e para a representação do poder de forma realista esculpiam‑se rostos de autoridades, conforme ilustra a figura a seguir. Para que os corpos fossem mitificados e divinizados em paredes de casas era utilizada a pintura mural. 22 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Figura 11 – Júlio César Em muitos aspectos, Roma incluiu os progressos científicos e as bases para a Idade Média. O questionamento científico perfaz a teoria pela prática durante esse período. Foram realizadas algumas dissecações de cadáveres humanos, tendendo mais determinar a razão da morte em casos criminais. A medicina não era preventiva, contudo, confinava‑se, quase sem exceção, ao tratamento de soldados lesados em combates. Nos últimos tempos da história romana, as leis eram postas evidenciando a autoridade da Igreja na prática médica. De acordo com as leis romanas, por exemplo, nenhuma gestante morta poderia ser sepultada sem a retirada do feto do útero de maneira que ele pudesse ser batizado. Esse é o caso da morte de Aggrippina, mãe de Nero, cuja história gerou um contrassenso na época pelo viés anti‑Nero que ela apresentava. Nero arquitetou um navio, cujo fundo se abriria quando estivesse no mar, e Aggripina foi colocada a bordo. Quando o fundo se abriu, ela caiu no mar, contudo, conseguiu nadar até a margem e, por isso, Nero enviou um assassino para matá‑la. O imperador afirmou que ela havia tentado assassiná‑lo e depois cometeu suicídio. Suas hipotéticas palavras finais ao assassino quando estava prestes a matá‑la foram “Ataque meu útero!”, insinuando que ela almejava ver destruída a primeira parte de seu corpo que tinha gerado um “filho tão abominável”, conforme ilustra a figura a seguir, em uma associação de ideias entre as palavras de Aggrippina e a xilogravura de Guilherme de Lorris. Figura 12 – O imperador Nero assistindo a dissecação de sua mãe Aggrippina, que ainda está viva e tem as mãos amarradas 23 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Considerado o príncipe dos médicos, Galeno, conforme ilustra a figura a seguir, foi uma personagem fundamental na história da medicina. Como a dissecação humana era abolida na época, ele não dissecava cadáveres humanos, porém, os humanizava por aproximação, sendo essa talvez a causa de seus erros anatômicos. Figura 13 – Bustos de Galeno Galeno utilizava seres humanos para fazer pesquisas, observando feridas profundas ou estudando cadáveres de indigentes encontrados eventualmente. As principais descrições dele encontram‑se no campo do sistema nervoso, sistema muscular, sistema cardiovascular, além de ter estudado o esqueleto humano, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 14 – Desenho dos ossículos da orelha (círculo branco), presente no livro Ossibus Doctissima et Expertissima Commentaria, de Galeno 24 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Galeno descreveu o esterno com sete peças, tanto como as costelas com as quais se articula. Detalha também a cartilagem tireoidea com o nome de O Chondros Thyreoides, semelhante ao escudo cretense. Em nenhum período da história o status de um homem prevaleceu tão profundamente em uma ciência como o de Galeno na medicina. Suas inspirações prorrogaram‑se pelos próximos 13 séculos, passando pela Idade Média e chegando até o século XVI, sendo que as obras de Galeno determinaram os princípios dos dados anatômicos. Observação Era uma obrigação religiosa entre os gregos e os romanos cobrir com terra qualquer osso humano encontrado por casualidade. Apenas os condenados e os suicidas poderiam ficar sem enterro. Entre os gregos existia a crença de que as almas dos mortos haviam de vagar pelas margens Rio Estige, o rio da imortalidade, até que seus corpos tivessem sido enterrados. Saiba mais Para saber mais sobre o surgimento e o desenvolvimento do estudo da anatomia, leia: KICKHÖFEL, E. H. P. A lição de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 389‑404, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S1678‑31662003000300008>. Acesso em: 10 mar. 2019. ALVES, M. V. A medicina e a arte de representar o corpo e o mundo através da anatomia. In: CATÁLOGOS BNP. Arte médica e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVII. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2010, p. 31‑50. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/chc/pdfs/ nature4.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2019. CHEREM, A. J. Medicina e arte: observações para um diálogo interdisciplinar. Revista Acta Fisiátrica, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 26‑32, 2005. Disponível em: <http://www.actafisiatrica.org.br/detalhe_artigo. asp?id=240>. Acesso em: 10 mar. 2019. CHIARELLO, M. Sobre o nascimento da ciência moderna: estudo iconográfico das lições de anatomia de Mondino a Vesalius, Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 291‑317, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1678‑1662011000200004>. Acesso em: 10 mar. 2019. 25 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS 1.2.4 A contribuição do povo islame O período entre a morte de Galeno e a primeira tradução de uma obra de material médico no século XI, ocorrida no Mosteiro de Monte Cassino, no sul da Itália, é o chamado de idade das trevas da anatomia. Crê‑se que tanto o estilo de vida quanto os sentimentos nutridos pela sociedade medieval em relação ao corpo humano teriam reduzido a edificação de saberes que abrangeu a anatomia, a medicina e outras áreas do saber. Os séculos X e XI foram marcados pelo aumento demográfico associado à expansão territorial empreendida pelas Cruzadas religiosas, o que possibilitou o renascimento comercial. Com a retomada das atividades comerciais e a instauração de espaços urbanos, as universidades se multiplicaram com a finalidade de acatar às necessidades de expandir o conhecimento por parte dos comerciantes no processo de expansão de seus negócios. Do mesmo modo, a própria maneira de organização social que nascia clamava por certos serviços, como aqueles relativos à jurisprudência e à medicina. Em um clima essencialmente escolástico, o ensino das universidades comumente, assim como o ensino da anatomia,era abalizado nas traduções de textos árabes, como os tratados de Avicena, conforme ilustra a figura a seguir. Como a observação da natureza ainda era inadvertida nessa época, não existia instrumentação prática em anatomia. Figura 15 – Estátua de Avicena Avicena organizou e sistematizou os saberes de Hipócrates e Galeno, conforme ilustra a figura a seguir em um compêndio de medicina, considerada uma obra majestosa, conhecida como O Cânone da Medicina. Ela foi publicada pela primeira vez apenas em 1492 e trata‑se de uma mistura de saberes médicos islâmicos e gregos. Esse foi o primeiro livro médico a mostrar a reparação de tendões em um período no qual esse tratamento era equivocadamente contraindicado. 26 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Figura 16 – Os três maiores professores de medicina na Antiguidade 1.2.5 O Renascimento A fase conhecida como Renascimento foi determinada pela vida nova das ciências e teve forte influência nas grandes universidades europeias localizadas em Bolonha, Salerno, Pádua, Montpellier e Paris. Apenas no Renascimento seriam aceitos, ainda que com certa cautela e dignidade, os procedimentos de violação do corpo por meio de estudos de cadáveres. Com o aumento do mérito na anatomia durante o Renascimento, a aquisição de cadáveres para a dissecação se tornou um problema grave. Estudantes de medicina cometiam repetidamente a invasão de sepulturas para saqueá‑las, até que um decreto oficial foi expedido, possibilitando utilizar os corpos de criminosos executados como espécimes. As aulas de anatomia aconteciam em um teatro anatômico, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 17 – Vista panorâmica do teatro anatômico de Pádua 27 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS O teatro anatômico deveria ser vasto e arejado, com bancos organizados em círculos, como os do Coliseu romano, possibilitando a acomodação de muitos alunos sem importunar os movimentos do maestro, o cirurgião. O cadáver era colocado em uma mesa no centro do teatro e os instrumentos em outra, próxima à primeira. Os professores de anatomia pronunciavam suas aulas de cátedras um pouco distante de onde estava o cadáver. A frase “Eu não devo tocá‑lo com uma vara de 10 pés” possivelmente originou‑se durante esse período em menção ao odor de um cadáver em deterioração. Saiba mais Para saber mais sobre o teatro anatômico, leia o artigo: ALVES, E. M. O.; TUBINO, P. Proibições das dissecações anatômicas: fato ou mito? Jornal Brasileiro de História da Medicina, Brasília, dez. 2017. Do século XIII ao início do século XVI, os progressos no conhecimento anatômico foram morosos, fundamentados na contínua revisão e extensão de tratados preexistentes. A anatomia macroscópica foi privilegiada nessa época, contudo, para seu desenvolvimento foi imprescindível o aperfeiçoamento das técnicas de observação, dissecação, descrição, ilustração e o gradual refinamento terminológico, processo para o qual Mondino de Luzzi, conforme ilustra a figura a seguir, é considerado o precursor. Figura 18 – Xilogravura da aula de anatomia de Mondino 28 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Do século XIII ao século XVI, o desenvolvimento da anatomia concentrou‑se no cenário italiano e ampliou‑se para outros países, em agravo do decreto pontifício propagado em 1300. Sua inserção enquanto disciplina nas universidades foi regularizada também pelo refinamento das formas de representação das estruturas corporais concebidas pelo processo de ilustração do corpo, o que se tornou possível devido à influência do naturalismo na arte italiana. Assim, artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo estavam entre os primeiros a efetuar o estudo científico da anatomia humana, devido ao interesse na forma humana. Além disso, a invenção da impressão tornou os livros facilmente acessíveis e as ilustrações necessárias para anatomia poderiam naquele momento ser mais facilmente reproduzidas e distribuídas. A escrita invertida é uma característica das observações de Leonardo da Vinci em seus desenhos. Canhoto, da Vinci produziu centenas de desenhos anatômicos feitos a partir de dissecações. Suas contribuições, do ponto de vista anatômico, só podem ser elencadas retrospectivamente, mas a precisão e a objetividade de suas ilustrações inspiram, ainda hoje, a construção de novos esquemas anatômicos. Ele ponderou o homem como sendo o centro do universo, distendendo a figura humana em duas formas geométricas, uma em relação ao quadrado e a outra em relação ao círculo, sendo que a unidade melodiosa seria dada pelo conjunto. Seu ponto de partida foram os escritos do arquiteto e do engenheiro militar Marco Vitrúvio, o qual constituíra no século I a.C. a doutrina que relacionava a proporcionalidade da soberba arquitetura com as do homem de boa adequação, conforme ilustra a figura a seguir. Figura 19 – O Homem de Vitrúvio Uma das mais apreciadas imagens plásticas do Renascimento, pintada na Capela Sistina por Michelangelo entre 1508 e 1512, se apresenta em A Criação de Adão, conforme ilustra a figura a seguir. Nesse afresco observamos que os membros superiores são simétricos e têm uma composição muito semelhante, fazendo referência à passagem bíblica “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança” (Gênesis, 1.27). De tal modo, por meio dessa simetria, Michelangelo insere um equilíbrio entre os dois lados do afresco, entre a figura divina e a figura humana. 29 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 20 – A Criação de Adão Saiba mais Em meio aos afrescos que pintou no teto da Capela Sistina, Michelangelo espalhou imagens de ossos, nervos, músculos, vísceras, artérias e órgãos humanos que ficaram escondidos desde 1512 até concluir o trabalho encomendado pelo Papa Júlio II. Para saber mais sobre o assunto, acesse o link com o estudo de dois pesquisadores da Unicamp que conseguiram identificar e decifrar um código criado por Michelangelo para revelar as peças anatômicas pintadas de forma mascarada nas imagens principais. LEVY, C. Pesquisadores dissecam lição de anatomia de Michelangelo. Jornal da Unicamp, Campinas, n. 256, p. 12, 2004. Disponível em: <http:// www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/jornalPDF/ju256pag12.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2019. Na história da anatomia, o século XVI mostra‑se relevante por conta da obra do anatomista Andreas Vesalius, considerado o pai da anatomia. No cenário italiano, Vesalius revelou‑se um ferrenho defensor da técnica da dissecação, que considerava como a única forma de conhecer realmente o corpo humano. O intuito de sua obra era, a partir da dissecação sistemática de cadáveres, abandonar o caráter revisionista que prevalecia nas investigações anatômicas. Seu estudo intitulado De Humani Corporis Fabrica foi concluído em 1543, conforme ilustram as figuras a seguir. O impacto que isso causou se deveu tanto ao nível de apuração dos detalhes anatômicos compreendidos por suas ilustrações quanto pela veia artística de sua obra, de caráter tipicamente renascentista, acrescida de influências galênicas, naturalistas e escolásticas. 30 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Figura 21 – De Humani Corporis Fabrica O grande valor das práticas e das informações preconizadas por Vesalius prosseguiram no século seguinte, sendo que seus estudos ganharam evidência em telas, como, por exemplo, em Lição de Anatomia do Dr. Tulp, pintada por Rembrandt em 1632, conforme ilustra a figura a seguir. 31 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 22 – A Lição de Anatomia do Dr. Tulp Nessa obra, o cadáver é o de Adriaen Adriaansz, conhecido comoo Garoto, um deficiente mental, com grave dismorfismo corporal, com medidas de quase um anão, que após roubar várias vezes foi enforcado. Personagens ilustres assistiram à dissecação do cadáver de Adriaen, como o anatomista amador e filósofo René Descartes e o médico inglês Thomas Brown. Reconhecendo que os artistas pós‑renascentistas já não recorriam às dissecações, embora reconhecessem a importância de tais conhecimentos, é valido enfatizar que essa aula com sete alunos anatomistas trata‑se apenas de uma demonstração. Portanto, não ocorreu de fato uma dissecação anatômica e, ainda, a tela contém alguns erros anatômicos, como os descritos a seguir. • O comprimento do membro superior esquerdo é bem maior do que o direito. • Os músculos flexores superficiais do antebraço estão originando erradamente do epicôndilo lateral ao invés do epicôndilo medial, o que sugere o desconhecimento de Rembrandt sobre anatomia, conforme ilustra a figura a seguir. • No raio X da pintura, inicialmente a mão direita do cadáver não tinha dedos. Rembrandt pintou‑a posteriormente com base na mão de outra pessoa. Entretanto, consiste em uma mão delicada, com unhas bem cortadas, nada lembrando a de um ladrão. Figura 23 – Detalhe dos tendões bifurcados dos músculos flexores superficial e profundo dos dedos 32 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Saiba mais Para saber mais sobre a história que inspirou o quadro de Rembrandt: SIEGAL, N. A lição de anatomia. São Paulo: Rocco, 2017. 1.2.6 As ciências contemporâneas As contribuições para a ciência anatômica durante o século XX não foram tão magníficas quanto eram no período em que pouco se sabia sobre a estrutura do corpo humano. O estudo da anatomia foi se aperfeiçoando cada vez mais por meio das especializações e as pesquisas foram se tornando cada vez mais detalhadas e complexas. Podemos afirmar que, infelizmente, um ponto negativo do estudo da anatomia ocorreu durante o período da Segunda Guerra Mundial, quando as polêmicas bioéticas abrangendo as experiências com seres humanos tomavam corpo com o processo de Nuremberg. Durante o julgamento muitos anatomistas alemães foram denunciados por utilizarem corpos de vítimas do holocausto para as pesquisas anatômicas, assim como foram realizadas diversas acusações da presença da suástica nazista nas páginas de alguns atlas anatômicos do período. Joseph Mengele talvez tenha sido o cientista mais carniceiro de Hitler, seus experimentos custaram a vida de cerca de 400 mil pessoas em Auschwitz. Mengele injetou tinta azul em olhos de crianças, uniu as veias de gêmeos, amputou membros de prisioneiros e dissecou anões vivos em seu laboratório. “Sou, sem dúvida, o único que conhece por completo a fisiologia humana, porque faço experiências em homens e não em ratos” (MORAIS, 2011, p. 6). Isso era o que proferia com ar de orgulho Sigmund Rascher, responsável pelo campo de concentração de Dachau. Lá, ele se utilizava de cobaias humanas vivas para seus experimentos. Já o médico da renomada Universidade de Estrasburgo, August Hirt, utilizou cerca de oitenta corpos em estudos anatômicos para determinação da superioridade do povo ariano. Para muitos especialistas em anatomia o Atlas Pernkopf, conforme ilustra a figura a seguir, produzido com base na dissecação de corpos de aproximadamente 1.500 prisioneiros, é o melhor trabalho ilustrado sobre anatomia humana já efetuado na história. Para outros, trata‑se de um livro questionável e póstumo que, ao lado de suásticas, traz a seguinte frase: “feliz conjunção de ilustradores brilhantes e corpos de criminosos executados” (REZENDE, 2019). 33 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 24 – Atlas Pernkopf A partir de 1977, uma nova técnica de preparação de peças anatômicas foi elaborada. Essa descoberta foi realizada pelo médico e professor da Universidade de Heidelberg na Alemanha, Gunther von Hagens, o qual se intitula “Vesalius do século XXI”, que inventou e desenvolveu o processo de plastinação, conforme ilustra a figura a seguir, uma maneira moderna de mumificação, fazendo com que os cadáveres tenham uma elevada resistência. A plastinação é outro aspecto que envolve polêmicas bioéticas, em que espécimes inodoros, secos e quase eternos estão sendo vastamente utilizados como modelos de anatomia em exposições e faculdades de medicina. Milhares de pessoas já testemunharam corpos dissecados em uma das exposições de anatomia pelo mundo e o novo mercado on‑line de espécimes humanos plastinados está aumentando. Figura 25 – Cadáver plastinado, musculatura e pele 34 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I A anatomia humana sempre será uma ciência relevante, não só porque aperfeiçoa o entendimento do funcionamento do corpo humano, mas também por ser fundamental no diagnóstico clínico e no tratamento das doenças. A anatomia humana já não é mais restrita à observação e à descrição das estruturas isoladas, ela se ampliou para compreender as complexidades de como o corpo humano age como um todo integrado. A ciência da anatomia é dinâmica e permanecerá ativa porque os dois aspectos do corpo humano – estrutura e função – são inseparáveis. Saiba mais Para conhecer as novas técnicas de preservação de peças anatômicas, leia: ANDREOLI, A. T. et al. O aprimoramento de técnicas de conservação de peças anatômicas: a técnica inovadora de plastinação. Revista EPeQ/Fafibe, Bebedouro, n. 4, p. 81‑85, 2012. Disponível em: <http://www.unifafibe.com. br/revistasonline/arquivos/revistaepeqfafibe/sumario/24/20112012215831. pdf>. Acesso em: 10 mar. 2019. KIM, J. H. Exposição de corpos humanos: o uso de cadáveres como entretenimento e mercadoria. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 309‑348, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0104‑93132012000200004>. Acesso em: 10 mar. 2019. Para saber mais sobre os precursores da medicina, o desenvolvimento dessa disciplina: GORDON, R. A assustadora história da medicina. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. Para saber mais sobre a história da anatomia e conhecer o Museu de Anatomia UFCSPA: UFCSPA. Uma breve história da anatomia humana. Porto Alegre: UFCSPA, [s.d.]. Disponível em: <http://www.ufcspa.edu.br/index.php/ historia‑da‑anatomia‑humana>. Acesso em: 10 mar. 2019. 1.3 Bases gerais da anatomia A anatomia humana é considerada a disciplina mais antiga da medicina, tanto que no começo ambas se confundiam. Pelo menos no princípio era possível saber anatomia, ou pelo menos ter alguns conhecimentos anatômicos, para poder praticar a medicina. Desde aquela época começou a ser oportuno o pensamento nulla medicina sine anatomia, ou seja, não há medicina sem anatomia. 35 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Ramo seco da biologia, ciência dos mortos ou ciência dos fósseis, a anatomia morreu: esses são os versos cantados por aqueles que julgam desnecessário o estudo da anatomia. Para demonstrar esse mal, um caso pitoresco ocorreu no Brasil, quando um laureado com prêmio Nobel foi convidado a fazer conferências científicas e educacionais sobre atualização do currículo médico. O famoso professor, com toda a autoridade que um ganhador de prêmio Nobel pode ter, brindou a plateia com a seguinte mimosidade: “uma grande redução no currículo poderia ser feita às custas da anatomia, pois para conhecer a anatomia dos homens bastaria conhecer a anatomia do rato”. A grande vantagem que ele antevia era que a dissecação de um mamífero pequeno poderia ser feita em três dias e não nos três anos necessários para dissecar o homem. Na discussão que se seguiu, um dos participantes da plateia perguntou: “Se o orador fosse acometido por uma apendicite aguda, ele escolheria o cirurgião que tivesse dissecadoum rato, ou um que tivesse dissecado um cadáver humano?” O orador fez uma longa pausa e confessou honestamente que ele escolheria o cirurgião que tivesse estudado anatomia no homem. O professor que fizera a pergunta retomou a palavra e parabenizou o orador pela sua excelente escolha, acrescentando: “principalmente porque o rato não tem apêndice vermiforme” (DI DIO, 1998, p. 28). A anatomia divulga as bases da forma e da estrutura do corpo humano e de seus órgãos. A forma descreve a morfologia externa do indivíduo, de seus membros e órgãos. A estrutura respeita a organização interna dos órgãos e de seus componentes nos níveis macroscópico, microscópico, submicroscópico e molecular; o termo “estrutura” inclui a função. A anatomia determina, ao lado da fisiologia e da bioquímica, a base para a profilaxia, o diagnóstico, a terapia e a reabilitação de patologias. Observação Homeostase é a preservação de um ambiente interno moderadamente contínuo e adaptado para a sobrevivência das células e dos tecidos do corpo. Defeitos na preservação das circunstâncias homeostáticas indicam patologias. Os processos das patologias podem atingir primeiramente um tecido, um órgão ou um sistema específico, porém, em última instância conduzirão a modificações de função ou da estrutura das células do corpo. Algumas patologias podem ser recuperadas pelas defesas corporais, já outras exigem tratamento. Por exemplo, quando acontece um trauma e existe sangramento excessivo ou lesão de órgãos internos o tratamento cirúrgico pode ser indispensável para resgatar a homeostase e impossibilitar problemas potencialmente letais. 1.3.1 Divisão da anatomia: estudos Além dos aproveitamentos na medicina e das diversas formas de estudo da anatomia, há uma leitura anatômica nas várias áreas da atividade humana. 36 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Anatomia macroscópica Refere‑se às estruturas com dimensões maiores do que 1 milímetro, isto é, as estruturas que podem ser identificadas a olho nu ou com auxílio de uma lupa. A figura a seguir mostra a anatomia macroscópica de um cadáver conservado com técnica MAR V. Figura 26 – Métodos del Museo de Anatomía de Rosario Anatomia microscópica Parte além das estruturas analisadas a olho nu, que permite uma subdivisão mais detalhada do corpo humano. Visualiza estruturas com dimensões menores do que 1 milímetro. A anatomia microscópica divide‑se em citologia, estudo da estrutura e função da célula, e histologia, estudo dos tecidos e anatomia microscópica dos órgãos. Lembrete A anatomia macroscópica estuda as estruturas do corpo humano a olho nu, enquanto a anatomia microscópica se utiliza de equipamentos como, por exemplo, os microscópios. Anatomia artística A anatomia artística, que se presta ao estudo das proporções dos segmentos naturais do corpo humano, a configuração exterior, relacionando‑a, principalmente, com ossos e músculos, estática e dinamicamente para finalidades de escultura e pintura. Como exemplo de anatomia artística temos a pintura Mona Lisa, conforme ilustra a figura a seguir, também conhecida como Gioconda, a mais notável e conhecida obra de Leonardo da Vinci. 37 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Figura 27 – Mona Lisa Anatomia comparativa A anatomia comparativa compara e inclui os planos estruturais de diferentes representantes do reino animal e busca regras relacionadas à forma. Outra função dela é o confronto entre seres humanos e outros animais, com o intuito de encontrar formas homólogas, ou seja, iguais entre as espécies, e as heterólogas, ou seja, diferentes entre as espécies. Anatomia do desenvolvimento ou embriologia A anatomia do desenvolvimento é o estudo do conjunto de episódios que vão da fecundação de um ovócito secundário por um espermatozoide à formação de um organismo adulto. A gravidez é o conjunto de episódios que se inicia com a fertilização; prossegue durante a implantação, desenvolvimento embrionário e desenvolvimento fetal; e, de modo ideal, termina com o nascimento de uma criança, após aproximadamente entre 38 e 40 semanas depois da última menstruação. As figuras a seguir mostram os períodos embrionário e fetal, respectivamente. A fecundação ou fertilização consiste no encontro dos gametas feminino e masculino, ovócito secundário e espermatozoide, que acontece na ampola da tuba uterina. O período embrionário corresponde às primeiras nove semanas a partir do dia da fertilização, aquele em que todos os órgãos e sistemas se formam (organogênese). 38 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Orelha Olho Nariz Membro superior Cordão umbilical Membro inferior Embrião de 52 dias Figura 28 – Período embrionário Orelha Olho Nariz Boca Membro superiorFeto de 26 semanas Membro inferior Figura 29 – Período fetal O período fetal inicia‑se a partir da décima semana pós‑fertilização e vai até o nascimento. Nessa fase o bebê é chamado de feto e os órgãos já constituídos sofrem um processo de crescimento e amadurecimento até que apresentem‑se em totais condições de funcionamento no final da gravidez. Saiba mais Para saber mais sobre os efeitos da gestação: TORTORA, G. J.; DERRICKSON, B. Princípios de anatomia e fisiologia. 14. ed. São Paulo: Guanabara‑Koogan, 2016. GODINHO, J. M. et al. Prevalência de desconfortos musculoesqueléticos no puerpério. In: CONGRESSO DE PESQUISA E EXTENSÃO DA FACULDADE DA SERRA GAÚCHA, 2017. Anais – V Congresso de Pesquisa e Extensão da FSG (2017). Caxias do Sul: Faculdade da Serra Gaúcha, 2017. Disponível em: <http://ojs.fsg.br/index. php/pesquisaextensao/article/view/2828>. Acesso em: 11 mar. 2019. 39 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 ANATOMIA BÁSICA DOS SISTEMAS Anatomia nepiológica ou nepionatomia A palavra nepio ou nípio, do grego, e infans, do latim, significa “o que não fala”. Portanto, trata‑se do estudo da anatomia da primeira infância e constitui‑se de uma ligação entre o estudo da embriologia e o da anatomia de crianças, adolescentes e adultos jovens. Anatomia do adulto Estuda a estrutura do corpo humano após o seu completo desenvolvimento. É subdividida em masculina (entre 25 e 60 anos de idade) e feminina (entre 21 e 50 anos idade). Anatomia gerontológica É o estudo da morfofisiologia do indivíduo idoso (acima de 60 anos de idade). Não deve ser confundida a anatomia gerontológica, que corresponde ao estudo do idoso normal, com a geriátrica, pois essa estuda o idoso doente e faz parte, portanto, da anatomia patológica. Anatomia radiológica Existem diversas técnicas e procedimentos para obter imagens do corpo humano. Vários tipos de imagem permitem a observação de estruturas anatômicas no interior do corpo, e são cada vez mais benéficas para o diagnóstico exato de um amplo espectro de distúrbios anatômicos e fisiológicos. A avó de todas as técnicas de imagem é a radiografia convencional (com raios X), em utilização desde o final da década de 1940. As tecnologias de imagem mais modernas, conforme ilustram as figuras a seguir, não só aperfeiçoaram a capacidade diagnóstica, mas também elevaram o conhecimento da anatomia e da fisiologia normais. Figura 30 – Densitometria óssea da região lombar da coluna vertebral 40 Re vi sã o: Ju lia na - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 2 8/ 05 /1 9 Unidade I Figura 31 – Angiograma de um adulto apresentando obstrução da artéria coronária (seta) Saiba mais Para saber mais sobre anatomia seccional e a tecnologia clínica: MARTINI, F. H.; TIMMONS, M. J.; TALLISTSCH, R. B. Anatomia humana. Porto Alegre: Artmed, 2009. Anatomia de superfície A anatomia de superfície é a anatomia do indivíduo e limita a superfície do corpo humano. A experiência adquirida durante o estudo anatômico é aplicada
Compartilhar